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ANOTAÇÕES - O Pensamento Político de Hegel (Ciência Política)

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o PENSAMENTO POLITICO DE HEGEL· 
D.JACIR MENEZES·· 
Quando a Escola Histórica alemã, depois de Herder e Gustavo Hugo, 
atingiu, com Savigny, o ponto mais alto de seu desenvolvimento, começou 
logo a descobrir seu miolo ideológico de exaltação exagerada do tradicio-
nalismo conservador. O sintoma mais típico foi a hostilidade contra o 
racionalismo conservador. O sintoma mais típico foi a hostilidade contra 
o racionalismo propagado pelos líderes do ''terceiro Estado", que, em vários 
meridianos do mundo civilizado, bebiam nas fontes do enciclopedismo 
francês. Os movimentos de emancipação das colônias americanas obede-
ceram a inspirações dos filósofos e protagonistas da Revolução de 89. 
Desde Mariano Moreno, que traduziu e imprimiu, no Prata, o Contrato 
social, até Juarez, no México - os livros de Rousseau, Montesquieu, 
Voltaire, d'Holbach, condenados pelos tribunais eclesiásticos de parceria 
com as autoridades reinóis sulcavam os espíritos com o fascínio das coisas 
proibidas. 
Na Europa, o romantismo da Escola Histórica continha, sob color revo-
lucionária, os germes do pensamento conservador. O racionalismo passava 
a inimigo. "Razão" significava crítica consciente das instituições e atos 
políticos, análise dos valores que a tradição transmitia na educação: punha, 
portanto, em perigo a estabilidade de privilégios, cuja discussão acabaria 
evidenciando os lados negativos da ordem constituída. ];: verdade que fora 
o "terceiro Estado" que aperfeiçoara o método crítico das instituições, 
através de largo e irradiante movimento de idéias. O feitiço virava contra 
o feiticeiro. 
Mas que idéias propagavam Hugo e Savigny? Em resumo, diziam que o 
crescimento do direito se poderia comparar ao da planta, brotando da 
consciência do povo como de solo adequado, no devenir paulatino, regido 
por leis inelutáveis, traduzindo-se mediante costumes, que seriam a reve-
lação lenta e pacífica do sentimento jurídico. Era a condenação de toda 
• Publicado na Revista de CilnciD Política, v. 3, n. 1, p. 5, jan./jun. 1960 (esgotada). 
•• Professor emérito e ex-reitor da UFRJ. 
R. Cio pol., Rio de Janeiro, 20(n. esp.): 143-151, outubro 1977 
tentativa revolucionária da Razão no universo da criação jurídica: em 
conseqüência, os que no fogo da Revolução francesa queriam dar ao povo 
a Constituição que promoveria a suprema felicidade na Terra, a modo de 
Robespierre (que não resistira à tentação de decretar a existência de 
Deus e pôr fim às dúvidas entre pensadores suspeitos), - eram julgados 
apenas furibundos paranóicos querendo alterar, com a eficiência da guilho-
tina, o curso da evolução política. 
As deduções retiradas da premissa assentada pela Escola Histórica satis-
faziam nobremente as classes receosas de tempestades. O espetáculo fora 
demasiado estúpido e tumultuoso para não lhes afetar a sensibilidade social 
e política. Entrou-se a duvidar do método de codificação do direito civil 
como exagerada crença da Razão! Aos olhos de Thibaut a necessidade 
codificadora era evidente; mas outros juristas, de olfato apurado, fare-
javam na propaganda as maquinações do jacobinismo.l 
Savigny qualificara a especulação hegeliana de "filosofia frívola". Hegel, 
por sua vez, combateu veementemente a luta anticodificadora. Seu histo-
ricismo, alargando a órbita, assimilou o racionalismo, robustecendo-o e 
agigantando-o. Escreveu, tomando posição na polêmica: "Negar a uma 
nação culta ou a seu corpo de juristas a capacidade de fazer um código, 
pois não se trata de fazer um sistema de leis novas por seu conteúdo 
(ein System ihrem "Inhalt" nach "neuer" Gesetze) , mas de reconhecer 
em· sua universalidade determinada o conteúdo legal existente, isto é, de 
entendê-lo reflexionando, com acréscimos para a aplicação no particular 
- seria uma das maiores afrontas (der grossten Schimpfe) que se poderia 
irrogar a uma nação ou a uma classe de juristas.''!! 
