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2 A nacionalização e a regionalização na formação da identidade latino- americana* Elisiane Rubin Rossato** elirossato@terra.com.br Resumo: Este trabalho analisa a influência das idéias de integração continental nos processos de formação e consolidação dos Estados nacionais latino- americanos, com especial enfoque aos países da região platina. Apesar de ser um fenômeno recente, surgido na década de 1950, as noções de regionalização e de integração estiveram presentes ao longo da história da América Latina, principalmente nos dois últimos séculos, contribuindo para a formação da idéia de uma identidade latina comum. O ideal de integração econômica latino-americana despontado no século XX é, portanto, resultado de um longo processo de entendimentos e divergências regionais que, com o Mercosul, busca-se superar, através da aproximação política e econômica de países vizinhos. Palavras-chave: Regionalização. Nacionalismo. América Latina. Abstract: This work analyses the influence of the continental integration ideas in the process of formation and consolidation of the Latin American national States, enphasising especially the platinum region countries. Althought it is a recent phenomenon, emerged in the 1950 decade, the notions of regionalization and of integration were present along all the Latin America history, specially in the last two centuries, contributing to form the idea of common latin identity. The ideal of economic integration in Latin America appeared in the XX century is, thus, the result of a long process of regional agreements and divergences that, with Mercosur, it is intented to be overcomed, through the political and economical approximation of neighbour countries. Key words: Regionalization. Nationalism. Latin America *Artigo elaborado sob orientação da Profa. Dra. Maria Medianeira Padoin e apresentado como requisito parcial de avaliação na disciplina de História da América Latina, cursada no primeiro semestre de 2003, no Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria. ** Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria. 3 Introdução A regionalização é um acontecimento recente cujos ideais, no entanto, estiveram presentes ao longo de todo o processo de formação e consolidação dos Estados nacionais latino-americanos e, de modo especial, nos países da Bacia do Prata e que atualmente compõem o Mercosul, apesar das disparidades geográficas, econômicas e políticas existentes entre os países1. É na busca de uma melhor compreensão desse processo, a partir da presença de idéias de regionalização na história dos Estados platinos, que este estudo se insere. Na verdade, a regionalização surgiu na década de 1950, com a criação do projeto de integração européia. Diversamente da globalização que se referencia em fluxos de capitais e mercadorias, a regionalização baseia-se na criação de mercados transnacionais, a partir da criação de blocos geoeconômicos que agrupam conjuntos de países. Esse processo fundamenta-se em medidas comerciais de abertura de mercados e remoção de barreiras alfandegárias reguladas por acordos pactuados entre Estados como em processos de integração objetivos e não regulamentados, determinados por investimentos de capitais no exterior. Este fenômeno pressupõe uma certa relativização do conceito de Estado-nação e de soberania. Já a nacionalização está presente, de modo especial, nos últimos dois séculos da história humana. Entretanto, a idéia moderna de nação “una e indivisa” só surge no século XIX com uma conotação essencialmente política2. Na época da independência dos Estados nacionais ibero-americanos, os protagonistas da história não tinham a preocupação com a nacionalidade. A formação de uma nação ou Estado era concebida em termos racionalistas e contratualistas. É o que afirma CHIARAMONTE (1997): En síntesis, constituir una nación era organizar un Estado mediante un processo de negociaciones políticas tendientes a conciliar las conveniências de cada parte, y en los que cada grupo participante era firmemente consciente de los atributos que le amparaban según el Derecho de Gentes: su calidad de persona soberana, su derecho a no ser obligado a entrar en asociación alguna sin su consentimiento – clásica 1 A expressão América Latina começou a ser utilizada em 1860 e foi uma idéia concebida pela França como um programa de ação para incorporar o papel e as aspirações da França às populações hispânicas do Novo Mundo (John PHELAN. El origen de la idea de latinoamérica. In: Leopoldo ZEA (org.). Fuentes para cultura latino-americana. México: Fundo de Cultura Econômica, 1995). 