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1 Título: CONTORNOS DA BOA-FÉ OBJETIVA Ementário de temas: As três funções da boa-fé objetiva – Os deveres anexos de conduta – Proibição do comportamento contraditório Leitura obrigatória: TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. “A Boa-Fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org.) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 29/44. Leituras complementares: NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 115/153. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158. A boa-fé tradicionalmente figura como elemento dos estudos jurídicos quando se deve investigar se o indivíduo possui ou não ciência sobre uma determinada condição, como, por exemplo, se o individuo conhece, ou não, um vício que macula a sua posse sobre determinado terreno. Essa perspectiva da boa-fé convencionou-se denominar boa-fé subjetiva. Existe, todavia, uma outra forma de atuação da boa-fé no direito brasileiro, denominada boa-fé objetiva, a qual foge de qualquer ilação sobre um estado de espírito do agente para se fixar em uma análise voltada para critérios estritamente objetivos. As três funções da boa-fé objetiva É comum delimitar-se três funções típicas desempenhadas pela boa-fé objetiva no direito brasileiro. Sendo assim, pode-se definir a função tríplice da boa-fé objetiva da seguinte forma: A boa-fé objetiva desempenha inicialmente um papel de critério para a interpretação da declaração da vontade nos negócios jurídicos. Essa função é prevista no art. 113 do novo Código Civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Esse dispositivo ganha relevo ao indicar que a primeira função da boa-fé objetiva é dirigir a interpretação do juiz ou árbitro relativamente ao negócio celebrado, impedindo que o contrato seja interpretado de forma a atingir finalidade oposta àquela que se deveria licitamente esperar. A boa-fé objetiva atua ainda como forma de valorar o abuso no exercício dos direitos subjetivos, conforme consta do art. 187 do Código Civil: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. E, por fim, a boa-fé objetiva é, ainda, norma de conduta imposta aos contratantes, segundo o disposto no art. 422 do Código Civil: Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. A função desempenhada pela boa-fé objetiva a partir do dispositivo no art. 422 é, sem dúvida, a sua atuação mais comentada pela doutrina e da qual mais se vale a jurisprudência dos tribunais nacionais. Os deveres anexos de conduta O motivo pelo qual a terceira função da boa-fé objetiva recebeu tamanho destaque deriva justamente do seu próprio conteúdo: impor às partes contratantes deveres objetivos de conduta, que não necessariamente precisam constar do instrumento contratual 2 para que possam ser cobrados e cumpridos. Tratam-se dos chamados deveres secundários, ou anexos, aos quais todas as partes de um negócio devem manter estrita observância. Essa caracterização da boa-fé objetiva como a disposição de deveres de conduta que as partes devem guardar difere frontalmente daquela concepção clássica de boa-fé subjetiva, ligada a um estado psicológico do agente. Os deveres secundários impostos pelo art. 422 foram gradativamente sendo construídos pela doutrina e pela jurisprudência, podendo-se mesmo falar em quatro deveres básicos: (i) dever de informação e esclarecimento; (ii) dever de cooperação e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo. Todavia, diversas derivações podem surgir desses quatro deveres básicos, como bem explicita Judith Martins-Costa, os deveres secundários podem abranger um vasto leque de condutas que deverão ser observadas pelas partes, como, por exemplo: “a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares.” Referência Bibliográfica: Judith Martins-Costa. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999, p. 439. A imposição desses deveres se reveste de papel fundamental para a ordenação dos contratos na prática, uma vez que se busca, com a sua afirmação, proteger um bem que se encontra na própria essência da contratação: a confiança. Por esse motivo, o enquadramento legal da boa-fé objetiva sempre se mostrará atrelada à tutela da confiança, sobretudo no que diz respeito à aplicação desse princípio aos casos de responsabilidade pré- contratual. Mas a redação do art. 422 não está afastada de qualquer espécie de crítica. Muito ao reverso, Antonio Junqueira de Azevedo afirma que a redação do art. 422 se mostra insuficiente, deficiente e desatualizada perante às exigências da prática contratual moderna. Segundo o autor, o artigo seria insuficiente em sua redação pois não deixa claro se os seus dispositivos constituem norma cogente ou meramente dispositiva, além de não mencionar as fases pré e pós-contratuais para fins de responsabilização. O artigo seria ainda deficiente por não prever de forma explícita quais são os chamados deveres anexos. E, por fim, o dispositivo seria desatualizado pois confere poderes desmesurados ao juiz para interferir nas relações contratuais, abrindo possibilidade para se incrementar a sobrecarga de processos que impede o regular funcionamento do Poder Judiciário, além de não serem os juizes tradicionalmente preparados para decidir casosnos quais figurem contratos de extrema especialidade técnica. Nesse sentido, menciona o autor, a época atual estaria passando do paradigma do juiz para o paradigma do árbitro. 3 Referência Bibliográfica: Antonio Junqueira de.Azevedo. “Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158 A proibição de comportamento contraditório A proibição do comportamento contraditório representa uma das principais contribuições dos estudos sobre boa-fé objetiva para a prática contratual. O instituto possui especial aplicação na fase de negociações que antecede a formação do contrato, coibindo as partes de frustrar expectativas legitimamente criadas no pólo contrário das negociações. A expressão nemo potest venire contra factum proprium consolida a idéia de que a ninguém é permitido agir contra a sua própria conduta prévia. Trata-se da reprovação social à adoção de comportamentos contraditórios com efeitos perniciosos a terceiros. O fundamento do venire contra factum proprium, como visto, reside no princípio da boa-fé objetiva, especialmente na sua vertente voltada para a tutela da confiança. A ausência de regulamentação no direito positivo não impede a aplicação do instituto, o qual vem sendo amplamente utilizado para casos de responsabilidade pré- contratual. A doutrina, contudo, tem adotado entendimento no sentido de que a proibição de comportamento contraditório derivaria do preceito contido no art. 3o, I, da Constituição Federal, o qual consagra a solidariedade social. Referência Bibliográfica: Anderson Schreiber. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; p. 101 e 124. Os pressupostos para aplicação do venire contra factum proprium, de acordo com Anderson Schreiber, são os seguintes: (i) um factum proprium,; (ii) a geração na outra parte de confiança legítima no sentido de manutenção da conduta inicialmente adotada; (iii) um comportamento contraditório violador desta confiança; e (iv) dano ou ameaça concreta de dano derivado da contradição. A proibição de comportamento contraditório surge, portanto, em casos em que a conduta adotada por uma das partes gera legítimas expectativas na outra parte, as quais terminam por serem quebradas. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu favoravelmente a agricultores uma ação com base na quebra das expectativas geradas por uma empresa especializada na fabricação de extratos de tomates, uma vez que a empresa tinha por hábito entregar-lhes sempre as sementes para plantio, e comprar o resultado da posterior colheita. No ano em que a empresa entregou as sementes e não comprou a colheita, os agricultores alegaram ter sofrido prejuízos pela quebra de expectativas geradas pela empresa. Segundo consta do acórdão em questão: “Tanto basta para demonstrar que a ré, após incentivar os produtores a plantar safra de tomate – instando-os a realizar despesas e envidar esforços para plantio, ao mesmo tempo em que perdiam a oportunidade de fazer o cultivo de outro produto – simplesmente desistiu da industrialização do tomate, atendendo aos seus exclusivos interesses, no que agiu dentro do seu poder decisório. Deve, no entanto, indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo.” A aplicação da vedação ao comportamento contraditório surge na complementação do voto vencedor, ao afirmar que, no caso, “confiaram eles lealmente na palavra dada, na repetição do que acontecera em anos anteriores.”
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