A apologética excessiva do valor jurígeno do costume trai a eiva do 
irracionalismo. Mas a lei, segundo o filósofo, é o reconhecimento do que é 
objetivamente jurídico, determinado pela consciência mediante o pensa-
mento (durch den Gedanken für das Bewusstsein bestimmt una das, was 
Recht ist und gilt, bekannt das Gesetz).3 O conteúdo consuetudinário é 
subjetivo e acidental; só a apreensão racional filtra os elementos que 
turvam sua cristalinidade, revelando-lhe a "universalidade". 
Pressente-se que o horizonte de racionalidade aberto agora dá inesperadas 
perspectivas. Partindo de reflexões feitas sobre a poUs, de Platão, Hegel 
penetra-se de Rousseau, cuja leitura começara ainda no seminário de 
Tübingen, no seu período de estudos teológicos. O ambiente estudantil 
fremia com as notícias da Revolução francesa, que atravessara o climax. 
Schiller, Hõlderlin, Schelling freqüentavam aquelas mesmas classes, dis-
1 Menezes, Djacir. Introdução à ciência do direito. Rio, Editora Aurora, 1952. p. 
230: "A Alemanha emancipara·se do predomínio francês na alvorada do século XIX. 
Começava a reagir contra a aplicação do Código napoleônico, que penetrara em 
muitos pontos de seu direito. A aragem jacobina batia em muitos pontos tradicionais 
da Alemanha ... Nesse ambiente, o escrito do jurisconsulto TWbaut, em 1814, sobre 
a necessidade de um direito civil (Ueber doe Notwendigkeit eines allgmeinen buer-
gerlichen Rechts fuer Deutschland) traduzia a mesma tendência na esfera jurídica ... " 
l! Hegel. Grundlinien der Philosophie des Rechts, 4 Aufl., Felix Meiner, Barlin, § 211. 
3 Hegel, ido ibid. 
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cutiam os mesmos ideais. Ao tempo em que concluía a Phaenomenologia 
des Geistes, pelas alturas de 1807, respirando em pleno clima napoleônico, 
seu pensamento político espelha o estado de ânimo das camadas da bur-
guesia responsável pelos negócios públicos. 
Entretanto, Hegel vive em nação de industrialismo incipiente, onde per-
sistem os vínculos de um maciço feudalismo de junkers pronto a reprimir 
as idéias subversivas que lavram pela Europa. Até certo ponto, a exegese 
que se anda fazendo do cristianismo favorece a ideologia individualista, 
consectária do capitalismo competitivo. A interpretação que dá Hegel, nos 
seus primeiros escritos sobre a religião, contém embriões heréticos, se 
examinados com melhores lentes teológicas. Os intérpretes que vieram 
depois, a partir de Bruno Bauer e Feuerbach, enxergaram naqueles ensaios 
tentativas para encobrir a reação prussiana, ocultando Deus sob o nome de 
Idéia e os valores da fé sob outras artimanhas especulativas. Isso foi repe-
tido pelos papagaios marxistas. Todavia, Hegel nada ocultava, porque, na 
verdade, a sua análise ia hereticamente distilando tudo, com a racionali-
zação total do Universo, que resultava do seu sistema. Daí escapar-lhe da 
pena, ao comentar a Revolução francesa: "O céu ia encontrar-se transpor-
tado à Terra." E saudou-a como alvorada dos novos tempos, considerando 
Napoleão o criador do Estado moderno. 
Para ele, a Revolução exprimia o esforço da Razão buscando realizar-se, 
buscando alcançar a unidade através de violentas contradições, que rebai-
xam a existência daquele céu ao aquém terreno (die Existenz seines 
Himmels zum irdischen Diesseits); e então essa representação e realidade 
degradada desenvolvem, no plano abstrato, a racionalidade do direito e 
da lei, que encontram sua síntese conciliadora no Estado. Ao deparar o 
Estado como a "realidade da Idéia ética" (der Staat ist die Wirklichkeit 
der sittlichen Idee);' muitos comentadores, perturbados pelas referências 
à "substância da vontade" e da "eticidade", fulminam tudo como dispautério 
metafísico e fogem ao trabalho de pesquisa hermenêutica para determinação 
do sentido do texto. Entretanto, pelo cotejo de várias passagens, se deduz 
que Sittlichkeit, traduzida aqui como "eticidade", significa a totalidade de 
valores normativos que disciplinam a conduta do homem na famI1aou no 
Estado. Sinceridade de atitude para consigo mesmo, honestidade de propó-
sito, não se incluem na Sittlichkeit, mas na Moralitat. 
