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04.culturas viajantes

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Para começar, uma citação de Beyond a boundary, de C.L.R. James (1984):
O tempo passaria, antigos impérios cairiam e novos ocupariam seus lugares. As relações de classe tinham de mudar antes que eu
descobrisse que não é a qualidade e a utilidade dos bens que importam, mas o movimento, não o que você é ou o que tem, mas de onde
você vem, para onde vai e em que ritmo está chegando lá.
Ou começar de novo, com hotéis. Conrad (1957), nas primeiras páginas de Vitória: "A época em que
estamos acampados como viajantes desnorteados em um hotel vulgar e sem sossego." Em Tristes trópicos,
Lévi-Strauss (1977) evoca um cubo de concreto fora de escala posto no meio da recém-construída cidade de
Goiânia, em 1937. É seu símbolo da barbárie da civilização, "um lugar de trânsito, não de residência". O hotel
como estação, terminal de aeroporto, hospital e assim por diante: um lugar por onde se passa, onde os
encontros são fugazes, arbitrários.
Seu avatar mais recente: o hotel como cronotopo do moderno no novo "centro" de Los Angeles, o
Bonaventure Hotel, construído por John Portman, evocado por Fredric Jameson em seu influente ensaio
"Pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio". Os paredões de vidro do Bonaventure
recusam-se a interagir, meramente refletindo as redondezas; não há abertura, nenhuma entrada principal
Este texto foi publicado originalmente em James Clifford (1992) "Traveling eultures". In: NELSON, C. e GROSSBERG, L. (orgs.). Cultural
siudies. Londres: Routledge, pp. 96-116. Tradução de Pedro Maia Soares.
1. Do grego chrónos, "tempo", e topos, "lugar". Mais adiante, o autor explica o significado do neologismo. [N. doT.l
51
aparente; dentro, um labirinto confuso de níveis frustra toda continuidade - o passeio narrativo de qualquer
flâneur modernista.
Ou para começar com o "Informe das Bahamas", de June Jordan - sua estadia em algo chamado Hotel
Colonial Britânico Sheraton. Uma mulher negra dos Estados Unidos, em férias, confrontando seus inescapáveis
privilégio e riqueza, encontros desconfortáveis com gente que faz a cama e serve a comida no hotel, reflexões
sobre as condições concretas para conexões e alianças humanas através de classe, raça, género e localizações
nacionais.
Começar de novo, com uma pensão de Londres. Cenário de Mimic men de Naipaul (1976), um lugar
diferente de inautenticidade, exílio, transitoriedade, desenraizamento.
Ou novamente os hotéis parisienses, lares longe do lar para os surrealistas, pontos de partida de viagens
urbanas estranhas e maravilhosas: Nadia, Camponês de Paris - lugares de coleçào, justaposição, encontro
apaixonado - "1'Hôtel des Grands Hommes".
Começar com os papéis de carta dos hotéis e cardápios de restaurante que forram (junto com mapas
estelares) as caixas mágicas de Joseph Cornell. Sem título: Hotel du Midi, Hotel du Sud, Hotel de 1'Étoile,
English Hotel, Grand Hotel de 1'Univers. Beleza contida de encontros casuais - uma pluma, alguns rolamentos
de esferas, Lauren Bacall. Hotel/autel,2 remíniscente de, mas não igual a - nenhum signo igual - altares
reais-maravilhosos improvisados com objetos coletados em cultos populares tatino-americanos, ou os "altares"
domésticos construídos por artistas chicanos contemporâneos. Uma falha geológica global local, abrindo-se
no porão de Cornell em Queens, cheia de souvenirs de Paris, o lugar que nunca visitou. Paris, o Universo,
Queens, Nova York, o porão de uma casa comum, número 3708 da Utopia Parkway.
Esta é, como dizemos com frequência, uma "obra em progresso", obra entrando em um domínio muito
amplo de estudos culturais comparativos: as histórias diversas e interligadas de viagem e deslocamento no
finai do século XX. Este verbete está marcado, autorizado e delimitado por trabalhos anteriores - inclusive
meus - que precisam ser deslocados. Assim, estarei trabalhando, hoje, a partir de minha pesquisa histórica
sobre a prática etnográfica em suas formas antropológicas exotizantes do século XX. Acredito que o trabalho
para onde vou não se baseia tanto em minha obra anterior quanto a situa e a desloca.
Talvez devesse começar com uma conjuntura de viagem que veio, ao menos para mim, ocupar um lugar
paradigmático. Chamo-a de "efeito Squanto". Squanto foi o índio que recebeu os peregrinos em 1Ó20, em
2. O autor faz uni jogo de palavras: em francês, hotel, "hotel" e autel, "aliar" são pronunciados da mesma maneira. [N. do T.]
3. Gostaria de agradecer especialmente o estímulo que recebi do trabalho de quatro pessoas: Daniel Defert, Mary Louise Pratt, Lee Drummond
e Caren Kaplan. Sua influência formativa não se reflete devidamente nas citações desle trabalho, que registram uma variedade de outras dívidas
específicas. Sou igualmente grato aos participantes do Seminário do outono de 1990 na Luce Faculty da Universidade de Yale, onde pude
desenvolver essas ideias preliminares numa atmosfera de rigor amistoso. Associarei sempre aquela atmosfera produtiva a meu anfitrião no
Whitney Humanities Cenier, Peter Brooks.
Plymouth (Massachusetts), ajudou-os a superar um inverno rigoroso, e faiava bem inglês. Para imaginar o
efeito completo, é preciso lembrar como era o "Novo Mundo" em 1620: era possível sentir o cheiro dos
pinheiros a 80 quilómetros da costa. Imagine chegar em um lugar novo como aquele e ter a experiência
fantástica de encontrar um índio Patuxent que acabara de voltar da Europa.
Um "nativo" desconcertantemente híbrido, encontrado no fim do mundo: estranhamente familiar e
diferente justamente nessa familiaridade não processada. O tropos é cada vez mais comum na literatura de
viagem: ele praticamente organiza relatos "pós-modernos" como Viáeo night in Katmandu, de Pico Iyer
(1988). E me lembra de minha própria pesquisa histórica sobre encontros especificamente antropológicos,
sempre me defrontando com uma figura problemática: o ''informante". Muitos desses interlocutores,
indivíduos complexos, forçados a falar em nome do conhecimento "cultural", revelam ter suas próprias
propensões "etnográficas" e histórias interessantes de viagens. Insiders-outsiders, bons tradutores e explica-
dores, eles estào por aí. As pessoas estudadas pelos antropólogos raramente são caseiras. Alguns deles, pelo
menos, foram viajantes: trabalhadores, peregrinos, exploradores, convertidos religiosos ou outros tradicionais
"especialistas da longa distância" (Helms 1988). Na história da antropologia do século XX, os "informantes"
aparecem primeiro como nativos, emergindo depois como viajantes. Na verdade, como vou sugerir adiante,
eles são misturas específicas de dois papéis.
A etnografia do século XX - uma prática que evoluiu a partir da viagem moderna - tornou-se cada vez mais
desconfiada de certas estratégias localizadoras na construção e representação de "culturas". Vou tratar de algumas
dessas medidas localizadoras na primeira parte de minha palestra. Mas devo dizer, de imediato, que vou falar
aqui de um tipo ideal de antropologia disciplinar da metade do século XX. Houve exceções, e essas estratégias
normativas sempre foram contestadas. Meu objetivo, ao criticar um certo conjunto de práticas de alguma forma
excessivamente simplificadas, nào é dizer que eram erradas, falsas ou "politicamente incorretas". Todo foco
exclui: nào hã metodologia politicamente inocente para a interpretação intercultural. Alguma estratégia de
localização é inevitável, se pretendemos representar de fornia significativa modos de vida diferentes. Mas "local",
em termos de quem? De que maneira a diferença significativa é politicamente articulada e contestada? Quem
determina onde (e quando) uma comunidade traça seus limites, nomeia quem está dentro e quem está fora? São
questões de amplo alcance. Meu objetivo, na primeira metade da palestra de hoje, é simplesmente abrir a questão
de como a análise cultural constitui seus objetos - sociedades, tradições, comunidades, identidades - em termos
espaciais e mediante práticas espaciais específicasde pesquisa.
Voltemos nossa atenção, por um momento, para duas fotografias próximas do começo de Argonautas
do Pacífico ocidental, de Malinowsky (1922), um dos poucos textos essenciais que estabeleceram a norma
disciplinar moderna de um certo tipo de observação participante. Esse trabalho de campo rejeitava um certo
4. "Prática espacial" é uma expressão derivada de Michel de Cerieau (1984). Minha ênfase demasiada irá, de certa forma, obscurecer o faio de que se trata
sempre de localizações espaço-temporais. Nas palavras de Adriennc Rich (1986), "um lugar no mapa é também um lugar na história". A dimensão
temporal omitida neste trabalho foi plenamente explorada por Johannes Fabian em Time and the other (\9U3). VertambémClifford(1986).
