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BOA-FÉ OBJETIVA, DEVERES ANEXOS E VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO: observações sobre o processo obrigacional Lucas Costa de Oliveira* e Marcelo de Mello Vieira ** 1. Introdução. 2. A relação obrigacional: uma perspectiva contemporânea. 3. Apontamentos sobre a boa-fé objetiva. 3.1. O conceito. 3.2. As funções. 3.3. A normatividade. 4. Deveres anexos da boa-fé objetiva. 4.1. Deveres de proteção. 4.2. Deveres de esclarecimento. 4.3. Deveres de lealdade. 5. Violação positiva do contrato ou lesão aos deveres anexos. 6. Conclusão. 1 INTRODUÇÃO O Direito das Obrigações pode ser considerado como o mais científico dos “ramos” do Direito Civil ou, pelo menos, o mais lógico deles. Por muito tempo, ele ficou preso às raízes romanas, entendido como um vínculo jurídico individualizado no qual uma pessoa podia exigir algo de outra. Se em um primeiro momento, o devedor podia vir a pagar sua dívida com o seu corpo, tal ideia foi substituída, ainda na antiguidade, pela responsabilidade patrimonial. Todavia, a sujeição do devedor ao credor foi aspecto da relação obrigacional que perdurou por muito tempo. A noção clássica de obrigação já retrabalhada no Código Civil francês, que foi inclusive abarcada pelo Direito nacional, só começa a ser repensada com a influência do Direito alemão a partir dos estudos sobre a boa-fé objetiva. Tais estudos, trazidos ao Brasil por Clóvis do Couto e Silva e Olímpio Costa Júnior, provocaram as primeiras reflexões que fizeram com que os juristas começassem a repensar a relação obrigacional no país. A previsão da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002 acelera as discussões e finalmente se revela um Direito Obrigacional mais moderno e ético. O presente trabalho pretende justamente tratar tais mudanças e repensar a obrigação na contemporaneidade, evidenciando as necessárias modificações decorrentes da boa-fé objetiva. Para tanto, apresentar-se-á um conceito moderno de obrigação civil, mostrando o seu desenvolvimento até chegar ao atual. A boa-fé será tratada em seguida, abordando-a como um * Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Mestrando em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. ** Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Doutorando em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Professor de Direito Civil da Faculdade de Estudos Administrativos - FEAD MG. princípio jurídico, estabelecendo o seu conteúdo e esclarecendo suas funções. Posteriormente, enfatizar-se-á um dos elementos da boa-fé objetiva: os deveres anexos ou laterais. Por fim, será trabalhada a infração desses deveres, também chamada de violação positiva do contrato. 2 A RELAÇÃO OBRIGACIONAL: UMA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA O conceito de relação jurídica obrigacional não é criação recente. Pelo contrário, desde os romanos é possível encontrar uma estruturação jurídica da relação obrigacional. 1 Se, por um lado, o seu núcleo central permaneceu imutável ao longo dos séculos (sujeitos, objeto, vínculo), por outro, diversos aspectos passaram a integrar a estrutura da relação (dinamicidade, boa-fé objetiva, deveres anexos). No pensamento jurídico brasileiro, a transição rumo a um modelo mais abrangente e contemporâneo de relação jurídica obrigacional se deu pela efetivação de um Estado Democrático de Direito, bem como pela transição do Código Civil de 1916 para o Código Civil de 2002. Dessarte, para desenvolver um conceito contemporâneo de relação jurídica obrigacional (modelo dinâmico), é preciso entender como era o conceito anteriormente (modelo estático). O modelo estático de relação obrigacional era aquele previsto no ordenamento e no pensamento jurídico do Código Beviláqua. Assim sendo, faz-se necessário explicitar algumas fontes que influenciaram na criação dessa codificação: o liberalismo econômico-estatal, a escola francesa e a escola alemã. A codificação civilista de 1916 se edificou sob forte influência do Estado Liberal. Frente a esse paradigma, a função estatal era negativa e formalista. Ao Estado caberia a estipulação de uma esfera privada inviolável, em que seria função de cada indivíduo a estipulação das regras que regeriam suas condutas. Assim, a relação intersubjetiva era normatizada pelos indivíduos, cabendo ao Estado a regulação da esfera pública. A função estatal seria, sobretudo no âmbito privado, a facilitação de circulação de riqueza da incipiente classe burguesa. Nesse sentido, o Code Napoléon de 1804 representa a consolidação do Estado Liberal. Pode-se indicar como características dessa codificação: i) A atribuição de plena força à vontade – autonomia da vontade sem restrições. O contrato era a ferramenta da burguesia, 1 Célebre é o conceito elaborado por Justiniano no Digesto. Na tradução de César Fiúza (2012, p. 159): “Obrigação é o vínculo jurídico, pelo qual somos adstritos a pagar uma coisa a alguém, segundo nossos direitos de cidade”. uma vez ajustado os termos, esses deveriam ser cumpridos (pacta sunt servanda). ii) A impessoalidade do vínculo, dando maior importância ao patrimônio. iii) O positivismo jurídico, principalmente aquele desenvolvido pela Escola da Exegese. A lei deveria ser sólida e pura. A ideia era de que o cidadão comum teria a condição de saber como se portar pela simples leitura do Código Civil. A escola alemã, sedimentada com a publicação do Bϋrgerliches Gesetzbuch em 1900, também apresentou impactos na codificação brasileira. A divisão entre parte geral e parte especial possibilitou uma análise mais detida sobre a matéria obrigacional. Da mesma maneira, a tecnicidade e abstração do Código Alemão também são também características marcantes da codificação de 1916. 