Por sua vez, a significação de "substância", em Hegel, sugere numerosos 
matizes semânticos. 11 Simplifico, dando apenas uma nota: é o que se basta 
a si mesmo, o que é ao mesmo tempo fundamento e condição suficiente 
para outros termos (acidentes). Na acepção plena, "substância" seria o 
Absoluto, a totalidade do objetivo e do subjetivo, a Grundsubstanz. A 
substância se manifestaria na origem e extinção dos acidentes, seria a 
"causalidade recíproca" (Wechselwirkung) no seu todo. Na esfera da 
causalidade, a reunião deles, na substância, é a necessidade. Com tais 
.. Hegel, id., § 257. "Der Staat ist ais die Wirk1ichkeit des substantiellen Willen, die 
er in dem zu seiner Allgmeinheit erhoben besondren Selbstbewusstsein hat, das an 
und fuer sich Vernunftige." 
li Cf. Hegel.Lexikon, de Hermann Glockner. Sttutgart, 1939. 4 V., p. 2.382, segs. 
Pensamento de Hegel 145 
indicações, poder-se-á refletir melhor sobre o que Hegel chama de "subs-
tância do Estado" e "da fanulia", querendo, muitas vezes, acentuar a sua 
independência de outras instituições, a "substantividade" ao se definirem 
na História como "entidades" que o espírito capta na sua "essência" 
eidética. Ainda noutras palavras, o que é "em-si", como realidade distinta 
da consciência individual. 6 
Os estudiosos preocuparam-se em sacar da obra de Hegel tudo que 
pudesse ser utilizado em apoio do absolutismo do Estado. A tal ponto 
que se tomou axiomático ser ele o teórico do totalitarismo político nas 
duas formas por que se apresenta na história moderna: o fascismo e o 
bolchevismo. Essa, a maneira por que põem o problema. 
Suponho que a simplificação deforma demasiado seu pensamento polí-
tico, que oferece maior complexidade e onde se deparam elementos contra-
ditórios. Nos trabalhos juvenis do filósofo, há reflexões que seriam ulterior-
mente desenvolvidas. Às vezes mesmo, já se encontram formuladas com 
absoluta nitidez lógica. Sabe-se que o Estado é "o exercício do monopólio 
do poder estatal" (H. Heller). Pois o exercício da coação, organizado pelo 
terceiro Estado, nos dias de Hegel, representava a luta contra o parti-' 
cularismo territorial, que caracterizava a organização feudal e resistia à 
integração nacional. Diante do conflito ideológico, Hegel tomou o partido 
da monarquia constitucional, que era a superação dos particularismos 
regionais. A posição entre a vontade individual e a vontade geral, entre a 
vontade subjetiva e a vontade objetiva, exprimia, em termos especulativos, 
os conflitos que campeavam na arena política. Conflitos sociais expressos 
pelas classes nos agitados começos do século XIX. "O Estado é a astúcia" 
- escreveu Hegel.7 A Razão seria pois a monarquia constitucional, o 
feudalismo, a anti-Razão. Esse "contrário" era o que seria riscado da 
História. 
O simples agregado de pessoas não apresenta a unidade orgânica do 
populus; tal ajuntamento será plebs, será vulgus,8 mas não terá a organi-
cidade histórica, onde se pressente a elaboração da vontade geral, que 
somente aparece onde se constituiu o Estado, que é momento do desen-
volvimento. "A essência do Estado é o universal em-si e por-si, a racio-
nalidade do querer"9 - ensina Hegel. É a maneira de o filósofo dizer que 
o poder do Estado se ordena segundo objetivos conscientemente concebidos 
pelos homens, os quais constituem o sistema de normatividade em íntima 
compenetração com a totalidade social como realidade externa e interna. 
