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As Nuves (Trad. Gilda Maria Reale)

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Universidade Católica de Brasília
Letras 
Estudos Crítico-Teóricos da Literatura II
Prof. Robson André da Silva
AS NUVENS
Gilda Maria Reale Starzynski∗
Resumo e estrutura 
O assunto da comédia desenvolve-se da maneira seguinte: 
Prólogo (vv. 1-274). Ao iniciar-se a peça, encontramos um velho camponês, 
chamado Estrepsíades, agora residente na cidade, insone e aflito. Porque não pode 
dormir, irrita-se com o sono solto dos escravos e com os roncos despreocupados do 
jovem filho e reflete: “Ah, maldita guerra, és a causa de todas as minhas desgraças!. 
Ninguém mais trabalha. Os campos estão abandonados, já é quase dia e os escravos 
dormem”. Mas algo mais existe, o velho faz os cálculos e vê que o fim do mês se 
aproxima e, com ele a urgente necessidade de pagar juros e dívidas, dívidas horrorosas, 
por um dinheiro mal empregado, para atender às estroinices do filho, sempre desejoso 
de um cavalo de raça ou de urn novo carro de corridas (vv. 1-35). 
E, enquanto o filho resmunga em sonhos falando só de cavalos, o pai prossegue 
o monólogo. Tudo por causa daquela maldita casamenteira!... Que saudades de sua 
antiga vida nos campos, feliz, desleixada, sem preocupacões, em meio à fartura e ao 
aroma dos figos, da lã e do queijo fresco. Depois, veio para a cidade e puseram-lhe na 
cabeça idéias de grandeza, e havia de casar-se com uma sirigaita, cheia de pretensões de 
nobreza, luxos, despesas e gulodices. Foi ela que lhe deu esse filho, um inútil gastador 
que não presta para nada... Desde o dia do nascimento, o menino só trouxe discórdia, 
pois até na escolha do nome pai e mãe discutiram, Ah, mas
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bem que esse rapaz poderia servir para alguma coisa. Dizem por aí que há em Atenas 
uns fulanos que, mediante pagamento, sabem transformar o certo em errado e vice-
versa, e são capazes de ensinar a vencer até nas causas mais injustas. “Se o rapaz for 
aprender com eles, raciocina o velho, estarei salvo.” 
Estrepsíades tenta acordar o filho, adulando-o com palavras carinhosas a fim de 
convencê-lo a freqüentar o “pensatório”, a oficina do pensamento, onde trabalham esses 
hábeis pensadores que conhecem os segredos do céu e que são senhores até do 
“Discurso Injusto”. O jovem Fidípides recusa-se a aceitar essas sugestões. Ele, um 
“boa-vida”, um esportista não poderia conformar-se com a idéia de tornar-se pobre e 
esquálido como Sócrates e o funesto Querofonte. Não, não o faria por nada! (vv. 35-
125). 
Acabrunhado, o velho resolve ir pessoalmente receber os ensinamentos dos 
mestres do pensatório; apesar de adiantado em anos, bronco e esquecido, como bom ate-
niense, não aceita a derrota. Encaminha-se à casa de Sócrates e é recebido por um 
discípulo mal-humorado a quem se apresenta solenemente, tremendo de medo como um 
 In: ARISTÓFANES. As Nuvens. Tradução, introdução e notas de Gilda Maria Reale Starzynski. São 
Paulo: DIFEL, 1967, p. 46-58.
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réu perante o tribunal. 
Informado sobre as maravilhas que se passam naquele templo do saber, 
Estrepsíades admira a sutileza do raciocínio de Sócrates, que se ocupa com assuntos 
transcendentais como a medida dos saltos das pulgas e o canto dos mosquitos. 
Contempla os discípulos que meditam nas mais estranhas posições e aprende para que 
servem as réguas, compassos e mapas. Afinal, depara com a figura de Sócrates, lá no 
alto de um cesto dependurado no teto (vv. 126-221). 