53
David
Highlight
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Highlight
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Highlight
estilo de pesquisa: viver entre os brancos, chamando os "informantes" para falar sobre cultura, num
acampamento ou numa varanda, fazendo visitas â aldeia. O trabalho de campo que Malinowsky levou a cabo
exigia que se vivesse o tempo todo na aldeia, que se aprendesse a língua e que se fosse um observador
participante seriamente envolvido. As duas primeiras fotos de Argonautas mostram "a barraca do etnógrafo"
entre habitações trobriandesas. Uma delas mostra uma pequena aldeia de praia, cenário das atividades
marítimas do kula que o livro narra. A outra mostra a cabana do chefe na aldeia de Omarakana, com a barraca
do pesquisador montada nas proximidades. No texto, Malinowsky defende seu estilo de moradia/pesquisa
como uma maneira (relativamente) discreta de compartilhar a vida dos que estão sendo estudados: "Na
verdade, como sabiam que eu enfiaria o nariz em tudo, mesmo onde um nativo bem comportado jamais
sonharia em se meter, acabaram por me considerar parte integrante de suas vidas, um mal ou inconveniente
necessário, mitigado pelas doações de tabaco." Ele também reivindicava uma espécie de panopticismo. Não
havia necessidade de procurar os eventos importantes da vida dos trobriandeses, rituais, conflitos, curas,
feitiços, mortes etc.: "Eles aconteciam diante de meus próprios olhos, na porta de minha casa, por assim dizer"
(op. dt., p. 8). (Sob esse aspecto, seria interessante discutir a imagem/tecnologia da barraca da pesquisa: sua
mobilidade, suas paredes finas, que proporcionam um "dentro" onde cadernos de anotações, comidas
especiais, uma máquina de escrever podiam ficar, uma base de operações minimamente separada da "açào").5
Atualmente, quando vemos essas fotos de barracas em aldeias, podemos colocar questões diferentes:
quem, exatamente, está sendo observado? Quem é localizado quando a barraca do etnógrafo é permitida no
centro da aldeia? Os observadores culturais, antropólogos, encontram-se eles mesmos amiúde dentro do
aquário, sob vigilância (por exemplo, pelas onipresentes crianças que não os deixam sozinhos). Quem está
sendo observado quando aquela barraca é montada no centro da aldeia? Quais são as localizações políticas
envolvidas? É importante que a tenda de Malinowsky esteja perto da casa de um chefe. Qual chefe? Quais
são as relações de poder? Que apropriações inversas podem estar acontecendo? Todas essas são questões
pós-coloniais que, podemos supor, nào eram provocadas pela fotografia em 1921. Então, a imagem
representava uma poderosa estratégia de localização: centrar "a cultura" em torno de um locus particular, "a
aldeia", e uma certa prática espacial cie morar/pesquisar que, ela mesma, como argumentarei em seguida,
dependia de uma localização complementar - a do "campo".
"Aldeias" habitadas por "nativos" são lugares demarcados particularmente apropriados para a visitaçâo
intensa dos antropólogos. De há muito que servem de centros mapeãveis, habitáveis para a comunidade e,
por extensão, para a "cultura". Depois de Malinowsky, o trabalho de campo entre os "nativos" passou a ser
realizado como uma prática de co-residência em vez de viagem, ou mesmo de visita. E que lugar mais natural
para viver com um povo, do que em sua própria aldeia? (A localização da aldeia, poderia acrescentar, era
"portátil". Lembrem-se de que, nas grandes feiras mundiais - St. Louis, Paris, Chicago, São Francisco - as
populações nativas foram exibidas como aldeias nativas, com habitantes vivos.) A aldeia era uma unidade
5. Para uma visão das paredes da barraca como limiar de certas práticas de escrita, ver Clifford{1990, p. 67).
administravel. Ela oferecia uma maneira de centralizar uma pratica de pesquisa e, ao mesmo tempo, servia
de sinédoque, como ponto de foco, ou parte, por meio da qual era possível representar o todo "cultural".
Sinédoques simples aldeia/cultura estão, em larga medida, "fora de moda" na antropologia atual. Como
disse Geertz, os antropólogos nào estudam aldeias, estudam em aldeias. E cada vez mais, poderia acrescentar,
não estudam em aldeias, mas em hospitais, laboratórios, bairros urbanos, hotéis de turismo, o Getty Center.
Essa tendência põe em questão uma configuração modernista/urbana do objeto "primitivo" de estudo como
romântico, puro, ameaçado, arcaico, simples, e assim por diante. Mas, apesar da saída das aldeias literais,
permanece a noção de campo de trabalho como um tipo especial de moradia localizada.
É evidente que só se pode ser observador participante em algum onde. Como esse lugar de trabalho é
demarcado no espaço e no tempo? A questão traz à luz uma localização mais persistente: "o campo". Estou
preocupado com a maneira como esse conjunto específico de práticas disciplinares (constrangimentos
espaciais e temporais) tendeu a se confundir com "a cultura". De que forma são demarcadas, temporal e
espacialmente, as conjunturas culturais interativas e complexas? Na geração de Boas, falava-se do campo, com
alguma seriedade, como um "laboratório", um lugar de observação e experimentação controlada. Isso soa
cruelmente positivista, hoje. E contraditório: o campo também tem sido considerado - desde a época de Boas
- um "rito de passagem", um lugar de iniciação pessoal e profissional, de aprendizado, crescimento, provação
e coisas semelhantes. Surpreendem as maneiras fortemente ambíguas como a experiência ou o experimento
de campo foram prefiguradas. (O termo francês expérience nos serviria melhor, aqui.) E nos perguntamos
que tipos específicos de viagem e moradia (onde? por quanto tempo?) e interaçào (com quem? em que
línguas?) tornaram possível que uma certa gama de experiências fosse computada como trabalho de campo.
Os critérios disciplinares mudaram desde os tempos de Malinowsky, e continuam mudando.
Talvez seja útil considerar "o campo" ao mesmo tempo como um ideal metodológico e um lugar concreto
de atividade profissional. O campo do antropólogo é definido como um lugar de moradia deslocada e de
trabalho produtivo. Desde a década de 1920, um certo tipo de experiência de pesquisa, a observação
participante, foi concebido como uma espécie de mini-imigração. O trabalhador de campo é "adotado",
"aprende" a cultura e a língua. O campo é um lar longe de casa, um lugar de moradia. Essa moradia inclui
trabalho e crescimento, o desenvolvimento da competência pessoal e "cultural". Os etnógrafos são tipicamente
viajantes que gostam de ficar e se entrincheirar (durante algum tempo), que gostam de montar um segundo
lar/local de trabalho. Ao contrário de outros viajantes, que preferem passar por uma série de locais, a maioria
dos antropólogos é caseira no exterior. O campo como prática espacial é, assim, um estilo, uma qualidade e
uma duração de moradia específicos.
6. É evidente que as populações relevantes nem sempre vêm "fechadas" em aldeias estáveis. Ver Clifford (1988, pp. 230-233) para as
dificuldades de Margaret Mead em "localizar" os Arapesh das montanhas na Nova Guiné.
7. Evidentemente, os pesquisadores de campo também vão adiante. Sua partida é um momento crucial, que articula "lugares" separados de
pesquisa empírica e elaboração teórica, notas de campo e escrita definitiva(Clifford 1990, pp. 63-66). Os etnógrafos sempre deram alguma
55
O campo é também um conjunto de práticas discursivas. Morar implica um tipo de competência
comunicativa. Nào é mais possível contar com tradutores: é preciso falar e ouvir por si mesmo. Depois da
geração de Malinowsky, a disciplina determinou "aprender a língua" - ou, ao menos, "trabalhar na língua
local". Isso nos leva a um tema complicado: a língua, singular, como se houvesse somente uma? O que
significa aprender ou usar uma língua? O quanto podemos aprender de uma língua, em poucos anos? Que
dizer da "conversa para inglês ver", o tipo específico de discurso para forasteiros? O que dizer dos muitos
antropólogos que ainda confiam em tradutores ou explicadores para eventos, idiomas e textos complexos? O
tema merece um estudo completo que ainda não estou em condições de oferecer. Porém, vale a pena apontar
para a falácia: cultura (singular) igual a língua (singular). Essa equação, implícita nas ideias nacionalistas de
cultura, foi totalmente desfeita por Bakhtin, para quem a linguagem é um conjunto de discursos dialogantes,
divergentes, contestadores que nenhum "nativo" - e muito menos um visitante - pode jamais aprender. Dessa
forma, um etnógrafo trabalha em ou aprende alguma parte da "língua". E isso nem mesmo arranha a questão
das situações multilíngúes ou interculturais.
Venho sustentando que a etnografia (nas práticas normativas da antropologia do século XX) privilegiou
as relações de moradia sobre as de viagem. Não creio que precise me prolongar sobre as vantagens, em
"profundidade" de foco da compreensão, que podem se acrescentar a essas práticas de trabalho de campo.
A observação participante intensiva é provavelmente a contribuição mais duradoura da antropologia aos
estudos humanísticos, e é adequadamente apreciada - mesmo por aqueles, como eu, que a julgam
profundamente problemática, ao mesmo tempo em que pedimos sua reforma e disseminação. Deixem-me
continuar, então, a me preocupar com os perigos de construir a etnografia como trabalho de campo.
As localizações dos objetos de estudo do antropólogo em termos de um "campo" tendem a marginalizar
ou a apagar várias áreas de fronteira, realidades históricas que escapam para fora do quadro etnográfico. Eis
aqui uma lista parcial. 1) O meio de transpoite é largamente esquecido - o barco, o jipe, o avião da missão
etc. Essas tecnologías sugerem contatos e comércio sistemáticos anteriores e em andamento com lugares e
forças exteriores que nào fazem parte do campo ou do objeto. O discurso da etnografia ("estar Já") está
fortemente separado do da viagem ("chegar lá"). 2) A capital, o contexto nacional é apagado. É o que Georges
Condominas chamou de o "préterrain", todos aqueles lugares por onde se tem de passar e com os quais
mantêm-se relação apenas para chegar à sua aldeia ou ao íocal de trabalho que será chamado de campo. 3)
Também apagada: a universidade do pesquisador. Especialmente agora que as viagens são mais fáceis até
para os locais mais remotos, e que todos os tipos de lugares do "primeiro mundo" podem ser campos (igrejas,
importância à chegada, mas pouca para as partidas. No entanto, considerar o trabalho de campo como uma forma de viagem, uma prálica
espacial multilocal, coloca o fim (e as pontas soltas) da "moradia" no quadro.
8. Antes de avançar, quero mencionar, quanto a isso, os lembretes de Hommi Bhabha (1990) sobre as temporalidades e histórias discrepantes
que não se somam a uma língua/tempo/cultura ou nação homogéneas. Precisamos de uma genealogia crítica da conexão entre conceilos
holíslicos de cultura, língua e nação. Ver Wolf (1982, p. 387>eHandler(í987) para alguns fios que enredam a antropologia.