2 A influência da tradição romanista também se encontra presente em ambas as codificações. Como mencionado anteriormente, o modelo estático de obrigação se desenvolveu sob o influxo das fontes supracitadas. Desse modo, Clóvis Beviláqua definia obrigação como a [...] relação transitória de direito que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa economicamente apreciável, em proveito de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude de lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão. 3 (BEVILÁQUA, 1896, p. 5). Percebe-se uma aproximação muito grande do conceito de Clóvis Beviláqua e de Justiniano. Isso ocorre pois ambos partem de uma concepção estática da relação jurídica obrigacional. Nessa concepção, a obrigação é vista apenas em seu aspecto interno, sem interferência de quaisquer outros fatores. Assim, sujeito, objeto e vínculo seriam elementos suficientes para caracterizar a relação obrigacional estática. Tal modelo é abstrato e formal, tendo como finalidade única o cumprimento do que foi pactuado entre as partes. Acontece que a abstração e formalidade demasiadas, bem o cumprimento incondicional das obrigações gerou graves abusos. A autonomia da vontade consubstanciada nos contratos, fonte maior de obrigações, levou à maior exploração do homem pelo homem que se noticiou na história ocidental. É nesse contexto que surge a superação do modelo estático de relação obrigacional. Ainda sob a égide do diploma civilista de 1916, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva percebe a insuficiência de um modelo estático de relação obrigacional e desenvolve a teoria 2 A abstração conceitual e linguística do Código Civil de 1916 foi objeto de crítica por juristas à época, dentre os quais, Pontes de Miranda. Sintetizando essa posição, Giordano Roberto (2011, p. 69): “Outra característica seria a maior preocupação com a correção da linguagem e dos conceitosdo que com as possibilidades de aplicação prática dos dispositivos”. 3 Texto com adaptações para as normas linguísticas contemporâneas. Alterações meramente formais. da obrigação como processo. 4 Em síntese, a teoria entende o direito obrigacional em sua totalidade, desenvolvendo-se através das fases (nascimento/desenvolvimento e cumprimento), de maneira cooperativa para o objetivo máximo do vínculo, o adimplemento, sempre respeitando os princípios da boa-fé e da autonomia da vontade. (SILVA, 2007). Para se entender a teoria da obrigação como processo é preciso partir da noção de separação de planos, pois é nessa que se demonstra o caráter dinâmico da relação obrigacional. A separação ocorre entre as fases de nascimento e desenvolvimento dos deveres e a do adimplemento. É impossível negar que a vontade de criar obrigações (nascimento e desenvolvimento) nem sempre é a mesma de extingui-las (adimplemento). Obrigar é ligar, adimplir é afastar. Dessa maneira, existe uma grande distância entre o primeiro e o último ato do processo. O ordenamento jurídico brasileiro adota o modelo da separação relativa, em que quando a vontade de se obrigar é manifestada, é ao mesmo tempo manifestada a vontade de adimplir, em um só ato. Diferente é o ordenamento alemão, em que a vontade não é co- declarada, sendo necessária uma manifestação de vontade para cada ato, deixando mais explícita separação de fases. Assim, para Clóvis do Couto e Silva é o caráter dinâmico que demonstra a noção de processo da obrigação. É a distância de fases que gera o caminhar da obrigação rumo ao adimplemento, ao cumprimento da obrigação. Importante destacar que a ideia de processo e dinamicidade não exclui a de totalidade. Dessa sorte, a obrigação deve ser entendida como um todo composto por diversas fases, cada uma com suas funções e características próprias. Ainda em relação à teoria da obrigação como processo, duas características são centrais: a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva. O princípio da autonomia da vontade consiste no poder de pessoas capazes se obrigarem quando quiserem, com quem quiserem e sobre o que quiserem – liberdade que se encontra presente desde o Direito Romano, acentuada, todavia, pela revolução francesa. Não obstante, essa liberdade não é total, suprema, sofrendo limitações. Essa limitação ocorre pois deve haver uma conformação do interesse público e privado, na medida em que a autonomia 4 A importância da teoria da obrigação como processo no pensamento jurídico brasileiro é indiscutível. Por todos, José Roberto de Castro Neves (2009, p. 19): “Atualmente, o fenômeno das obrigações já não é visto com ênfase no poder do credor. O enfoque atual pende para relação obrigacional como um processo, no qual se enfatiza o interesse social de que o objetivo da obrigação seja atingido, sem a preponderância de qualquer das partes da relação”. privada não pode ferir princípios trazidos na Constituição da República que protegem a solidariedade, a dignidade, a igualdade entre as partes, dentre outros. 5 O princípio da boa-fé é fonte geradora de obrigações. É uma regra de conduta que tem a finalidade de estabelecer um padrão honesto e leal entre as partes. É a partir da concepção de boa-fé objetiva que Clóvis do Couto e Silva (2007) aponta a cooperação como elemento indispensável da relação obrigacional. Não cabe aqui maior aprofundamento, haja vista que o tema será abordado de maneira mais detalhada adiante. Outra contribuição importante no pensamento jurídico brasileiro foi dada por Olímpio Costa Júnior, ao desenvolver a relação jurídica obrigacional inserida na teoria da situação jurídica: A situação jurídica, portanto, é algo que se põe no mundo dos fatos: na ordem de concreção, no plano da eficácia. Por isso mesmo, a utilização dessa teoria, visando a analisar a obrigação como situação jurídica tipicamente relacional, possibilita examiná-la não em apenas em sua estrutura estática, invariavelmente composta de sujeitos, objeto e vínculo, mas também em sua contextura dinâmica, sujeita a modificação fáticas, relativas a qualquer um desses elementos – aos sujeitos, ao objeto ou ao próprio vínculo. (COSTA JÚNIOR, 1994, p. 6). Dessa maneira, percebe-se que o caráter dinâmico das obrigações se manifesta no plano da concreção. Isso ocorre, na perspectiva do referido autor, em virtude da relação obrigacional ser uma espécie do gênero situação jurídica. 