Sócrates desce como um deus “ex-machina” e explica ao velho boquiaberto que 
andava suspenso pelos 
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ares porque, para pensar sabre o que se passa no alto do céu, precisava fugir a perigosa 
atração da terra, mal de que sofre até o agrião... Estrepsíades trata de explicar que 
necessita de aprender a falar porque é vítima duma doença de cavalos, terrível 
devoradora, que está pilhando e saqueando os seus bens. Quer aprender um jeito de não 
pagar as dívidas, e se Sócrates ajudá-lo, jura pelos deuses que há de pagar-lhe o salário 
exigido. 
“Que deuses?” responde Sócrates. “Isso já é coisa fora de moda!” Agora é o 
mundo das Nuvens, as novas divindades!”
De espanto em espanto, Estrepsíades passa por urn verdadeiro ritual de iniciação 
e afinal, ja está apto a compartilhar de todos os segredos da nova educação. Resta 
apenas apresentá-lo às Nuvens. (vv. 222-262). E em solenes versos líricos Sócrates 
procede à invocação das Nuvens, as suas protetoras (vv. 263-274). 
Como se vê, o prólogo das Nuvens enquadra-se bem nas características 
tradicionais. Inicia-se com um monólogo em que o personagem nos põe a par de seus 
problemas e da idéia que lhe ocorreu para livrar-se desses embaraços. A ação tem um 
início de desenvolvimento; apresenta-se um projeto que já parece encaminhar-se para 
uma realização completa. E, para terminar, uma cena de farsa em que os gestos e as 
atitudes grotescas quase têm mais valor do que as palavras. Seus versos são trímetros 
jâmbicos. 
Párodo (vv. 275-475). Em meio ao estrondo dos trovões ouve-se ao longe o coro 
das Nuvens, que proferem duas estrofes líricas, aparecendo aos poucos, enquanto se 
afastam dos domínios do pai o “retumbante Oceano”, a caminho de Atenas, “terra de 
homens valorosos, amável país de Cécrope” (vv. 275-314)
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Estrepsíades não consegue vê-las, mas treme de medo e já parece contaminado 
pela sua presença: sente a alma esvoaçar, desejando divagar sabre fumaças... 
Quando os membros do coro, mulheres de vestes voluteantes e de grandes 
narizes, tomam conta da “orquestra”, o velho confessa sua admiração: sempre acreditara 
que as Nuvens fossem apenas vapor e orvalho! “Não, retruca Sócrates, são as protetoras 
de todos nós, sofistas, adivinhos, médicos, charlatães de coisas celestes”. São versáteis e 
por isso podem tomar a forma que desejarem (vv. 315-355). 
Após a saudação de Estrepsíades, (vv. 356-357), no v. 358, inicia-se um debate 
que toma as proporções de um quase-agon. Assegurada a proteção das Nuvens, Sócrates 
e Estrepsíades travam um rápido diálogo de perguntas e respostas e, paulatinamente, o 
velho vai tomando ciência de verdades muito graves. Antes de mais nada, Zeus e os 
outros deuses nada mais são do que lorotas. As verdadeiras divindades são as Nuvens, 
causadoras da chuva, do raio e do trovão. Num tom pretensioso e dogmático, Sócrates 
vai conduzindo a conversa até que o próprio Estrepsíades descubra por si mesmo a 
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evidência dos fatos, para cair inerme o convicto (vv. 358-411). 
Novamente intervêm as Nuvens, prometendo ao velho, em seu convívio, a 
grande sabedoria, se estiver disposto a dedicar-se de corpo e alma, sem temer o frio, a 
fome e a sede e se renegar todas as outras divindades. Estrepsíades com tudo se 
conforma, pois tem urgência de virar a justiça para o seu lado e escapar dos credores... 
(vv. 412-438). 
Num rápido e semipatético monólogo (“pnigos”) o velho camponês resolve 
abandonar-se inteiramente aos ministros das Nuvens, isto é, Sócrates e seus discípulos;
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“pois façam de mim tudo que desejam contanto que eu me torne atrevido, faroleiro, 
hábil em chicanas, enfim, um perfeito sofista” (vv. 439-455). 