56
laboratórios, escritórios, escolas e assim por diante), as idas e vindas do campo, tanto dos nativos como dos
antropólogos, podem ser muito frequentes. 4) Os locais e as relações de tradução são minimizados. Quando
o campo é uma moradia, um lar longe de casa onde se fala a língua e se tem um tipo de competência
vernacular, os intermediários cosmopolitas - e as negociações complexas e frequentemente políticas que estào
envolvidas - tendem a desaparecer. Ficamos com a observação participante, uma espécie de liberdade
hermenêutica para cercar situações sociais internas e externas.
Em termos gerais, o que é elidido é o mundo global mais amplo da importação-exportaçào cultural, no qual
o encontro etnográfico está desde sempre enredado. Eu disse que as coisas estão mudando. Mencionarei, em
seguida, alguns trabalhos etnográficos recentes. E em várias críticas da antropologia - respondendo, em parte,
aos levantes anticoloniais -, vemos o surgimento do informante como um sujeito histórico complexo: nem um
"tipo" cultural, nem um "indivíduo" único. Por exemplo, em meu próprio trabalho (cf. Clifford 1986), entre outros,
tem havido uma tentativa de questionar a transformação da narrativa oral para a narrativa escrita, escondida na
própria palavra "informante". O nativo fala, o antropólogo escreve. São suprimidas as funções de "escrever" ou
"inscrever" controladas pelos colaboradores indígenas. Minha tentativa de multiplicar as mãos e os discursos
envolvidos em "escrever cultura" nâo serve a afirmar uma democracia ingénua de autoria plural, mas a afrouxar
- ao menos um pouco - o controle monológico do escritor/antropólogo executivo e abrir a discussão a hierarquia
e a negociação de discursos da etnografia em situações desiguais, de mudança de poder.
Se o fato de pensar o assim chamado "informante" como escritor/inscritor sacode um pouco as coisas,
o mesmo acontece se o pensarmos como viajante. Em vários artigos, Arjun Appadurai (1988) contestou as
estratégias antropológicas de localizar os povos nào-ocidentais como "nativos". Ele fala de seu "confinamen-
to", e até mesmo de "aprisionamento", mediante um processo de essencialização representacional, o que
chama de "congelamento metonímico", no qual uma parte ou um aspecto da vida de um povo passa a
representá-lo como um todo, constituindo seu "nicho teórico", numa taxionomia antropológica: índia igual a
hierarquia, Melanésia igual a troca, e assim por diante. "Os nativos, povos confinados aos e pelos lugares a
que pertencem, grupos não contaminados pelo contato com um mundo mais amplo, provavelmente nunca
existiram" (Appadurai, op. cit., p. 39).9
Tenho sustentado que, em boa parte da etnografia tradicional, o etnógrafo localizou o que é, na verdade,
um nexo regional/nacional/globat, relegando às margens as relações externas e os deslocamentos da
"cultura". Isso está sendo cada vez mais questionado. O título da soberba história etnográfica das ilhas
Marquesas por Greg Dening (1980) é indicativo: Islands anã beaches. As praias, lugares de interação de
viagem, sâo a metade da história. Europe and thepeople witbout history, de Eric Wolf (1982), embora possa
fazer pender a dialética cultural global/local um pouco demais para o lado das determinações "externas"
(globais), é um passo decisivo e influente adiante das noções de culturas integrais, separadas. Escreve ele:
9. Para indícios arqueológicos que apoiam essa conclusão, ver Irvin Rouse (1986), Migrations in prehistory.
57
•'Em vez de pensar os alinhamentos sociais como autodeterminantes, precisamos - desde o começo de nossas
investigações - visualizá-los em suas conexões externas múltiplas" (op. cit., p. 387). Ou, em outro filão
antropológico atual, considere-se uma frase de abertura da complexa obra de "entrecruzamento" antropoló-
gico de James Boon (1990, p. ix), Affinities and extremes-.
O que veio a ser chamado de cultura balirtesa é uma invenção de múltiplos autores, uma formação histórica, uma decretação, uma
construção política, um paradoxo cambiante, uma tradução em andamento, um emblema, uma marca registrada, uma negociação
não-consensual de identidade contrastante, e assim por diante.
A "cultura" antropológica não é mais o que costumava ser. E,uma vez que o desafio da representação
é visto como sendo a descrição e a compreensão de encontros, co-produçoes, dominações e resistências
históricas locais/globais, então, é preciso voltar a atenção para as experiências cosmopolitas híbridas tanto
quanto para as enraizadas e nativas. Em minha questão atual, o objetivo não é substituir a figura cultural
"nativo" pela figura intercultural "viajante". Em vez disso, a tarefa é concentrar-se nas mediações concretas
entre as duas, em casos específicos de tensão e relação histórica. Em graus variados, ambas são constitutivas
do que contaremos como experiência cultural. Nào estou recomendando que façamos da margem um novo
centro (por exemplo, "nós" somos todos viajantes), mas que dinâmicas específicas de morar e viajar sejam
analisadas comparativamente.
Ao pender a balança para o lado da viagem, como estou fazendo aqui, o cronotopo da cultura (um
cenário ou cena que organiza tempo e espaço numa forma completa e representável) passa a se parecer tanto
com um local de encontros de viagem quanto de residência, menos parecido com uma barraca numa aldeia,
um laboratório controlado ou um local de iniciação e habitação, e mais assemelhado a uma sala de recepção
de hotel, um navio ou um ónibus. Se repensarmos a cultura e sua ciência, a antropologia, em tennos de
viagem, estaremos questionando o viés naturalizador, orgânico, do termo cultura - visto como um corpo
enraizado que cresce, vive, morre etc. Adquirem maior nitidez as historicidades construídas e discutidas, os
locais de deslocamento, interferência e interação.
10. Relativamente a esse ponto, não resisto a mencionar o que pode ser um sinal dos tempos de mudança interpretativa. "Tribos antigas que nào
desapareceram, apenas se mudaram", proclama o lítulo de um artigo (Barringer 1990). Arqueólogos do sudoeste americano acreditam que
resolveram um antigo mistério: o que aconteceu aos anasazi? Moradores de rochedos, construtores de povoados permanentes e redes de
estradas impressionantes, os anasazi simplesmente "sumiram" quando, em certos momentos (1150 d.C, em Chaco Canyon; 1300 d.C, em
Mesa Verde), seus sítios foram abandonados. Tendo em vista os fortes supostos evolucionistas sobre o desenvolvimento da agricultura e das
cidades, o fim dessa e de outras povoações desenvolvidas só podia ser interpretado como um término, um "desaparecimento" ou "morte"
cultural. Dessa forma, nào era possível estabelecer nenhuma conexão contínua entre os anasazi (um tipo de "nomc-armário" que em navajo
significava "os antigos") e culturas contemporâneas com raízes históricas profundas na região: hopi, zuni, acoma. Na nova abordagem
interpretativa, no entanto, os moradores dos rochedos se transformam em viajantes dos rochedos. "Indícios acumulados" sugerem agora que
os anasazi circularam na região, construindo e abandonando povoados de complexidade variada até que os colonizadores europeus começaram
Para insistir: por que não concentrar a atenção no mais extenso âmbito de viagem de qualquer cultura,
olhando também para seus centros, suas aldeias, seus locais de campo intensivos? Como os grupos negociam
em relações externas e como uma cultura é também um local de viagem para outros? Como os espaços são
atravessados de fora? Como o centro de um grupo é a periferia de outro? Vistas as coisas dessa maneira, não
haveria por que hesitar em relegar para as margens uma longa lista: missionários, conversos, informantes
alfabetizados ou instruídos, mestiços, tradutores, funcionários do governo, polícia, comerciantes, explorado-
res, prospectores, turistas, viajantes, etnógrafos, peregrinos, criados, trabalhadores migrantes, imigrantes
recentes etc. São necessárias novas estratégias de representação, que estão surgindo, sob pressão. Quero
apenas lembrar rapidamente vários exemplos - notas para modos de olhar a cultura (junto com tradição e
identidade), em termos de relações de viagem.
Nativos excêntricos. O caso mais extremo que conheço de fazedores de cultura "indígena" viajantes é
uma história que conheci por meio de Bob Brosman, um músico e historiador da música não-universitário,
que hã alguns anos vem trazendo a música tradicional havaiana para os Estados Unidos. Brosman envolveu-se
muito com a família Moe (pronuncia-se "Moei"), um veterano grupo que toca guitarra havaiana, canta e dança.
Seu trabalho representa a versão mais autêntica da guitarra e do estilo de cantar havaianos do começo do
século. Mas aproximar-se da música "tradicional" havaiana por meio dos Moe traz alguns resultados
inesperados, porque a experiência deles tem sido de viagem quase ininterrupta. Por vários motivos, eles
passaram 56 anos na estrada, quase não voltando ao Havaí. Tocaram música de sua terra natal em shows
exóticos em todo o sul e leste da Ásia, no Oriente Médio, no norte da África, na Europa ocidental e oriental
e nos Estados Unidos. E também fizeram todo o circuito hoteleiro de música pop. Agora, com mais de 80
anos, os Moe retornaram ao Havaí, onde, estimulados por tradicionalistas como Brosman, estão tocando a
"autêntica" música das duas primeiras décadas do século.
Bob Brosman está trabalhando num filme sobre os Moe, que promete ser muito interessante, em parte
porque Tal Moe fazia seus próprios filmes caseiros em todos os lugares onde se apresentava. Assim, o filme pode
apresentar uma viajante visão havaiana do mundo, ao mesmo tempo em que coloca a questão de como a família
Moe manteve um senso de identidade em Calcutá, Istambul, Alexandria, Bucareste, Berlim, Paris, Hong Kong.
