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Calalof(a(à" na Publicarão (CII') (Câmara IIrasileira do l.ivro, SI', IIrasil) (;arcía Camlini, Ni-stur Culturas Híbridas: Eslraléf(ias para Entrar e Sair da Modcr- lIidadc:/Néstol' Carcia Cancliui: tradução l leluisa Pczza Ciurráo, Alia Regina Lessa; lradll(clO da inuoduçào (;i-Ilt'st' Andrade. - 4. cd. 7. reimp, - Sáo Paulo: Editora da Universidade d« Sâo Paulo, ~oI5. - (Ensaios Latiuu-auu-ricauos, I) Rihliogratia ISIIN !J7H-H5-'114-0'lH~-H I. Arte e sociedade - AIIlCrÍl'a Latina ~,Cuilura - Alni'rica Latina 3,l'ós-nll"knlidad"-A",iTi,'a Laiiua I. Titulo. lI. Si'ri,·. !J7-o507 Cl)l)-'lOt).O'lH Íllciin' para catálogo sisu-máuro: I. América I.ati na: Culturas llíhridas: Sociologia 'lOti.09H Direitos ern língua portuguesa reservados à Edusp - Editora da Universidade ,ho São Paulo Rua da Praça do Rdógio, IO~'-A,Cidad" Universitária W150H-050- São Paulo - SI' - Brasil Divisâo Comercial: Tci. (I I) '10!)1-400H/ 'lO!Jl-4150 www.t.dusp.(.(/nl.hr-.·-I ••ail:t.dnsp~Ousp.hr l'rinu-d in Bravil ~OI5 Foi feito o depósiu» lef(al Para Teresaejulián XVI tUIIUIlA\ IIflJllIIlAS Rosales e Enrique Mercado me ajudaram a não agravar a obscuridade de certos problemas com a de minha escrita. María Eugenia Módena é a acompanhante mais próxima na tare- fa de juntar, na vida diária e no trabalho intelectual, o que significa pensar as experiências dos exílios e as novas raízes, e os cruzamentos interculturais que estão na base dessas reflexões. Se o livro é dedicado a Teresa e Julián é por essa capacidade dos filhos de mostrar-nos que o culto e o popular podem sintetizar-se na cultura massiva, nos prazeres do consumo que eles, sem culpa nem pre- venções, inserem no cotidiano como atividades plenamente justificadas. Nada melhor para reconhecê-lo do que evocar aquele Natal em que o Instituto Nacional do Consumidor repetia obsessivamente: "Presenteie afeto, não o compre", em seus anúncios anticonsumistas no rádio e na televisão; Teresa empregou a palavra "afeto" pela primeira vez em sua linguagem vacilante dos quatro anos. ''Você sabe o que quer dizer?" "Sei - respondeu rápido -, que você não tem dinheiro." I I'I INTRODUÇÃO À EDIÇÃO DE 2001 As CULTURAS HíBRIDAS EM TEMPOS DE GLOBALlZAÇÃO {Como saber quando uma disciplina ou um campo do conhecimento mudam? Uma forma de responder é: quando alguns conceitos irrompem com força, deslocam outros ou exigem reforrnulá-los. Foi isso o que acon- teceu com o "dicionário" dos estudos culturais. Aqui me proponho a dis- cutir em que sentido se pode afirmar que hibridação é um desses termos detonantes. , 'Vou ocupar-me de como os estudos sobre hibridação modificaram o modo de falar sobre identidade, cultura, diferença, desigualdade, multiculturalismo e sobre pares organizadores dos conflitos nas ciências sociais: tradição-modernidade, norte-sul, local-global. Por que a questão do híbrido adquiriu ultimamente tanto peso se é uma característica an- tiga do desenvolvimento histórico?!Poder-se-ia dizer que existem antece- dentes desde que começaram os intercâmbios entre sociedades; de fato, ~línio, o Velho, mencionou a palavra ao referir-se aos migrantes que che- garam a Roma em sua época. Historiadores e antropólogos mostraram o papel decisivo da mestiçagem no Mediterrâneo nos tempos da Grécia clás- sica (Laplantine & Nouss), enquanto outros estudiosos recorrem especi- XVIII CULlUIIAS 11f1l11l1lA\ ficamente ao termo hibridação para identificar o que sucedeu desde que a Europa se expandiu em direção à América (Bernand; Gruzinski). 1 Mikhail Bakhtin usou-o para caracterizar a coexistência, desde o princí- pio da modernidade, de linguagens cultas e populares. Entretanto, o momento em que mais se estende a análise da hibridação a diversos processos culturais é na década final do século XX. Mas também se discute o valor desse conceito.jlíle é usado para descrever processos interétnicos e de descolonização (Bhabha, Young); globalizado---res (Hannerz); viagens e cruzamentos de fronteiras (Clifford); fusões ar- tísticas, literárias e comunicacionais (De Ia Campa; Hall; Martín Barbero; Papastergiadis; Webner). Não faltam estudos sobre como se hibridam gastronomias de diferentes origens na comida de um país (Archetti), nem da associação de instituições públicas e corporações privadas, da museografia ocidental e das tradições periféricas nas exposições univer- sais (Harvey). Esta nova introdução tem o propósito de valorizar esses usos disse~s e as principais posições apresentadas. Na medida em que, segundo escreveuJean Franco, "Culturas Híbridas é um livro em busca de um método" para "não nos espartilharmos em falsas oposições, tais como alto e popular, urbano ou rural, moderno ou tradicional" (Franco, 1992), esta expansão dos estudos exige a entrada nas novas avenidas do debate} Outrossim, tratarei de algumas das objeções dirigi das por razões epistemológicas e políticas ao conceito de hibridação. Quanto ao estatuto científico dessa noção, distingui-Ia-ei de seu uso em biologia com o fim de considerar especificamente as contribuições e as dificuldades que ela apresenta nas ciências sociais) No tocante a sua contribuição ao pensa- mento político, ampliarei a análise já realizada no livro argumentando por que a hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições, mas, sim, que pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito ge- radas na interculturalidade recente em meio à decadência de projetos na- cionais de modernização na América Latina. Temos que responder à pergunta de se o acesso à maior variedade de bens, facilitado pelos mo- vimentos globalizadores, democratiza a capacidade de cornbiná-los e de desenvolver uma multiculturalidade criatival II I IN 1I!OIlUÇJ\O A IIlIÇJ\O III 2001 XIX AS IDENTIDADES REPENSADAS A PARTIR DA HIBRIDAÇÀO lHá que começar discutindo se híbrido é uma boa ou uma má pala- vra. Não basta que seja muito usada para que a consideremos respeitável. Pelo contrário, seu profuso emprego favorece que lhe sejam atribuídos significados discordantes. Ao transferi-Ia da biologia às análises socioculturais, ganhou campos de aplicação, mas perdeu univocidade. Daí que alguns prefiram continuar a falar de sincretismo em questões re- ligiosas, de mestiçagem em história e antropologia, de fusão em música. Qual é a vantagem, para a pesquisa científica, de recorrer a um termo car- regado de equivocidade/Í Encaremos, então, a discussão epistemológica. Quero reconhecer que esse aspecto foi insuficientemente tratado em meu livro Culturas Hí- bridas. Os debates que houve sobre estas páginas, e sobre os trabalhos de outros autores, citados neste novo texto, permitem-me agora elabo- rar melhor a localização e o estatuto do conceito de hibridação nas ciên- cias sociais. Parto de uma primeira definição:\entendo por hibrulaçâo processos ~ socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de for- ma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e prática Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual nãopodem ser consideradas fontes puras. Um exemplo: hoje se debate se o spanglish, nascido nas comunidades latinas dos Estados Unidos e propagado pela internet a todo o mundo, deve ser aceito, ensinado em cátedras universitárias - como ocorre no Amherst College de Massachusetts - e objeto de dicionários especializa- dos (Stavans). Jcomo se o espanhol e o inglês fossem idiomas não endividados com o latim, o árabe e as línguas pré-colombianas. Se não reconhecêssemos a longa história impura do castelhano e extirpássemos os termos de raiz árabe, ficaríamos sem alcachofas, alcaldes, almohadas n~m algarabía. Uma forma de descrever esse trânsito do discreto ao hí- brido, e a novas formas discretas, é a fórmula "ciclos de hibridação" pro- posta por Brian Stross, segundo a qual, na história, passamos de formas xx CULTURAS HIBRIDAS XXIINTRODUÇÃO A EDiÇÃO DE 2001 mais heterogêneas a outras mais homogêneas, e depois a outras relati- vamente mais heterogêneas, sem que nenhuma seja "pura" ou plena- mente homogênea. IA multiplicação espetacular de hibridações durante o século XX não facilita precisar de quê se trata. É possível colocar sob um só termo fatos tão variados quanto os casamentos mestiços, a combinação de an- cestrais africanos, figuras indígenas e santos católicos na umbanda bra- sileira, as collages publicitárias de monumentos históricos com bebidas e carros esportivos? Algo freqüente como a fusão de melodias étnicas com música clássica e contemporânea ou com o jazz e a salsa pode ocorrer em fenômenos tão diversos quanto a chicha, mistura de ritmos andinos e caribenhos; a reinterpretação jazzística de Mozart, realizada pelo grupo afro-cubano Irakere; as reelaborações de melodias inglesas'e hindus efetuadas pelos Beatles, Peter Gabriel e outros músicos.los artistas que exacerbam esses cruzamentos e os convertem em eixos conceituais