O coro celebra a decisão do velho e aponta-lhe um futuro risonho, que o verá 
hábil em enganar o próximo e em distribuir conselhos a torto e a direito. (vv. 457-
475). 
Exortado pelo coro a cumprir sua missão de mestre, Sócrates procede a um 
breve exame do novo discípulo, inquirindo de seus dotes naturais, indispensáveis ao 
aprendizado. Quando Estrepsíades demonstra o amor às querelasjudiclarias (v. 496), 
Sócrates convence-se de suas habilidades e decide-se a aceitá-lo. Completa-se o ritual 
de iniciação e Estrepsíades, apavorado, adentra o “pensatório” (vv. 476-509). 
Como se vê, este párodo apesar de comportar uma subdivisão num quase-agon, 
“grosso modo”, enquadra-se nas características tradicionais. O coro chega de maneira 
bastante movimentada, entre cânticos e danças, que representam a mobilidade, a 
versatilidade, a fluidez e a transparência das Nuvens. Depois, as duas personagens e o 
corifeu travam um debate, em que o coro ora aprova as idéias ora incentiva a uma 
decisão. Enfim, percebe-se claramente que o coro movimenta a ação e que aquela 
realização que parecia completa no fim do prólogo era apenas aparente; só agora, no fim 
do párodo, Estrepsíades será realmente aceito como um membro do pensatório. 
Cena de transição (vv. 476-509). Entre o párodo e o início da parábase medeia 
uma rápida cena, dando prosseguimento à iniciação de Estrepsíades, interrompida com a 
invocação de Sócrates às Nuvens. 
Parábase (vv. 510-626). A parábase das Nuvens é original em dois aspectos: a) 
situa-se logo após o párodo, antes do agon; b) enquanto a parábase propria-
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mente dita geralmente se compõe de versos tetrâmetros anapésticos, nesta peça é em 
versos jâmbicos, eupolideus6. 
Na parábase propriamente dita o coro afasta-se, e o corifeu toma a palavra. O 
poeta fala-nos do seu desapontamento, pois embora esperasse haver criado uma obra-
prima, fora derrotado por homens vulgares, sem merecê-lo7. E a seguir aponta suas 
inovações, evitando os gestos obscenos, a farsa grosseira, e a repetição dos mesmos 
temas (vv. 518-562). 
Na parte lírica, Ode (vv. 563-574) e antode (vv. 595-604), o coro entoa cânticos 
de invocação aos deuses. É interessante, que embora as Nuvens tivessem sido apontadas 
como as novas divindades, nestes momentos parecem perder o caráter divino, dirigindo 
6 É possível que a malícia de Aristófanes o impelisse a manusear o verso preferido do seu rival 
Eúpolis, justamente num trecho em que lhe dirigia pesadas mvectivas, acusando-o até do plágio.
7 A parábase tal qual a encontramos é a da segunda composição das Nuvens, posterior a 421 a. 
C., como se pode verificar pela referência ao Maricas de Eúpolis, peça representada nesse ano. 
De outro lado, as queixas de Aristófanes que discorre sobre o malogro dessa mesma peça 
evidenciam essa adição posterior ou modificação ao texto primitivo.
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piedosos versos de invocação a Zeus, Posidão, Hélio, Apolo, Ártemis, Atena e Dioniso8, 
deuses tradicionais. 
Em dois novos monólogos epirrema (vv. 575-954) e antepirrema (vv. 605-626), 
o corifeu toma novamente a palavra para falar agora em nome das Nuvens, que, em dois 
trechos simétricos, censuram a proverbial insensatez dos atenienses, que não sabem 
escolher os govemantes
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e que andam fazendo uma atrapalhada terrível, confundindo até as divindades, com a 
mudanca do calendário9. 
Como é fácil observar, exceto pela colocação antes do agon e pelo uso do metro 
eupolideu na parte tradicionalmente chamada “anapestos”, a parábase segue os padrões 
da estrutura convencional. 