Como eles compartimentalizaram sua havaianidade em interaçâo constante com diferentes tradições culturais,
musicais e de dança - influências que introduziram em seu espetãculo, na medida do necessário? Como, durante
56 anos em ambientes híbridos, transitórios, conseguiram preservar e inventar um sentido de "lar" havaiano? E
como, atualmente, sua música está sendo reciclada na invenção contínua da autenticidade havaiana? Essa história
a invadir seus povoados e a detè-los de modo drástico. Seus nomes recentes são: hopi, zuni, acoma. Nenhuma ausência ou morte misteriosa
separa os antigos desvanecidos das populações aluais, apenas uma história complexa de morar e viajar. Embora não seja um especialista, não
posso deixar de me perguntar se a nova conclusão está perfeitamente calçada no que as autoridades chamam de uma "acumulação de indícios
novos". As suposições sobre continuidade espacial e localização cultural estão sendo atualmente postas em xeque numa ampla variedade de
campos. Os desenvolvimentos globais que fundamentam minhas observações talvez tenham alguma coisa a ver com esse clima.
5 9
de morar-em-viagem é um caso extremo, sem dúvida. Mas a experiência dos Moe tem ressonâncias estranhas.
(Por falar nisso, também fiquei sabendo pela pesquisa de Brosman que a guitarra de aço nacional, um
instrumento imensamente popuiar em todos os EUA nas décadas de 1920 e 1930, com frequência chamada de
"guitarra havaiana", foi, na verdade, inventada por um imigrante tcheco que vivia na Califórnia.)
Muitos outros exemplos, apenas de relance, de uma etnografia emergente que trata a cultura como
relações de viagem. JoeLeaby's neighbors, um filme de Bob Connolly e Robin Anderson, é um bom exemplo.
(Vocês devem conhecer seu predecessor, First contact, que se passa na Nova Guiné do começo do século
XX.) Joe Leahy, um produto colonial mestiço, é um empresário bem-sucedido - filhos em escolas da Austrália,
antena parabólica no quintal de sua casa nas montanhas da Nova Guiné. Connolly e Anderson mostram as
viagens de Leahy a Port Moresby e à Austrália, ao mesmo tempo em que enfocam sua relação ambígua com
os habitantes locais, seus parentes. O empresário parece estar explorando seus "vizinhos", que ficam
ressentidos diante de sua riqueza. Às vezes, ele se assemelha a um individualista incontrolável, insensível às
demandas deles; outras vezes, distribui presentes, agindo como urn "chefão"de uma economia tradicional.
Joe Leahy parece estar entrando e saindo de uma cultura melanésia reconhecível. Esse tipo de foco
simplesmente nào poderia ter sido utilizado por Malinowsky. O "nativo" aqui não é apenas um viajante no
sistema mundial, mas o foco recai sobre uma personagem atípica, uma pessoa fora de lugar, mas não
inteiramente - uma pessoa na história. Joe Leahy é o tipo de figura que aparece em livros de viagem, mas
raramente em etnografias. Contudo, ele não é apenas um indivíduo excêntrico ou aculturado. No filme de
Connolly e Anderson, não fica claro se Joe Leahy é um capitalista melanésio ou um melanésio capitalista -
um tipo novo de "chefão", ainda ligado de maneira complexa a seus ciumentos vizinhos, mais tradicionais.
Ele é e nào é da cultura local.
Já que estou falando de filmes, gostaria de mencionar JeaaRouch como um precursor. Em Jaguar, uma
história maravilhosa (real) de viagem que se passa na África ocidental no início da década de 1950, Rouch
segue a caminhada de três homens jovens de Mali às cidades do que então se chamava Costa do Ouro, em
busca de aventura, diversão, prestígio e noivas ricas. Numa espécie de "etnograpbie-vériíê', os três atuam para
a câmara e seu comentário/história de viagem/mito da jornada gravado acaba sendo a trilha sonora do filme.
Muito se poderia dizer sobre o realismo dialógico peculiarmente sedutor e problemático de Jaguar. É
suficiente dizer que a performance cultural do filme é um encontro entre viajantes, inclusive Rouch. E as
personagens desse filme caseiro desempenham seu próprio papel, para a câmara, como indivíduos e tipos
alegóricos.
Outro exemplo: a localização muito complexa de Michael Taussig (1987) em seu livro Shamanism,
colonialism, and lhe wild man. Seu "campo" inclui a região de Putumayo, na Colômbia e na Amazónia, a
contígua cordilheira dos Andes, xamãs indígenas migrantes, mestiços viajantes em busca de cura, um
antropólogo meandroso, as violentas incursões do comércio mundial na explosão da borracha do final do
século XIX e, na atualidade, nas políticas de desenvolvimento do Banco Mundial. A etnografia abrangente de
Taussig (de ambições quase melvillianas) retrata uma região em relações históricas de viagem, envolvendo
conquista, cura e comércio, e apropriação ideológica mútua. Como salientaram George Marcus e Michael
Fischer (1986), talvez sejam necessárias formas inovadoras de etnografia multilocal para fazer justiça às forças
culturais, económicas e políticas transnacionais que atravessam e constituem mundos regionais ou locais (pp.
94-95). Da mesma forma, histórias específicas de movimentos de população, exílio e migração de mão-de-obra
exigem abordagens novas de representação das "culturas da diáspora".
Debating muslins, trabalho de crítica cultural etnográfica com múltiplos centros, de Michael Fischer e
Mehdi Abedi (1990), é um exemplo poderoso. Com o subtítulo "Diálogos culturais sobre pós-modernidade e
tradição", a obra (des)localiza a cultura islâmica iraniana numa história de relações nacionais e transnacionais.
Um dos capítulos tem por cenário Houston, no Texas.
Cultura como viagem. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, abrindo um campo comparativo
intricado. Até agora, falei sobre como as pessoas deixam o lar e retornam, ordenando mundos diferentemente
centrados, cosmopolitismos interligados. Deveria acrescentar: culturas como lugares atravessados - por
turistas, oleodutos, produtos ocidentais, sinais de rádio e televisão. Penso na etnografia de Hugh Brody (1982)
Maps and dreams, que trata de práticas espaciais em conflito - modos de ocupar, atravessar, usar, mapear -
dos caçadores athapasca com as companhias de petróleo que atravessam oleodutos por suas terras. Mas, aqui,
como vou desenvolver adiante, um certo conceito normativo e uma história da viagem começam a pesar
muito. (Posso, sem hesitar seriamente, assimilar a caçada dos athapasca â viagem? Até mesmo à morar-em-
viagem? Com que violência e com que perda de especificidade?)
Christina Turner, que leciona antropologia na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD),
questionou-me sobre esse ponto: Squanto como norma emergente? Informantes etnográficos como viajantes?
Mas nem todos os informantes são viajantes, assim como não são "nativos". As pessoas podem escolher limitar
sua própria mobilidade, ou podem ser mantidas "em seu lugar" por forças repressivas. Turner fez um trabalho
etnográfico com operárias japonesas, mulheres que não viajaram, por qualquer definição comum. Elas
assistem televisão, têm um senso local/global, contradizem as tipificações do antropólogo, e não sancionam
simplesmente uma cultura. "Mas é um erro", disse-me ela, "insistir em 'viagem' literal". Isso foge de muitas
dificuldades e restringe a questão importante de como os sujeitos sào "localizados" culturalmente. Ressalta,
em vez disso, modalidades diferentes de conexão dentro-fora; que a viagem, ou o deslocamento, pode
envolver forças - televisão, rádio, turistas, produtos, exércitos - que passam poderosamente através)1
O questionamento de Turner leva-me a meu último exemplo etnográfico, The poetics of military
occupation de Smadar Lavie (1990). Essa etnografia dos beduínos tem por cenário o sul do Sinai, uma terra
atravessada há muito tempo por povos, mais recentemente por uma ocupação israelense, seguida imediata-
mente por uma ocupação egípcia. A etnografia mostra os beduínos em suas tendas contando histórias,
brincando, fazendo troça dos turistas, queixando-se do domínio militar, rezando e fazendo todo tipo de coisas
11. Agradeço a Christina Tumer por seu comentário muito proveitoso. Esse é seu ponio essencial, ao menos como o entendi.
61
"tradicionais", mas com o rádio ligado na BBC de Londres, em sua transmissão em árabe. Na etnografia de
Lavie, ouvem-se os estalidos desse rádio (op. cit., p. 291):
"Shgetef, você pode servir um pouco de chá?" - pede com indiferença o galid ao Bobo local. Shgeíef entra na mag'adc pela enésima
vez enche canecas de chá quente adoçado.
"Então, o que dizem as notícias?" - o galid pergunta ao homem com o ouvido grudado no rádio transistor, mas não espera pela resposta.
"Vou te contar", diz cora uma expressão meio jocosa, meio séria. "Ninguém resolverá os problemas enlre a Rússia e a América. Só os
chineses descobrirão unia saída. E quando o dia chegar e eles conquistarem o Sinai, será o fim da questão."
E um bom trocadilho: em árabe, "Sinai" é Sina e "chinês" é sini e nós rimos muito. Mas Shgeief, talvez traindo sua profunda visão de
ingénuo, fixa em nós seus olhos arregalados.
0 galidcontimu: "Os gregos estiveram aqui e deixaram o mosteiro [de Santa Catarina], os lurcos estiveram aqui e deixaram o castelo
[em Nuweb'at Tarabín], e os ingleses fizeram mapas, e os egípcios trouxeram o exército russo (e uns poucos poços de petróleo), e os
israelenses trouxeram os americanos que transformaram as montanhas em filmes, e luristas da França e do Japão, e mergulhadores da
Suécia e da Austrália, e - que Alá te salve do demónio - nós mzeina não passamos de peões nas mãos de todos eles. Somos como seixos
eas gotas dashiza."
Todos, exceto Shgetef, desatam na risada. O Coordenador aponia para mim com seu longo dedo indicador, dizendo com voz autoritária:
"Escreva tudo isso. Aquele Que Nos Escreve!" (Di llli Tuktubna - um dos meus dois apelidos mzeini).