de seus trabalhos não o fazem em condições nem com objetivos semelhan- tes. Antoni Muntadas, por exemplo, intitulou Híbridos o conjunto de pro- jetos exibidos em 1988 no Centro de Arte Rainha Sofia, de Madri. Nessa ocasião, insinuou, mediante fotos, os deslocamentos ocorridos entre o an- tigo uso desse edifício como hospital e o destino artístico que depois lhe foi dado. Em outra ocasião, criou um website, o hybridspaces, no qual ex- plorava montagens em imagens arquitetônicas e midiáticas. Grande par- te de sua produção resulta do cruzamento multimídia e multicultural: a imprensa e a publicidade de rua inseri das na televisão, ou os últimos dez minutos da programação, da Argentina, do Brasil e dos Estados Unidos vistos simultaneamente, seguidos de um plano-seqüência que contrasta a diversidade da rua nesses países com a homogeneidade televisiva. Qual é a utilidade de unificar sob um só termo experiências e dis- positivos tão heterogêneos? Convém designá-los com a palavra híbrido, cuja origem biológica levou alguns autores a advertir sobre o risco de tras- passar à sociedade e à cultura a esterilidade que costuma ser associada a esse termo? Os que fazem essa crítica recordam o exemplo infecundo da mula (Cornejo Polar, 1997). Mesmo quando se encontra tal objeção em Itextos recentes, trata-se do prolongamento de uma crença do século XIX,quando a hibridação era considerada com desconfiança ao supor queprejudicaria o desenvolvimento social. Desde que, em 1870, Mendel mos- t trou o enriquecimento produzido por cruzamentos genéticos em botâni- ca, abundam as hibridações férteis para aproveitar características de cé- lulas de plantas diferentes e melhorar seu crescimento, resistência, qua- lidade, assim como o valor econômico e nutritivo de alimentos derivados delas (Olby; Callender). A hibridação de café, flores, cereais e outros pro- dutos aumenta a variedade genética das espécies e melhora sua sobrevi- vência ante mudanças de hábitat ou climáticas. IDe todo modo, não há por quê ficar cativo da dinâmica biológi- ca da qual toma um conceito. As ciências sociais importaram muitas no- ções de outras disciplinas, que não foram invalidadas por suas condi- ções de uso na ciência de origem. Conceitos biológicos como o de re- produção foram reelaborados para falar de reprodução social, econô- \ mica e cultural: o debate efetuado desde Marx até nossos dias se esta- belece em relação com a consistência teórica e o poder explicativo desse termo, não por uma dependência fatal do sentido que lhe atribuiu ou- tra ciência. 'Do mesmo modo, as polêmicas sobre o emprego metafóri- co de conceitos econômicos para examinar processos simbólicos, como o faz Pierre Bourdieu ao referir-se ao capital cultural e aos mercados lingüísticos, não têm que centrar-se na migração desses termos de uma disciplina para outra, mas, sim, nas operações epistemológicas que si- tuem sua fecundidade explicativa e seus limites no interior dos discur- sos culturais: permitem ou não entender melhor algo que permanecia inexplicado? A construção lingüística (Bakhtin; Bhabha) e a social (Friedman; Hall; Papastergiadis) do conceito de hibridação serviu para sair dos dis- cursos biologísticos e essencialistas da identidade, da autenticidade e da pureza cultural. Contribuem, de outro lado, para identificar e explicar múltiplas alianças fecundas: por exemplo.]o imaginário prê-colombiano m o novo-hispano dos colonizadores e depois com o das indústrias cul- rurais (Bcruand; Cruzinskij] a estética popular com a dos turistas (De , XXII CULTURAS HfBRIDAS Grandis), as culturas étnicas nacionais com as das metrópoles (Bhabha) e~as instituições globais (~arvq2. Os poucos fragmentos escritos de uma história das hibridações puseram em evidência a produtividade e o poder inovador de muitas misturas interculturais. Como a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas? Às vezes, isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional. Mas freqüen- temente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri- 10 em novas condições de produção e mercado. IEsclareçamos o significado cultural de reconversão: este termo é uti- lizado para explicar as estratégias mediante as quais um pintor se converte em designer, ou as burguesias nacionais adquirem os idiomas e outras com- petências necessárias para reinvestir seus capitais econômicos e simbóli- cos em circuitos transnacionais (Bourdieu) .)Também são encontradas estratégias de reconversão econômica e simbólica em setores populares: os migrantes camponeses que adaptam seus saberes para trabalhar e con- sumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para interessar compradores urbanos; os operários que reformulam sua cultura de trabalho ante as novas tecnologias produtivas; os movimentos indíge- nas que reinserem suas demandas na política transnacional ou em um discurso tcológico e aprendem a comunicá-Ias por rádio, televisão e internet. ~Jor essas razões, sustento que o objeto de estudo não é a hibridez, mas, sim, os processos de hibridação. A análise empírica desses processos, articulados com estratégias de reconversão, demonstra que a hibridação interessa tanto aos setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se dos benefícios da modernidade. } Esses processos incessantes, variados, de hibridação levam a relativizar a noção de identidade. Questionam, inclusive, a tendência antropológica e a de um setor dos estudos culturais ao considerar as iden- I1I111I INTRODUÇAO A EDIÇAo DE 2001 XXIII tidadcs como objeto de pesquisa} A ênfase na hibridação não enclausura apenas a pretensão de estabelecer identidades "puras" ou "autênticas". Além disso, põe em evidênciao risco de delimitar identidades locais autocontidas ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à so- ciedade nacional ou à globalização. Quando se define uma identidade mediante um processo de abstração de traços (língua, tradições, condu- tas estereotipadas), freqüentemente se tende a desvincular essas práticas da história de misturas em que se formaram.komo conseqüência, é absolutizado um modo de entender a identidade e são rejeitadas manei- ras heterodoxas de falar a língua, fazer música ou interpretar as tradições. Acaba-se, em suma, obturando a possibilidade de modificar a cultura e a política. Os estudos sobre narrativas identitárias com enfoques teóricos que levam em conta os processos de hibridação (Hannerz; ~ mostram que não é possível falar das identidades como se se tratasse apenas de um con- junto de traços fixos, nem afirmá-Ias como a essência de uma etnia ou de uma nação. A história dos movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pe- los grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramatici- dade e eloqüência. (Pelo que foi dito acima, alguns de nós propomos deslocar o objeto de estudo dá identidade para a heterogeneidade e a hibridação interculturais (Goldberg).Já não basta dizer que não há identidades caracterizadas por essências autocontidas e aistóricas, nem entendê-Ias como as formas em que as comunidades se imaginam e constroem relatos sobre sua origem e desenvolvimento. Em um mundo tão fluidamente interconectado, as se- dimentações identitárias organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis (etnias, nações, classes) se reestruturam em meio a conjun- tos interétnicos, 'transclassistas e transnacionaisj As diversas formas em que o; membros de cada grupo se apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais geram novos modos de segmentação: dentro de uma sociedade nacional, por exemplo, o México, há milhões de indígenas mestiçados com os colonizadores bran- ~~ XXIV CULTURAS HIBRIDAS cos, mas alguns se "chicanizaram" ao viajar aos Estados Unidos; outros remodelam seus hábitos no tocante às ofertas comunicacionais de massa; outros adquiriram alto nível educacional e enriqueceram seu patrimônio tradicional com saberes e recursos estéticos de vários países; outros se in- corporam a empresas coreanas oujaponesas e fundem seu capital étnico com os conhecimentos e as disciplinas desses sistemas produtivos. Estudar processos culturais, por isso, mais do que levar-nos a afirmar identidades auto-suficientes, serve para conhecer formas de situar-se em meio à heterogeneidade e entender como se produzem as hibridaçôes. DA DESCRIÇÃO À EXPLICAÇÃO LAo reduzir a hierarquia dos conceitos de identidade e heterogenei- dade em benefício da hibridação, tiramos o suporte das políticas de ho- mogeneização fundamentalista ou de simples reconhecimento (segrega- do) da "pluralidade de culturas". Cabe perguntar, então, para onde con- duz a hibridação e se serve para reformular a pesquisa intercultural e o projeto de políticas culturais transnacionais e transétnicas, talvez globais~ Uma dificuldade para cumprir esses propósitos é que os estudos sobre hibridação costumam limitar-se a descrever