Cenas Cômicas (vv. 627-883). Continua o aprendizado de Estrepsíades que terá 
oportunidade de demonstrar os seus dotes e a capacidade de assimilar os ensinamentos 
recebidos. 
Enquanto o velho insiste que está interessado apenas em aprender os argumentos 
injustos, Sócrates quer transmitir-lhe outras novidades que lhe parecem indispensáveis 
para a formação de um verdadeiro sofista. Temos então uma deliciosa paródia das 
preleções dos sofistas sobre gêneros, ortoépia, medidas e ritmos. O velho Estrepsíades 
como um bom precursor do Mr. Jourdain de Molière entende tudo ao pé da letra, não é 
capaz de afastar-se do terra-a-terra, dando origem a vários mal-entendidos bem 
hilariantes (vv. 627-698). 
Segue-se um intermédio lírico, a cena patético-cômica, em que Estrepsíades, 
devorado pelos percevejos e aconselhado a concentrar-se para pensar10 (vv. 700-722). 
Sócrates volta à carga e quer saber: “Já encontraste
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algo? Vou propor-te alguns problemas, procura a solução.” 
Só agora o filósofo vai tratar do assunto que realmente interessa a Estrepsíades e 
incita-o a refletir sobre algum meio de escapar aos credores. O velho pensa e repensa e 
oferece algumas propostas; poderia aprisionar a Lua para impedir a chegada do fim do 
mês, poderia inutilizar os documentos do processo de dívidas, ou poderia também 
enforcar-se... Sócrates, desanimado, manda-o passear. E assim termina o aprendizado de 
Estrepsíades (vv. 699-791). 
Enquanto o velho se desespera, o coro novamente movimenta a ação: “Se é que 
não podes aprender, manda o filho em teu lugar.” 
Já agora Estrepsíades não é apenas o velho pai agoniado pelas dívidas, tem em si 
algo das sutilezas sofísticas. Com habilidade e persuasão, tenta novamente convencer o 
filho, alertando-o sobre a sua ignorância. Fidípides não sabe o que fazer pois o seu pai 
parece de fato haver enlouquecido, mas, afinal, de repente resolve-se a obedecer, com 
um aviso cheio de perigosas advertências: “De acordo, mas você se arrependerá disso” 
(vv. 791-865). Convencido o rapaz, ei-lo diante de Sócrates. O mestre resolve 
apresentá-lo aos dois raciocínios, o Justo e o Injusto (vv. 866-888). 
8 A única divindade sofística invocada é o Éter (v. 570).
9 O matemático Metão, procurando adaptar os meses lunares ao ano solar, propôs uma reforma do 
calendário. Essa reforma começou a entrar em vigor a partir do verão de 432 a. C. Os deuses, 
acostumados ao antigo calendário, desciam à terra nos dias de suas festas e ficavam desapontados...
10 É possível que, nesta cena, os trejeitos do velho deitado no 1eito do “pensatório” procurassem 
reproduzir o “parto intelectual de Estrepsíades”, numa crítica hilariante da maiêutica de Sócrates. 
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Pro-agon (vv. 889-948). Afasta-se Sócrates e entram duas novas personagens 
que ameaçam engalfinhar-se. Trata-se do velho e solene Justo e do jovem e 
despudorado Injusto. Apaziguam-se os ânimos com a intervenção do coro: não convém 
trocar ofensas, é preciso que cada qual demonstre o que é para que o jovern faça a sua 
escolha. 
Agon (vv. 949-1104). Saudado pelo coro, o Justo toma a palavra, em defesa da 
educação antiga, severa
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e simples, sem nenhuma afetação, correta e viril, cheia de apreço pela velhice e pelas 
tradições, fonte de um comportamento exemplar, já que formava em cada jovem a 
verdadeira imagem do pudor. Foi a educação dos vencedores de Maratona, rapazes 
corajosos que condenavam a efeminação, os balneários e a parolagem pela ágora, 
passando o tempo nos ginásios, rescendendo a “hera, serenidade e choupo branco no 
cair das folhas” (vv. 949-1008). E, para terminar, o Justo dirige-se a Fidípides 
enumerando todas as virtudes que teria em seu convívio: ombros largos, peito robusto, 
pele rosada e língua pequena (vv. 1009-1023). 