Antes de passar à segunda parte de minha palestra, devo dizer que restringi deli bera damente essa
discussão a exemplos de antropologia e etnografia exóticas. Tenho certeza de que está claro para todos que
o campo da prática etnográfica é muito mais amplo e diversificado. O recente retorno da antropologia às
metrópoles, a prática crescente do que é chamado no meio de studying up(o estudo das instituições de elite),
esses e outros desdobramentos forjaram e re-forjaram muitas conexões - com a etnografia sociológica, com
a história sociocultural, com as comunicações e com a crítica cultural. Os antropólogosestão, agora, numa
posição muito melhor para contribuir com os estudos culturais genuinamente comparativos e não teleoiógicos,
um campo que não se limita mais a sociedades "avançadas" ou "capitalistas tardias". Diversas abordagens
etnográficas e históricas precisam ser capazes de trabalhar juntas sobre as complexidades da localização
cultural em situações pós e neocoloniais, sobre migração, imigração e diáspora, sobre diferentes trilhas através
da "modernidade". Esses são alguns dos campos em que uma etnografia antropológica reconstruída pode
participar, trazendo sua visão inerentemente bifocal, suas práticas de pesquisa intensivas, suas formas
peculiares e cambiantes de viagem e de enunciação.
12. 0 papel limitado que a antropologia e a etnografia académica lêm desempenhado até agora nos estudos culturais (em particular, na
Grã-Bretanha) é um tema que merece uma discussão própria. Seria necessário explorar a história imperial e a das disciplinas específicas.
Minha impressão é que as possibilidades atuais de interação são maiores nas Américas - embora os estudos culturais sejam ainda percebidos
como uma ameaça em muitos departamentos de antropologia e uma mácula (inexpugnável?) de colonialismo tome a antropologia intocável
em alguns meios progressistas e "terceiro-mundistas".
No tempo que me resta, gostaria de começar de novo com aquela estranha invocação de hotéis. Ela foi
escrita no processo de volta ao trabalho que eu fizera sobre Paris e o surrealismo durante as décadas de 1920
e 1930. Chamara minha atenção o fato de que muitos surrealistas viviam em hotéis ou em locais transitórios
parecidos com hotéis, e estavam sempre indo e vindo de Paris. E eu começava a ver que o movimento não
estava necessariamente centrado em Paris, ou mesmo na Europa. (Paris pode ter sido a "capital do século
XIX", de Walter Benjamin, mas do XX?) Tudo dependia de como (e onde) se viam os resultados históricos do
momento modernista.
Relendo aquele ensaio inicial "Sobre o surrealismo etnográfico", de 1981, que foi reimpresso em meu
livro Thepredicaments ofculture (1988), encontrei, com algum embaraço, uma nota de rodapé que terminava
jogando ao ar a informação: "e Alejo Carpentier, que era um colaborador da revista Documents". O fio solto
pareceu-me subitamente essencial. Queria revisar meu relato de Paris, puxando e retrançando aquele fio e
muitos outros semelhantes. Comecei a imaginar uma reescrita da Paris dos anos 20 e 30 como encontros de
viagem - inclusive desvios do Novo Mundo pelo Velho -, um Sugar de partidas, chegadas, trânsitos (Clifford
1990). Os grandes centros urbanos poderiam ser compreendidos como locais de morar/viajar, específicos e
poderosos.
Descobri-me trabalhando com histórias que se cruzavam - desvios e retornos discrepantes. As noções
de détoure retour foram propostas por ÉdouarcI Glissant (1981) em LediscoursantUlais, e produtivamente
desenvolvidas numa teoria do "habitus pós-colonia!" por Vivek Dharashewar (1989a, 1989b). Fazia parte de
Paris como local de criação cultural o desvio e o retorno de gente como Carpentier. Ele se mudou de Cuba
para a capital francesa e, depois, de volta para o caribenho e sul-americano - para nomear, "Lo real
maravilloso" - surrealismo, com uma diferença: o surrealismo viajou, e foi alterado na viagem. Faziam parte
também o desvio e o retorno de Leopold Senghor, Aimé Césaire e Ousmane Sicé, encontrando-se no Lycée
Louis le Grand, retornando para diferentes lugares com a política cultural da "negritude". Paris era o chiieno
Víncente Huidobro desafiando as genealogias modernistas, proclamando: "A poesia contemporânea começa
comigo." Nos anos 30, era Luis Bunuel viajando de alguma forma entre encontros surrealistas em Montpar-
nasse, guerra civil na Espanha, México e Hollywood. De Paris, fazia parte o salão da martiniquense Paulette
Nardal e suas irmãs. Narda! fundou a Revue du Monde Noir, um lugar de contato entre o Renascimento do
Harlem e os escritores da negritude.
Em minha invocação de diferentes hotéis, os locais relevantes de encontro e imaginação cultural
começaram a se afastar de Paris. Ao mesmo tempo, apareceram níveis de ambivalência no cronotopo do hotel.
De início, via minha tarefa como sendo a de encontrar uma moldura para visões negativas e positivas da
viagem: viagem vista negativamente como transitorieclade, superficialidade, turismo, exílio e desenraizamento
13. Em francês no original; détour: "desvio"; retour. "retorno". [N. do E.]
63
(a invocação de Lévi-Strauss da feia estrutura de Goiânia, a pensão da Londres de Naipaul); viagem concebida
positivamente como exploração, pesquisa, fuga, encontro transformador (o Hotel des Grands Hommes, de
Breton, a epifania do turista, de Junejordan). O exercício apontava também na direçâo da agenda mais ampla
que estou definindo aqui: repensar culturas como locais de moradia e viagem, levar a sério os conhecimentos
da viagem. Assim, o cenário ambivalente do hotel se apresentava como suplemento do campo (a tenda e a
aldeia). Ele enquadrava, ao menos, encontros entre gente em algum grau afastada de casa.
Mas quase imediatamente a imagem organizadora, o cronotopo, começou a romper-se. E agora me vejo
num projeto de pesquisa em que qualquer epítome condensado ou lugar de estudo é questionável. O escopo
comparativo que busco não é uma forma de resumo. Ao contrário, estou trabalhando com uma noção de
conhecimento comparativo produzido por meio de um itinerário, sempre marcado por um "caminho de
entrada", uma história de localizações e uma localização de histórias: "teorias viajantes parciais e compostas",
para tomar emprestada uma expressão de Mary John (1989, 1990). A metáfora da viagem, para mim, tem sido
um sonho sério de mapear sem sair "da terra".
Então, tal como reciclado nesta palestra, o hotel exemplifica um modo de entrar específico em histórias
complexas de culturas viajantes (e culturas da viagem) no final do século XX. Como disse, isso se tornou
seriamente problemático, envolvendo classe, género, raça, localização cultural e histórica, e privilégio, de
várias maneiras importantes. A imagem do hotel sugere uma forma mais antiga de viagem cavalheiresca
ocidental, quando país e exterior, cidade e campo, Oriente e Ocidente, metrópole e antípoda estavam mais
claramente fixados. Com efeito, a marcação da "viagem" por género, ciasse, raça e cultura está clara demais.
A "boa viagem" (heróica, educacional, científica, aventurosa, enobrecedora) é algo que os homens fazem
(deveriam fazer). As mulheres estão impedidas de fazer viagens sérias. Algumas delas vão a lugares distantes,
mas em larga medida como acompanhantes ou "exceções" - figuras como Mary Kingsley, Freya Stark ou Flora
Tristan, mulheres agora redescobertas em volumes intitulados The blessings ofa good thick skirt (Russel 1986),
ou Victorian lady travelers (Middleton 1982). "'Damas" viajantes (burguesas, brancas) são incomuns, marcadas
como especiais nos discursos e práticas dominantes. Embora pesquisas recentes mostrem que havia mais delas
do que antes se reconhecia, as mulheres viajantes eram forçadas a se conformar, mascarar ou rebelar
discretamente no interior de um conjunto de definições e experiências normativamente masculinas.1 Pense-se
na famosa explicação de George Sand sobre vestir-se de homem para andar livremente pela cidade, para
experimentar a liberdade de género do flâneur. Ou na inveja de lady Mary Montague da mobilidade anónima
das mulheres de rosto velado de Istambul. E que formas de deslocamento, intimamente associadas a vida das
mulheres não contam como "viagem" de fato? Visitas? Peregrinação? Precisamos saber muito mais sobre como
as mulheres viajavam e viajam em diferentes tradições e histórias. Trata-se de um tópico comparativo muito
14. Como é rara a experiência de Alice Fleicher, enviada como agente especial do governo em 1889 para demarcar e alotar as terras dos índios
nez perce. Fletcher era a líder de sua expedição,com poder real sobre homens brancos e indígenas. Sua considerável autoridade pessoal foi
reconhecida pelo apelido "Rainha Vitória". Para um relato generoso e lucidamente irónico das mulheres na fronteira fazendo "trabalho de
homem" à sua maneira, ver as cartas da acompanhante de Fletcher, E. Jane Gay (1981), Wilh lhe nez perce.
grande, que apenas começa a se abrir: por exemplo, iia obra de Sara MiUs (1990, 1991), Caren Kaplan (1986,
1994, 1996) e Mary Louise Pratt (1992, especialmente os capítulos 5 e 7). As topografias discursivas ou
imaginárias da viagem ocidental estão aparecendo como sistematicamente marcadas pelo género: encenações
simbólicas do eu e do outro poderosamente institucionalizadas, da pesquisa científica (Haraway 1989) ao
turismo transnacional (Enloe 1990). Embora existam certamente exceçòes, em particular na área da peregri-
nação, uma ampla predominância de experiências masculinas nas instituições e discursos de "viagem" é óbvia
- com certeza no Ocidente, e em graus diferentes nos outros lugares.
Mas é difícil generalizar com muita confiança, uma vez que o estudo sério, cultural, comparativo da
viagem não está bem desenvolvido. O que estou propondo, aqui, são questões para pesquisa, não conclusões.
Poderia chamar a atenção, de passagem, para duas fontes menos remotas: Ulysses'sail, de Mary Helms (1988),
um amplo estudo comparativo dos usos culturais da distância geográfica e do poder ou conhecimento ganho
em viagem (um estudo centrado em experiências masculinas); e MusHm travelers, editado por Dale Eickelman
e James Piscatori (1990), uma coletânea interdisciplinar projetada para mostrar a complexidade e diversidade
das práticas espaciais religiosas e económicas.
