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O BRASIL E A LIGA DAS NAÇÕES: VENCER OU NÃO PERDER EUGÊNIO VARGAS GARCIA Arquivo de referência para o livro O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): Vencer ou Não Perder. Porto Alegre, Brasília: Editora da Universidade (UFRGS), Fundação Alexandre de Gusmão, 2000. Prefácio de Celso Lafer. O BRASIL E A LIGA DAS NAÇÕES: VENCER OU NÃO PERDER (1919-1926) EUGÊNIO VARGAS GARCIA SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 3 Notas ..................................................................................................................................... 6 CAPÍTULO 1 O BRASIL E O ESTABELECIMENTO DA LIGA DAS NAÇÕES 1.1. O final da Primeira Guerra Mundial e a posição brasileira ............................................ 7 1.2. A presença na Conferência da Paz de 1919 .................................................................. 10 1.3. Epitácio Pessoa e a comissão da Liga das Nações ....................................................... 13 1.4. O debate interno sobre a adesão do Brasil à Liga ...................................................... 18 Notas .................................................................................................................................... 22 CAPÍTULO 2 LEALDADE E PRESTÍGIO NOS PRIMEIROS ANOS EM GENEBRA 2.1. A inserção do Brasil na ordem internacional de Versalhes .......................................... 25 2.2. 1920: entre o realismo pragmático e o idealismo principista ....................................... 29 2.3. 1921: diplomacia reativa e improvisação na 2ª Assembléia ........................................ 33 2.4. 1922: competição pelos assentos temporários no Conselho ........................................ 35 Notas ................................................................................................................................... 39 CAPÍTULO 3 A META DO ASSENTO PERMANENTE NO CONSELHO 3.1. O governo Artur Bernardes: política interna e externa ................................................. 42 3.2. 1923: tentativa frustrada com a fórmula Brasil-Espanha ............................................. 45 3.3. 1924: proposta de suplência dos Estados Unidos no Conselho ................................... 48 3.4. 1925: expectativa de recompensa por serviços prestados ............................................ 51 Notas ................................................................................................................................... 55 CAPÍTULO 4 DOS ACORDOS DE LOCARNO À CRISE DE MARÇO DE 1926 4.1. Origem e significado dos acordos de Locarno ............................................................. 58 4.2. Em nome da dignidade nacional: “vencer ou não perder” ........................................... 61 4.3. O veto brasileiro à entrada da Alemanha na Liga das Nações ...................................... 65 4.4. Reações da opinião pública no Brasil e no exterior ..................................................... 70 Notas ................................................................................................................................... 76 CAPÍTULO 5 A RETIRADA DO BRASIL DA LIGA DAS NAÇÕES 5.1. A comissão de estudos sobre a composição do Conselho ............................................ 79 5.2. A notificação prévia da retirada do Brasil da Liga ....................................................... 81 5.3. Impressões sobre o afastamento brasileiro de Genebra ................................................ 85 5.4. A confirmação definitiva no governo Washington Luís .............................................. 89 Notas ................................................................................................................................... 92 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 95 ANEXO .............................................................................................................................. 99 Pacto da Liga das Nações .................................................................................................... 99 ARQUIVOS PESQUISADOS ........................................................................................ 110 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 111 1. Fontes impressas ........................................................................................................... 111 2. Livros ........................................................................................................................... 111 3. Artigos .......................................................................................................................... 116 4. Teses acadêmicas e trabalhos não publicados .............................................................. 117 5. Obras de referência ...................................................................................................... 118 6. Jornais .......................................................................................................................... 118 SOBRE O AUTOR .......................................................................................................... 