Incitado pelo coro, o Injusto profere suas diatribes em tom sarcástico e 
galhofeiro: “Sim, sou o raciocínio fraco mas, com minhas habilidades, apesar de tudo, 
consigo vencer”. Depois de refutar' uma a uma as acusações do Justo, argumentando de 
acordo com os processos sofísticos em voga e apelando para a confirmação do uso, das 
tradições e das narrativas míticas, consegue provar a utilidade dos balneários e da 
conversa fiada na ágora e as desvantagens da prudência. E, antes de terminar, aconselha 
a Fidípides: “toma-me comomestre e goza a vida sem temores pois a eloqüência te 
salvará de todas as complicações” (vv. 1024-1082). 
Após um rápido embate de perguntas e respostas, o Justo, posto que convencido 
de que essa nova educação é a dos devassos e sem-vergonha, acaba concordando que é 
inútil lutar contra ela, pois representa a moda. E, a correr, envereda pelo “pensatório”... 
(vv. 1086-1104). 
O agon das Nuvens apresenta certas peculiaridades interessantes. Inicia-
se por uma cena bastante movimentada, o pro-agon, em que são apresentados o 
Justo e o Injusto. Essa participação de novas personagens, completamente 
alheias ao enredo da peça, constitui um caso único 
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nas comédias de Aristófanes11. É digna também de nota a insignificância da participação 
do coro no decorrer do debate, em contraste com a que se pode notar nas outras peças 
em que o coro é essencialmente ativo, por assim dizer, a alma do agon. 
O Justo discorre solenemente e sem sofrer interrupções. O Injusto prefere 
uma verdadeira discussão, respondendo às objeções em tom brejeiro e insolente, 
num ritmo mais movimentado. 
Cena de transição (vv. 1105-1113). Volta Sócrates e a decisão final é tomada: 
Fidípides será o discípulo dos sofistas. Desta maneira, passamos a uma nova etapa: o 
aprendizado do rapaz. 
Segunda Parábase (vv. 1114-1130). O interlúdio coral dá tempo a que se 
complete a educação de Fidípides. Ainda uma vez, o corifeu fala em nome do poeta, 
dirigindo-se aos juízes do concurso dramático, com promessas de felicidade e grandes 
ameaças, caso a peça não seja devidamente apreciada. 
Cenas Cômicas (vv. 1131-1302). Consumado o plano inicial, sucedem-se as 
11 P. Mazon, Essai sur la composition des Comédies d’Aristophane, Paris, Hachette, p. 59.
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conseqüências boas e más, em cenas mais ou menos simétricas e separadas por dois 
intermédios líricos. 
Reaparece Estrepsíades contando os dias: o fim do mês está cada vez mais 
próximo e com ele o dia fatídico, reservado ao pagamento das dívidas. Agora, porém, 
sente-se mais tranqüilo pois espera que o filho haja aprendido bem as suas lições... 
Enquanto aguarda a chegada de Fidípides, o velho entoa um canto de triunfo: 
“chorai, usurários, nenhum
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mal já me podeis fazer!” Sua alegria aumenta, quando se defronta com o filho e observa 
que o rapaz é um perfeito sofista, pois traz estampado no rosto aquele olhar negaceiro 
de quem sabe refutar. Fidípides logo assegura ao pai que nada deve temer, pois saberá 
defendê-lo, tanto mais que a lei é errada e pode ser facilmente contestada. 
A euforia do Estrepsíades não tem limites. Como será invejado! E pai e filho 
retiram-se de braços dados para comemorar de maneira condigna a grande felicidade 
(vv. 1131-1212). 