Outro problema com a imagem do hotel: sua inclinação nostálgica, pois naquelas partes da sociedade
moderna que podemos chamar legitimamente de pós-modernas (não penso, com a devida vénia de Jameson,
que o pós-modernismo já seja uma dominante cultural, mesmo no "primeiro mundo"), o moter ofereceria
certamente um cronotopo melhor. O motel não tem uma verdadeira recepção, está preso a uma rede de
rodovias - antes um local de muda ou um nó do que um local de encontro entre sujeitos culturais coerentes.
Meaghan Morris (1988) utilizou com eficácia o cronotopo do motel para organizar seu ensaio "No motel Henry
Parkes" publicado em Cultural Studies. Não posso fazer justiça a suas sugestivas discussões de nacionalidade,
género, espaços e narrativas possíveis; apenas cito-o como um deslocamento do cronotopo do hotel de
viagem, pois, como diz Morris {op. cit., p. 3), "os motéis, diferentemente dos hotéis, acabam com os regimes
sensoriais de lugar, localização e história. Eles lembram apenas movimento, velocidade e circulação perpétua".
Outros modos importantes pelos quais o cronotopo do hotel - e com ele toda a metáfora da viagem -
torna-se problemático têm a ver com classe, raça e "localização" sociocultural. Que dizer de todas as viagens
que evitam hotéis e motéis? Os encontros de viagem de alguém que vai da zona rural da Guatemala ou do
México para os Estados Unidos são de ordem bastante diferente. Um africano pode ir para a banlieu '
parisiense sem jamais passar por um hotel. Que cenários poderiam configurar com realismo as relações
culturais desses "viajantes"? À medida que abandono o cenário burguês do hotel para encontros de viagem,
locais de conhecimento intercultural, eu luto, jamais com sucesso suficiente, para libertar o termo relacionado,
"viagem" de uma história de significados e práticas europeias, literárias, masculinas, burguesas, científicas,
heróicas e recreativas.
15. Não devemos nos esquecer de que a denominação motel, nos EUA, não se restringe a "local para encontros sexuais"'. [N. doT.]
16. Em francês no original: o termo banlieu significa "periferia". [N. do E.)
65
Os viajantes burgueses vitorianos, homens e mulheres, eram usualmente acompanhados por criados,
muitos dos quais não eram brancos. Esses indivíduos nunca atingiram o status de "viajantes". Suas
experiências, as ligações culturais cruzadas que faziam, seu acesso diferente à sociedade visitada, tais
encontros raramente têm uma representação séria na literatura de viagem. O racismo tem certamente muito
a ver com isso, pois, no discurso de viagem dominante, alguém que não seja branco não pode figurar como
explorador heróico, intérprete estético ou autoridade científica. Um bom exemplo é fornecido pela longa luta
para colocar Matthew Henson, o explorador negro americano que chegou ao Pólo Norte com Robert Peary,
em pé de igualdade no retrato desse famoso feito (tal como foi construído por Peary, uma quantidade de
historiadores, jornalistas, homens de estado, burocratas e instituições interessadas como a revista National
Geographic) (Counter 1988). E isso é ainda não dizer nada dos viajantes esquimós que tornaram a viagem
possível! Uma multidão de criados, ajudantes, companheiros, guias, carregadores etc. foi excluída, no
discurso, do papei de viajantes dignos em virtude de sua raça e classe e porque pareciam ter um estatuto
dependente em relação à suposta independência do viajante burguês individualista. A independência era, em
graus variados, um mito. À medida que os europeus avançavam por lugares desconhecidos, seu conforto e
segurança relativos eram garantidos por uma infra-estrutura bem desenvolvida de guias, assistentes, fornece-
dores, tradutores, transportadores etc. (Fabian 1986).
O trabalho dessas pessoas conta como "viagem"? É evidente que um exame dos estudos culturais
comparativos gostaria de incluí-los, bem como seus específicos pontos de vista cosmopolitas. Mas, para isso,
teria de fazer uma crítica minuciosa da viagem como discurso e género. Obviamente, muitos tipos diferentes
de gente viajam, adquirindo conhecimentos complexos, histórias, compreensões políticas e interculturais,
sem produzir "literatura de viagem". Alguns relatos dessas experiências chegaram a ser publicados em
línguas ocidentais; por exemplo, os diários de viagem do século XIX do missionário Rarotongan Ta'unga,
ou os registros do século XIV de Ibn Battouta (Crocombe e Crocombe 1968, Ibn Battouta 1972). Mas são
pontas de icebergs perdidos.
Trabalhando numa vertente histórica, um pouco dessa experiência de viagem diferente pode estar
acessível em cartas, diários, história oral, música e tradições de representação. Um belo exemplo de
reconstrução de uma cultura viajante da classe trabalhadora é proporcionado por Marcus Rediker (1987) em
sua história dos marinheiros (e piratas) mercantes anglo-americanos do século XVIII, Between the devil and
the âeep bluesea. Essa narrativa revela uma cultura política cosmopolita e radical, justificando plenamente as
várias ressonâncias do título do capítulo final, "The seaman as worker of the world". Uma pesquisa de Peter
Linebaugh e Marcus Rediker (1990) desvela o papel dos trabalhadores e viajantes africanos nesse mundo
17. LisaBloom (1993) escreveu com pertinência sobre Peary, Henson, esquimós e os vários esforços da National Geographic para recontar uma
história de descobrimento profundamente contestada.
capitalista marítimo (com frequência insurrecional) do Atlântico Norte. As ressonâncias com a pesquisa de
1 $2
Paul Gilroy sobre a diáspora negra no Atlântico são evidentes.
Chamar de "viajantes" os trabalhadores marítimos móveis descritos por Rediker e Linebaugh significa
atribuir à experiência desses trabalhadores uma certa autonomia e um certo caráter cosmopolita. Corre-se o
risco, porém, de subestimar o fato de que em grande medida a mobilidade é coagida, organizada dentro de
regimes de trabalho dependente e altamente disciplinado. Em um registro contemporâneo, pensar os
trabalhadores cosmopolitas, em especial a mão-de-obra migrante, em metáforas de "viagem", levanta um
conjunto complexo de problemas. As disciplinas políticas e as pressões económicas que controlam os regimes
de mão-de-obra migrante conspiram contraqualquer visão excessivamente animada da mobilidade dos
pobres, geralmente não brancos, que precisam sair de casa para sobreviver. O viajante, por definição, é
alguém que tem a segurança e o privilégio de perambular de maneira relativamente livre. De qualquer forma,
esse é o mito da viagem. Na verdade, como mostram estudos como o de Mary Louise Pratt, a maioria dos
viajantes burgueses, cientistas, comerciais, estéticos, movia-se dentro de circuitos muito determinados. Mas,
mesmo que esses viajantes burgueses possam ser "localizados" em itinerários específicos ditados por relações
globais políticas, económicas e interculturais (com frequência, de natureza coionial, pós-colonial ou
neocolonial), essas restrições não oferecem nenhuma equivalência simples com outros trabalhadores
migrantes e imigrantes. É óbvio que Alexander von Humboldt não chegou à costa do Orenoco pelos mesmos
motivos que um trabalhador asiático preso a um contrato.
Todavia, sustento que, embora não haja base de equivalência entre os dois "viajantes", há pelo menos
uma base de comparação e tradução (problemática). Von Humboldt tornou-se um escritor viajante canónico.
O conhecimento (predominantemente científico e estético) produzido em suas explorações americanas teve
uma enorme influência. A visão que o trabalhador asiático teve do "Novo Mundo", conhecimento derivado
do deslocamento, foi com certeza muito diferente. Não a conheço, e talvez jamais tenha acesso a ela. Mas um
estudo cultural comparativo estaria muito interessado nesse conhecimento e nas formas em que poderia
complementar ou criticar o de Humboldt. Tendo em vista o prestígio das experiências de viagem como fontes
de poder e conhecimento numa ampla gama de sociedades, ocidentais e não ocidentais (Helms 1988), o
projeto de comparar e traduzir diferentes culturas viajantes não precisa ser etnocêntrico ou "classe-cêntrico".
Por exemplo, uma cultura viajante africana moderna foi detalhada em Entre Paris et Bacongo, deJustin-Daniel
Gandoulou (1984), um estudo fascinante dos "aventureiros" congoleses, trabalhadores migrantes em Paris.
Sua cultura específica (centrada no objetivo de andar "bem vestido") é comparada com a tradição europeia
do dâncti, bem como com a dos "rastas", que são outros visitantes negros de Paris.
O projeto de comparação teria de dar conta do fato evidente de que os viajantes circulam sob fortes
compulsões culturais, políticas e económicas e que alguns deles são materialmente privilegiados, ao passo
18. Ver sua contribuição ao volume de Cultural studies em que foi originalmente publicada esta conferência. Agradeço a Paul Gilroy por chamar
minha atenção para o trabalho de Rediker e Linebaugh, durante várias conversas muito estimulantes, travadas em viagens de trem.
6 7
que outros são oprimidos. Essas circunstâncias diferentes são determinações cruciais da viagem em questão
- movimentação em circuitos coloniais, neocoloniais e pós-coloniais específicos, diferentes diásporas,
fronteiras, exílios, desvios e retornos. A viagem, nessa visão, denota uma gama de práticas materiais e
espaciais, que produzem conhecimentos, histórias, tradições, comportamentos, músicas, livros, diários e
outras expressões culturais. Até mesmo as piores condições de viagem ou os regimes mais exploradores não
sufocam inteiramente a resistência ou o surgimento de culturas migrantes e diaspóricas. A história da
escravidão transatlântica, para mencionar um exemplo particularmente violento, uma experiência que incluía
deportação, desenraizamento, fuga, transplantação e renascimento, resultou numa gama de culturas negras
interligadas - afro-americana, afro-caribenha, britânica e sul-americana.