120 INTRODUÇÃO A Liga (ou Sociedade) das Nações, nascida dos escombros da Primeira Guerra Mundial, foi uma tentativa ambiciosa de se criar uma associação permanente de Estados, de escopo universal, destinada a preservar a paz e a assegurar o cumprimento das normas de direito internacional. Em termos de proposta para uma gestão coletiva da paz mundial e de ensaio para o estabelecimento de uma autoridade supranacional nas relações internacionais, o modelo do Pacto da Liga das Nações abriu o desafio deste século ao tradicional sistema de Estados soberanos, descentralizado e hierárquico, cuja idéia de estabilidade e de ordem, baseada na política de poder, costuma se fundamentar em precários equilíbrios de força. O Brasil esteve presente na Conferência da Paz de Paris, em 1919, e aderiu como membro fundador à recém-criada Liga das Nações. O governo Epitácio Pessoa, não obstante a ausência norte-americana de Genebra, permaneceu leal à Liga em função do prestígio que o Brasil nela desfrutava como membro temporário do Conselho. Buscando elevar o status internacional do país, o governo Artur Bernardes elegeu como meta prioritária de política externa a conquista de um assento permanente no Conselho, em cujas atividades o Brasil passou a ter uma participação relativamente ativa. Quando da tentativa das potências européias de fazer implementar o que havia sido anteriormente acordado em Locarno, em relação à pacificação dos ânimos na Europa e à reincorporação da Alemanha no quadro político regional, o Brasil, em represália por não ter sido satisfeita a sua pretensão, vetou a admissão da Alemanha na Liga das Nações, em março de 1926. Nas palavras do próprio Presidente da República, que resumem a disposição do governo brasileiro no caso, a questão cifrava-seem “vencer ou não perder”. O episódio do veto colocou o Brasil por um momento no centro das atenções da política mundial, pois significou o adiamento da entrada em vigor dos acordos de Locarno, fundamentais para a manutenção da paz no continente europeu. Em junho de 1926, o Brasil notificou ao Secretariado da Liga a sua retirada da organização, acusando-a de ter-se desvirtuado de seu caráter universal. Com sua saída, confirmada em definitivo em 1928, o Brasil seguiu finalmente o exemplo dos Estados Unidos, afastando-se politicamente da Europa e retornando ao isolacionismo hemisférico. Este estudo é uma versão ligeiramente modificada de Dissertação de Mestrado apresentada, em 1994, ao Departamento de História da Universidade de Brasília. Até aquele ano, a historiografia ressentia-se de uma investigação mais abrangente sobre a atuação do Brasil na Liga das Nações, de especial importância para uma melhor compreensão da política externa brasileira na década de 1920. A literatura sobre a participação do Brasil na Liga tratava do assunto de forma dispersa, incompleta e com pouca profundidade, o que não vinha permitindo o avanço do conhecimento nessa área. Surgiram depois os trabalhos de Ricardo Seitenfus, em 1995, que escreveu capítulo sobre a Liga das Nações em livro póstumo de José Honório Rodrigues sobre a história diplomática do Brasil, e de Norma Breda dos Santos, que defendeu importante Tese de Doutorado, em 1996, no Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, em Genebra, na qual tratou em detalhe de vários aspectos relacionados com a política brasileira na Liga das Nações. 1 Para a análise da conduta do Brasil em Genebra, à luz da perspectiva histórica de análise, recorre-se aqui sobretudo à narrativa, dada a necessidade de proceder primeiro a uma reconstituição dos fatos considerados essenciais. Com base nesse relato mais propriamente descritivo e na evidência empírica extraída das fontes compulsadas, são ensaiadas algumas tentativas de interpretação acerca da natureza, das motivações, dos interesses e dos fins da participação brasileira na Liga. O problema se encontra delimitado no tempo (1919-1926) e no espaço (contexto organizacional da Liga), e uma ênfase maior é dada às posições assumidas e aos papéis desempenhados pelo Brasil. Devido à especificidade do tema, predomina na análise um enfoque de política interestatal, contrabalançado por referências às conjunturas nacional e internacional no período em exame, aos condicionamentos estruturais da ação diplomática e aos movimentos da opinião pública no país e no exterior. Muitas perguntas levantadas no decorrer da pesquisa foram respondidas, outras permaneceram em suspenso, o que é natural, se entendermos que a história está sempre sendo constantemente reescrita e não comporta uma “palavra final”. O objetivo inicial, que motivou a realização da pesquisa, consistiu em elaborar, como primeira aproximação, uma síntese histórica que fosse minimamente consistente para permitir um necessário aprofundamento posterior. Quanto à pesquisa documental, foram utilizadas fontes primárias de arquivos nacionais, a maior parte no Rio de Janeiro. A documentação sobre a Liga das Nações existente no Arquivo Histórico do Itamaraty é particularmente abundante e pode ser ainda objeto de novas e frutíferas investigações. Foi também de grande valia a consulta à Coleção Afrânio de Melo Franco, guardada na Biblioteca Nacional, especialmente no que se refere aos volumes encadernados de recortes de jornais que ali se encontram. A bibliografia, por sua vez, serviu para confrontar, recompor, julgar e dar inteligibilidade aos dados coletados, ajudando na elaboração das interpretações aqui propostas. Em uma abordagem interdisciplinar, faz-se uso neste estudo de categorias e conceitos da ciência política e das relações internacionais, pois, em conjunto com os procedimentos usuais da pesquisa histórica formal, um pluralismo de paradigmas pode, a meu ver, melhor servir à reconstrução do passado do que um modelo teórico fechado, definido a priori. 2 Teorias fornecem insights úteis ao historiador, mas, à medida que 1 José Honório Rodrigues & Ricardo Seitenfus, Uma história diplomática do Brasil, 1531-1945 (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995); Norma Breda dos Santos, Le Brésil et la Société des Nations, 1920-1926 (Thèse de Doctorat, Université de Genève, Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, 1996). 2 Uma discussão sobre o uso da teoria na história das relações internacionais pode ser encontrada no artigo de Brunello Vigezzi, “La vita internazionale tra storia e teoria”, Relazioni Internazionali, Milano, anno LIV (III nuova serie), marzo 1990, p.24-35; ver também J.