2 Eric HOBSBAWM. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p 11. 4 figura esta, la del consentimiento, substancial a los conflictos políticos del período – y su derecho a buscar su conveniência, sin perjuicio de la necesidad de conciliarla, en un proceso de negociaciones con concesiones recíprocas, con la conveniência de las demás partes3. Atualmente, apesar do essencial papel que desempenha, o nacionalismo é menos importante. Não é mais, como foi nos séculos XIX e início do XX, um programa político global. É, principalmente, um fator complicador, ou um catalisador para outros desenvolvimentos. A história do século XIX pode ser apresentada como aquela da “construção das nações”, o que é profundamente modificado no século seguinte4. É sob este enfoque que se estudará o processo de regionalização na América Latina e, de modo particular, nos países que compõem o Mercosul, a partir da análise histórica da formação dos Estados nacionais. O nacionalismo na América Latina Nos primeiros tempos – os tempos de Colombo – a América foi uma. Os conquistadores, aventureiros e colonos enxergaram na América o paraíso perdido e reencontrado. A América era a fonte de riquezas incomensuráveis, que incitavam a imaginação e chamavam para a aventura. Por oposição à Europa, a América era o Novo Mundo, livre dos vícios e da miséria, da provação e do sofrimento. A unidade americana dessas primeiras décadas não se assentava sobre a realidade, mas sobre a imaginação5. A colonização rompeu a unidade ilusória da América de Colombo, fragmentando-a em territórios desconectados, amarrados apenas pelos laços que os prendiam à economia mercantil vertebrada nas Monarquias européias. As modalidades divergentes de exploração colonial dissolveram a “América” e criaram as Américas: a América Hispânica, assentada sobre a servidão ameríndia; a América Lusitana, apoiada na escravidão africana; a América Anglo-Saxônica, bipartida entre as plantações sulistas escravocratas e as propriedades familiares nortistas; o Caribe das plantations e dos piratas... A formação dos Estados nacionais americanos – que tem como ponto de partida as independências alcançadas nas primeiras 3 José Carlos CHIA RAMONTE. La formación de los Estados nacionales en Iberoamérica. Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. Emilio Ravignani”. Terceira serie, n. 15, 1º. Semestre de 1997. p. 148. 4 Eric HOBSBAWM. Op. cit. p 214-215. 5 Demétrio MAGNOLI. Questões Internacionais Contemporâneas. Brasília: Funag, 2002. p. 228.5 décadas do século XIX – completou o percurso de fragmentação do Novo Mundo. Aquele século caracterizou-se pela gradual estruturação dos Estados nacionais modernos na América. As colônias portuguesas e espanholas foram palco de transformações políticas e econômicas marcadas por conflitos e guerras civis nas disputas por espaços territoriais e de poder6. A distribuição desigual era em parte uma imposição da geografia. Devido à desigual implantação, a colonização seguia concentrada em núcleos separados por desertos ou obstáculos naturais dificilmente enfrentáveis; antes de alcançar o vazio demográfico e econômico a instalação espanhola se faz, em amplas áreas, incrivelmente escassa7. Percebendo as grandes disparidades regionais e intentando diminuir os conflitos institucionais e a corrupção da administração colonial, a Coroa espanhola introduziu uma reforma administrativa nas Índias, no século XVIII. Entretanto, as reformas não conseguiram diminuir os conflitos institucionais e os progressos contra a corrupção da administração colonial são modestos, permanecendo limitado o poder dos agentes do rei. O Vice-reino do Rio da Prata foi uma das regiões hispano- americanas que mais sofreu com as transformações da estrutura imperial. Principalmente por razões políticas (necessidade de estabelecer uma barreira ao avanço português), a Coroa