Precisamos de uma consciência comparativa melhor dessas e de um número crescente de outras "culturas
da diáspora" (Mercer 1988). Como sustentou Stuart Hall numa série de artigos provocativos, as conjunturas
diaspóricas convidam a uma reconcepção - teórica e política - das noções familiares de etnia e identidade
(Hall 1987, 1988, 1990). Diálogos históricos não resolvidos entre continuidade e ruptura, essência e situação,
homogeneidade e diferenças (cortando transversalmente "nós" e "eles") caracterizam as articulações diaspó-
ricas. Essas culturas de deslocamento e transplantação são inseparáveis de histórias específicas, amiúde
violentas, de interação económica, política e cultural, histórias que geram o que poderia ser chamado de
cosmopolitismos discrepantes. Nessa ênfase, evitamos ao menos o localismo excessivo do relativismo cultural
particularista, bem como a visão excessivamente global de uma monocultura capitalista ou tecnocrática. E
nessa perspectiva, a noção que certas classes de gente são cosmopolitas (viajantes), enquanto o resto é local
(nativos), aparece como a ideologia de uma cultura viajante (muito poderosa). O que está em questão
em meu exercício de hoje, gostaria de sublinhar novamente, não é simplesmente inverter as estratégias
de localização cultural, a fabricação de "nativos" que critiquei no início. Não estou dizendo que não
existam locais ou lares, que todo mundo esteja - ou devesse estar - viajando, seja cosmopolita ou
desterritorializado. Não se trata de nomadologia. Em vez disso, estou tentando delinear uma abordagem
de estudos culturais comparativos a histórias específicas, táticas, práticas cotidianas de morar e viajar,
viajar-morando, morar-viajando.
Terminarei com uma série de exortações.
Precisamos pensar comparativamente sobre as distintas rotas e raízes de tribos, bairros, favelas, regiões
de imigrantes - histórias cercadas, com um "dentro" comunitário crucial, e um "fora" viajante controlado. O
que é necessário para definir e defender uma terra natal? Quais são os interesses políticos em reivindicar (ou,
às vezes, ser relegado a) um "país"? Como eu disse, precisamos saber sobre os lugares que as forças da
dominação atravessaram viajando, mantiveram pequenos, locais e sem poder. O retrato incisivo do turismo
e da dependência económica em Antigua, feito por Jamaica Kincaid (1988) em A small place, critica uma
história local neocolonial de uma maneira que traz ressonâncias mundiais. (Uma critica de Antigua escrita em
Vermont!) De que modo os "dentros" e "foras" nacionais, étnicos, comunitários são mantidos, policiados,
subvertidos, cruzados - por distintos sujeitos históricos, para seus próprios fins, com graus diferentes de poder
e liberdade? (Voando, às vezes, nos mesmos aviões...)
Precisamos dar conta de novas localizações, como "a fronteira". Um lugar específico de hibridismo e
luta, policiamento e transgressão, a fronteira Estados Unidos/México alcançou recentemente status "teórico",
graças ao trabalho de escritores, ativistas e estudiosos chicanos: Américo Paredes, Renato Rosaido, Teresa
McKenna, José David Saldívar, Gloria Anzaldúa, Guillermo Gomez-Pena e o "Projeto de Artes na Fronteira de
San Diego/Tijuana". A experiência da fronteira produz visões políticas poderosas: a subversão de todos os
binarismos, a projeção de uma "esfera pública multicultural (versus pluralismo hegemónico)" (Flores e Yudice
1990). O quanto esse lugar-metáfora da travessia é traduzível? De que maneira as fronteiras históricas (lugares
de viagem controlada e subversiva, paisagens naturais e sociais) são parecidas e diferentes das diásporas?
Precisamos dar conta de "culturas" como a do Haiti, que pode agora ser estudada etnograficamente tanto
no Caribe como no Brooklyn. A necessidade de pensar em pelo menos dois lugares quando se pensa no
"Haiti"!19 Ou alguns de vocês talvez conheçam um conto exuberante de Luis Rafael Sánchez (1984), "The
airbus" [O airbus] (muito bem traduzido para o inglês por Diana Vélez). Algo parecido com uma "cultura"
porto-riquenha explode numa profusão de risos e conversas transbordantes durante um vôo noturno regular
San Juan-Nova York. Todos mais ou menos em trânsito permanente... Não tanto o "de onde você é?", mas o
"entre onde você está?" (A questãoda identidade intercultural.) Porto-riquenhos que não suportam pensar em
ficar em Nova York. Que apreciam muito sua passagem de volta. Porto-riquenhos sufocados "lá embaixo",
vivos novamente "aqui em cima".
Porto-riquenhos instalados permanentemente no espaço entre o aqui e o lá e que precisam, portanto, informalizar a viagem, fazendo
dela pouco mais que um "pulinho" de ônibus, embora por via aérea, que flutua sobre o regato a que reduziram o oceano Atlântico. {Op.
efit, p. 43).
Ao tratar de migração e imigração, a atenção séria a género e raça complica uma variedade de abordagens
clássicas; em particular, os modelos excessivamente lineares da assimilação. Aiwa Ong, um antropólogo de
Berkeley, estuda os imigrantes cambojanos no norte da Califórnia. Sua pesquisa está atenta a modos diferentes
e incompletos de se integrar na América, diferentes maneiras como homens e mulheres cambojanos negociam
identidades na nova cultura nacional. O esaido de Sherri Grasmuck e Patrícia Pessar (1991) sobre migração
internacional dos dominicanos, Between two istands, preocupa-se, entre outras coisas, com diferenças entre
atitudes masculinas e femininas em relação à fixação, ao retorno e à luta no local de trabalho. Julie Matthaeli e
Teresa Amott (1990) escreveram com muita percepção sobre lutas e barreiras específicas, relacionadas a raça,
género e trabalho, que as mulheres asiáticas e asiático-americanas enfrentam nos Estados Unidos.
19. Ver a experiência em escrita etnográfica feminista de Karen McCarthy Brown (1991), Mama Lola: A vodou priestess in Brooklyn. Ver
igualmente o estudo bifocal de Grasmuck e Pessar (1991).
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já mencionei o papel central do vaivém político-econômico nesses movimentos de populações. (Ele é
proeminente nos estudos que acabei de citar.) Uma teoria abrangente da migração e dos regimes de trabalho
capitalista é proposta por Robin Cohen (1987), em The new helots: Migrants in lhe international diuision of
labor, uma obra que abre espaço para a resistência político-cultural no interior de uma descrição global
fortemente determinista.
Numa análise regionalmente centrada, em "The emerging West Atlantic system", Orlando Patterson
(1987) traça o desenvolvimento de um ambiente "pós-nacional", centrado em Miami (Flórida). Segundo ele
(op. cit., p. 260), "três poderosas correntes estão solapando a integridade das fronteiras nacionais". A primeira
é a longa história de intervenção militar, económica e política dos Estados Unidos fora de suas fronteiras. A
segunda é o carãter cada vez mais transnacional do capitalismo, sua necessidade de organizar mercados em
nível regional.
A terceira corrente que está minando o estado-nação é a da migração. (...)
Tendo passado o último século e meio violando militar, económica, política e culturalmente as fronteiras nacionais da região, o centro
descobre-se agora incapaz de se defender da violação de suas próprias fronteiras. Os custos dessa defesa são altos demais do ponto de
vista administrativo, político e, o mais importante, económico. O comércio e a divisão internacional do trabalho seguem a bandeira.
Mas também colocam em ação ventos que a rasgam.
De acordo com Patterson, as consequências culturais de uma "latinização" de regiões significativas do
"centro" político-econômico provavelmente nào têm precedentes. Elas serão, com certeza, diferentes de
padrões mais clássicos de imigração (europeia e asiática), que nào se baseiam em "proximidade geográfica e
intimidade co-histórica" (op. cit., p. 259). Estamos assistindo ao surgimento de mapas novos: áreas de cultura
fronteiriça, povoadas por fortes etnias diaspórícas assimiladas de forma desigual a estados-nações dominantes.
E para que as populações migrantes nào apareçam como peões passivos e mudos no jogo político-eco-
nômico, precisamos ouvir uma ampla gama de "histórias de viagens" (não "literatura de viagem", no sentido
burguês). Penso, entre outras, nas histórias orais de mulheres imigrantes que foram reunidas e analisadas no
Centro de Estúdios Puertoriquenos de Nova York (Benmayor et ai. 1987). E, evidentemente, não podemos
ignorar toda a cultura expressiva, em particular a música - uma rica história de fazedores de cultura viajantes
e influências transnacionais (cf., por exemplo, Gilroy 1987 e o artigo publicado no mesmo número de Cultural
studies em que foi originalmente publicada esta conferência).
Chega. A noção de "viagem", como a estou usando aqui, nào pode cobrir todos os diferentes
deslocamentos e interações que acabei de invocar. Contudo, trouxe-me a essas fronteiras.
Fixo-me em "viagem" como um termo de comparação cultural em virtude justamente de suas máculas
históricas, suas associações com corpos marcados por género e raça, privilégios de classe, meios específicos
de transmissão, trilhas batidas, agentes, fronteiras, documentos e assim por diante. Prefiro isso a termos
aparentemente mais neutros e "teóricos", tais como "deslocamento", que pode facilitar demais o estabeleci-
mento de equivalências entre experiências históricas diferentes. (A equação pós-colonial/pós-moderno, por
exemplo). E prefiro-o a termos como "nomadismo", generalizado amiúde sem resistência aparente de
experiências nao-ocidentais. (Nomadologia: uma forma de primitivismo pós-moderno?) "Peregrinação"
parece-me um termo comparativo mais interessante para trabalhar. Ele inclui uma ampla gama de experiências
ocidentais e não-ocidentais, e é menos marcado por classe e género do que "viagem". Ademais, tem uma bela
maneira de subverter a oposição constitutiva moderna: viajante/turista. Mas seus significados "religiosos"
tendem a predominar - mesmo quando as pessoas vão em peregrinação por motivos seculares. E no final,
por quaisquer razões de preconceito cultural, acho mais difícil ampliar "peregrinação" para incluir "viagem"
do que o oposto. (O mesmo vale para outros termos, como "migração".) De qualquer forma, nào há termos
ou conceitos neutros, não contaminados. Um estudo cultural comparativo precisa trabalhar, de forma
autocrítica, com ferramentas comprometidas, historicamente sobrecarregadas.