Não se trata dessa pobre concepção kelseniana, em que o sistema de 
normatividade se erige em realidade espiritual, no mais indigente logismo 
6 Franz Grégoire, se bem que desviando um pouco a interpretação no sentido aristo-
télico-tomista, dá esclarecimentos sobre o problema nos seus Etudes hegeliannes, 
Louvain, 1958, págs. 337, segs. - Hegel, Phi1osophische Propaedeutik, Suttgart, 3. 
Aufl., 1949. p. 179. segs. 
7 Hegel. Realphilosophie, ed. Lásson, xx, nota à p. 251. 
8 Hegel, Werke, 7 Bd., Encyklopaedie der philosophischen Wissenschaften. Berlim, 
1854. § 544. 
9 Hegel, Phi/. des Rechts. § 260; "Der Staat ist die Wirklichkeit der konkreten 
Freiheit." Encykl. § 537. Philophische Propaedeutik, ed. cit., p. 221, segs. 
146 R.C.P. ESPECIAL 
formalístico - e que pretende ser o "Estado". Hegel é sempre atento às 
forças compactas que modelam a natureza e a sociedade no devenir histó-
rico. Assim, quando atribui a vontade papel criador e fundador do direito 
e do Estado, não se deve esquecer a base dialética em que assentam as 
afirmações. A volonté generale, de Rousseau, não é o alggmeine Wille,10 
mesmo proclamando Hegel que essa foi a maior descoberta do autor do 
Contrato social. 
Hegel considera, como anotou Haering, que a valiosa intuição de Rous-
seau não foi o artifício de um pacto, que congregaria mecanicamente as 
vontades numa soma anorgânica, mas a volonté generale como fundamento 
do Estado. E Rosenkranz conta-nos do entusiasmo de Hõlderlin, Schiller 
e Hegel saudando a liberdade, pelos idos de 1793 ... 11 Todavia, muitas 
restrições podem ser feitas na comparação dos dois pontos de vista. Vulgar-
mente, o conceito de "liberdade", sem mais conotações, é a "subjetividade 
abstrata" - e serve apenas para a definição abstrata de personalidade. 
É por esse enfoque que se declara a igualdade de todos perante a lei. 
Anota o filósofo que foi esse princípio que permitiu conceituar juridica-
mente o "homem", o que não logrou fazer o direito romano. Aqui vale 
a pena examinar a análise de Hegel. Tal igualdade jurídica se estabelece 
tautologicamente, porquanto "enuncia simplesmente o estado legal em geral, 
a saber, que as leis dominam".12 São iguais apenas pelo lado da pessoa, 
determinação da lei e onde já eram iguais. Mas o ser social concreto tem 
outros aspectos. Assim, quanto à riqueza, à força física, ao engenho, à 
habilidade etc., justifica-se o tratamento igual quanto ao imposto, à pres-
tação do serviço militar, admissão ao emprego público etc. Mas a própria 
lei pressupõe as condições desiguais, determinando competências e deveres 
desiguais. "As leis - diz Hegel - fora do círculo estreito da personalidade, 
pressupõem condições desiguais e determinam a desigualdade das posições 
e dos deveres que delas decorrem."13 A igualdade oriunda de condições 
fora da lei é, na sua opinião, meramente acidental. Veja-se que não significa 
que todos sejam possuidores de iguais riquezas, capacidades, habilidades, 
o que seria superficial. O raciocínio hegeliano é mais profundo. 
Reconhece Hegel que a antiga denominação dos direitos privados legal-
mente determinados, bem como os direitos públicos dos municípios e 
cidades eram denominados de liberdades. Na velha denominação do direito 
lusitano, franquias. Assim, o conteúdo da verdadeira legalidade seria a 
liberdade. O sentido, entretanto, tomou direção diversa: "cada um deve 
limitar sua liberdade pelas liberdades dos demais e a vida social é o estado 
dessa delimitação recíproca e as leis são estes limites (der Stoot der 
Zustand dieses gegenseitigen Beschriinkens und die Gesetze die Beschriink-
ungen sehen) .14 Contra Kant, já se vê. O querer se exercita dentro dos 
quadros da lei, que não é concebida como manifestação racional do espírito 
10 Hegel. Phil. des Rechts. § 258. 
11 Rosenkranz. Leben. Berlin, 1844. p. 40, segs. Hegel, Vorlesungen ueber die Philo-
sophie der Geschichte. 9 Bd., Berlin" 1848. p. 526, segs. 