concedeu apoio decisivo a um processo que já começava a se insinuar: a orientação em direção ao Atlântico8. A invasão da Espanha pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, em 1810, deflagrou o processo das independências na América Hispânica. As elites criollas das colônias espanholas – estimuladas pelas idéias vindas da França revolucionária e da república independente dos Estados Unidos – encontraram em homens como Simon Bolívar e José de San Martín os chefes militares da libertação. A restauração da Coroa espanhola em 1814, após a derrota de Napoleão, abriu caminho para uma terrível contra-ofensiva metropolitana. Quando se iniciava a ofensiva recolonizadora espanhola contra as forças dos generais libertadores, aparecia a célebre “Carta da Jamaica” (1815). Nesse documento, Simon Bolívar preconizava a unidade da América Hispânica independente, que deveria se organizar numa imensa confederação, do México até a Argentina, formada por três grandes 6 Maria Medianeira PADOIN. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. p. 15. 7 Tulio Halperin DONGHI. História Contemporánea de América Latina. Madrid: Alianza, 1998. p. 49. 8Idem. p. 57. 6 federações. O grande ideal bolivariano, de unidade do conjunto hispano- americano, teve nesse documento a sua primeira expressão. Com efeito, afirma BOLÍVAR: És una idea grandiosa pretender formar de todo el Mundo Nuevo una sola nación con un solo vínculo que ligue sus partes entre sí y con el todo. Ya que tiene un origen, una lengua, unas costumbres y una relegión, debería, por consiguiente, tener un solo gobierno que confederas elos diferentes estados que hayan de formarse; mas no és posible, porque climas remotos, situaciones diversas, intereses opuestos, caracteres desemejantes, dividen a la América9. Mais tarde, no “Discurso de Angostura” (1819), Simón Bolívar insiste, como fizeram mais tarde muitos outros latino-americanos, na necessidade de partir da própria realidade, da realidade que atinge os homens americanos, por mais negativa que ela seja. Ele conduz o Libertador a questionar-se sobre a identidade dos povos que devem ser libertados. Uma identidade confusa, complicada, mas que seria necessário esclarecer para, ao mesmo tempo, iluminar o futuro desses povos. Saber quem são para saber também o que querem ou podem alcançar. Não imitar, não repetir, mas recriar a fim de não recair em novas dependências. Bolívar se antecipa à analise dos problemas que atingirão o futuro da América Latina10. Com efeito, afirma BOLÍVAR: Nosotros ni aun conservamos los vestigios de lo que fue en outro tiempo: no somos europeos, no somos índios, sino una especie media entre los aborígenes y los españoles. Americanos por nacimiento y europeos por derechos, nos hallamos en el conflicto de disputar a los naturales los títulos de posesión y de mantenermos en el país que nos vio nacer, contra la oposición de los invasores11. Em 1824, quando a Libertação tinha finalmente se concluído, a fragmentação territorial da América Hispânica desenvolvia-se sob o influxo das oligarquias regionais, que tinham herdado os aparelhos administrativos metropolitanos. Bolívar, presidente da Grã-Colômbia, empreendia então a última tentativa de salvar a unidade hispano-americana, convocando o Congresso do Panamá. Dois anos depois, a reunião – assistida apenas pela 9 Simon BOLÍVAR. Carta de Jamaica. In: Leopoldo ZEA (org.). Fuentes para cultura latino-americana. México: Fundo de Cultura Econômica, 1995. p. 30. 10 Leopoldo ZEA (org.). op.cit. p. 438. 11 Simon BOLÍVAR. Discurso de Angostura . In: Leopoldo ZEA (org.). op. cit. p. 443. 7 Grã-Colômbia, México, Federação Centro-Americana e Peru – fracassava melancolicamente. A dinâmica da decomposição territorial evoluiu inexoravelmente, gerando guerras civis, conflitos e guerras de fronteira, hostilidade e desconfiança. Os novos Estados emergiram refletindo os interesses das elites criollas e dos caudilhos políticos regionais. O projeto bolivariano continuou ecoando nas décadas seguintes. Nos anos de 1830 e 1840, o México esboçou iniciativas para a convocação de reuniões continentais, revelando as suas ambições de converter-se em liderança regional. Entretanto, após a devastadora guerra contra os Estados Unidos (1846-48), deflagrada