-B. Duroselle, Tout empire périra (Paris, Publications de la Sorbonne, 1982). Sobre a opção por um pluralismo de paradigmas ver Celestino del Arenal, “La teoría y la ciencia de las relaciones internacionales hoy: retos, debates y paradigmas”, Foro Internacional (116), México (vol.29, nº 4, abril-junio 1989. p.583-629), p.607. pretendem explicar movimentos internacionais mais amplos, vão perdendo a capacidade de se sustentar empiricamente, pois sucumbem à complexidade inerente ao cenário mundial e, por mais forte razão, à evolução das relações internacionais no tempo. Some-se a isso, matizada pelo princípio da discutibilidade científica, uma visão calcada na dialética histórico-estrutural como postura metodológica, no sentido empregado por Pedro Demo. Segundo ele, “dialética é sobretudo o respeito a uma realidade tão complexa, profunda e dinâmica, que nos impõe a reverência típica do mistério. Quanto mais pesquisamos, mais temos a perguntar”.3 Em geral, a dialética serve de modo mais apropriado a metodologias alternativas, mas não é necessariamente marxista ou antimarxista, “a começar pela constatação inevitável de que não existe um marxismo único dotado de um único materialismo dialético”. Tampouco tem a ver a dialética com o reino da “banalidade corriqueira”, onde, a título de “diversão mental”, as coisas “são e não são” e pode-se dispensar a lógica, a disciplina intelectual e a precisão dos métodos. A opção pela dialética histórico-estrutural busca, antes de tudo, captar e compreender a dinâmica da unidade de contrários, entendida como a coexistência na mesma totalidade de forças opostas que ao mesmo tempo se repelem e se atraem, e que apontam para a superação de estruturas históricas em contínuo processo de mudança. As totalidades históricas se mantêm processo e por isso mesmo se transformam, porque contêm dinâmica interna essencial, baseada na polarização: “são como medalha, que sempre tem duas faces, que se necessitam e se afastam”.4 Citando ainda Pedro Demo: “Na unidade de contrários são compreensíveis também coisas em si inexplicáveis, porquanto o domínio de uma situação histórica nunca é completo. Não é possível a dissecação de todas as variáveis componentes, de tal sorte que o controle cabal de cada uma fosse realizável”.5 Por fim, gostaria de expressar os meus agradecimentos ao Professor Amado Luiz Cervo, pela orientação sempre segura, ao Conselheiro Paulo Roberto de Almeida, pelo estímulo constante e apoio acadêmico, ao CNPq e à CAPES, pelas bolsas concedidas durante meu período de Mestrado, e aos amigos do Departamento de História da Universidade de Brasília. Meu reconhecimento também às famílias Giovanni Stehl e Olívio Vargas, a Rui Antonio Jucá Pinheiro de Vasconcellos, a meus pais, e a todas as pessoas ou instituições que colaboraram direta ou indiretamente para a realização de minha pesquisa. Brasília, 16 de novembro de 1998.3 Pedro Demo, Metodologia científica em ciências sociais (SP, Ed. Atlas, 1989), p.125. 4 Id., p. 97. 5 Id., p.88-132. Para um exemplo de aplicação da perspectiva dialética na análise das relações internacionais ver Robert W. Cox, “Multilateralism and world order”, Review of International Studies (vol.18, nº 2, April 1992, p.161-180). CAPÍTULO 1 O BRASIL E O ESTABELECIMENTO DA LIGA DAS NAÇÕES 1.1. O final da Primeira Guerra Mundial e a posição brasileira A assinatura da rendição alemã, em 11 de novembro de 1918, pôs fim à Grande Guerra e abriu o caminho para o processo de negociações dos termos da paz. Tendo em vista a destruição e o sofrimento causados pela conflagração, a atmosfera do momento era de alívio e de esperança em dias melhores, na crença de que aquela tinha sido “a guerra para acabar com todas as guerras” e que o despertar da opinião pública para os assuntos internacionais seria o prenúncio de uma nova era de relações pacíficas entre os povos. 6 A posição brasileira em relação ao conflito tinha evoluído da neutralidade inicial até o reconhecimento do estado de beligerância com a Alemanha, em 26 de outubro de 1917. A justificativa oficial para a entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados vinculou essa atitude à “política tradicional de amizade para com os Estados Unidos” e à “solidariedade continental” em um “momento crítico na história do mundo”.7 Segundo Francisco Luiz Teixeira Vinhosa, entre as várias razões que teriam levado o Brasil a entrar na guerra, relacionadas inclusive com problemas de ordem interna, uma delas seria a de contornar as pressões externas e as restrições impostas pelos aliados, principalmente devido ao policiamento dos mares realizado pela Marinha britânica e à introdução das listas negras. Ao decidir associar-se à coalizão que viria a ser vitoriosa nos campos de batalha, o Brasil procurava evitar arcar com os custos de um tratamento discriminatório por parte de seus tradicionais parceiros comerciais, na expectativa também de vir a obter em troca algum tipo de apoio ou recompensa no futuro. 8 O Brasil foi o único país da América do Sul a participar da guerra, ao contrário, por exemplo, da Argentina, que permaneceu neutra até o fim. Entretanto, sua colaboração econômica e militar ao esforço de guerra aliado foi em termos práticos irrelevante. Não obstante sua participação marginal já no período final das hostilidades, na qualidade de país beligerante o Brasil garantiu a sua presença na Conferência da Paz, marcada para iniciar-se em janeiro de 1919, em Paris, o que também teria sido uma motivação importante para o engajamento brasileiro no conflito. Pode-se dizer que a aspiração de participar das grandes decisões mundiais era um traço característico da política externa brasileira no período. 6 Para uma apreciação do idealismo no pós-guerra ver Edward H. Carr, Vinte anos de crise: 1919-1939 (Brasília, Ed.UnB, 1981), p.35-49. 