6 Uma reflexão interessante pode ser feita ao relacionar o conceito de obrigação como processo ao conceito de contrato relacional proposto por Ian Macneil (2009). O contrato relacional contrapõe-se ao contrato descontínuo. No primeiro, a relação sempre se dá em um contexto – inserido em uma sociedade e incrustado de valores. A partir deste pano de fundo, extrai-se as concepções de solidariedade contratual, de boa-fé, de obrigações principais (promissórias) e acessórias (não-promissórias). Como bem explica Ronaldo Porto Macedo Jr. (MACNEIL, 2009) na apresentação da obra, “contratos são relações constituídas dentro de um processo que as constitui e modifica”. Já o contrato descontínuo seria aquele instantâneo, 5 Sobre o conceito de autonomia privada conferir: OLIVEIRA, Lucas Costa de. Reflexões sobre o princípio da autonomia privada. In: Direito Civil na Contemporaneidade. SÃO JOSÉ, Fernanda; POLI, Leonardo Macedo (orgs). Belo Horizonte: D’Plácido, 2015, p. 249-273. 6 Vários são significado da dinamicidade na relação obrigacional. Para Clóvis do Couto e Silva (2007) é a separação de fases que indica o movimentar da relação obrigacional rumo ao adimplemento. Para Olímpio Costa Júnior (1994), seria a realização da relação obrigacional no plano da eficácia, no plano da concreção, que identificaria o dinamismo da relação obrigacional. César Fiúza (2013) entende que do ponto de vista exógeno, econômico-social, toda relação obrigacional é dinâmica. Poder-se-ia ainda falar que o caráter dinâmico da relação obrigacional é caracterizado pela frequente troca de posições entre credor e devedor. Em síntese, o que há de comum em todas essas definições é que a relação obrigacional dinâmica é aquela que se movimenta e se transforma no espaço e tempo. em que não há planejamento, não há tantos deveres acessórios, constituindo-se basicamente nas promessas. Desse modo, não haveria tanta interferência do contexto nesse modelo contratual descontínuo. Percebe-se que as ideias referentes ao contrato relacional se relacionam à concepção de obrigação como processo. A análise da relação obrigacional como um todo permeado de solidariedade, boa-fé, valores sociais e planejamento, é perceptível em ambas as teorias. Ambas visam mitigar a concepção da autonomia da vontade irrestrita e a concepção da relação como vínculo exclusivo de credor-devedor, sem interferência de princípios. Destarte, apesar de serem teorias oriundas de sistemas jurídicos distintos, apontam um caminhar no mesmo sentido. Frente a tudo que foi desenvolvido é possível indicar aspectos centrais do modelo dinâmico de relação obrigacional. Parte-se da constatação de que é um modelo desenvolvido sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. No âmbito do Direito Privado, isso indica que a obrigação se edifica a partir de um conceito autonomia privada em que há o respeito das dimensões da liberdade, dignidade e alteridade. A efetivação da autonomia privada aponta para uma relação obrigacional que não se esgota em seu aspecto interno e estático. Mais que isso, a obrigação é uma relação jurídica dinâmica que se pauta pela cooperação rumo ao adimplemento. Sintetizando de maneira competente o conceito contemporâneo de relação obrigacional, César Fiuza entende que “obrigação é a situação dinâmica consistente em relação jurídica em cooperação entre credore devedor, ficando este adstrito, basicamente, a cumprir prestação de caráter patrimonial em favor daquele, que poderá exigir judicialmente seu cumprimento”. (FIUZA, 2013, p. 371). 3 APONTAMENTOS SOBRE A BOA-FÉ OBJETIVA No modelo dinâmico de obrigação o princípio da boa-fé objetiva tem posição central. Para uma melhor compreensão da boa-fé objetiva, faz-se necessário determinar a abrangência do seu conceito, indicar sua aplicação e função, bem como aferir se ela é, de fato, um princípio jurídico. 3.1 O conceito A importância de se determinar a abrangência do conceito da boa-fé objetiva reside em identificar seu enquadramento dogmático para distinguir de outros conceitos semelhantes. A boa-fé possui significações distintas no contexto do Direito. O conceito tem sua origem etimológica no Direito Romano. Em um primeiro momento surge a concepção da fides, entendida como um vínculo moral ou ético. Fides significa fidúcia, confiança entre as partes. Após um momento de expansão territorial de Roma, o conceito torna-se bona fides, representando um conceito mais objetivo, referente à conduta mercantil. (POMPEU, 2012). Dentre as várias significações, duas possuem maior relevância: a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. A primeira tem um aspecto interno, psicológico, diz respeito às convicções internas e (des)conhecimento das situações. Um exemplo normativo da boa-fé subjetiva é o art. 309 do Código Civil que determina a validade do pagamento ao credor putativo. A segunda tem um aspecto externo, representa um padrão de conduta (standard) cooperativo, honesto e transparente. A primeira legislação que trouxe a previsão expressa da boa-fé objetiva foi o Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, III e art. 51, IV). No Código Civil o art. 422 é o melhor exemplo, ao dispor que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. 