Depois, diante da certeza de poder contar com a sabedoria, como uma muralha a 
protegê-lo, Estrepsíades enfrenta os credores: impiedade, habilidade sofística e 
impudência caracterizam as suas palavras (vv. 1213-1302). E os dois credores afastam-
se com pragas, lamentos e ameaças. 
Choricon (vv. 1303-1320). Novamente intervém o coro. Em duas estrofes, 
reprova o amor às más ações e reflete: este velho acha-se totalmente subjugado pela 
vontade de fraudar os credores e renegar os compromissos assumidos. Nao é possivel 
que tais crimes fiquem impunes. Cedo ou tarde há de pagar e talvez deseje até que o 
filho seja mudo! 
Esse interlúdio coral permite novamente o desenvolvimento da ação dramática 
num outro sentido; depois dos crimes o castigo de Estrepsíades. 
Cena de transição (vv. 1321-1344). Nem bem terminam as palavras do coro, 
Estrepsíades sai de casa aos berros, chorando a propria sorte: “ai, que injustiça, o filho 
acabara de bater-lhe!” 
Com esta rápida cena de passagem prepara-se o ambiente de novo agon; pai e 
filho deverão defrontar-se, mostrando suas divergências e opiniões.
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Segundo agon (vv. 1345-1451). Convidado pelo coro a contar os motivos da 
discussão com o filho, Estrepsíades expõe suas razões com palavras amargas. Fidípides 
recusara-se a obedecer-lhe, renegara a poesia dos grandes líricos e trágicos da 
Antigüidade. E, para defender Eurípides, esse corruptor da moral e da tragédia, investira 
contra o pai, esquecido de todos os beneficios recebidos, desde o nascimento (vv. 1345-
1390). 
Fidípides responde num discurso bem construído, tentando provar a justiça de 
suas atitudes e louvando a nova educação que lhe dava a habilidade de argumentar. De 
fato, seria lícito bater nos pais, primeiro porque não havia razão para que os filhos 
apanhassem e os pais não. Além disso, essa norma de castigar os filhos resultava de 
uma convenção, fruto da razão humana, logo poderia ser contrabalançada por uma nova 
lei de que os filhos, por sua vez, batessem nos pais. E, para terminar, a natureza 
comprovava de maneira bem clara a legitimidade dessa nova atitude, uma vez que em 
todas as raças animais os filhos batiam nos pais. (vv. 1391-1439).
Tal é o poder de persuasão das palavras de Fidípides, que Estrepsíades já está 
quase convencido: “pois é natural que também choremos, se não fazemos o que é justo”. 
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Todavia o rapaz acaba excedendo-se e aduz um argumento novo: “provarei que é lícito 
bater até na própria mãe”. (vv. 1319-1451). 
Êxodo (vv. 1452-1510). Já entao a revolta de Estrepsíades é total e dirige-se 
contra o coro: “vós, ó Nuvens, sois as culpadas”. Mas o coro retruca solenemente: “Não, 
tu mesmo construíste a tua desgraça, demonstrando-te adepto das más ações.” 
Caindo em si, o velho, embora tardiamente, reconhece os erros. Mas a culpa foi 
de Sócrates e de Querofonte... Quer convencer o filho a renegar os
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mestres e os ensinamentos recebidos. No entanto, o jovem transformara-se num sofista 
convicto e não pode abdicar das novas idéias. 
Já que não é possível remediar a situação, só resta a vingança. Aconselhando-se 
com as divindades, em que acredita novamente, Estrepsíades decide acabar com o 
“pensatório”. Auxiliado pelos escravos, ateia fogo à casa de Sócrates. Enquanto os 
discípulos gritam apavorados e Sócrates deseja saber o que o velho está fazendo, ouve-
se a sentença de Estrepsíades: “Com que sabedoria insultais os deuses e investigais o 
assento da Lua? (Ao escravo) Ataque, atire, bata, bata, por muitas razões, e 
principalmente porque você sabe que eles ofendem os deuses” (vv. 1506-1509). A peça 
termina com esta cena grotesca em que a farsa exerce o seu papel, com os escravos 
carregando tochas e demolindo o “pensatório”.
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