12 Hegel, Encykl .• comentário ao § 539. 
13 Hegel, Encykl., § 539. 
14 Hegel, Encykl., § 539. 
Pensamento de Hegel 147 
objetivo, cujo conteúdo seria liberdade. Estamos diante da normatividade 
abstrata, alienada, exterior à matéria regulada, como se o conjunto das 
relações sociais fosse algo passivo e inerte, que esse espírito legislativo, 
de fora,modelasse segundo cânones de uma Razão estranha e superior. 
Formalismo inteiramente hostil à intuição dialética em que assenta a aná-
lise de Hegel, encamiçadamente refractário a toda interpretação dualista. 
Foi, nesse terreno, o mais infatigável adversário de Kant. Pensamento 
e Realidade são contrários que se conciliam (die Vertohnung des Denkers 
mit der Wirklichkeit) na unidade superior; também o "dever ser" (Sollen) 
e o "Ser" (Sein) se conciliam na unidade real da essência e do fenômeno, 
da Idéia e da Existência. Não se dissocia o querer do pensar como facul-
dades que operariam em reinos distintos, prefigurando uma teoria e uma 
prática. 
Hegel explica a vontade como modalidade do pensamento, aspectos 
interpenetrados e interpenetrantes do mesmo processo. E é nesse processo 
que se poderá perquirir a maneira de enunciar o conceito de liberdade. 
A liberdade não se definiria no mundo natural, considerando "atomistica-
mente" o homem. O "estado de Natureza", nos termos de Rousseau, como 
base de argumentação, leva à determinação da liberdade abstrata e subje-
tiva. Ser livre é estar isento de constrangimento, escapar a dependência, 
ser-em-si, bastar-se a si mesmo, mas não no sentido de abstrair os vínculos 
sociais e a integração no processo de desenvolvimento histórico. Aquela 
desaparição de dependências se processaria, dialeticamente, pela tomada 
de consciência das dependências, pela consciência das leis necessárias, pela 
compreensão mais profunda da História, pela história da consciência atin-
gindo a plena consciência da História.15 
Em tal acepção, liberdade teria gradações. Enquanto o criticismo kan-
tiano cindira "Liberdade" e "Natureza" em cosmos separados, multiplicando 
sempre dualismos formais, a Razão dialética é devoradora dos dualismos. 
A liberdade não é tragada pelo Estado, conforme a famigerada interpre-
tação de Hobbes, que raciocina utilizando conceitos desprendidos do 
devenir histórico. Para Hegel, a liberdade é conquista gradual e incessante 
do saber e do querer no desenvolvimento da racionalidade. 
A Razão é dialética, enquanto o entendimento é formal. O modo de 
Rousseau plantear o problema é puramente abstrato, no formalismo do 
entendimento (V erstand), e não na riqueza das contradições, no concre-
tismo da Razão (V ernunft). Em Hegel, o Espírito não é o ponto de partida, 
o fiaI cósmico, mas o ponto de chegada, o resultado, que assimila e sobre-
puja o natural. E só nesse superar-se é que surge a consciência, no plano 
do espiritual, onde se conceituará o valor humano da liberdade. O homem-
animal, idealizado por Rousseau, ficou para trás; real, na biologia, é ficção 
na história, pois o devenir humanizante implica a negação do natural. Ne-
gação que suprime e conserva, ascendendo. Luta, esforço, trabalho. "Eu 
sou a luta" - escreveu Hegel alhures. Seu pensamento quintessenciou o 
dramático da Vida. Só nesse drama, o antropológico germina do histórico 
15 Menezes, Djacir. O sentido antropógeno da História. Rio, Org. Simões, 1959. 
p. 20, segs. 
148 R.C.P. ESPECIAL 
e no histórico, onde está palpitando a protogênese da "espiritualidade". 
Eis por que "Espírito", hegelianamente, é concreto. Concreto, para ele, é 
resultado rico de contradições, rico de conotações. As simplificações que 
caracterizam os pensadores jônicos, as filosofias antigas, trazem a marca 
do sensorial, que abstraem do Real dados sensíveis - e dão esquemas 
pobres, pobremente abstratos. Só com sucessivas voltas ao Real, sucessivos 
mergulhos no Real, se pode ir intuindo o "concreto", graças às acumu-
lações históricas no legado das gerações. O Espírito é totalidade real no 
espaço e no tempo. Na dimensão histórica por excelência. 