7 A vantagem trazida pela objetivação da boa-fé é a possibilidade de uma aferição mais objetiva e direta do cumprimento ou descumprimento desse princípio. A noção de boa-fé subjetiva gera a necessidade de uma avaliação axiológica, valorativa por parte do julgador, causando incerteza e insegurança na relação obrigacional. A boa-fé objetiva, por sua vez, tem uma carga deontológica, normativa. Destarte, a aferição do (des)cumprimento da boa-fé objetiva será realizada através da conduta exteriorizada pelos partícipes da relação, sendo irrelevante a vontade internalizada. 3.2 As funções A doutrina identifica três funções essenciais da boa-fé objetiva: a função hermenêutica, a função limitadora e a função normativa. A referida tripartição foi inspirada nas funções do direito pretoriano, sendo proposta modernamente por Franz Wieacker (BARBOSA; MORAES; TEPEDINO, 2006) e retomada por Judith Martins Costa (1999). O Código Comercial de 1850 já estabelecia a boa-fé como cânon interpretativo- integrativo: 7 Outros exemplos podem ser retirados do Código Civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração; Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: I- a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer a rigorosa e restrita significação das palavras. Para Couto e Silva (2007), o processo hermenêutico visa conferir a justa medida à vontade que se interpreta, evitando-se um subjetivismo. Trata-se de um comando direcionado ao intérprete para que o contrato atinja sua finalidade econômico-social. Nesse sentido, a função hermenêutica se aproxima do que foi analisado em relação ao conceito da boa-fé objetiva. Assim, o processo interpretativo da relação obrigacional é realizado pelas condutas exteriorizadas pelas partes no desenvolvimento do vínculo obrigacional. A função limitadora visa impor barreiras ao exercício de certos direitos, funcionando como parâmetro para avaliação de comportamentos abusivos. Para Cruz (2013) é uma função negativa ou reativa da boa-fé, uma vez que visa proibir ou sancionar comportamentos que possam prejudicar o cumprimento da prestação. Nesse sentido, a boa-fé se conecta à teoria do abuso de direito. Reflexo dessa função é o postulado do venire contra factum proprium, em que “não se admite que uma pessoa, depois de incutir em outra uma justa expectativa, modifique abruptamente a sua inicial posição”. (CASTRO NEVES, 2009, p. 34). Consectários lógicos do postulado do venire contra factum proprium, faz-se importante indicar as figuras da suppressio, surrectio e tu quoque. A primeira consiste na perda do direito decorrente da falta de seu exercício por razoável lapso de tempo. A segunda corresponde ao surgimento de um direito decorrente do seu exercício por razoável lapso de tempo. A terceira diz respeito ao comportamento que rompe com confiança do vínculo, surpreendendo uma das parte da relação, gerando uma situação de injusta desvantagem. (VIANA; GAGLIANO, 2015). A função normativa é aquela que aponta a boa-fé objetiva como criadora de deveres jurídicos, independente de manifestação de vontade nesse sentido. São os chamados deveres anexos, laterais ou acessórios, na medida em que não se referem ao objeto central da obrigação. Pode-se citar como exemplo dos deveres anexos os deveres de informação, cuidado, cooperação e auxílio. Contudo, como bem explica Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes, “trata-se, em suma, de deveres de proteção e cooperação, que, embora se possam exemplificar, não se podem exaurir por meio de catálogos abstratos e apriorísticos”. (BARBOSA; MORAES; TEPEDINO, 2006, p. 19). Esse tema será abordado com maior profundidade no tópico subsequente. Nesse momento basta salientar que a boa-fé objetiva é fonte geradora de obrigações durante todo o processo obrigacional – mesmo antes (deveres pré-contratuais), ou depois (deveres pós-contratuais). Trata-se, portanto, de uma função ativa da boa-fé. (CRUZ, 2013). 3.3 A normatividade Aferir se a boa-fé objetiva pode ser considerada um princípio jurídico não se trata apenas de um exercício teórico, apresentando também importantes consequências pragmáticas. Enquadrar a boa-fé objetiva como princípio jurídico significa atribuir normatividade, exigibilidade para as condutas derivadas da boa-fé objetiva. Assim, mais que um padrão axiológico que pode ser utilizado na aplicação e interpretação da relação obrigacional, a boa-fé objetiva passa a ser um padrão normativo que deve ser observado em todo o processo obrigacional. Muitas foram as concepções de princípio na história do pensamento jurídico. No pensamento contemporâneo prevalece o conceito de princípios como normas jurídicas. Para realizar a aferição proposta, adotar-se-á a definição de Robert Alexy, no sentido de que princípios são comandos de otimização que devem ser cumpridos em graus, observando-se as condições fáticas e jurídicas. 8 Desse modo, Robert Alexy (2012) aponta três critérios para a distinção entre regras e princípios, que seriam ambos espécies do gênero norma jurídica: o critério quantitativo; o critério qualitativo; e o critério do comportamento em caso de choque ou conflito. Segundo o primeiro critério, princípios seriam normas mais gerais em comparação com as regras, principalmente em virtude da abstração dos seus conceitos e dos valores ali positivados – mas tal distinção não seria a fundamental. Pelo critério qualitativo,princípios seriam normas que podem ser cumpridas em graus, respeitando as condições fáticas e jurídicas. Seriam mandamentos ou comandos de otimização, também denominados de dever ser ideal. Regras, por sua vez, seriam mandamentos ou comandos definitivos, também entendidos como dever ser real. São normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Importante salientar que para Alexy, ao contrário de Dworkin, regras e princípios possuem um caráter prima facie, ou seja, admitem exceções. Por fim, segundo o critério do comportamento em caso de colisão, os princípios teriam a solução no âmbito da ponderação em sentido amplo, ao passo que as regras teriam a solução no âmbito da validade. 