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A proteção concedida já no limiar de uma ação possessória, reinvestindo ou mantendo a posse turbada ou ameaçada, sem a comprovação do direito correspondente, opera-se por imperativos de ordem prática, pelas dificuldades de o interessado apresentar a prova cabal de seu direito na fase inicial do processo (fase postulatória). A liminar é concedida em face da aparência, pois a posse quase sempre é a exteriorização da propriedade ou de outro direito. A Lei Civil parte de uma presunção, não absoluta, de que a posse é expressão de um direito subjetivo. Tal orientação, que se encontra assente no Direito Comparado, pode, contudo, premiar o usurpador ou o ladrão, desde que a sua posse não se patenteie, prima facie, como ilegal. A proteção, concedida liminarmente, possui caráter provisório. A necessidade de se proteger a posse não é contestada entre os juristas, mas divergem as opiniões quanto ao seu fundamento. A tutela, como se apresenta nos ordenamentos jurídicos, se mostra estranha e contraditória, à primeira vista, como observa Ihering, pois implica “a proteção do salteador e do ladrão; ora, como é que o Direito, que incrimina o assalto e o roubo, pode reconhecer e proteger seus frutos na pessoa de seus autores? ”. Na lição de Henri de Page, a proteção à posse se funda, precipuamente, em dois motivos essenciais: “necessidade social da paz pública e a presunção de conformidade do fato da posse ao direito de propriedade”. A lei parte da presunção, vencível, de que a posse, objeto de violência ou ameaça, reveste-se de justo título. Tal a importância da posse na vida prática, que a ordem jurídica trata de resguardá-la em um primeiro momento, para depois apurar mais amplamente a sua legalidade. Se a restituição se operasse apenas com a sentença definitiva, em grande parte dos casos os infratores da lei seriam beneficiados. O ciclista que, repentinamente, é desapossado do seu meio de locomoção ou lazer, para reaver o bem deverá apenas, em uma primeira etapa, comprovar a sua posse anterior. Retornada a situação ao status quo ante, caberá a discussão quanto ao título legitimador da posse: se do ciclista ou de quem o desapossou. A Lei Civil se guia pela lei das probabilidades, mas sob o risco de privilegiar quem furtou o bem. Se a proteção possessória dependesse da prova da propriedade, conclui Ihering: “Chegaríamos a proscrever todos os que não pudessem fazer prova da sua propriedade”. Conclui-se que há uma distinção fundamental em torno da posse traduzida na antiga terminologia: ius possessionis, que significa direito de posse, independentemente de qualquer título legitimador, e ius possidendi, que é o direito à posse. O primeiro não deriva da propriedade, nem de qualquer outro direito real; corresponde a uma situação fática, poder autônomo, interino, pelo qual o possuidor tem direito de continuar possuindo a coisa. Constitui um direito provisório, pois é mais fraco e não prevalece diante de um conflito com a propriedade e outros direitos reais. A posse se apresenta como posterius. O segundo – ius possidendi – diz respeito a um direito decorrente de uma causa jurídica, de um prius. É emanação do direito de propriedade ou de outro direito real. Ao abordar o tema possibilidade da posse, Bernhard Windscheid apresenta três conclusões, quais sejam: a) a posse não é possível para todas as pessoas; b) nem todo objeto é suscetível de posse; c) é impossível a multiplicidade de posse sobre uma coisa. A quem falta capacidade patrimonial, diz Windscheid, a posse não é possível, não por questão de fato, mas devido ao não reconhecimento pelas fontes jurídicas. Em contraposição, é possível a posse por todo portador de defeito físico, em face do reconhecimento da lei. A posse não é possível, por razões naturais, sobre as coisas incorpóreas e sobre qualquer coisa que seja parte integrante de outra, não tendo existência autônoma “per sè stante”. Como efeito do princípio de que a posse consiste no poder de fato sobre a coisa e na totalidade de suas relações, é impossível mais do que um possuidor sobre uma só coisa. No Código Civil pátrio, a posse está ordenada entre os artigos. 1.196 e 1.224, antecedendo, a exemplo do Código Beviláqua, a disciplina da propriedade. Para alguns autores, a ordem deveria ser inversa, uma vez que a posse é conceituada (artigo 1.196) como o exercício de um dos poderes inerentes à propriedade; logo está precede àquela do ponto de vista lógico. Na Exposição de Motivos de seu Anteprojeto, Orlando Gomes justificou a topologia preconizada do instituto, afirmando que “nada mais lógico do que regular primeiramente os poderes cujo exercício de fato significa posse”. A compreensão da posse pressupõe o conhecimento da propriedade. Adotando igual entendimento, Rafael Rojina Villegas argumenta e Eduardo Espínola defende a precedência da disciplina da posse, cuja regulamentação não deve ser considerada como “complemento da proteção da propriedade”, mas como objeto de proteção por si mesma, si et in quantum, além do fato de levar à usucapião, ainda contra quem ostente justo título. Como a ordem jurídica é um todo não segmentado, pois a departamentização é algo que se processa na Ciência e não no Direito, o conceito de posse é importante além do Direito Civil, ao influenciar, na esfera Penal, a distinção entre crime tentado e consumado de furto. Diz Weber Martins Batista: “O furto consuma-se no momento em que se inverte o poder de disposição sobre a coisa: antes, estava ela sob o domínio do lesado; a partir de um certo momento, passa para o poder de fato do agente”. Advirta- se que a presente ordem de estudos guarda relevância, principalmente pelos efeitos que a posse provoca: a proteção possessória e a aquisição da propriedade pela usucapião. Tendo em vista as consequências da posse, é relevante não apenas o conhecimento das concepções doutrinárias, sobretudo a posição do legislador brasileiro, a sua opção, pois os pleitos e as argumentações a serem articulados nos pretórios hão de se afinar ao conceito consagrado pelo Código Civil, sem que se incorra, com esta advertência, em culto ao dogmatismo legal. A lei, como se sabe, é apenas o ponto de partida para a compreensão do Jus Positum. Curso de Direito Civil – Direito das Coisas -, Vol. 4, PAULO NADER, 2016.
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