7 Apud Victor V. Valla, “Subsídios para uma melhor compreensão da entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial”, Estudos Históricos (nº 15, 1976, p.29-46), p.29. 8 Cf. Francisco Luiz Teixeira Vinhosa, O Brasil e a Primeira Guerra Mundial (RJ, IHGB, 1990), p.122. Francisco Vinhosa chega mesmo a afirmar que o principal interesse do Brasil, ao entrar na guerra, era: “(...) indubitavelmente, a sua participação na conferência da paz, pois, além dos interesses materiais que tinha de lá defender, os navios requisitados aos alemães e o dinheiro do café comprado por estes, ainda pensava em conquistar um lugar ao lado das grandes potências na Liga das Nações”.9 A escolha da delegação que deveria representar o país na Conferência da Paz deu origem a uma polêmica disputa entre Domício da Gama, ex-Embaixador em Washington e então Ministro das Relações Exteriores, e Rui Barbosa, que havia liderado manifestações aliadófilas como Presidente da Liga Brasileira pelos Aliados. Domício da Gama pretendia ele próprio ocupar a chefia da delegação, não só pelos rumores de que todos os Chanceleres aliados iriam a Paris, mas sobretudo em função de seu extenso círculo de amizades pessoais com autoridades norte-americanas, que Domício esperava poder acionar com bastante proveito. 10 Havia, no entanto, certa simpatia popular pelo nome de Rui Barbosa, por sua posição durante a guerra e pelo antecedente de sua participação na Segunda Conferência da Haia, em 1907. 11 Em 14 de julho de 1916, por ocasião das comemorações do centenário da independência argentina, Rui havia pronunciado conferência sobre o dever dos neutros, na Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires, intitulada “Os conceitos modernos do direito internacional”. Rui condenou a “agressão organizada” da Alemanha, afirmando que para ela os tratados internacionais seriam meros “farrapos de papel”. Sustentou que não eram os governos democráticos os que turbavam a paz do mundo, porque a democracia e a liberdade eram “pacíficas e conservadoras”. A guerra em andamento, argumentou, “seria impossível se os povos, e não o direito divino das coroas, dominassem a política internacional”. Os horrores do conflito e a destruição repercutiam longe e a ninguém era dado permanecer indiferente ante a barbárie. Os neutros sofriam as conseqüências da guerra tanto quanto os Estados beligerantes e a neutralidade, pois, implicava obrigações claras. Devia-se recorrer à “orientação pacificadora da justiça internacional”, já que os tribunais, a opinião pública e a consciência não podiam declarar-se neutros entre a lei e o crime. Para Rui Barbosa, as nações cristãs, zelosas do direito, não poderiam continuar à mercê dos interesses imorais da violência e da força. A Alemanha representava o egoísmo e a ambição, cinicamente camuflados em obras de filósofos e escritores militares alemães, na razão inversa da civilização. 12 9 Id., p.190. 10 Heitor Lira, Minha vida diplomática (Brasília, Ed.UnB, 1981), vol.I, p.88. 11 “A Conferência da Paz: a delegação do Brasil”, artigo de Oto Prazeres, Jornal do Brasil, 8 dez. 1918. 12 Rui Barbosa, Os conceitos modernos do direito internacional (RJ, Casa de Rui Barbosa, 1983), p.46. O Presidente Rodrigues Alves, estando gravemente enfermo, enviou uma carta a Rui Barbosa, datada de 3 de dezembro de 1918, dizendo haver comunicado ao Presidente em exercício, Delfim Moreira, a resolução de indicar Rui como chefe da delegação brasileira, por ser esta a “vontade geral da nação”. 13 A resposta de Rui Barbosa foi divulgada depois de alguns dias, na forma de uma carta aberta a Rodrigues Alves, na qual ele expunha as razões que o levavam a recusar o convite, dando a sua versão dos acontecimentos. 14 Rui Barbosa alegou ter o convite chegado demasiado tarde, “quase à hora da viagem”, quando o nome de Domício da Gama já havia sido cogitado pela imprensa.15 Tendo Rui posteriormente denunciado ter sido vítima de uma “sórdida intriga internacional”, 16 Moniz Bandeira se valeu dessa versão para concluir que os Estados Unidos teriam vetado a indicação de Rui Barbosa para a Conferência da Paz, na suposição de que o nome de Rui desagradava ao governo norte-americano, que temia não contar com o “voto certo” do Brasil caso fosse ele o designado.17 Essa afirmação, porém, é contestada por Francisco Vinhosa, que atribui a recusa de Rui a seu amor-próprio, pelo fato de não querer submeter-se às instruções de Domício no Itamaraty e por discordar dos outros nomes já escolhidos para compor a delegação. Vinhosa analisao episódio para concluir que: “Em primeiro lugar, conforme vimos, Rui Barbosa não foi à conferência da paz porque não quis, por uma questão de vaidade pessoal, por ter tido o seu orgulho ferido por não ter sido o seu o primeiro nome lembrado. Além disso, para ir a Paris, queria a substituição do Ministro das Relações Exteriores, o que não aconteceu. Não tendo também aceitado a missão por já terem sido nomeados para a delegação outros delegados que o ombreavam em autoridade”.18 Seja como for, é irrelevante do ponto de vista histórico tentar-se saber se o principismo incondicional de Rui poderia ter eventualmente criado embaraços às pretensões norte-americanas nas negociações de paz. Não é de boa historiografia trabalhar-se com hipóteses e suposições acerca de eventos que nunca ocorreram. A polêmica resultou, como fato concreto, na escolha de um terceiro nome para a chefia da delegação: o de Epitácio Pessoa, Senador pela Paraíba e autor, em 1911, de um projeto de Código de Direito 13 Rodrigues Alves a Rui Barbosa, carta, RJ, 3 dez. 1918, Arquivo Rui Barbosa, Casa de Rui Barbosa/Rio de Janeiro, CR 56/1. 14 “Carta a Rodrigues Alves”, RJ, 8 dez. 1918, in Esfola da calúnia (RJ, Guanabara, 1933, p.243-256). Rui Barbosa voltaria a abordar o tema durante a campanha presidencial de 1919 em uma conferência em São Paulo, em 4 abr. 1919; cf. “O caso internacional”, in Obras completas, vol.XLVI (RJ, MEC, 1956), tomo I, p.165-259. 