8 Uma outra definição é apresentada por Ronald Dworkin (2002), para quem princípios são normas de caráter prima facie, apontando uma direção a ser seguida ou indicando razões para determinada decisão. Em relação ao primeiro critério, não há grandes problemas. A boa-fé objetiva apresenta um alto grau de generalidade em seu conceito, abrangendo variadas condutas distintas. Em relação ao segundo critério, é correto afirmar que a boa-fé objetiva pode ser (des)cumprida em graus, tendo em perspectiva as situações fáticas e jurídicas. Um exemplo basta para ilustrar tal afirmação. Em um contrato paritário, em que as partes se encontram em igualdade de condições, discutem os termos do negócio jurídico, o princípio da boa-fé objetiva é aplicado de maneira mais abrangente. Já nos contratos de adesão, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva se dá de maneira mais restrita – afinal não existe espaço para negociação. Isso não significa que não deve haver a aplicação do princípio em ambos os contratos, na medida que o direito possui um código binário (lícito e ilícito). Acontece que no primeiro tipo de contrato, a boa-fé se aplica na negociação, no desenvolvimento e após o contrato, ao passo que no segundo não há sequer negociação. 9 A ponderação ocorre na medida em que a boa-fé pode colidir com outros princípios jurídicos, como o princípio da vida privada, da intimidade. Dessa maneira, pode-se concluir que a boa-fé objetiva pode ser enquadrada como princípio jurídico, estabelecendo deveres normativos de conduta. 4 DEVERES ANEXOS DA BOA-FÉ OBJETIVA Se a divisão de fases da obrigação proposta por Couto e Silva evidencia a dinamicidade das obrigações na contemporaneidade, é a boa-fé objetiva; mais especificamente, os deveres instrumentais, anexos ou laterais, que dão o caráter cooperativo a essa situação jurídica. É ela que proporciona a superação da noção clássica que resume a relação obrigacional ao vínculo jurídico pelo o qual o credor pode exigir uma prestação do devedor, hoje identificado como deveres principais ou primários. A boa-fé objetiva, portanto, modifica não só o conceito de obrigação como altera a forma como ela deve ser negociada e cumprida, sendo que ao lado da chamada obrigação principal surgem outras obrigações que decorrem dos deveres laterais. Os deveres primários são aqueles determinados exclusivamente pela obrigação principal convencionada diretamente pelas partes, são as obrigações de dar, fazer e não fazer 9 Um outro exemplo pode ser apresentado. Em um contrato em que a parte deixa de esclarecer informação de menor importância para a conclusão do negócio jurídico, há o descumprimento em menor grau do princípio da boa-fé objetiva, se comparado com um contrato em que a parte deixa de esclarecer informação central para a conclusão do negócio jurídico. disciplinadas no Código Civil brasileiro, 10 isto é, são aquelas as quais tradicionalmente se restringia o Direito Obrigacional. Já os deveres anexos derivam da exigência de um comportamento ético e probo imposto aos negociantes pela boa-fé objetiva, ou seja, não decorrentes do contrato, e se destinam a assegurar que a obrigação cumpra seu objetivo, a satisfação das partes. Caroline da Cruz adverte que: [...] esses deveres, na grande maioria das vezes não descritos no instrumento contratual, transcendem a vontade das partes, pois não são decorrentes de sua deliberação, e sim da atuação dos envolvidos e das circunstâncias postas na relação obrigacional, com o fim de regular o comportamento dos contratantes para evitar situações danosas à pessoa ou ao patrimônio dos envolvidos, expostos em decorrência da relação. (CRUZ, 2012, p. 8). Clóvis Couto e Silva (2007) distinguia os deveres anexos dependentes, os que se vinculam a obrigação principal, dos independentes, os que possuem vida autônoma, que podem perdurar até após o fim do dever principal. Justamente por não se fundamentarem diretamente na obrigação principal, mas sim em comportamento leal, é que se pode afirmar que alguns desses deveres são exigíveis tanto antes do negócio jurídico ser entabulado como depois de cumpridos os deveres primários, falando-se assim não só em eficácia pós- contratual, mas também em eficácia pré-contratual das obrigações. 11 É importante esclarecer que não há de se falar em hierarquia entre os deveres obrigacionais. Os deveres anexos são tão importantes e vinculantes quanto os deveres principais, sendo que, em determinadas situações, sua inobservância equiparar-se-á ao não cumprimento do dever principal podendo resultar em dever de indenizar ou na dissolução do vínculo contratual (BRAGA, 2013), tema que será tratado posteriormente. Como a exigência do comportamento ético se destina aos sujeitos da relação obrigacional, os deveres anexos impõem direitos e deveres a todos eles. Dessa forma, o credor e o devedor dos deveres principais se transformam em credores e devedores recíprocos quando se trata dos deveres laterais, ou seja, credor da obrigação principal estará, ora em uma categoria normativa ativa (podendo exercer direitos e poderes), ora em uma categoria normativa negativa (sujeito aos deveres e ônus) e vice versa. Essa combinação de categorias 10 Para Martins-Costa (1999), observam-se nas obrigações os deveres primários, aqueles que são o centro da relação obrigacional e o que define a espécie de contrato, e os deveres secundários, que se subdividem: em deveres secundários acessórios da obrigação principal, os que buscam preparar/garantir a obrigação principal, como dever de conservar e transportar a coisa; e deveres secundários com prestação autônoma, que são aqueles derivam dos deveres primários, como dever de indenizar. Além desses deveres a autora ainda vislumbra os deveres instrumentais ou acessórios de conduta, que são o objeto de estudo desse trabalho. 