misturas interculturais. Mal começamos a avançar, como parte da reconstrução sociocultural do conceito, para dar-lhe poder explicativo: j estudar os processos de hibridação situando-os em relações estruturais de causalidade. E dar-lhe capacidade hermenêutica: torná-lo útil para interpretar as relações de sen- tido que se reconstroem nas misturas' Se queremos ir além de liberar a análise cultural de seus tropismos fundamentalistas identitários, deveremos situar a hibridação em outra rede de conceitos: por exemplo, contradição, mestiçagem, sincretismo, transculturação e crioulização. Além disso, é necessário vê-Ia em meio às * Chicanizar·se:tornar·sc cI,icano. o chicanoé o cidadão dos Estados Unidos pertencente à minoria de origem mexicana ali existente [N. da T.). INTRODUÇÃO A EDiÇÃO DE 2001 XXV ambivalências da industrialização e da massificação globalizada dos pro- cessos simbólicos e dos conflitos de poder que suscitam. Outra das objeções formuladas ao conceito de hibridação é que pode sugerir fácil integração e fusão de culturas, sem dar suficiente peso às con- tradições e ao que não se deixa hibridar. A afortunada observação de Pnina ~er de que o cosmopolitismo, ao nos hibridar, nos forma como "gourmets multiculturais" corre esse risco. Antonio Cornejo Polar assina- lou em vários autores de que nos ocupamos, acerca desse tema, a "impres- sionante lista de produtos híbridos fecundos" e "o tom celebrativo" com que falamos da hibridação como harmonização de mundos "fragmenta- dos e beligerantes" (Cornejo Polar, 1997). Também]ohn Kraniauskas considerou que, como o conceito de reconversão indica a utilização pro- dutiva de recursos anteriores em novos contextos, a lista de exemplos analisados neste livro configura uma visão "otimista" das hibridações. t É factível que a polêmica contra o purismo e o tradicionalismo fol- clóricos me tenha levado -a preferir os casos prósperos e inovadores de hibridação. Entretanto, hoje se tornou mais evidente o sentido contradi- tório das misturas interculturais.]ustamente ao passar do caráter descri- tivo da noção de hibridação - como fusão de estruturas discretas - a elaborá-Ia como recurso de explicação, advertimos em que casos as mis- turas podem ser produtivas e quando geram conflitos devido aos quais permanece incompatível ou inconciliável nas práticas reunidasl O próprio Cornejo Polar contribuiu para esse avanço quando diz que, assim como se "entra e sai da modernidade", também se poderiam entender de modo histórico as variações e os conflitos da metáfora de que nos ocupamos se falássemos de "entrar e sair da hibridez'' (Cornejo Polar, 1997). Agradeço a esse autor a sugestão de aplicar à hibridação esse movi- mpnto de trânsito e provisionalidade que coloquei no livro Culturas Hí- brulas, desde o subtítulo, como necessário para entender as estratégias de entrada e saída da modernidade.1 Se falamos da hibridação como um pro- cesso ao qual é possível ter acesso e que se pode abandonar, do qual po- demos ser excluídos ou ao qual nos podem subordinar, entenderemos as posições dos sujeitos a respeito das relações interculturaisl Assim se tra- XXVI CULTURAS HfBRIDAS balhariam OS processos de hibridação em relação à desigualdade entre as culturas, com as possibilidades de apropriar-se de várias simultanea- mente em classes e grupos diferentes e, portanto, a respeito das assimetrias do poder e do prestígio. Cornejo Polar somente insinuou esse caminho de análise no ensaio póstumo citado, mas encontro um com- plemento para expandir tal intuição em um artigo que ele escreveu pou- -.:> co antes:J~Una Heterogeneidad no Dialéctica: Sujeto y Discurso Migrantes en el Perú Moderno"] Nesse texto, diante da tendência a celebrar as migrações, recordou que o migrante nem sempre "está especialmente disposto a sintetizar as diferentes estâncias de seu itinerário, embora - como é claro -lhe seja im- possível mantê-Ias encapsuladas e sem comunicação entre si". Com exem- plos dejosé MaríaArguedas,juan Biondi e Eduardo Zapata, demonstrou que a oscilação entre a identidade de origem e a de destino às vezes leva o migrante a falar "com espontaneidade a partir de vários lugares", sem misturá-Ios, como provinciano e como limenho, como falante de quíchua e de espanhol. Ocasionalmente, dizia, passam metonímica ou metafori- camente elementos de um discurso a outro. Em outros casos, o sujeito aceita descentrar-se de sua história e desempenha vários papéis "incom- patíveis e contraditórios de um modo não dialético": o lá e o cá, que são também o ontem e o hoje, reforçam sua atitude enunciativa e podem tra- marnarrativas bifrontes e - até se se quer, exagerando as coisas _, esquizofrênicas" (Cornejo Polar, 1996: 841). Nas condições de globalização atuais, encontro cada vez mais razões para empregar os conceitos de mestiçagem e hibridação. Mas, ao se in- tensificarem as interculturalidades migratória, econômica e midiática, vê- se, como explicam François Laplantine e Alexis Nouss, que não há somen- te "a fusão, a coesão, a osmose e, sim, a confrontação e o diálogo". Nes- te tempo, quando "as decepções das promessas do universalismo abstra- to conduziram às crispações particularistas" (Laplantine & Nouss: 14), o pensamento e as práticas mestiças são recursos para reconhecer o dife- rente e elaborar as tensões das diferenças} A hibridação, como processo de interseção e transações, é o que torna possível que a multiculturalidade INTRODUÇÃO A EDiÇÃO DE 2001 XXVII evite o que tem de segregação e se converta em interculturalidade. As po- líticas de hibridação serviriam para trabalhar democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras entre culturas, como imagina ~I Huntington. Podemos escolher viver em estado de guerra ou em estado de hibridação.~ ( I É útil advertir sobre as versõe~ excessivamente amáveis da mestiçagem. Por isso, convém insistir em que o objeto de estudo não é a hibridez e, sim, os processos de hibridação. Assim é possível reconhecer o que contêm de desgarre e o que não chega a fundir-se. Uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer ou não pode ser hibridado A HIBRIDAÇÀO E SUA FAMíLIA DE CONCEITOS A esta altura, há que dizer que o conceito de hibridação é útil em algumas pesquisas para abranger conjuntamente contatos interculturais que costumam receber nomes diferentes: as fusões raciais ou étnicas de- nominadas mestiçagem, o sincretismo de crenças e também outras misturas modernas entre o artesanal e o industrial, o culto e o popular, o escrito c o visual nas mensagens midiáticas. Vejamos por que algumas dessas inter-relações não podem ser designadas por nomes clássicos, como mes- tiças ou sincréticas. I Amistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingle- ses e franceses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escra- vos trasladados da África, tornou a mestiçagem um processo Iundacional nas sociedades do chamado Novo Mundoí Na atualidade, ~enos de 10% da população da Amér~tina é indí~ena. São minorias também as comu- , nidades de origem européia que não se misturaram com os nativos. Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagcm tanto no sentido biológico - produção de fenótipos a partir d cruzamcn tos genéticos - como cultural: mistura de hábitos, crenças c [or- mas ele pcusamcnto europeus com os originários das sociedades amcrica- I ;11 I III XXVIII CULTURAS IIluRIDAS nas. Não obstante, esse conceito é insuficiente para nomear e explicar as formas mais modernas de interculturalidade. I Durante muito tempo, foram estudados mais os aspectos fisionômi- cos e cromáticos da mestiçagem. A cor da pele e os traços físicos conti- nuam a pesar na construção ordinária da subordinação para discriminar índios, negros ou mulheres. Entretanto, nas ciências sociais e no pensa- mento político democrático, a mestiçagem situa-se atualmente na dimen- são cultural tias combinações identitárias. Na antropologia, nos estudos culturais e nas políticas, a questão é abordada como o projeto de formas de convivência multicultural moderna, embora estejam condicionadas pela mestiçagem biológical. {Algo semelhante ocorre com a passagem das misturas religiosas a fusões mais complexas de crenças. Sem dúvida, é apropriado falar de sincretismo para referir-se à combinação de práticas religiosas tradicionais. A intensificação das migrações, assim como a difusão transcontinental de crenças e rituais no século passado acentuaram essas hibridações e, às ve- zes, aumentaram a tolerância com relação a elas, a ponto de que em paí- ses como Brasil, Cuba, Haiti e Estados Unidos tornou-se freqüente a dupla ou tripla pertença religiosa; por exemplo, ser católico e participar também de um culto afro-americano ou de uma cerimônia new ag~ Se considerar- mos o sincretismo, em sentido mais amplo, como a adesão simultânea a vários sistemas de crenças, não só religiosas, o