15 “Carta a Rodrigues Alves”, op.cit., p.248. 16 “O caso internacional”, op.cit., p.250. 17 Cf. M.Bandeira, Presença dos Estados Unidos no Brasil (RJ, Civilização Brasileira, 1973), p.203-204. 18 Cf. F. Vinhosa, op.cit., p.187-210. Internacional Público. 19 Ainda em dezembro de 1918, Domício da Gama tentou fazer com que o Brasil fosse convidado a participar das conferências preliminares da paz, anteriores à Conferência propriamente dita. Domício acreditava que a presença brasileira nas conferências preliminares teria um bom efeito na política interna, pois, nas suas palavras, “isso ajudaria o governo perante a opinião pública, que nos está julgando descuidados”.20 No entanto, apesar dos pedidos junto ao Departamento de Estado e ao Foreign Office, tal não foi possível devido à resistência das grandes potências européias. Segundo Heitor Lira, a França e a Grã-Bretanha, “vale dizer, Clemenceau e Lloyd George”, entendiam que “a participação do Brasil, tanto nas conferências preliminares como na conferência plenária, devia ser a mais limitada, de vez que nossa colaboração na guerra fora também a mais modesta”.21 Essa primeira tentativa frustrada de obter um reconhecimento no estrangeiro maior do que a realidade da política internacional assim o permitia parece sugerir um descompasso entre os fins perseguidos pela diplomacia da época e os meios disponíveis do país. A esse respeito, valeria citar o relatório do Cônsul Hamilton Pires sobre a posição brasileira perante a Europa do pós-guerra, no qual se preconizava para o Brasil a conquista de um lugar que não fosse “demasiado modesto” e que lhe garantisse “influência política”. “Alguns homens de boa vontade tiveram a idéia de constituir o que se chamaria a ‘Sociedade das Nações’. Conquanto esse projeto se ache ainda em estudo, já tem recebido a adesão de todos os estadistas da Entente que nele vêem o meio mais eficaz de preservar o futuro. (...) Outro meio para as nações da Entente, de manter a paz no mundo, meio de mais imediata aplicação que o precedente, será a constituição entre elas de um bloco econômico. (...) Nesses dois agrupamentos, a ‘Sociedade das Nações’ e o bloco econômico, o nosso país deve naturalmente ocupar o posto que lhe convém. A imensidade das suas riquezas naturais e o papel que brilhantemente desempenhou nas conferências da Haia bastam para que, sem hesitação, se preveja que o lugar ocupado pelo Brasil será honroso. (...) Trata-se de uma justa e legítima ambição”. 22 Ao mesmo tempo, em contradição com a “legítima ambição” que se levantava, reconhecia-se a circunstância de ser o país pouco conhecido no continente europeu, como admitiu Hamilton Pires: “Sofra, embora, o meu orgulho nacional, exige a verdade que se diga que somos ignorados”. 19 Laurita Pessoa Raja Gabaglia, Epitácio Pessoa: 1865-1942 (SP, José Olimpio, 1951, 2 v.), passim. 20 Gama a Ipanema (Embaixador em Washington), teleg. confidencial, RJ, 5 dez. 1918, AHI 273/2/11; Gama a Magalhães (Ministro em Paris), teleg., RJ, 5 dez. 1918, AHI 273/2/11. 21 H.Lira, op.cit., vol.I, p.86. 22 “O Brasil perante a nova Europa”, relatório do Cônsul Hamilton Pires, 31 dez. 1918, AHI 322/1/24. 1.2. A presença na Conferência da Paz de 1919 Para realizar um acompanhamento prévio dos trabalhos da Conferência e preparar o terreno para a chegada da delegação completa, partiu para a Europa, em dezembro de 1918, João Pandiá Calógeras, Deputado por Minas Gerais e ex-Ministro da Agricultura e da Fazenda no governo Venceslau Brás. Pandiá Calógeras já havia sido então delegado às conferências pan-americanas de 1906 e 1910, e chefe da delegação brasileira à Conferência Financeira Pan-Americana de 1916. 23 Neste ínterim, Heitor de Souza fez um pronunciamento na Câmara dos Deputados exortando os delegados brasileiros a defenderem as idéias, os sentimentos, as aspirações e os legítimos interesses da nação, filiados à sua vocação liberal e pacífica, de respeito à igualdade jurídica dos Estados, conforme a tradição oriunda da Segunda Conferência da Haia. 24 Uma vez em Paris, Calógeras procurou dar sentido a esse discurso se mostrando contrário à tendência que havia de classificar os países em duas categorias: os países de “interesses gerais” e os de “interesses particulares” ou “limitados”. Segundo registrou em seu diário da Conferência, várias vezes Calógeras tentou mostrar, em seus contatos com autoridades européias, como era “ilógico proclamar o princípio da Liga das Nações, cuja base é a igualdade delas perante o Direito, e negá-lo na aplicação”.25 Contudo, ao combater o comportamento das principais potências aliadas de pretenderem alijar os demais países do processo de tomada de decisões, que implicava também a exclusão do Brasil, Calógeras não escondia por outro lado a esperança de ver o Brasil se projetar com destaque na arena internacional. No exame preparatório dos vários problemas que se delineavam para o país na Conferência, Calógeras dizia que, mesmo nas questões mais peculiares à Europa, o Brasil não poderia ser indiferente caso não quisesse fechar, “por inércia própria”, a porta que se abria “de par em par para nosso ingresso como grande potência na política mundial”.26 Essa conduta aparentemente contraditória, ou seja, a defesa dos direitos das potências menores concomitante à aspiração de conquistar um status equivalente ao das grandes potências, iria permear toda a política brasileira na Conferência da Paz. Diante da hipótese levantada nas conferências preliminares de permitir ao Brasil ter somente um delegado plenipotenciário nas sessões plenárias da Conferência, Domício da 23 Antonio G. de Carvalho, Calógeras (SP, Cia.Ed.Nacional, 1935), passim. 24 Anais da Câmara dos Deputados (1918), vol.XIV (RJ, Imprensa Nacional, 1920), sessão de 28 dez. 1918, p.238-240. 