11 Com base no mesmo argumento, Carolina Cruz (2012) defende que a eficácia dos deveres mesmo quando o contrato é declarado nulo. normativas diversas faz com que as obrigações sejam situações jurídicas complexas (PERLINGIERI, 2002). Christian Lopes (2011) destaca que nem sempre a boa-fé objetiva impõe deveres positivos às partes, sendo que o comportamento exigido é, muitas vezes, um comportamento negativo, ou seja, a abstenção de determinado ato. A afirmação do autor se mostra correta, especialmente quando se analisa os deveres laterais, como por exemplo, o dever de sigilo. Os deveres anexos são classificados por Couto e Silva (2006) como deveres de indicação e esclarecimento e de cooperação e auxílio. Já Judith Martins-Costa (1999) sugere que eles são exemplificativamente divididos em dever de cuidado, previdência e segurança; de aviso e esclarecimento; de informação; de prestar contas; de colaboração e cooperação; de proteção e cuidado com a pessoa e patrimônio da contraparte; e de omissão e de segredo. Contudo, ambas as classificações pecam em apontar a existência de um dever autônomo de cooperação, fato inclusive criticado pelo próprio Couto e Silva, queafirmou que todos “os deveres anexos podem ser classificados deveres de cooperação.” (SILVA, 2006, p. 96). De fato, a cooperação é o objetivo dos deveres anexos. São eles que, como já trabalhado, fazem com que a cooperação deixe o plano moral para se tornar jurídica e, como consequência, exigível. Também a exemplificação feita por Martins-Costa mostra-se excessivamente fragmentada, separando deveres que são essencialmente os mesmos. Nesse contexto, a distinção feita pelo jurista português Antônio Menezes Cordeiro se mostra mais adequada, embora não isentas de críticas. Para Menezes Cordeiros (2007), os deveres anexos se dividem em deveres de proteção, esclarecimento e de lealdade. O ponto principal dessa divisão é que ela não prevê um dever específico de cooperação, que como já dito se mostra incoerente, e, de forma simples, agrega deveres de conteúdo muito similar em torno de um dever mais amplo, ao contrário da proposta de Judith Martins-Costa. Já a maior crítica a classificação tripartite de Menezes Cordeiro reside na dificuldade em se distinguir de forma exata as fronteiras de cada um desses deveres, uma vez que “a ausência do dever de esclarecimento pode implicar quebra do dever de lealdade, assim como esta pode resultar de desamparo ao dever de proteção.” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 134). Destaque-se ainda que o conteúdo desses direitos não são estáticos e, assim como a sociedade e o Direito, estão constante modificação – e em constante ampliação de seus conteúdos. 4.1 Deveres de proteção Os deveres de proteção são aqueles que buscam resguardar tanto a pessoa quanto o patrimônio das partes, evitando que elas venham a sofrer prejuízos durante o transcorrer do processo obrigacional em razão de alguma conduta praticada pelo outro contratante. É nesse dever que se visualiza [...] todo amparo e assistência que uma parte deve à outra durante todo o curso obrigacional, formando-se, assim, um verdadeiro abrigo negocial a ambas as partes. Trata-se, enfim, de verdadeiro arrimo assistencial oferecido por uma parte à outra, promovendo-lhe tanto a tutela pessoal, quanto patrimonial. (QUEIROZ, 2015, p. 34). Ele, portanto, congregaria tanto o dever de cuidado, previdência e segurança quanto o dever de proteção e cuidado com a pessoa e patrimônio da contraparte explicitado por Martins-Costa. Não há uma delimitação exata do conteúdo desse dever, mas sim uma previsão genérica que se torna capaz de proteger qualquer situação que pode causar lesão ao patrimônio ou pessoa do contratante. Também se inclui aqui, deveres que visam evitar que terceiros venham a prejudicar qualquer uma das partes. Tal entendimento foi abarcado pelo STJ, que no julgamento do Recurso Especial 107.211/SP entendeu ser cabível indenização por danos causados ao veículo de um cliente que estava no estacionamento do estabelecimento comercial sob o fundamento de violação ao dever de proteção. Miguel Vieira (2007) adverte que se tratando de negociação e/ou contratação no meio virtual deve-se ter especial atenção quanto à segurança dos sítios, cabendo ao vendedor ou prestador de serviços garantir que a tecnologia utilizadas possua um padrão mínimo de segurança, além de explicitar ao destinatário os riscos existentes nesta forma de contratação. É necessária visualizar sua presença desde a fase pré-contratual, especialmente nas negociações preliminares, como na etapa pós-negocial, já que as partes permaneceriam “vinculadas, em termos específicos, a não provocarem danos mútuos” (MENEZES CORDEIRO, 2007, p. 628). 4.2 Deveres de esclarecimento Os deveres de esclarecimento são todos aqueles que buscam igualar o desequilíbrio informacional que as partes possuem tanto no momento que iniciam as tratativas quanto ao longo do cumprimento da obrigação contraída, sendo que tal déficit pode influenciar na constituição e no desenvolvimento da relação obrigacional. Ele possui duas facetas: aviso e esclarecimento; e informação, que foram tratados separadamente por Martins-Costa (2006). Especialmente importante na fase pré-negocial, a troca informações sobre todos os aspectos que envolvem o negócio jurídico é vital para se fechar ou não o acordo, uma vez que somente de posse de informações claras, as partes poderão criar as expectativas reais, expectativas essas que são protegidas pela boa-fé. Esse dever visa, portanto, permitir o exercício pleno da autonomia privada contratual, sendo que a falta de informação ou informação errônea essencial podem ensejar vícios contratuais capaz de conduzir a anulabilidade do acordo. No entanto, tais deveres também possuem grande importância nas outras fases do processo obrigacional, já que ao longo dessa relação podem surgir situações que influenciam essa relação, sendo vital que comuniquem tudo que possa