Privados da intuição dialética, grande maioria de expositores, com ro-
tunda tranqüilidade, afirma que Hegel assentou a doutrina do "absolutismo 
do Estado". O governo prussiano dera-lhe a cátedra em Berlim, e ali insta-
lado, durante treze anos, teorizou o totalitarismo político, que seria o 
ancestral ideológico dos atuais: o indivíduo sacrificado ao Leviatã de 
dominação. Tantas vezes se lêem e tão repetidas são estas teses, que já 
tomaram a intangibilidade de Dogma. 
Vou opor alguns embargos. Que os apressados, porém, não sentenciem, 
que me empenho no demonstrar o oposto. De tão rápido e despretencioso 
repasse crítico a tese contrária não poderá ser deduzida. O que se pretende 
é mais sutil. Na sua aparente apologia do Estado feito encarnação da Idéia 
ética, discerne-se mais profundamente o jogo de ingredientes que denunciam 
concepção mais além da mera estatolatria feita cobertura dos grupos pluto-
cráticos, nas batalhas sociais do século. 
Entre outros argumentos, invoco, de novo, a conceituação hegeliana de 
"pessoa", como se acha nos §§ 41, passim, da Grundlinien der Philosophie 
des Rechts. A pessoa deve fruir de esfera externa de liberdade, determi-
nação ainda abstrata, mas que dela se distingue: toma-se exterior, toma-se 
coisa, configurando-se no plano da natureza. A natureza tem esta nota 
fundamental: é o exterior em si mesmo (das Aeusserliche an ihr selbst zu 
sein). Em frente às coisas e suas propriedades, exercita-se a vontade, 
originando processo em que a interioridade se degrada em exteriorizações 
(objetivações, pode-se dizer). O "querer" é essencial à pessoa; à vontade 
é intrínseca a liberdade. Hegel não opõe a pessoa ao Estado, considerado 
"totalidade racional e orgânica", pois é no Estado que se encarna o próprio 
"Espírito", que se revela na História, expressão crescente da Liberdade. 
A obediência ao Estado não tem caráter de sujeição, que suporia o anta-
gonismo, situando-se um dos termos na irracionalidade. Obedecendo-lhe, 
realizo-me, pois há consonância plena entre a esfera privada e a pública. 
O indivíduo sente-se integrado no ser coletivo; o Estado é o órgão do 
bem-comum. Seguindo-o, sigo-me a mim mesmo, estou fazendo o que 
desejo; a determinação ou motivo de minha conduta está em mim: sou 
livre, portanto. E minha obrigação fundamental é ser livre. Minha ação é 
racional na sua essência. 
Essa posição do problema afasta as perplexidades do contratualismo, 
em que as liberdades individuais exigem compromisso limitativo de uns 
para com outros a fim de garantir a coexistência no Estado. A soberania 
do Estado resulta, no devenir histórico, de uma totalidade dialética que se 
Pensamento de Hegel 149 
não funda no atomismo das vontades individuais, somadas mecanicamente 
na "universalidade abstrata" - mas na "universalidade concreta" das 
sociedades estruturadas, racionalmente planificadas, de onde se baniu a 
guerra das competições individualistas e privadas. A essência racional 
desse Estado pressuporia o aperfeiçoamento do indivíduo, a superioridade 
consciente em tais graus de aprimoramento ético, que não se constituiu 
historicamente tal Estado: foi ilusão de Hegel. 
Por sua vez, considerando-se o problema do ângulo sociológico, há 
causas efetivas e decisivas que determinam a "privatização" do Estado. 