25 Cf. “Conferência da Paz: Diário”, in Roberto Simonsen et alii, Calógeras na opinião de seus contemporâneos (SP, Tipografia Siqueira, 1934, p.59-78), p.66. 26Id., p.64. Gama buscou o apoio dos Estados Unidos para aumentar a representação brasileira. 27 Com efeito, na reunião de 14 de janeiro de 1919 do Conselho Superior de Guerra Aliado, confirmou-se que dos países beligerantes que haviam tomado parte menos direta na guerra, somente ao Brasil seria conferido o privilégio de se fazer representar por três delegados, sob a alegação de que a cifra de sua população dava ao Brasil uma condição diferenciada diante de outros países que se achavam em circunstâncias idênticas, porém com população muito menos densa. 28 A imprensa francesa, no dia seguinte, criticou duramente essa decisão, atribuída à intervenção pessoal do Presidente norte-americano Woodrow Wilson, afirmando que o Brasil não merecia esse “tratamento especial”, já que a Bélgica e a Sérvia, com perdas muito maiores durante a guerra, só poderiam ter dois delegados. 29 Em conseqüência, alguns dias depois ficou resolvido em definitivo que as grandes potências teriam cinco delegados cada uma, o Brasil, a Bélgica e a Sérvia, três delegados, e os demais países um ou dois delegados. Calógeras considerou ser esse “triunfo diplomático completo” o resultado da ação conjunta dos Estados Unidos e do Brasil, e que, com isso, “entrávamos para a Sala das Conferências com prestígio maior, realçado por uma vitória indiscutível, que nos coloca entre as maiores Potências, até que nos considerem, de fato, e é o que se dará, se Deus quiser, Grande Potência da mesma plana, do ponto de vista do Direito Internacional”.30 Consagrando o princípio da classificação das potências, o artigo 1º do regulamento da Conferência, aprovado na primeira sessão plenária, em 18 de janeiro de 1919, instituía que as potências com “interesses gerais” tomariam parte em todas as sessões e comissões, ao passo que as potências com “interesses limitados” só participariam das sessões em que fossem discutidas questões que as interessassem diretamente. 31 Esse dispositivo, segundo Calógeras, seria “a exclusão, nas comissões, de todos os povos menos os chamados grandes”.32 Em resposta à proposta feita conjuntamente por Calógeras e Olinto de Magalhães, Ministro em Paris, de fazer oposição ao artigo 1º do regulamento. 33 Domício da Gama, preocupado em não entrar em atrito com seus amigos norte-americanos, manifestou-se contra. Para Domício, convinha ponderar o seguinte: 1º) na realidade, cabia às nações vencedoras o principal papel naquela assembléia; 2º) sendo convidado para um congresso, cujo programa não fora chamado a colaborar, não cumpria ao Brasil reclamar contra seus 27 Cf. F. Vinhosa, op.cit., p.194-196. 28 Jornal do Commercio, 15 jan. 1919, p.1. 29 Magalhães a Gama, teleg., Paris, 15 e 16 jan. 1919, AHI 227/3/3. 30 “Conferência da Paz: Diário”, op.cit., p.67. 31 “Protocole nº 1 de la Conférence des Préliminaires de Paix”, séance plénière du 18 janvier 1919, AHI 273/2/14. 32 Pandiá Calógeras, “O Brasil e a Sociedade das Nações”, in Calógeras, Res nostra... (SP, Irmãos Ferraz, 1930), p.162. 33 Calógeras e Magalhães a Gama, teleg., Paris, 18 jan. 1919, AHI 227/3/3. termos; 3º) esses termos eram talvez prudentes, se visavam a evitar o perigo da influência nas deliberações e nos votos de interesse político avassalador; 4º) a marcha dos trabalhos seria demorada se desde o começo se entrasse a discutir e a reivindicar um direito fundado, mas dificilmente atendível naquele momento; e 5º) uma outra atitude poderia prejudicar o êxito das reclamações concretas que interessavam mais especialmente ao Brasil. 34 Essas reclamações concretas às quais se referia Domício da Gama eram basicamente duas: o pagamento pela Alemanha de depósitos relativos a venda de café do Estado de São Paulo no início da guerra e a questão da propriedade dos navios ex-alemães, apreendidos em portos brasileiros, como se verá a seguir. 35 Apesar das recomendações de Domício, que não desejava comprometer “nossa situação de amigos agradecidos”,36 na manhã do dia 27 de janeiro, em reunião em separado dos delegados latino-americanos, Calógeras, fazendo-se líder do grupo, defendeu a tese do não-reconhecimento nem de grandes nem de pequenas potências, argumentando que mesmo se os interesses eram de fato desiguais, as soberanias deveriam ser consideradas iguais. No mesmo dia, Calógeras e Magalhães participaram de reunião de coordenação entre os países de “interesses limitados”, destinada a articular uma ação conjunta no caso da representação nas comissões, e insistiram naquela tese. Àquela altura, as pressões por mudanças no artigo 1º já haviam sortido algum efeito e as grandes potências se mostravam dispostas a aceitar a presença das potências menores nas diversas comissões da Conferência. 37 Com a chegada a Paris de Epitácio Pessoa e dos demais membros da delegação brasileira, em 28 de janeiro, já havia sido estabelecido que o Brasil iria participar, como único representante latino-americano, da comissão encarregada de discutir e propor a organização da Liga das Nações. A delegação completa do Brasil à Conferência da Paz ficou assim constituída: Epitácio Pessoa, João Pandiá Calógeras, Olinto de Magalhães e Raul Fernandes, delegados plenipotenciários; Rodrigo Otávio de Langaard Menezes, consultor jurídico; Comandante Malan d’Angrogne, consultor militar; capitão-de-fragata Armando Burlamaqui, consultor naval; Hélio Lobo, secretário-geral; e mais sete secretários e oito adidos. 38 A linha de ação que o Brasil iria seguir na Conferência já vinha sendo maturada na Chancelaria desde algum tempo. Em abril de 1918, um memorial do Itamaraty, de autor desconhecido, tecia considerações a respeito de assuntos que interessavam à política de 34 Gama à Legação em Paris, teleg., RJ, 23 jan. 1919, AHI 227/3/15. 