Hoje, esmiucei a "viagem" como termo de tradução. Ao dizer "termo de tradução", refiro-me a uma
palavra de aplicação aparentemente geral, usada para comparação de forma contingente e estratégica.
"Viagem" tem uma marca inextinguível de localização por classe, género, raça e uma certa literariedade. Ela
oferece um bom lembrete de que todos os termos de tradução usados em comparações globais - palavras e
expressões como cultura, arte, sociedade, camponês, modo de produção, homem, mulher, modernidade,
etnografia- distanciam-se um pouco de nós edesintegram-se: traduttore, tradittore. No tipo de tradução que
mais me interessa, aprende-se muito sobre povos, culturas e histórias diferentes da nossa - o suficiente para
começar a saber o que não estamos entendendo.
Debate
Jenny Sharpe: Sou solidária com o que você diz a respeito de o campo da antropologia ser uma ficção
constituída somente por exclusões de movimentos de antropólogos e culturas. Mas tenho dúvidas se essa
noção de campo ainda existe na antropologia. Estou pensando no fato de que os antropólogos não podem
mais ir para o campo do modo como costumavam, por causa dos conflitos políticos. Penso também nas
recentes mudanças da própria noção de campo (para incluir, por exemplo, o trabalho de antropólogos nos
guetos do centro da Filadélfia, trabalho que elabora esses guetos como comunidades de migrantes
transplantadas de países do "terceiro mundo"), de tal forma que não temos mais um "campo" parecido com
aquele de que falavam Malinowsky e os outros que você mencionou.
Clifford: São questões políticas muito importantes, relacionadas com as tentativas atuais de redefinir os
"campos" da antropologia. Como você disse, uma série de convulsões políticas tornaram cada vez mais difícil
fazer um trabalho de campo como Maíinowsky, Mead e companhia fizeram. E, como você sabe, nãoé que
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as coisas ficaram "políticas" de repente, e que a pesquisa anterior fosse neutra de alguma forma. Uma das
vantagens de ver a etnografia como uma forma de viagem é que você pode evitar certas preocupações que
sempre aparecem nos relatos de viagem, mas raramente nos informes das ciências sociais. Mencionei algumas
delas. Mas um problema de que não falei é o da segurança física. Aqui, o género e a raça do viajante em
terras estrangeiras importam muito. Evidentemente, os etnógrafos "no campo" assumiram muitos riscos.
Alguns morreram de doenças e acidentes. Mas poucos, que eu saiba, foram de fato mortos por seus
"anfitriões". Por que, para falar de um caso bem grave, Evans-Pritchard não foi morto, ou pelo menos ferido,
pelos Nuer, quando montou sua barraca na aldeia deles, nos calcanhares de uma expedição militar? (Ele deixa
perfeitamente claro, em Os Nuer, que eles não o queriam lá.) Subjacente a sua segurança, e à de muitos
antropólogos, missionários e viajantes, havia uma história anterior de conflito violento. Em todo o mundo, os
"nativos" aprenderam, na dureza, a não matar os brancos. O custo - na forma de expedições punitivas a seus
povos - era alto demais. A maioria dos antropólogos, certamente na época de Malinowsky, chegou ao
"campo" depois de alguma versão dessa história violenta. É certo que alguns pesquisadores mais ousados
trabalharam em áreas não pacificadas, tornando-se parte do processo de contato e pacificação. Mas, ao
entrarmos no século XX, havia relativamente poucos desses casos. Meu argumento é que a segurança do
campo como lugar de moradia e trabalho, um lugar para uma ciência social neutra e apolítica, foi ela mesma
uma criação poíítica e histórica.
Sua questão pressupõe isso, porque a recente falta de segurança (pelo menos política) para os
trabalhadores de campo, em muitos lugares, marca o colapso de um "mundo" histórico que continha "campos"
de pesquisa habitáveis. Quero somente acrescentar que o colapso é muito desigual, com muito espaço para
variações e negociações locais. Há ainda muitos lugares a que os antropólogos podem ir impunemente. Em
outros lugares, eles podem, às vezes, desenvolver com restrições o trabalho de campo. Em outros, isso está
basicamente fora de cogitação. Uma vez que não sou daqueles que acham que os etnógrafos pós-coloniais
deveriam simplesmente ficar em casa (.seja lá onde for!), estou particularmente interessado nas situações em
que uma etnografia de iniciação está dando lugar a uma de negociação, em que a comunicação é transformada
em aliança. É evidente que isso torna explicitamente político algo que já acontecia nas relações sociais da
•'moradia" etnográfica. (Toquei nesse tema das apropriações inversas ao abordar a questão sobre a tenda de
Malinowsky perto da casa do chefe.) Mas há, de fato, um contexto novo, e o equilíbrio do poder mudou em
muitos lugares. Hoje, se um etnógrafo quer trabalhar em comunidades de americanos nativos, ou em muitas
regiões da América Latina, a questão "o que devo esperar?" apresenta-se de imediato. O pesquisador pode
ser obrigado a contratar ou a treinar estudantes locais. Talvez tenha de testemunhar numa disputa de terras,
ou trabalhar numa gramática pedagógica da língua, ou ajudar em projetos de história locais, ou ainda apoiar
o repatriamento de objetos ancestrais para museus nacionais, e assim por diante. Nem todas as comunidades
podem fazer esse tipo de demanda, é claro. E há o perigo de que uma antropologia que queira preservar sua
neutralidade política (como também sua objetividade e autoridade) simplesmente dê as costas a esses lugares
e vá para populações cujo trabalho de campo seja menos "comprometido", onde os povos possam ser
interpretados dentro dos velhos padrões exóticos.
A questão de reconstituir práticas disciplinares em torno de um novo "primitivo", nào mais no assim
chamado "terceiro mundo", é muito sugestiva. Você mencionou as comunidades de imigrantes na Filadélfia.
Não creio que se trate, de forma alguma, de voltar, digamos, para o "primitivo" pré-1950. Mas aspectos daquela
figura estào sendo reinventados em condições novas. Por exemplo, eu disse que precisamos ficar muito
atentos ao "primitivismo pós-moderno" que, num modo afirmativo, descobre viajantes não-ocidentais
("nómades"), com culturas híbridas, sincréticas, e no processo projeta em suas diferentes histórias de contato
cultural, migração e desigualdade, uma categoria homogénea (historicamente avant-gardé).
Não acho que "pós-modernismo" possa servir como termo de tradução para ajudar a tornar visível e
válido algo estranho (como o modernismo fez para os primitivistas do início do século XX, descobrindo a
"arte" da África e da Oceania), mas quero insistir no crucial tradittore presente no traduttore-. a falta de um
sinal de igualdade, a realidade do que se perde e é distorcido no próprio ato de compreender, apreciar,
descrever. Vai-se ficando mais perto e mais longe da verdade de diferentes predicamentos culturais e
históricos. Isso reflete um processo histórico pelo qual o global é sempre localizado, sua gama de
equivalências diminuída. É um processo que pode ser contido - temporária e violentamente -, mas não detido.
Sujeitos políticos novos, suponho, continuarão a surgir, exigindo que sua história excluída seja reconhecida.
Não sei de que modo a inescapável dialética política da compreensão e contestação está se desenvolvendo
nas comunidades da Filadélfia que você mencionou. Você sugeriu que os imigrantes do "terceiro mundo" estào
sendo reificados. Um gosto de alteridade, sem precisar viajar para muito longe? Podemos ver, aqui, a antropologia
reencontrando uma de suas raízes perdidas: o estudo de comunidades "primitivas" nos centros urbanos do
capitalismo. Penso nos precursores do século XIX, Mayhew, Booth e companhia, fazendo pesquisas na
"Inglaterra mais negra". A equivalência de selvagens "lá fora" e "em nosso meio", de viagem ao Império e viagem
na cidade era explícita no trabalho deles. Você sugere que podemos estar rearticulando aquela equivalência em
um momento histórico novo. Gostaria de saber exatamente como os etnógrafos em questão estão trabalhando
nas comunidades de imigrantes, como seus "campos" são politicamente negociados.
Hommi Bhabha: Eu realmente quero que você fale sobre o lugar de uma falta de movimento e da fixidez
em uma política do movimento e uma teoria da viagem. Refugiados e exilados evidentemente fazem parte
dessa economia do deslocamento e da viagem, mas também, para sua sobrevivência, depois que estão em
um determinado lugar, eles precisam se fixar em certos símbolos. O processo de hibridismo que acompanha
isso pode amiúde representar-se por uma espécie de impossibilidade de mover-se e por um tipo de
sobrevivência identificada no segurar-se em alguma coisa que, na realidade, não permite que a circulação e
o movimento ocorram. Outros lugares para isso, que não são devidamente tratados, são o proletariado e a
classe média-baixa no que é chamado de "terceiro mundo", que são os receptores do tipo de camisetas de
Urbana, Illinois ou de Harvard que você vê nas ruas de Bombaim, ou de tipos específicos de óculos escuros,
ou de programas de televisão, ou ainda tipos particulares de música. Há outro problema de viagem e fixidez
quando eles, em algo parecido com o sentido de Fanon, agarram-se a certos símbolos de outro lugar, de
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viagem, e em torno dele elaboram um texto que não tem a ver com movimento e deslocamento, mas com
um tipo de fetichizaçâo de outras culturas, do outro lugar, ou da imagem e figura da viagem. E é justamente
esse elemento do povo preso naquela margem de não-movimento dentro de uma economia do movimento
que eu gostaria que você abordasse.
Clifford: O que você disse é muito interessante, e devo confessar que não tenho muito a dizer sobre isso,
a essa altura. Suponho que me afastei de um foco sobre o "exílio" por causa do privilégio que eie goza em
certa cultura modernista:

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