pela anexação do Texas, as iniciativas bolivarianas transferiram-se para a América do Sul. Entre 1848 e 1865, ocorreram três encontros continentais, convocados sob o signo da “Carta da Jamaica” – Congresso Americano de Lima (1848), Congresso Continental de Santiago (1856), Segunda Conferência de Lima (1864-65) – gerando compromissos ambiciosos que nunca saíram do papel. Nas últimas décadas do século XIX, o hispano-americanismo esgotou-se completamente, contaminado pelos interesses conflitantes das oligarquias e corroído pelos fracassos sucessivos das tentativas integracionistas. Por essa época, a ascensão dos Estados Unidos à condição de grande potência representou o golpe definitivo contra o hispano- americanismo, que foi substituído pelo pan-americanismo. As origens remotas do pan-americanismo encontram-se da Doutrina Monroe. Tratava-se de um projeto norte-americano para consolidar uma maior integração entre os países da América. A América para os americanos – essas palavras célebres pronunciadas em 1823, perante o Congresso dos Estados Unidos, sintetizavam a oposição da república independente ao colonialismo europeu. Simultaneamente, sinalizavam as ambições territoriais do novo Estado, buscando articular o continente americano como um sistema de Estados sob sua liderança, de modo a estabelecer uma área protegida de mercados e fontes de produtos primários, debilitando a presença na região das potências européias, suas concorrentes. Esse duplo caráter – anticolonial e expansionista – da Doutrina Monroe seria a fonte da sua força e permanência. Traduzida e atualizada por todo um século, ela serviu de fundamento ideológico para a construção da esfera de influênciacontinental dos Estados Unidos. A formação do Estado nacional na América Latina corresponde a dois processos indissociáveis: a internacionalização do modo de produção capitalista que conduz à institucionalização do poder burguês no mundo todo, buscando a expansão de uma economia internacional caracterizada 8 pelos princípios do livre-comércio, do esquema de divisão internacional do trabalho em função das vantagens comparativas de cada país e, por outro lado, os processos de emancipação das colônias ibéricas. O primeiro processo tem um caráter econômico-social e o segundo é eminentemente político-militar. O vínculo reside justamente na estreita articulação entre estes aspectos da realidade12. Edmundo HEREDIA (1998) acrescenta que é neste período que surge o conceito de América Latina e os seus limites territoriais, posto que: A idéia e o conceito primeiros do que é a América Latina se originam nos tempos da incorporação de suas nações à economia e ao sistema político mundiais, na segunda metade do século XIX. Sob esse nome ficaram envolvidas as nações compreendidas entre o Rio Bravo – fronteira setentrional do México –, e o extremo sul americana – limites austrais de Chile e Argentina. A primeira olhada totalizadora do grande setor proveio da Europa, sobretudo quando em seus países mais avançados se reparou nas riquezas naturais que eram indispensáveis para completar seus processos de industrialização13. A América Britânica foi fraturada pela Revolução Americana em dois Estados de dimensões continentais. A América Hispânica dissociou-se em uma diversidade de territórios nacionais, logo depois das vitórias de Bolívar e San Martín. A América Caribenha aprofundou a sua trajetória disruptiva, gerando um caleidoscópio de micro-Estados insulares. A América Lusitana conservou a sua unidade no Império Brasileiro. Com efeito, no Brasil a Independência não foi produto de uma ainda inexistente nação, senão dos conflitos internos de Portugal. Se a elite dirigente adotara o modelo do Estado moderno europeu, suas características, no Brasil, foram condicionadas pela realidade escravista. Em uma sociedade escravocrata, forjada na condição de colônia, não era possível a simples transmigração de um modelo nascido em situação tão diversa14. A formação do Estado nacional seria assim resultado de um processo posterior desenvolvido aproximadamente até 1840/1850, revestido pelo regime monárquico que prevaleceria até 1889. A identidade nacional, como concebida modernamente, prevê o advento das classes populares na vida política, ou, pelo menos, de classes 12 Cláudia WASSERMAN. A formação do Estado Nacional na América Latina: as emancipações políticas e o intrincado ordenamento dos novos países. In: Cláudia WASSERMAN (coord.). His tória da América Latina: Cinco Séculos. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996. p. 213. 13 Edmundo HEREDIA. O Cone Sul e a América Latina. In: Amado Luiz CERVO e Mario RAPOPORT (org.). História do Cone Sul. Brasília: UnB; Rio de Janeiro: Revan, 1998. p. 125. 14 Flávio de CAMPOS e Miriam DOLHNIKOFF. História do Brasil. Brasília: Funag, 2001. p. 29. 9 médias intelectualizadas que aceitam e procuram canalizar os desejos e aspirações populares. No caso da América espanhola, ocorre justamente o contrário: a maior participação popular e a existência de projetos mais radicais acabaram por desencadear uma furiosa reação, como, por exemplo, a invasão portuguesa sobre o Uruguai de Artigas em 1816 e a Independência mexicana em forma de restauração devido aos movimentos de Hidalgo e Morelos. Na América Latina não existia o equivalente europeu do protonacionalismo popular. Além disso, o fato da elite nativa, os criollos, se autodenominarem americanos não indicava vaidade alguma, mas simplesmente a fatalidade do nascimento extra-espanhol15. Aliás: Para a elite “criolla”, as idéias de Independência tinham um caráter pré- nacional, a idéia de nação não tinha maior significado para a grande maioria da população e tampouco para os proprietários de terras, que estavam limitados geograficamente à área que controlavam. O poder político tinha caráter local e regional e esse poder não representava qualquer sentimento de nacionalidade. Além do mais, suas ligações econômicas eram realizadas preferencialmente com o exterior, o que determinava a inexistência de um mercado interno a ser defendido. Quando envolvem-se em guerras pela emancipação, estão defendendo os seus interesses contra a elite peninsular e também concretizando uma revolução pelo alto, devido ao temor de rebeliões como as de Tupac Amaru, no Peru, ou àquela protagonizada por Toussaint L’Ouverture, no Haiti16. Na verdade, suas respectivas nacionalidades e sua figura no respectivo imaginário, é um produto, não um fundamento, da história do surgimento dos Estados nacionais. O obstáculo, paradoxalmente, não era o de não possuir traços definitivos de homogeneidade cultural, mas o de compartilhá-los de um extremo ao outro do continente. CHIARAMONTE (1997) afirma que se os princípios das nacionalidades tivessem sido aplicados, o resultado seria uma só nação hispano-americana. Entretanto, tal como o viam já os primeiros líderes da Independência, uma nação hispano-americana era impossível por razões práticas, concernentes principalmente a enorme extensão do território, a irregularidade da demografia e ao estado das comunicações17. Desde essa época, a unidade da América tornou-se um problema de ordem geopolítica e econômica. Os projetos de integração continental 15Cláudia WASSERMAN. Op. cit. p. 181. 16 Cláudia WASSERMAN. Op. cit. p. 181. 17 José Carlos CHIARAMONTE. Op. cit. p. 162. 10 tornaram-se temas da política externa dos Estados soberanos. Nesse quadro, a disparidade crescente entre o poder e a força dos Estados Unidos, de um lado, e a pobreza e desamparo das nações latino-americanas, de outro, forneceu a moldura para diferentes empreendimentos integradores. Esses povos que haviam reassumido o poder soberano também estavam dispostos de imediato a unir-se com outros povos americanos em alguma forma de Estado ou associação política de outra natureza, mas que não implicasse a perda da soberania. Assunção do Paraguai foi uma das primeiras a recorrer a idéia de uma confederação para defender sua autonomia neste caso frente a Buenos Aires. No final do século XIX, a América Latina começa a adquirir sua identidade como tal, dentro desse complexo processo de confrontação entre as potências; a partir de cada centro de poder, entendeu-se e explicou-se esta parte do mundo segundo os interesses que perseguiam uns e outros e, conseqüentemente, puseram-se em prática várias estratégias para afirmar presenças, ingerências e diversos tipos de pressão. Estas políticas intervencionistas deram lugar a movimentos de repúdio que foram acompanhados por esforços de