35 Maiores detalhes sobre o encaminhamento dessas duas questões podem ser encontrados em: Epitácio Pessoa, Pela verdade (RJ, Francisco Alves, 1925), p.9-42; Mensagem de Epitácio Pessoa ao Congresso em 3 maio 1920, in: Mensagens Presidenciais: 1919-1922 (Brasília, Câmara dos Deputados, 1978), p.110-140; Amado Cervo & Clodoaldo Bueno, História da política exterior do Brasil (SP, Ática, 1992), p.198-201; F. Vinhosa, op.cit., p.211-231; ver também documentos diversos sobre o assunto nos volumes AHI 273/2/11 e 273/2/13. 36 Gama a Magalhães, teleg., RJ, 30 jan. 1919, AHI 227/3/15. 37 Calógeras, Res nostra..., op.cit., p.162-163. 38 “Composition de la Délégation du Brésil, Hotel Plaza Athénée”, AHI 273/2/14. liqüidação de guerra, com referência a interesses do Brasil. O texto, cuja leitura basta por si, dizia: “Nossa política definitivamente fechada com os Estados Unidos é a que melhor pode nos servir. A questão de nação satélite, sempre levantada, é puro e perfeito exagero de terceiro em detrimento de nossos reais interesses: de fato, em política nós temos procurado sempre acompanhar a orientação dos Estados Unidos, e isso nos tem servido para concertar muita cousa. Amapá, Acre, Peru, Panamá, questão Alsop, etc., etc. (...) O princípio da igualdade das nações soberanas não suprime a hierarquia e a categoria dentro dessa igualdade, e não são equívocas as demonstrações desse modo de pensar nos atos, nos gestos, nos discursos dos grandes responsáveis pela política do mundo”.39 1.3. Epitácio Pessoa e a comissão da Liga das Nações A idéia de se criar uma organização internacional com o intuito de preservar a paz entre os Estados e impedir a eclosão de novas guerras começou a ganhar vulto no início daPrimeira Guerra Mundial, tendo por base a adoção de princípios tais como a diplomacia aberta, o desarmamento, a arbitragem, a segurança coletiva e a cooperação econômico-social. 40 Em sua mensagem dirigida ao Congresso norte-americano, em 8 de janeiro de 1918, conhecida como os “Quatorze Pontos”, o Presidente Wilson defendeu o estabelecimento de uma associação internacional de países com esses objetivos. O 14º ponto de Wilson dizia textualmente: “Uma associação geral de nações deve ser formada sob pactos específicos com o propósito de fornecer garantias mútuas de independência política e integridade territorial para grandes e pequenos Estados indistintamente”.41 A comissão da Liga das Nações reuniu-se pela primeira vez em 3 de fevereiro de 1919, no Hotel Crillon, e dela faziam parte dez representantes das cinco grandes potências (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão) e cinco representantes das potências menores (Brasil, Bélgica, Sérvia, Portugal e China). 42 Epitácio Pessoa, à semelhança de Calógeras, tivera a impressão geral de que em Paris tudo seria decidido exclusivamente pelas grandes potências, de acordo com seus interesses ou pontos de vista individuais, sendo a presença das pequenas nações destinada 39 Memoriais primitivos, AHI 273/2/13. 40 Frank P. Walters, A history of the League of Nations (London, Oxford Univ. Press, 1952), vol.I, p.15-24. 41 F.Hartmann (Ed.), Basic documents of international relations (Westport, Greenwood Press, 1985), p.46. 42 Harold W.Temperley (Ed.), A history of the Peace Conference of Paris (London, Oxford Univ. Press, 1969, 6 v.), vol.VI, p.434. apenas a dar uma “aparência liberal” à organização da Conferência.43 Em virtude disso, Epitácio se uniu aos protestos do grupo de potências menores para aumentar em quatro o número de seus representantes na comissão da Liga das Nações, o que acabou sendo afinal aceito com a admissão, a partir da sessão de 6 de fevereiro, da Grécia, Tchecoslováquia, Polônia e Romênia. 44 A propósito do projeto britânico de reservar somente às grandes potências a composição do Conselho Executivo da projetada Liga, limitando a participação dos demais países às discussões em que fossem parte diretamente interessada na questão, Epitácio Pessoa se opôs, pleiteando que todos os países tivessem representação permanente. Epitácio afirmara, na sessão de 4 de fevereiro da comissão, que pelo projeto britânico o Conselho não seria um órgão da Liga das Nações, mas “um órgão de cinco nações, uma espécie de tribunal”, ao qual todos teriam de se submeter. 45 Naquele momento, o Brasil firmou posição pela igualdade dos Estados e contra as fórmulas discriminatórias que estatuíam formalmente uma distinção entre países de primeira e de segunda classe. Enquanto isso, prosseguiam os contatos entre as delegações brasileira e norte-americana em Paris. Em um encontro com Epitácio, Wilson chegou a pedir notícias de Domício da Gama, aparentemente surpreso por sua ausência na Conferência. Epitácio informou então que havia recebido a recomendação de apoiar os Estados Unidos em assuntos de seu interesse e que esperava também o auxílio da delegação norte-americana ao Brasil. 46 Essa política de auxílio recíproco era visível mesmo nas matérias mais acessórias. Segundo um informe do Jornal do Commercio, durante a terceira sessão da comissão, Epitácio apresentou uma proposta na qual sugeria que se adotasse a expressão “Liga dos Estados” ou “União dos Estados”, em vez de “Liga” ou “Sociedade das Nações”. Wilson, achando razoável a mudança, ponderou que se conservasse a denominação de “Liga das Nações” por esta já ser uma expressão popular e consagrada pelo uso, solicitando enfim que não se insistisse na modificação, o que se fez, retirando Epitácio a sua proposta. 