fenômeno se expande no- toriamente, sobretudo entre asmultidões que recorrem, para aliviar certas enfermidades, a remédios indígenas ou orientais c, para outras, à medici- na alopática, ou a rituais católicos ou pentecostais. O uso sincrético de tais recursos para a saúde costuma ir junto com fusões musicais e de formas multiculturais de organização social, como ocorre na sanieria' cubana, no vodu haitiano e no candomblé brasileiro (Rowe & Schelling, 1991). A palavra crioulização também serviu para referir-se às misturas interculturais. Em sentido estrito, designa a língua e a cultura criadas por variações a partir da língua básica e de outros idiomas no contexto do trá- • Santeria: sistema de cultos que têm como elemento essencial a adoração de divindades surgi das do sincretismo entre crenças africanas e religião católica [N. da T.). IN' IW!lUÇl\o A IIlIÇI\O!l1 2001 XXIX li<o dt' esnavos( Aplica-se às misturas que () francês teve na América e no (;:\1 ihc (Louisianc, I1aiti, Cuadalupc, Martinica) e no oceano Índic (Reunião, as ilhas Maurício), ou o português na África (Guiné, Cabo Ver- de), 110 Caribe (Curaçao) c na Ásia (Índia, Sri Lanka). Dado que apre- senta tensões paradigmáticas entre oral idade c escritura, entre setores cultos e populares, em um continuum de diversidade, Ulf Hannerz suge- re estender seu uso ao âmbito transnacional para denominar "processos de confluência cultural" caracterizados "pela desigualdade de poder, pres- tígio c recursos materiais" (Hannerz, 1997). Sua ênfase em que os fluxos rescentes entre centro e periferia devem ser examinados,junto com as assimetrias entre os mercados, os Estados e os níveis educacionais, ajuda a evitar o risco de ver a mestiçagem como simples homogeneização e re- conciliação interculturat.! lEstes termos - mestiçagem, sincretismo, crioulização - continuam a ser utilizados em boa parte da bibliografia antropológica e etno-histó- rica para especificar formas particulares de hibridação mais ou menos clássicas. Mas, como designar as fusões entre culturas de bairro e midiáticas, entre estilos de consumo de gerações diferentes, entre músi- cas locais e transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes ci- dades (não somente ali)? A palavra hibridação aparece mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também. a de produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-modernosl Destaco as fronteiras entre países e as grandes cidades como contex- tos que condicionam os formatos, os estilos e as contradições específicos da hibridação. As fronteiras rígidas estabeleci das pelos Estados modernos se tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora descritas como unidades estáveis, com limites precisos baseados na ocupação de um ter- ritório delimitado. Mas essa multiplicação de oportunidades para hibridar-se não implica indeterminação, nem liberdade irrestrita. A hibridação ocorre em condições históricas e sociais específicas, em meio a sistemas de produção e consumo que às vezes operam como coações, segundo se estima na vida de muitos migrantes. Outra das entidades so- 111:11. xxx UnUI!AS lllill!llJA5 ciais que auspiciam, mas também condicionam a hibridação são as ( ida- des. Asmegalópoles multilíngües e multiculturais, por exemplo, Londres, Berlim, Nova York, Los Angeles, Buenos Aires, São Paulo, México e Hong Kong, são estudadas como centros em que a hibridação fomenta maio- res conflitos e maiorcriatividade cultural (Appadurai; Hannerz). AS NOÇÕES MODERNAS SERVEM PARA FALAR DE GLOBALlZAÇÃO? 'Os termos empregados como antecedentes ou equivalentes de hibridação, ou seja, mestiçagem, sincretismo e crioulização, são usados em geral para referir-se a processos tradicionais, ou à sobrevivência de costu- mes e formas de pensamento pré-modernos no começo da modernidade. Uma das tarefas deste livro é construir a noção de hibridação para desig- nar as misturas interculturais propriamente modernas, entre outras, aque- las geradas pelas integrações dos Estados nacionais, os populismos políti- cos e as indústrias culturaísj Foi necessário, por isso, discutir os vínculos e desacordos entre modernidade, modernização e modernismo, assim como as dúvidas de que a América Latina seja ou não um continente moderno. INos anos 80 e princípios dos 90, a moderuidade era julgada a par- tir do pensamento pós-moderno. Escrito em meio à hegemonia que essa tendência tinha então, o livro apreciou seu antievolucionismo, sua valo- rização da heterogeneidade multicultural e transistórica, e aproveitou a crítica aos metarrelatos para deslegitimar as pretensões fundamentalistas dos tradicionalismos. Mas, ao mesmo tempo, resisti a considerar a pós- modernidade como uma etapa que substituiria a época moderna. Prefe- ri concebê-Ia como um modo de problematizar as articulações que a modernidade estabeleceu com as tradições que tentou excluir ou supe- rar. A descoleção dos patrimônios étnicos e nacionais, assim como a desterritorialização e a reconoersão de saberes e costumes foram examinados como recursos para hibridar-se./ Os anos 90 reduziram o atrativo do pensamento pós-moderno e co- locaram, no centro das ciências sociais, a globalização. Assim como hoje INlllOlJUÇl\o A IlJlÇI\O III 2001 XXXI percebemos com mais clareza que o pós-moderno não encerrou a moder- nidade, a problemática global também não permite desinteressar-se dela. JAlguns dos teóricos mais destacados da globalização, como Anthony Giddens e Ulrich Beck, estudam-na como culminação das tendências e conflitos modernos. Nas palavras de Beck, a globalização nos coloca ante o desafio de configurar uma "segunda modernidade", mais reflexiva, que não imponha sua racionalidade secularizante e, sim, que aceite pluralmente tradições diversas} 10s processos globalizadores acentuam a interculturalidade moder- na quando criam mercados mundiais de bens materiais e dinheiro, men- sagens e migrantes. Os fluxos e as interações que ocorrem nesses proces- sos diminuíram fronteiras e alfândegas, assim como a autonomia das tra- dições locais; propiciam mais formas de hibridação produtiva, comunicacional e nos estilos de consumo 'do que no passado. Às moda- lidades clássicas de fusão, derivadas de migrações, intercâmbios comer- ciais e das políticas de integração educacional impulsionadas por Estados nacionais, acrescentam-se as misturas geradas pelas indústrias culturais. Embora este livro não fale estritamente de globalização, examina proces- sos de internacionalização e transnacionalização, pois se ocupa das indús- trias culturais e das migrações da América Latina para os Estados Unidos. Até o artesanato e as músicas tradicionais são analisadas com referência aos circuitos de massa transnacionais, em que os produtos populares cos- tumam ser "expropriados" por empresasturísticas e de comunicaçãoji Ao estudar movimentos recentes de globalização, advertimos que estes não só integram e geram mestiçagens; também segregam, produ- zem novas desigualdades e estimulam reações diferenciadoras (Appadurai, 1996; Beck, 1997; Hannerz, 1996). Às vezes, aproveita-se a globalização empresarial e do consumo para afirmar e expandir particu- laridades étnicas ou regiões culturais, como ocorre com a música latina na atualidade (Ochoa; Yúdice). Alguns atores sociais encon tram, nesses. processos, recursos para resistir à globalização ou modificá-Ia e repropçr as condições de intercâmbio entre culturas. Mas o exemplo das hibridações musicais, entre outros, evidencia as diferenças e desigualda- XXXII ULlUltAS "IIlIWMS des que existem quando elas se realizam nos países centrais ou nas peri- ferias: basta evocar a distância entre as fusões homogeneizadoras do la- tino, dos diferentes modos de fazer música latina, nas gravadoras de Miami, e a maior diversidade reconhecida pelas produtoras locais da Ar- gentina, do Brasil, da Colômbia ou do México. Então, cabe acrescentar, à tipologia de hibridações tradicionais (mestiçagem, sincretismo, crioulização), as operações de construção híbri- da entre atores modernos, em condições avançadas de globalização. En- contramos dois exemplos na formação multicultural do latinG a neo- hispano-americanização da América Latina, @ a fusão in teramericana. ~om neo-hispano-americanização refiro-me à apropriação de editoras, linhas aéreas, bancos e telecomunicações por parte de empresas espanholas na Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, México, Peru e VenezuelalNo Brasil, os espanhóis ocuparam, em 1999, o segundo lugar, detendo 28% dos in- vestimentos estrangeiros; na Argentina, passaram para o primeiro lugar, ultrapassando os Estados Unidos no mesmo ano. De um lado, pode-se pensar que convém diversificar os intercâmbios com a Espanha e o restan- te da Europa para corrigir a tendência anterior de subordinar-se somen- te a capitais norte-americanos. Mas, também nesses casos, as condições assimétricas limitam a participação de artistas e meios de comunicação latino-americanos. I Sob o nome de fusão inieramericana incluo o conjunto de processos de "norte-americanização" dos países latino-americanos e "latinizaçâo" dos Estados UnidosUnclino-me a chamar fusões a essas hibridações, já que esta palavra, usada preferencialmente em música, emblematiza o papel proeminente dos acordos entre indústrias fonográficas transna- cionais, o lugar de Miami como "capital da cultura latino-americana" (Yúdice, 1999) e a interação das Américas no consumo intercultural. (Analisei mais extensamente estas relações interamericanas e com a Eu- ropa em meu livro La Globalización Imaginada.) Falar de fusões não nos deve fazer descuidar do que resiste ou se cinde. A teoria da hibridação tem que levar em conta os movimentos que a rejeitam. Não provêm somente dos fundamentalismos que se opõem ao I111 I II 1" I 11 1 \1 1 11111 IN IIWIlU<,ÂO A 11l1<.