auto-definição, auto-identificação e de tentativas de desenvolvimentos mais ou menos autônomas18. Com efeito, ao longo daquele século, haviam duas posições principais e opostas quanto ao relacionamento e harmonização das nações latino-americanas entre si – oscilando entre a busca de modernização ou o reforço da identidade –, que não se resolveram mediante diálogo, mas atravésda supremacia do exercício do poder. Um deles (o projeto modernizador) inclinava pelo desejo de seguir o exemplo dos países mais desenvolvidos, por uma acentuação do tecnológico, do mecânico em contraposição com o cultural, o artístico, o humanista, pela convicção de que são os países mais desenvolvidos ou seus habitantes os que melhor podem promover a modernização dos nossos países, pela necessidade de atualizar-se, pelo anúncio de abertura ao mundo, pelo desprezo do popular, do indígena, do latino, do hispânico, do latino-americano e pela busca da eficiência, da produtividade, com desprezo à justiça e à igualdade. O projeto identitário, por outro lado, enfatizava a formação de um conjunto de postulados que ao mesmo tempo em que consolidassem as soberanias nacionais, aprofundariam também laços de solidariedade intracontinentais, com o propósito essencial de consolidar estas soberanias e, ainda, as independências políticas e as integridades territoriais 19 e 18 Edmundo HEREDIA. Op. cit. p. 125. 19 Idem. p. 126. 11 caracterizava-se pela reivindicação e a defesa do americano, do latino, do indígena, do próprio, pela a valorização do cultural, do artístico, do humanista com desprezo do tecnológico, pelo não intervencionismo dos países mais desenvolvidos na América Latina, a reivindicação da Independência e da Libertação, pela acentuação da justiça, da igualdade, da liberdade; pela a reivindicação de uma maneira peculiar de ser, diferente da dos países mais desenvolvidos, na cultura e nos próprios tempos e pela ênfase no encontro consigo mesmo, com o país, com o continente20. Nesse sentido, durante o século XIX houve propostas mais ou menos concretas a favor da harmonização, que receberam nomes diversos, tais como anfictionia, federação, confederação, liga das nações, pacto. A rigor, estas idéias haviam nascido antes que se completassem os projetos de formação dos Estados nacionais, como uma maneira eficiente de empreender a ação encaminhada para superar o estado de prostração colonial. Logo, a organização dos Estados nacionais e sua priorização nos objetivos dos setores dirigentes revelou, paralelamente, planos de harmonização. Somente depois da Segunda Grande Guerra européia surgiu a idéia de integração como uma nova instância para aquela vontade unionista. A Região Platina A análise do processo de formação e consolidação dos Estados nacionais latino-americanos e, de modo especial, a Região Platina, mostra que as idéias de unificação, regionalização e integração estiveram presentes ao longo de todo este processo, de modo mais ou menos intenso, sofrendo influências econômicas, políticas e reflexos do cenário internacional. A história dos países que atualmente compõem o Mercosul apresenta muitos aspectos comuns e as mesma influências do iluminismo sentidas na Argentina, por exemplo, também foram sofridas no Brasil. A propagação dessas idéias, especialmente através da maçonaria, se deu tanto na América espanhola como portuguesa, proporcionando heterogeneidade de posicionamentos políticos. Aliás, no período em que a região platina encontrava-se em meio a lutas e instabilidades, a maçonaria e o clero foram forças constantes e dinâmicas21. 20 Eduardo Devés VALDÉS. Del Ariel de Rodo a la CEPAL. Editorial Biblos. p. 17-18. 21 Maria Medianeira PADOIN. Op. cit. p. 32. 