melhorar ou prejudicar o pacto inicial com o intuito de que se mantenham as expectativas inicialmente criadas ou, caso necessário, elas sejam adaptadas de comum. Logo, os deveres de esclarecimento podem ser compreendidos como aqueles que obrigam as partes a “informarem-se mutuamente de todos os aspectos atinentes ao vínculo, de ocorrências que, com ele, tenham certa relação e, ainda, de todos os efeitos que, da execução contratual, possam advir”. (MENEZES CORDEIRO, 2007, p. 628). Nesse contexto, mostra-se ainda atual a afirmação de Couto e Silva (2006) que esse dever se restringe ao esclarecimento de qualquer circunstância relevante para a obrigação. As informações e esclarecimentos devem ser passados de forma clara e linguagem acessível para a outra parte, sempre com o intuito de facilitar a compreensão. Ela também deve chegar ao interessado de forma mais rápida possível, sendo certo que, na era virtual, somente ocasiões excepcionais justificam uma demora de dias para se prestar um esclarecimento. Convém, sempre que possível, disponibilizar em meio digital o contrato e quaisquer outras informações prestadas, o que facilita seu acesso às partes. 4.3 Deveres de lealdade São os deveres de lealdade que impõe às partes a obrigação de se absterem de praticar atos com o intuito de “falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado” (MENEZES CORDEIRO, 2007, p. 606), sendo, para Farias e Rosenvald (2014), as condutas desleais um verdadeiro atentado contra a dignidade da outra parte. Menezes Cordeiro ensina que [...] podem ainda surgir deveres de actuação positiva. A casuística permite apontar, como concretização desta regra, a existência, enquanto um contrato se encontre em vigor, de deveres de não concorrência, de não celebração de contratos incompatíveis com o primeiro, de sigílo face a elementos obtidos por via da pendencia contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte e de actuação com vistas a preservar o objetivo e a economia contratuais. (sic). (MENEZES CORDEIRO, 2007, p. 606- 607). Nota-se, portanto, que tais deveres se traduzem em obrigações de fazer e não fazer, tendo como finalidade reforçar esse dever de cooperação entre as partes para que o que foi contratado seja efetivamente cumprido, ou seja, que as expectativas iniciais sejam atendidas. Embora tratados de forma separada por Judith Martins-Costa (2006), esses deveres englobam os deveres de colaboração e cooperação como os de omissão e de segredo. Sua eficácia pré-contratual pode ser facilmente averiguada nas hipóteses de responsabilização pelo rompimento brusco das negociações preliminares nas situações em estas já estejam avançadas. Já a eficácia pós-contratual pode ser vista especialmente nos deveres de sigilo e de não concorrência. Como se pode vislumbrar, o conteúdo dos três deveres anexos, por vezes, se confundem, sendo difícil traçar as fronteiras entre eles, o que faz com essa classificação seja mais didática do que prática, sendo que somente no caso concretoé possível se fazer uma identificação mais adequada. Entretanto, é certo que eles modificam o conteúdo da obrigação, alterando também as noções de adimplemento e inadimplemento. 5 VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO OU LESÃO AOS DEVERES ANEXOS Apesar de a boa-fé objetiva estar prevista no Código Civil vigente, a legislação nacional ainda trabalha com a ideia tradicional de obrigação focando apenas nos deveres principais. Todavia, a consagração desse princípio proporcionou toda uma releitura do processo obrigacional, como tem sido exposto nesse trabalho, sendo de suma importância às contribuições das decisões judiciais e da literatura jurídica. O alargamento do conceito de obrigação provocado também pela inclusão dos deveres anexos conduziu a uma expansão na noção de adimplemento. Se antes considerava cumprida a obrigação que atendia a prestação principal, hoje ela se exaure somente quando são conjuntamente observados os deveres laterais. (QUEIROZ, 2015). Tal situação acaba por também transmutar a finalidade de todo processo obrigacional, já que agora não se pode preocupar somente com o atendimento dos interesses do credor (dos deveres principais), mas sim com a satisfação das partes (que são credores e devedores recíprocos dos deveres anexos). (PEREIRA, 2014). Se a ideia de adimplemento foi alterada, modificou-se por consequência a noção de inadimplemento. Tradicionalmente, o tratamento do inadimplemento obrigacional restringiu- se a dispor apenas sobre o não cumprimento da prestação principal, 12 que se divide em inadimplemento absoluto e inadimplemento relativo ou mora. O primeiro ocorre tanto nas hipóteses de impossibilidade de se prestar o que foi acordado, quanto nas situações em que a mesma prestação não é mais útil para o credor, embora seja possível seu cumprimento. Já o segundo se traduz como não cumprimento, por parte tanto do credor quanto do devedor, dos deveres principais no tempo, no lugar e na forma estabelecida na lei ou na convenção (art. 394 do Código Civil). Inegavelmente, esse sistema dual atende as hipóteses de não cumprimento dos deveres principais, mas se mostra omisso quando se trata de lesões aos deveres anexos. É a violação positiva do contrato que busca suprir essa lacuna. Para Cristiano Farias e Nelson Rosenvald, ela “aplica-se a uma séria de situações práticas de inadimplemento que se relacionam com a obrigação principal – mais precisamente o inadimplemento derivado da inobservância dos deveres laterais.” (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 535). A violação positiva do contrato é, portanto, uma forma autônoma e independente considerada uma terceira forma de inadimplemento (LEAL, 2014; PEREIRA, 2014; QUEIROZ, 2015), que ao contrário do que acontece no Direito português, é identificada somente com a infração aos deveres laterais, 13 afetando diretamente à confiança mútua das partes. Menezes Cordeiro (2007) ensina que, no Direito português, a violação positiva do contrato se identifica com o cumprimento defeituoso da prestação principal, não cumprimento das prestações secundárias e a violação dos deveres anexos. O conceito de mora do Direito brasileiro abarca as duas primeiras hipóteses, razão pela qual se entende que no país a violação positiva do contrato se resume somente a terceira situação. Trata-se de uma categoria residual, uma vez que havendo o não cumprimento dos deveres principais, que também pode ser identificado com o descumprimento de um dever 12 É o que ainda ocorre no Código Civil brasileiro, que como já dito, manteve-se fiel à visão clássica de obrigação identificada com os deveres principais. 