ÂOIII 2001 XXXIII sincrctismo religioso e ã mcsiiçagcm intcrcultural. Existem resistências a aceitar estas c outras formas de hibridação porque geram insegurança nas culturas e conspiram contra sua auto-estima etnocêntrica. Também é de- safiador para o pensamento moderno de tipo analítico, acostumado a se- parar binariamente o civilizado do selvagem, o nacional do estrangeiro, o anglo do latino. 'Outrossim, os processos que chamaremos de hibrulação restrita obri- gam-nos a ser cuidadosos com as generalizações. A fluidez das comuni- cações facilita-nos apropriarmo-nos de elementos de muitas culturas, mas isto não implica que as aceitemos indiscriminadamente; como dizia Custava Lins Ribeiro, referindo-se à fascinação branca pelo aíro-america- no, alguns pensam: "incorporo sua música, mas que não se case com mi- nha filha'1 De todo modo, a intensificação da interculturalidade favore- ce intercâmbios, misturas maiores e mais diversificadas do que em outros tempos; por exemplo, gente que é brasileira por nacionalidade, portugue- sa pela língua, russa ou japonesa pela origem, e católica ou afro-ameri- cana pela religião. Essa variabilidade de regimes de pertença desafia mais uma vez o pensamento binário a qualquer tentativa de ordenar o mun- do em identidades puras e oposições simples. É necessário registrar aquilo que, nos entrecruzamentos, permanece diferente. Como explica N.]. C. V~ntkumar sobre o sincretismo, "é um processo demistura do compa- tível e fixação do incompatívêI" (citado por Canevacci; 1996: 22). o QUE MUDOU NA ÚLTIMA DÉCADA IA América Latina está ficando sem projetos nacionais. A perda de controle sobre as economias de cada país se manifesta no desaparecimen- to da moeda própria (Equador, EI Salvador), em suas desvalorizações fre- qüentes (Brasil, México, Peru, Venezuela) ou na fixação maníaca pelo dólar (Ârgentina)~As moedas trazem emblemas nacionais, masjá representam pouco a capacidade das nações de administrar de maneira soberana seu presente. Não são referências de realidade, embora, nas tentativas de XXXIV UI rUllAS 1III1IUIlA~ revalorizar sua moeda e restituí-Ia do delírio hiperinflacionário a umu 1"'- lação verossímil com o país, o Brasil a tenha redesignado precisamen te como real. Essa aposta de confiar a um significante forte o revigoramento do significado é tão inconsistente a partir das teorias lingüísticas e da re- presentação como, do ponto de vista econômico, o é fazer depender da estabilidade da moeda a reordenação e o controle endógeno da economia. t Por que recorrer a doutrinas tão atrevidamente ingênuas para con- seguir efeitos estruturais? - pergunta Renato Janine Ribeiro. Como de- monstra este filósofo brasileiro no tocante a seu país, a mudança de nome da moeda teve efeitos temporários: tornou possível que um presidente da República fosse eleito duas vezes, consolidou a aliança entre esquerda e direita, ajudou a privatizar órgãos estatais e acalmou por alguns anos a tensão social] Seis anos depois, a desvalorização do real e a maior depen- dência externa das variáveis econômicas nacionais mostram que iniciar uma nova história, reconstiluindo o significado a partir do significante, a economia a partir das finanças, foi só um modo temporário de ocultar os conflitos da história, uma história de oportunidades perdidas, escolhas infelizes; em suma, descontrole dos processos econômicos e sociais que a moeda própria aspira a representar (Ribeiro, 2000). IDos anos 40 aos 70 do século XX, a criação de editoras na Argen ti- na, Brasil, México, Colômbia, Chile, Peru, Uruguai e Venezuela produ- ziu uma "substituição de importações" no campo da cultura letrada, tão significativo para a configuração de nações democráticas modernas; a par- tir de meados dos anos 70, a maioria dos editores faliu, ou vendeu seus catálogos a editoras espanholas, que depois foram comprados por empre- sas francesas, italianas e alemãs] A história social das culturas latino-americanas que traçamos neste livro revela que um recurso-chave para a modernização foi multiplicar o estudantado universitário (de 250 mil em 1950 para 5,389 milhões ao fi- nalizar a década de 70). Desde os anos 80, as universidades, envelheci das e economicamente asfixiadas, voltaram-se para osjovens, na opinião de Juan Villoro, "gigantescas salas de espera em que eles são entretidos para que não se convertam em fator de conflito social". IN IIWIlU~"() A 11l1~"() III 2001 XXXV J l':llIl>oramuitos jovens se frustrassem lI;l trinta, quarenta ou cin- qi"t('nlaanos ao sair elasuniversidades, e às vezes os melhores pcsquisad ..- tTS migrassem para a Europa e os Estados Unidos, a educação superior buscava produzir intelectuais para o desenvolvimento nacional; hoje con- tinua frustrando a maioria; pior ainda, somente lhe oferece optar entre ir trabalhar em cargos secundários nos serviços do Primeiro Mundo ou tornar-se técnico nas transnacionais que controlam a produção e o comér- io do próprio país. Nada na sociedade induz à tentação do voluntarismo político; muito poucos cargos públicos requerem alto nível profissional, , a formação na crítica intelectual antes desqualifica a exercê-l os a quem somente se pede que sejam capacitados. Aos jovens de trinta anos atrás, preocupava-lhes como encurtar a distância entre o culto e o popular; ago- ra, o que aflige os universitários e profissionais jovens na América Latina é como flutuar no que resta do mundo culto e da classe média; se são co- lombianos ou equatorianos, as perguntas são como e para onde ir. ~ Todas as tendências de abdicação do público em favor do privado, elo nacional em favor do transnacional, que registrávamos há dez anos, acentuaram-se. Dois processos novos, incipientes então, colaboram nes- sa reorientação. Um é a digitalização e midiatização dos processos cultu- rais na produção, na circulação e no consumo, que transfere a iniciativa e o controle econômico e cultural a empresas transnacionais. Outro en- volve o crescimento dos mercados informais, a precarização do trabalho e, em sua modalidade mais espetacular, a narcorreorganização de gran- de parte da economia e da política, com a conseqüente destruição violen- ta dos laços sociais. Na cultura, persistem poucas fundações e ações mecênicas por parte de empresários de alguns países latino-americanos, mas em toda parte foram fechadas instituições auspiciadas por atores privados e públicos. O lugar desses atores nacionais costuma ser ocupado por investidores estran- geiros em telecomunicações, distribuidoras e exibidoras de cinema e vídeo, vendedores de produtos e serviços de informática. A inovação es- tética interessa cada vez menos nos museus, nas editoras e no cinema; ela foi deslocada para as tecnologias eletrônicas, para o entretenimento rnu- I I I1 III I'I XXXVI CULlUIIAS IIrlJllll)A~ sical e para a moda. Onde havia pintores ou músicos, há dcsigners c discjoekeys. A hibridação, de certo modo, tornou-se mais fácil e multipli- cou-se quando não depende dos tempos longos, da paciência artesanal ou erudita e, sim, da habilidade para gerar hipertextos e rápidas edições audiovisuais ou eletrônicas. Conhecer as inovações de diferentes países e a possibilidade de misturá-Ias requeria, há dez anos, viagens freqüentes, assinaturas de revistas estrangeiras e pagar avultadas contas telefônicas; agora se trata de renovar periodicamente o equipamento de computador e ter um bom servidor de internei. Apesar de vivermos em um presente excitado consigo mesmo, as his- tórias da arte, da literatura e da cultura continuam a aparecer aqui c lá como recursos narrativos, metáforas e citações prestigiosas. Fragmentos de clássicos barrocos, românticos e do jazz são convocados no rock e na música tecno. A iconografia do Renascimento e da experimentação vanguardista nutre a publicidade das promessas tecnológicas. Os coronéis que não tinham quem lhes escrevesse chegam com seus romances ao ci- nema, e a memória dos oprimidos e desaparecidos mantém seu testemu- nho em rasgados cantos de rock e videoclipes. Os dramas históricos se hibridam mais em movimentos culturais do que sociais ou políticos com os discursos de hoje. Entretanto, os perfis nacionais mantêm vigência em algumas áreas do consumo, sobretudo nos campos em que cada sociedade dispõe de ofertas próprias. Não é o caso do cinema, porque os filmes norte-ameri- canos ocupam entre 80% e 90% do tempo em cartaz em quase todo o mundo; ao domínio da produção e da distribuição agora se acrescenta a apropriação transnacional dos circuitos de exibição, com o qual se con- sagra para um longo futuro a capacidade de marginalizar o que resta das cinematografias européias, asiáticas e latino-americanas. É diferente o que ocorre com a música: as majors (Sony, Warner, Emi e Universal) contro- lam 90% do mercado discográfico mundial, mas as pesquisas de consu- mo dizem que em todos os países latino-americanos mais da metade do que se ouve está em espanhol. Por isso, as megaindústrias fonográíicas e a MTVdão atenção a nossa música. INTK\H/U\./n}"1\ r-1I1\,f\U 1Ir- 6UVI As culturas populares IIí\O se extinguiram, mas há que buscá-Ias em unuos lu!