12 Na verdade, a história dos países platinos é uma história de economias e culturas que se combinam ou pleiteiam supremacia ao longo do processo de construção dos Estados nacionais modernos. Com efeito, homens e mulheres que viveram nesse espaço, mesmo estando em lados opostos quanto a interesses imediatos, comunicavam-se, trocavam experiências, negociavam em um mundo conflituoso, de penúria, muitas vezes, e de interesses semelhantes. O espaço fronteiriço platino foi uma região por excelência de comunicação; entrada e saída de idéias, de livros, de riquezas materiais, de homens, de interesses econômicos. Espaço de circulação que irá propiciar a formação de uma sociedade semelhante, centrada, até finais do século XIX, na propriedade da terra e do gado e nas relações caudilhescas22. Edmundo HEREDIA (1998), ao estudar o Cone Sul, afirma que dois fenômenos influenciaram decisivamente a história da região: disputas entre Portugal e Espanha e existência e posterior fracionamento do Vice-Reino pratense23. As mesmas afirmações podem ser trazidas para o âmbito dos países do Mercosul, o que reflete uma história e uma trajetória comuns, vinculadas por problemas semelhantes, principalmente com a região sul do Brasil, por ter sido uma região distante dos caminhos dos centros coloniais mais ricos, praticamente ignorada ; por ter sido uma região de constantes conflitos entre Espanha e Portugal ; e por ter recebido grupos de múltiplas culturas e nacionalidades que chegaram da Europa em grandes contingentes imigratórios. Não obstante essas disparidades, esta região foi adquirindo uma certa identidade unitária durante o processo de disputa entre Espanha e Portugal. Ademais, três dos países que atualmente compõem o Bloco (grosso modo, o território atual do Paraguai, do Uruguai, da Argentina e da Bolívia, além do Rio Grande do Sul e Santa Catarina (Brasil)) compunham o Vice-Reino do Rio da Prata que, apesar de sua curta duração, teve um importante papel porque foi a partir de suas estruturas político-administrativas que seus dirigentes desenvolveram o processo de formação e de construção dos aparatos dos Estados. Esses dois efeitos desgastaram as relações na região, mas, ao mesmo tempo, foram amenizados pelas constantes tentativas de integração regional, buscando principalmente enfrentar inimigos comuns. As divergências predominaram e, conseqüentemente, o isolamento em relação aos países vizinhos. 22 Idem. p. 60. 23 Edmundo HEREDIA. op. cit. p. 125-126. 13 A integração latino-americana Da análise do extenso processo histórico resultante na formação dos Estados nacionais latino-americanos e na construção de uma identidade comum, percebe-se que o conceito de integração econômica latino- americana surgido no ambiente da Guerra Fria é resultado de um longo processo, refletindo uma reação tímida e limitada à hegemonia dos Estados Unidos e ao pan-americanismo. Com efeito, desde 1823, com a Doutrina Monroe, o que os norte-americanos têm buscado é uma maior dominação sobre o resto do continente americano. As tentativas integracionistas surgidas no século XX são exatemente uma reação a predominância da influência norte-americana na América Latina, mas sobretudo o reflexo de uma identidade comum, construída ao longo dos últimos quinhentos anos e da busca por uma maior integração regional objetivando alcançar fins comuns, propósito este presente deste a constituição dos Estados nacionais latino-americanos e que, alías, influenciou este processo. É nesse contexto que foi criada a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) em 1960, envolvendo quase toda a América do Sul, além do México. Os ambiciosos objetivos da Associação acabaram sendo abandonados na década de 1980. No mesmo espírito da ALALC, nasceram o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), em 1960, e o Pacto Andino,em 1969. O MCCA não foi capaz de enfrentar a especialização agroexportadora das economias centro-americanas e a conseqüente dependência frente aos mercados exteriores. Além disso, foi envenenado pelas rivalidades diplomáticas entre os países membros. O Pacto Andino jamais conseguiu chegar a acordos estáveis sobre as suas principais metas. A deterioração da situação econômica interna dos seus membros tornou ainda mais vazia a retórica integracionista. O fracasso da ALALC foi reconhecido tacitamente pelo Tratado de Montevidéu de 1980, que a substituiu pela Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração (ALADI). A nova organização recebeu a adesão de todos os integrantes da sua infeliz predecessora. O tratado da ALADI baseou-se firmemente na noção de autonomia de decisões dos Estados-membros e reconheceu a prioridade dos mercados dos países desenvolvidos no comércio exterior latino-americano. Durante a década de 1980, a crise das dívidas externas impediu a