13 É importante relembrar que os deveres anexos, acessórios ou laterais podem se traduzir tanto em obrigações positivas quanto em negativas, sendo certo que apesar de a lesão a tais deveres se denominar violação positiva do contrato, Adisson Leal (2014) adverte que essa teoria se aplica a infração de todo e qualquer desses deveres. lateral, não há de falar em violação positiva do contrato, mas sim em inadimplemento relativo ou absoluto. (LEAL, 2014). Sendo uma categoria de inadimplemento não prevista expressamente no ordenamento nacional, suas consequências também não são. Para Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald, a violação positiva do contrato [...] deverá ser identificada em seus efeitos patrimoniais com o adimplemento, para que dela se possa extrair o direito da parte ofendida à resolução do vínculo obrigacional ou, mesmo, à oposição da exceptio non adimpleti, inclusive com todas as consequências da responsabilidade civil, sobremaneira o deve de indenizar em prol do lesado. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 536). Para Adisson Leal (2014), somente analisando as circunstâncias in concreto é que poderia se vislumbrar qual das consequências (resolução contratual ou responsabilização civil) se mostra mais indicada àquela situação. De fato, a falta de previsão normativa faz com que só a partir dos elementos do caso concreto que o magistrado estará apto a determinar qual das consequências é a mais adequada, devendo ela ser devidamente justificada argumentativamente na decisão. Ressalva-se, contudo, que aquelas situações em que a lesão aos deveres anexos ocorrer em fase pré ou pós-contratual só será cabível a via indenizatória, uma vez que ou inexiste o contrato ou ele já foi cumprido. Para que a resolução contratual seja considerada a consequência mais adequada, é necessário que violação aos deveres laterais seja de tal gravidade que abale definitivamente a confiança da parte lesada em sua contraparte. Isso porque, um dos princípios que regem o Direito Contratual é o princípio da manutenção dos contratos, sendo também necessário que não tenha ocorrido o adimplemento substancial da obrigação. (LEAL, 2014). Nas hipóteses em que uma das partes, mesmo antes do prazo assinalado, já demonstra de forma clara que não vai cumprir sua parte do avençado, o chamado inadimplemento contratual antecipado, a via resolutória se mostra, em tese, a mais adequada a essa forma de violação positiva do contrato. (FARIAS; ROSENAVALD, 2014; QUEIROZ, 2015). Tratando-se da via indenizatória, será uma responsabilidade contratual, ainda que a infração ocorra na fase de negociações preliminares, porque a responsabilidade deriva de um negócio jurídico ainda que não entabulado. Como adverte Adisson Leal (2014), trata-se de responsabilidade objetiva e o valor da indenização será apurado conforme as regras previstas no ordenamento civil brasileiro, devendo ela reparar todo o tipo de dano (material, moral etc.). 6 CONCLUSÃO Ao longo do artigo foram analisados diversos aspectos da relação jurídica obrigacional com a finalidade de desenvolver um conceito contemporâneo de obrigação. Um conceito que fosse além do conteúdo estático e interno, que pensasse a relação obrigacional como um caminhar dinâmico e cooperativo rumo ao adimplemento. Um conceito que adotasse a boa-fé objetiva como princípio estruturante e fundante de toda relação obrigacional, que apresentasse um alargamento na noção de deveres obrigacionais, abrangendo também os deveres laterais ou anexos, que ampliasse a noção de inadimplemento, englobando também a violação positiva do contrato. Para tanto, longo foi o percurso argumentativo desenvolvido. Em um primeiro momento, apresentou-se um conceito dinâmico de relação obrigacional, em contraponto ao modelo estático. Essa concepção possibilitou a identificação da obrigação como uma relação que se desenvolve e se transforma no espaço e no tempo, sendo a base para todos os outros conteúdos trabalhados no artigo. A boa-fé objetiva foi apontada como princípio jurídico fundamental à compreensão do processo obrigacional contemporâneo. Nesse ponto, analisou-se o seu conteúdo, distinguindo- a da boa-fé subjetiva; a sua aplicação,apresentando as funções hermenêutica, normativa e limitadora; e a sua normatividade, defendendo o enquadramento da boa-fé objetiva como princípio jurídico. Os deveres anexos ou laterais promovem a cooperação entre as partes, marca das obrigações jurídicas na atualidade e amplia a noção de adimplemento, uma vez que o objetivo do Direito Obrigacional passa a ser a satisfação dos interesses dos envolvidos e não mais só do credor. Também a noção de inadimplemento é modificada, surgindo a figura da violação positiva do contrato, justamente quando há lesão a essas deveres anexos. Ao final dessa travessia, pode-se concluir que foi possível elaborar relevantes observações sobre o processo obrigacional, contribuindo para a renovação do secular conceito de obrigação jurídica. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. 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