{arcs ou não-lugares, A encenação do popular continua a ser !'cita IIOS museus e exposições folclóricas, em cenários políticos e comu- uicaciouais, com estratégias semelhantes às que analisei nos capítulos5 c ti, embora a recomposição, revalorização e desvalorização de culturas locais na globalização acentuem, e às vezes alterem, alguns processos de hibridação. I É mais claro do que quando escrevi este livro que a interação dos se- rores populares com os hegemônicos, do local com o transnacional, não se deixa ler somente em caráter de antagonismo. As majors da indústria musical, por exemplo, são empresas que se movem com desenvoltura en- tre o global e o nacional. Especialistas em gloeali~r, elas criam condições panique circulemos entre diversas escalas da produção e do consumo.} 1Em suma, nos processos globalizadores, ampliam-se as faculdades ornbinatórias dos consumidores, mas quase nunca acontece o mesmo com a lubrulação endôgena, ou seja, nos circuitos de produção locais, cada vez mais condicionados por uma hibridaçâo heterônoma, coercitiva, que concen- tra as iniciativas combinatórias em poucas sedes transnacionais de geração íc mensagens e bens, de edição e administração do sen tido sociaL! POLíTICAS DE HIBRIDAÇÀO É possível democratizar não só o acesso aos bens, mas também a capacidade de hibridá-los, de combinar os repertórios multiculturais que esta época global expande? A resposta depende, antes de tudo, de ações políticas e econômicas. Entre elas, quero destacar a urgência de que os acordos de livre-comércio sejam acompanhados por regras que ordenem e fortaleçam o espaço público transnacional. Um dos requisi- tos para isso é que, ademais, globalizemos os direitos cidadãos, que as hibridaçôes multinacionais derivadas de migrações em massa sejam re- conhecidas em uma concepção mais aberta da cidadania, capaz de abranger múltiplas pertenças. XXXVIII ULI UIIA~ 1IIIIIlIIJAS J Quero dizer que reivindicar a heterogeneidac1e e a possibilidade de múltiplas hibridações é um primeiro movimento político para que o mundo não fique preso sob a lógica homogeneizadora com que o capi- tal financeiro tende a emparelhar os mercados, a fim de facilitar os lucros. Exigir que as finanças sejam vistas como parte da economia, ou seja, da produção de bens e mensagens, e que a economia seja redefinida como cenário de disputas políticas e diferenças culturais é o passo seguinte para que a globalização, entendida como processo de abertura dos mercados e dos repertórios simbólicos nacionais, como intensificação de intercâm- bios e hibridações, não se empobreça como globalismo, ditadura homo- geneizadora do mercado mundial.] Ao que estão fazendo nessa direção os movimentos de protesto contra o Banco Mundial, o FMIe a OECD (ecologistas, pelos direitos hu- manos ete.) , é necessário acrescentar um trabalho especificamente in- tercultural, de reconhecimento da diversidade e afirmação de solidarie- dades. Mencionei antes as fronteiras e as grandes cidades como cená- rios estratégicos. Para essas tarefas, convém considerar também os exí- lios e as migrações, condições propícias para as misturas e a fecundação entre culturas. Edward W. Said explica: Considerar "o mundo inteiro como uma terra estrangeira" possibilita uma ori- ginalidade na visão. A maioria das pessoas é consciente sobretudo de uma cultura, de um ambiente, de um lar; os exilados são conscientes de pelo menos dois, e essa pluralidade de visão dá lugar a uma consciência [sic] que - para utilizar uma expres- são da música - é contrapontística ... Para um exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente em contraste com uma lem- brança de coisas em outro ambiente. Desse modo, tanto o novo ambiente como o anterior são vívidos, reais, e se dão juntos em um contraponto. Ao comentar esse parágrafo de Said.james Clifford sustenta que os discursos da diáspora e de hibridação nos permitem pensar a vida con- temporânea como "uma modernidade de contraponto" (Clifford: 313). Mas em outro lugar do mesmo livro - ltinerarios Transculturales - ele se c ...-- pergunta se a noção de viagem é mais adequada do que outras usadas no INIIWIlUÇÃO" IIJIÇÃO IJI 2001 XXXIX pcusnmcuto pós-moderno: deslocamento, nomadismo, peregrinação. 1\1('11I ele assinalar as limitações destes últimos vocábulos, propõe viagem romo "lermo ele tradução" entre os demais, ou seja, "uma palavra de apli- cação aparentemente geral, utilizada para a comparação de um modo es- tratégico e contingente". Todos os termos de tradução, esclarece, "nos le- vam durante um trecho e depois desmoronam. Traduttore, tradittore. No tipo de tradução que mais me interessa, aprende-se muito sobre os povos, sobre as culturas, sobre as histórias diferentes da própria, o suficiente para omeçar a perceber o que se está perdendo" (Clifford: 56). }Considero atraente tratar a hibridação como um termo de tradução entre mestiçagem, sincretismo, fusão e os outros vocábulos empregados para designar misturas particulares. Talvez a questão decisiva não seja estabelecer qual desses conceitos abrange mais e é mais fecundo, mas, sim, como continuar a construir princípios teóricos e procedimentos metodológicos que nos ajudem a tornar este mundo mais traduzível, ou seja, convivível em meio a suas diferenças, e a aceitar o que cada um ga- nha e está perdendo ao hibridar-se.!Encontro em um poema de Ferreira Gullar, musicado por Raimundo Fagner em um disco no qual canta algu-, mas canções em português e outras em espanhol, e no qual alterna sua voz e sua língua de origem com as de Mercedes Sosa e joan Manuel Serrat, uma maneira excelente de expressar esses dilemas. O nome do disco é, como o poema de Gullar, Traduzir-se: Uma parte de mim é todo mundo Outra parte é ninguém, fundo sem fundo Uma parte de mim é multidão Outra parte estranheza e solidão Uma parte de mim pesa, pondera Outra parte delira Uma parte de mim almoça ejanta Outra parte se espan ta Uma parte de mim é permanente Outra parte se sabe de repente -"'> -> , XL UII UIlA5 IIIUIWJAS Uma parte de mim é só vertigem Outra parte linguagem Traeluzir uma parte na outra parte Que é uma questão ele vida e morte Será arte? :3- J Vinculamos, assim, a pergunta pelo que hoje podem ser a arte e a cultura às tarefas de tradução do que dentro de nós e entre nós perma- nece desmembrado, beligerante ou incompreensível, ou quiçá chegue a hibridar-se. Este caminho talvez libere as práticas musicais, literárias e midiáticas da missão "folclórica" de representar uma só identidade. A es- tética abandona as tentativas dos séculos XIX e XX de convertê-Ia em pe- dagogia patriótica. I J Devo dizer, à luz do que desenvolvi antes, que outra ameaça substi- tui nestes dias aquele destino folclorizante ou nacionalista. É aquela que a sedução do mercado globalista traz: reduzir a arte a discurso de recon- ciliação planetária. As versões estandardizadas dos filmes e das músicas do mundo, do "estilo internacional" nas artes visuais e na literatura, sus- pendem às vezes a tensão entre o que se comunica e o separado, entre o que se globaliza e o que insiste na diferença, ou é expulso para as mar- gens da mundialização. Uma visão simplificada da hibridação, como a propiciada pela domesticação mercantil da arte, está facilitando vender mais discos, filmes e programas televisivos em outras regiões. Mas a equalização das diferenças, a simulação de que se desvanecem as assimetrias entre centros e periferias tornam difícil que a arte e a cultu- ra sejam lugares em que também se nomeie o que não se pode ou não se deixa hibridar. J A primeira condição para distinguir as oportunidades e os limi- tes da hibridação é não tornar a arte e a cultura recursos para o realis- mo mágico da compreensão universal. Trata-se, antes, de colocá-Ios no campo instável, conflitivo, da tradução e da "traição". As buscas artísti- cas são chaves nessa tarefa, se conseguem ao mesmo tempo ser lingua- gem e ser vertigem. BIBLIOGRAFIA DA INTRODUÇÃO À EDiÇÃO DE 2001 • i\PPADURAI,Arjun. Modernity at Large: CulturalDimensions of Clobalization. Mineápolis, , Universily of Minnesota Press, 1996. ARCIIETII,Eduardo P. "Hibridación, Pertenencia y Localidael en Ia Construcción ele una Cocina Nacional". In: ALTAMIRANO,Carlos (eel.). La Argentina en el Siglo Xx. Buenos Aires, Ariel/Universielael ele Quilmes, 1999, pp. 217-237. Bt:CK,Ulrich. Qué es Ia Globalización. Barcelona, Paidós, 1998. Bt:RNAND,Carmen. "Altêritês et mêtissages híspano-amêricains". In: Dt:SCAMPs,Christian (elir.). Amériques latines: une altérité. 