intensificação do comércio na área da ALADI. A severa restrição das importações provocada pela necessidade de obtenção de vastos saldos comerciais positivos bloqueou 14 qualquer perspectiva de reorganização geográfica do comércio exterior dos países latino-americanos. A recessão generalizada e a conseqüente carência de capitais funcionaram como severos entraves para os investimentos intrarregionais 24. O Mercosul nasceu da aproximação geopolítica brasileiro-argentina e dos acordos prévios de integração econômica bilateral firmados entre os dois países, mas reflete, na verdade, uma longa trajetória comum. As duas economias industriais da macrorregião platina representam o eixo de aglutinação e o ímã do processo de integração regional, que recebeu a adesão do Uruguai e do Paraguai e, mais tarde, firmou acordos de livre comércio com o Chile e a Bolívia. A pré-condição para a cooperação diplomática e econômica foi a redemocratização política, ocorrida em meados da década de 1980. A redemocratização correu paralelamente à dissolução do ambiente de rivalidade geopolítica e diplomática que marcou, por várias décadas, as relações entre as potências regionais platinas. A rivalidade platina remonta à época das independências, quando brasileiros e argentinos disputavam o controle do Uruguai, que chegou a ser anexado ao Império como Província Cisplatina. O Mercosul inscreve-se nos cenários sul-americano e hemisférico e, mais além, numa economia mundial que se globaliza e simultaneamente se regionaliza em blocos. O sucesso ou fracasso da iniciativa no Cone Sul está, no final das contas, condicionada pela sua capacidade de melhorar as condições de inserção dos seus integrantes nessa realidade mais ampla. Considerações finais O Mercado Comum do Sul é uma realidade bastante recente se comparado à história da América Latina. Entretanto, apesar de institucionalizado apenas no início da década de 1990, a análise da história dos Estados platinos nos permite concluir que os ideais de integração estiveram presentes ao longo de toda a história dos países latinos e, de modo especial, dos Estados da região do Rio da Prata. Portanto, o Mercosul insere-se em dois contextos : no contexto mundial, que percebe na regionalização uma forma de enfrentar os desafios da globalização e, no contexto da região platina e latina, nos ideais de aproximação como forma de fortalecimento econômico e político, que estiveram presentes ao longo de toda a história latino-americana especialmente a partir dos ideais de Simon Bolívar e San Martin. 24 Demétrio MAGNOLI. Op. cit. p. 325. 15 Depois do fracasso da ALALC, no cenário da ALADI, o Mercosul é um processo de integração ambicioso que busca aproximar, política e economicamente, países com uma história muito próxima, com uma cultura semelhante e com um povo com as mesmas raízes históricas. O Mercosul busca aproximar o que, com as Independências do século XIX, com conflitos armados, motivados por interesses econômicos e políticos, foi fragmentado. Trata-se de um grande desafio que, a exemplo da União Européia, requer imensa vontade política dos Estados partes para que, ancorado nos ideais dos libertadores, se torne uma realidade a longo prazo. Na verdade, a regionalização é a melhor maneira de enfrentar a globalização e a melhor forma de preparação para países geograficamente próximos que compartilhem problemas similares para enfrentar, no século XXI, a integração nesta economia mundial25. O Mercosul é um fato político de significação ímpar no contexto latino-americano e representa uma imensa chance para o crescimento regional. Efetivamente, não foram poucas as tentativas anteriores de criação de espaços comuns de integração que sucumbiram, seja pela realidade geopolítica então prevalecente no continente, seja em razão da adoção de objetivos por demais ambiciosos. O Mercosul, ao contrário, partiu de uma opção gradualista, vinculada à realidade regional26. 25Bruno DETHOMAS, Un ião Européia e Mercosul – uma inovação diplomática. In Deisy de Freitas Lima VENTURA(org.), op. cit., 1995. p. 17-20. 26 MERCOSUL – Acordos e Protocolos na Área Jurídica. Série Integração Latino- Americana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
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