Dentro da vida histórica - prossigo eu agora - seria necessário que 
desaparecessem as dissemetrias econômicas, ampliadas pelas grandes uni-
dades de produção. Estas assoberbam os quadros jurídicos e ameaçam 
capturar o maquinismo do Estado em seus tentáculos. O novo tipo de 
Estado, que desejam criar, já não é a realização racional do interesse cole-
tivo, nem se apresenta como a "encarnação da Idéia ética da universalidade 
dos cidadãos", para usar a linguagem hegeliana. Os antagonismos, que 
irrompem, geram condições em que a consciência da liberdade se deprime, 
sufocada. O Estado deixa de ser o órgão da vontade do totus: sua essência 
contém a negatividade, que o torna estranho e hostil. Nele não se reflete 
a consciência da comunidade, que se segmentou: ele passou a exprimir a 
parcela privilegiada, e o privilégio, como disse Seyes, exclui e insula o 
privilegiadoda totalidade nacional.16 f: uma consciência segmentar da nação, 
perdendo a "substância ética da universalidade". Que acontece? Baldo de 
raízes éticas, manifesta o tropismo insopitável para a força. No Estado, 
que começa a ser negado, cresce o quantum despótico: transformar-se a 
energia civil em vis coercitiva.l7 Essa transformação reflete-se, imediata-
16 Depois de mostrar que o indivíduo realiza a liberdade pelo exercício da vontade 
sem imposição exterior da autoridade, Hegel pondera: "Isso, entre os alemães, não 
passou de teoria pacífica; porém os franceses quiseram realizá-lo praticamente. Surge, 
então, a dupla indagação: por que tal princípio de liberdade ficou sendo exclusiva-
mente formal? E por que somente os franceses se abalançaram a realizá-lo e não 
também os alemães?" Phil. der Gesch., p. 532. E adiante: "O fim da sociedade é 
também político, qual o do Estarlo, a saber, a manutenção dos direitos naturais. E o 
direito natural é a liberdade e a determinação da pr6pria liberdade é a igualdade 
de direitos perante alei." loco cito 
Mas Hegel refuta a abstração subjetiva da liberdade endeusada pelas revoluções. 
O liberalismo erigia o princípio atomístico em frente da liberdarle concreta, e é 
derrotado (Vorlesungen ueber die Philosophie der Geschichte, ed. cito p. 540_ "Ne-
nhuma organização política poderá ser firmemente estabelecida com esse lado formal 
da liberdade, com essa abstração (mit disem Formellen der Freiheit, mit dieser Abs-
traktion). A abstração do liberalismo, gerada na França, passa através de outras 
nações, ganha o mundo: e o "reino da injustiça, quando desperta a consciência, 
converte-se em injustiça ignominiosa (schaamloses Unrecht). "O espírito novo torna-
se ativo: a opressão instiga o exame (der Druck trieb zur Untersuchung)." No curso 
da luta é que se elaboram os princípios, e por isso Hegel discerne, no movimento 
histórico, a dialética imanente da Razão. A coisa não é tão inepta como ineptamente 
caricaturam os marxistas. As lutas, as colisões têm 16gica, revelam crescimento de 
consciência, na eclosão de formas sociais mais avançadas, onde os privilégios dimi-
nuíram e o conteúdo humano se expandia, afirmando-se mais humano_ 
17 Miranda, Pontes de. Introdução à política científica. Rio, Garnier, 1954. p_ 276 
e segs. 
150 R.C.P. ESPECIAL 
mente, na consciência jurídica: o Estado socialmente injusto é, historica-
mente, um Estado suicida. Cedo ou tarde, entra em dissolução. A aplicação 
da força à outrance, passando certo limite, transforma-o qualitativamente. 
Já não é Estado racional, é o irracional. Está contra o destino da Humani-
dade, luta contra Zeus. Defender tais formas de Estado, idolatricamente, 
como encarnações da vontade divina, a troco de citações de Hegel, é fugir 
ao sentido da obra do pensador, confundido pela linguagem aparente. São 
subterfúgios para erigi-Io em pára-raio de borrascas sociais ou dique contra 
a maré montante. A decomposição dos vínculos orgânicos do Estado, con-
forme disse o filósofo, "seria como um mar encapelado, com a diferença 
de que o mar não se destrói a si mesmo". 
A imagem é perfeita, se retificarmos: o povo, como o mar, não se 
destrói a si mesmo. 
Passam as formas políticas - mas ele permanece. 
BIBLIOTECA DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS 
Praia de Botafogo, 190 - 7.° andar. 
266-1512 ramal 170 - Serviço de Referência e Circulação; 
ramal 171 - Serviço de Referência Legislativa. 
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horas e das 13,30 às 17,30 horas; março a dezembro, todos 
os dias úteis, das 8 às 20 horas e, aos sábadbs, das 8 às 
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PROFISSIONAL 
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às quintas-feiras s6 funciona no horário da manhã. 
Pensamento de Hegel 151

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