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ENTRADA Quais são, nos anos 90, as estratégias para entrar na modernidade e sair dela? t Colocamos a pergunta deste modo porque, na América Latina, onde as tradições ainda não se foram e a modernidade não terminou de che- gar, não estamos convictos de que modernizar-nos deva ser o principal objetivo, como apregoam políticos, economistas e a publicidade de novas tecnologias. Outros setores, ao comprovar que os salários retrocedem ao valor que tinham há duas décadas e que a produção dos países mais prós- peros - Argentina, Brasil, México - permaneceu estanque durante os anos 80, têm-se perguntado se a modernização é acessível para a maioria. E tam- bém é possível pensar que ser moderno perdeu o sentido neste tempo em qlle as filosofias pós-modernas desacreditam os movimentos culturais que~ prometem utopias e auspiciam o progresso. Não basta explicar essas discrepâncias pelas diferentes concepções que a economia, a política e a cultura têm da modernidade. Ao lado da questão teórica, estão em jogo dilemas políticos. Vale a pena promover o artesanato, restaurar ou rcaprovcitar o patrimônio histórico, continuar 18 CULTURAS HIBRIDAS aceitando o ingresso em massa de estudantes em cursos de humanas ou ligados a atividades em desuso da arte de elite ou da cultura popular? Tem sentido - pessoal e coletivamente - investir em longos estudos para acabar em cargos de baixa remuneração, repetindo técnicas e conheci- mentos desgastados, em vez de dedicar-se à microeletrônica ou à teleco- municação? Também não é suficiente, para entender a diferença entre as visões da modernidade, recorrer a esse princípio do pensamento modernose- gundo o qual as divergências ideológicas se deveriam ao acesso desigual que cidadãos e políticos, trabalhadores e empresários, artesãos e artistas têm aos bens. A primeira hipótese deste livro é que a incerteza em relação ao sentido e ao valor da modernidade deriva não apenas do que separa nações, etnias e classes, mas também dos cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno se misturam. }Como entender o encontro do artesanato indígena com catálogos de arte de vanguarda sobre a mésa da televisão? O que buscam os pinto- res quando citam no mesmo quadro imagens pré-colombianas, coloniais e da indústria cultural; quando as reelaboram usando computadores e. laseti Os meios de comunicação eletrônica, que pareciam destinados a substituir a arte culta e o folclore, agora os difundem maciçamente. O rock e a música "erudita" se renovam, mesmo nas metrópoles, com melodias populares asiáticas e afro-americanasj Não se trata apenas de estratégias das instituições e dos setores he- gemônicos. É possível vê-Iastambém na "reestruturação" econômica e sim- bólica com que os migrantes do campo adaptam seus saberes para viver na cidade e seu artesanato para atrair o interesse dos consumidores urba- nos; quando os operários reformulam sua cultura de trabalho frente às novas tecnologias de produção sem abandonar crenças antigas, e quan- do os movimentos populares inserem suas reivindicações no rádio e na televisão. Qualquer um de nós tem em casa discos e fitas em que se com- binam música clássica e jaz.z, folclore, tango e salsa, incluindo composito- res como Piazzola, Caetano Veloso e Rubén Blades, que fundiram esses gêneros cruzando em suas obras tradições cultas e populares. NTRADA 19 1, J Assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo' não estão onde estamos habituados a encon trá-Ios.É necessário demolir essadivisãoem três pavimentos, essacon- cepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridaçãb Ipode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte e a literatura que se ocupam do "culto"; o folclore e a antro- pologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especiali- zados na cultura massiva.Precisamos de ciências sociaisnômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que re- desenhem essesplanos e comuniquem os níveishorizontalrnente.Í 'J-. Asegunda hipótese é que o trabalho conjunto dessas disciplinas pode gerar outro modo de conceber a modernização latino-americana: mais do que como uma força alheia e dominadora, que operaria por substituição do tradicional e do típico, como as tentativas de renovação com que diver- sos setores se encarregam da heterogeneidade multitemporal de cada nação. 3- Uma terceira linha de hipótese sugere que esse olhar transdisciplinar sobre os circuitos híbridos tem conseqüências que extrapolam a investi- gação cultural. A explicação de por que coexistem culturas étnicas e no- vas tecnologias, formas de produção artesanal e industrial, pode iluminar processos políticos; por exemplo: as razões pelas quais tanto as camadas populares quanto as elites combinam a democracia moderna com relações arcaicas de poder. Encontramos no estudo da heterogeneidade cultural uma das vias para explicar os poderes oblíquos que misturam instituições liberais e hábitos autoritários, movimentos sociais democráticos e regimes paternalistas, e as transações de uns com outros. * Os termos masiuo e masiua do espanhol estarão sendo mantidos, especialmente quando se referem à cultura e aos meios de comunicação, ainda que no português as expressões consagradas sejam cultu- ra de massa e meios de comunicação de 1/laJsa. Optamos por manter a diferenciação,justificada pelo autor no capítulo VI, entre cultura de 1/laJase cultura masioa. [N. das T.] I. Serão mencionados ocasionalmente os termos smcretismo, mestiçageme outros empregados para desig- nar processos de hibridação. Prefiro este último porque abrange diversas mesclas interculturais - não apenas as raciais, às quais costuma limitar-se o termo "mestiçagem" - e porque permite incluir as for- mas modernas de hibridação melhor do que "sincretismo", fórmula que se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos tradicionais. 20 UIlURA~ IIfURII)A\ Temos, então, três questões em debate. Como estudar as culturas híbridas que constituem a modernidade e lhe dão seu perfil específico na América Latina. Em seguida, reunir os saberes parciais das disciplinas que se ocupam da cultura, para ver se é possível elaborar uma interpretação mais plausível das contradições e dos fracassos da nossa modernização. Em terceiro lugar, o que fazer - quando a modernidade se tornou um proje- to polêmico ou suspeito - com essa mescla de memória heterogênea e inovações truncadas. NEM CULTO, NEM POPULAR, NEM MASSIVO Para analisar as idas e vindas da modernidade, os cruzamentos das heranças indígenas e coloniais com a arte contemporânea e as culturas eletrônicas, talvez fosse melhor não fazer um livro. Nem mesmo um filme, nem uma telenovela, nada que se entregue em capítulos e vá de um co- meço a um fim. Talvez se possa usar este texto como uma cidade, na qual se entra pelo caminho do culto, do popular ou do massivo. Dentro, tudo se mistura, cada capítulo remete aos outros, e então já não importa saber por qual acesso se entrou. Mas como falar da cidade moderna, que às vezes está deixando de ser moderna e de ser cidade? O que era um conjunto de bairros se espa- lha para além do que podemos relacionar, ninguém dá conta de todos os itinerários, nem de todas as ofertas materiais e simbólicas desconexas que aparecem. Os migrantes atravessam a cidade em muitas direções e instalam, precisamente nos cruzamentos, suas barracas barrocas de do- ces regionais e rádios de contrabando, ervas medicinais e videocassetes. Como estudar os ardis com que a cidade tenta conciliar tudo que chega e prolifera e com que tenta conter a desordem: a barganha do provinci- ano com O transnacional, os engarrafamentos de carros diante das ma- nifestações de protesto, a expansão do consumo junto às demandas dos desempregados, os duelos entre mercadorias e comportamentos vindos de todas as partes? I NI RAllA 21 As ciências sociais contribuem para essa dificuldade com suas diferen- tes escalas de observação. O antropólogo chega à cidade a pé, o sociólogo de carro e pela pista principal, o comunicólogo de avião. Cada um registra o que pode, constrói uma visão diferente e, portanto, parcial. Há uma quar- ta perspectiva, a do historiador, que não se adquire entrando, mas saindo da cidade, partindo de seu centro antigo em direção aos seus limites con- temporâneos. Mas o centro da cidade atual já não está no passado.' A história da arte, a literatura e o conhecimento científico tinham identificado repertórios de conteúdos que deveríamos dominar para ser- mos mitos no mundo moderno. Por outro lado, a antropologia e o folclo- re, assim como os populismos políticos, ao reivindicar o saber e as práti- cas tradicionais, constituíram o universo do popular. As indústrias culturais geraram um terceiro sistema de mensagens massivas do qual se ocuparam novos especialistas: comunicólogos e serniólogos". , Tanto os tradicionalistas quanto os modernizadores quiseram cons- truir objetos puros. Os primeiros imaginaram culturas nacionais e popu- lares "autênticas"; procuraram preservá-Ias da industrialização, da massi- ficação urbana e das influências estrangeiras. Os modernizadores conce- beram uma arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras territoriais, e confiaram à experimentação e à inovação autônomas suas fantasias de progresso. As diferenças entre esses campos serviram para organizar os bens e as instituições. O artesanato ia para as feiras e concursos popula- res, as obras dearte para os museus e as bienais~ As ideologias modernizadoras, do liberalismo do século passado ao desenvolvimentismo, acentuaram essa compartimentação maniqueísta ao imaginar que a modernização acabaria com as formas de produção, as (j):s noções de culto, populare massivoserão discutidas conceitual e historicamente em vários capítulos. A mais incõmoda é a primeira: é preferível falar em culto, elitista, erudito ou hegemõnico? Essas de- ,~uminações se superpõem parcialmente e nenhuma é satisfatória. Erudito é a mais vulnerável, por- que define essa modalidade de organizar a cultura pela vastidão do saber reunido, enquanto oculta que se trata de um tipo de saber: não são eruditos também o curandeiro e o artesão? Usaremos as noções de elite e hegemonia para indicar a posição social que confere ao culto seus privilégios, mas empregaremos mais freqüeruernente esse último termo, porque é o mais usado. 22 tUIIU~A\ IIIUHIIlA\ crenças e os bens tradicionais. Os mitos seriam substituídos pelo conheci- mento científico, o artesanato pela expansão da indústria, os livros pelos meios audiovisuais de comunicação. Hoje existe uma visão mais complexa sobre as relações entre tradi- ção e modernidade. O culto tradicional não é apagado pela industrializa- ção dos bens simbólicos. São publicados mais livros e edições de maior ti- ragem que em qualquer época anterior. Há obras eruditas e ao mesmo tempo massivas, como O Nome da Rosa, tema de debates hermenêuticos em simpósios e também best seller, que havia vendido, no final de 1986, antes de ser exibida a versão para o cinema, cinco milhões de exemplares em 25 línguas. Os relatos de García Márquez e Vargas Llosa alcançam mais público que os filmes baseados em seus textos. Do lado popular, é necessário preocupar-se menos com o que se extingue do que com o que se transforma. Nunca houve tantos artesãos, nem músicos populares, nem semelhante difusão do folclore, porque seus produtos mantêm funções tradicionais (dar trabalho aos indígenas e cam- poneses) e desenvolvem outras modernas: atraem turistas e consumido- res urbanos que encontram nos bens folclóricos signos de distinção, refe- rências personalizadas que os bens industriais não oferecem. A modernização diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime. Redimensiona a arte e o folclore, o saber acadêmico e a cultura industrializada, sob condi- ções relativamente semelhantes. O trabalho do artista e o do artesão se aproximam quando cada um vivencia que a ordem simbólica específica em que se nutria é redefinida pela lógica do mercado. Cada vez podem pres- cindir menos da informação e da iconografia modernas, do desencanta- mento de seus mundos autocentrados e do reencantamento que a espeta- cularização da mídia propicia. O que se desvanece não são tanto os bens antes conhecidos como cultos ou populares, quanto a pretensão de uns e outros de configurar universos auto-suficientes, e de que as obras produzi- das em cada campo sejam unicamente "expressão" de seus criadores. É lógico que também confluam as disciplinas que estudavam esses universos. O historiador de arte que escrevia o catálogo de uma exposi- 11111 II11I11 ''''I I NIIlAI)A 2 'ao Sil\1í1VíIo artista ou a tendência em lima sucessão articulada de bus- cas, um certo "avanço" em relação ao que já havia sido feito nesse campo. O Iolclorista e o antropólogo relacionavam o artesanato a uma matriz rnítica ou a um sistema sociocultural autônomos que davam a esses obje- tos sentidos precisos. Hoje, essas operações se revelam quase sempre cons- truções culturais multicondicionadas por agentes que transcendem o ar- tístico ou o simbólico. O que é a arte não é apenas uma questão estética: é necessário le- var em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas estratégias ins- táveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia. A MODERNIDADE DEPOIS DA PÓS'MODERNIDADE I Essas transformações dos mercados simbólicos em parte radicalizam o projeto moderno, e de certo modo levam a uma situação pós-moderna entendida como ruptura com o anterior. A bibliografia recente sobre esse duplo movimento ajuda a repensar vários debates latino-americanos, prin- cipalmente a tese de que as divergências entre o modernismo cultural e a modernização social nos transformariam numa versão deficiente da mo- dernidade canonizada pelas metrópoles". {ou ao contrário: que por ser a dotamos com certa flexibilidade a distinção feita por vários autores, desde Jürgen Habermas até ~arshall Berman, entre a modernidadecottv: etapa histórica, a modernização como um processo socio- econômico que vai construindo a modernidade, e os modernismos, ou seja, os projetos culturais que renovam as práticas simbólicas com um sentido experimental ou crítico (jürgen Habermas, EI Discur- soFilosójiro de ia Modernidad, Madrid, Taurus, 1989; Marshall Berman, Todo 10 Sólido SeDesvaneceen elAire: La Experiencia de ia Modernidad, Madrid, Siglo XXI, 1988. 24 CULTURAS HfBRIDAS pátria do pastiche e do bricolage, onde se encontram muitas épocas e esté- ticas, teríamos o orgulho de ser pós-modernos há séculos e de um modo singular. Nem o "paradigma" da imitação, nem o da originalidade, nem a "teoria" que atribui tudo à dependência, nem a que preguiçosamente nos quer explicar pelo "real maravilhoso" ou pelo surrealismo latino-america- no, conseguem dar conta de nossas culturas híbridas. Trata-se de ver como, dentro da crise da modernidade ocidental- da qual a América Latina é parte -, são transformadas as relações entre tradição, modernismo cultural e modernização socioeconômica. Para isso, é preciso ir além da especulação filosófica e do intuicionismo estético do- minantes na bibliografia pós-moderna) A escassez de estudos empíricos sobre o lugar da cultura nos processos chamados pós-modernos levou a reincidir em distorções do pensamento pré-moderno: construir categori- as ideais sem comprovação factuad Uma primeira tarefa é levar em conta as discrepantes concepções da modernidade. Enquanto na arte, na arquitetura e na filosofia as corren- tes pós-modernas são hegemônicas em muitos países, na economia e na política latino-americanas prevalecem os objetivos modernizadores. As últimas campanhas eleitorais e os discursos políticos que acompanham os planos de ajuste de reestruturação julgam prioritário que nossos países incorporem os avanços tecnológicos, modernizem a economia, superem nas estruturas de poder as alianças informais, a corrupção e outros ranços pré-modernos. O peso cotidiano dessas "deficiências" faz com que a atitude mais freqüente perante os debates pós-modernos seja, na América Latina, a subestimação irônica. Para que vamos ficar nos preocupando com a pós- modernidade se, no nosso continente, os avanços modernos não chega- ram de todo nem a todos? Não tivemos uma industrialização sólida, nem uma tecnificação generalizada da produção agrária, nem uma organiza- ção sociopolítica baseada na racionalidade formal e material que, confor- me lemos de Kant a Weber, teria sido transformado em senso comum no Ocidente, o modelo de espaço público onde os cidadãos conviveriam de- mocraticamente e participariam da evolução social. Nem o progressismo f' ,\ ENTRADA ~ ( evolucionista, nem o racionalismo democrático foram, entre nós, causas populares. , "Como falar de pós-modernidade num país onde surge o Sendero Luminoso, que tem tanto de pré-moderno?" - perguntava
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