47 A comissão encerrou a primeira fase de seus trabalhos em 13 de fevereiro, apresentando à apreciação pública um projeto de Pacto da Liga das Nações que foi lido por Wilson na sessão plenária da Conferência no dia seguinte. O projeto estabelecia que as potências menores teriam direito a quatro representantes no Conselho Executivo da Liga e que os quatro primeiros países a ocuparem esses postos, em caráter não permanente, seriam designados pela Conferência da Paz. Diante disso, Epitácio comunicou a Domício da Gama 43 Pessoa a Gama, teleg., Paris, 1 fev. 1919, reproduzido in Epitácio Pessoa, Obras completas, vol.XIV (RJ, INL, 1961), p.8. 44 “Rapport présenté à la Conférence par la Commission de la Société des Nations”, AHI 273/2/20. 45 Pessoa a Gama, teleg., Paris, 5 fev. 1919, in E. Pessoa, Obras completas, vol.XIV, op.cit., p.9, e Denys P. Myers, “Representation in League of Nations Council”, American Journal of International Law (vol.20, nº 4, October 1926, p.689-713), p.695. 46 Pessoa a Gama, teleg. confidencial, Paris, 7 fev. 1919, AHI 273/2/9. 47 Jornal do Commercio, 7 fev. 1919, p.1. a conveniência de que ele e Edwin V. Morgan, Embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, telegrafassem a Wilson e a Robert Lansing, Secretário de Estado, para que fosse o Brasil um dos escolhidos. Epitácio lembrou na ocasião o prestígio que tal designação traria, pois o Brasil, único país beligerante na América do Sul, tinha a seu favor “títulos especiais” que o credenciavam ao posto. 48 Cumpre mencionar, no decorrer da Conferência, o esforço brasileiro para ampliar ainda mais a participação das potências menores nas diversas comissões. No início de março, por exemplo, confirmando de certa forma seu papel de liderança no assunto, o Brasil garantiu na distribuição dos lugares sua presença na comissão econômica, posteriormente desdobrada em quatro subcomissões. Sobre esse fato, Epitácio fez questão de ressaltar que somente a Bélgica tinha-se feito representar em maior número de comissões do que o Brasil. 49 A segunda série de reuniões da comissão da Liga das Nações iniciou-se a partir de 22 de março, com o objetivo de discutir as emendas suscitadas pelo debate que se seguiu à apresentação do projeto de Pacto. Wilson, que havia viajado aos Estados Unidos para avaliar as reações internas às negociações de paz, retornou trazendo várias sugestões de emendas, entre elas a de se incluir uma referência explícita à compatibilidade entre a Doutrina Monroe e o Pacto, exigência do Senado norte-americano, de maioria republicana. 50 Quando a questão foi levada à comissão, no dia 10 de abril, ficou claro que não se tratava de um apego a princípios por parte do Presidente Wilson, mas sim de uma necessidade política vital. Sabia-se, aliás, das restrições na Europa e na América Latina à validade universal da Doutrina Monroe. De qualquer modo, após uma dramática discussão, durante a qual Epitácio Pessoa permaneceu em silêncio todo o tempo, Wilson conseguiu que se formalizasse o reconhecimento da Doutrina Monroe no artigo 21 do Pacto da Liga, que ficou assim redigido: “Os compromissos internacionais, tais como os tratados de arbitragem, e os acordos regionais, como a doutrina de Monroe, destinados a assegurar a manutenção da paz, não serão considerados como incompatíveis com nenhuma das disposições do presente Pacto”.51 Frank Walters questionou, com relação a esse episódio, se o artigo 21 teria sido 48 Pessoa a Gama, teleg. confidencial, Paris, 13 fev. 1919, AHI 273/2/9; também in Obras completas, op.cit., p.14. 49 Pessoa a Gama, telegramas, Paris, 4 mar. 1919, 11 mar.1919 e 13 mar. 1919, todos in Obras completas, op.cit., p.18-20; “Protocolos das reuniões das potências com interesses particulares”, AHI 273/2/15. 50 A.LeRoy Bennett, International organizations: principles and issues (Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1988), p.23. 51 Emilio R. Leuchsenring, La doctrina de Monroe y el Pacto de la Liga de las Naciones (Habana, Siglo XX, 1920), p.16-18. mesmo aceito caso fosse outro o país latino-americano representado na comissão e não o Brasil, mais propício a concordar com as teses norte-americanas. 52 Para Afonso Arinos de Melo Franco, Epitácio estava preso à defesa de “modestos interesses econômicos” que dependiam, em última análise, da boa vontade do Presidente Wilson. Afonso Arinos foi taxativo: “O que Epitácio não disse então para não indispor o Presidente Wilson contra os nossos navios apreendidos e o café estocado - mesquinhas causas! - não deve deixar de provocar a atenção e a ação dos estadistas contemporâneos. Saber distinguir entre a grandeza histórica dos Estados Unidos e os riscos de seus interesses capitalistas”.53 Na primeira dessas “mesquinhas causas”, tratava-se de garantir o recebimento do depósito feito na casa bancária Bleischroeder, de Berlim, ao iniciar-se a guerra, resultante da venda do café que o Estado de São Paulo possuía estocado em alguns portos europeus como garantia de dois empréstimos por ele contraídos. A partir de gestões conduzidas por Epitácio Pessoa, no âmbito da Comissão Financeira, obteve-se o reconhecimento da responsabilidade alemã pelo pagamento. A questão foi resolvida favoravelmente pelo Tratado de Versalhes, pois “à Alemanha foi determinada a restituição da importância referente à venda do café ao câmbio do dia do depósito e com os juros convencionados, a partir do dia do depósito”.54 O artigo 263 do Tratado, um dos poucos que fazia menção direta ao Brasil, dizia textualmente: “A Alemanha dá garantias ao governo brasileiro de que todas as somas provenientes da venda do café pertencente ao Estado de São Paulo nos portos de Hamburgo, Bremen, Antuérpia e Trieste, que foram depositadas no Banco Bleischroeder de Berlim, deverão ser reembolsadas com juros à taxa ou taxa que houverem sido convencionadas. A Alemanha, tendo-se oposto à transferência, em tempo útil, das ditas somas ao Estado de São Paulo, garante também que o reembolso será efetuado à taxa cambial ao dia do depósito”.55 A segunda questão teve um encaminhamento mais complicado. O Brasil contava, em julho de 1916, com um frota mercante de 169 navios de alto-mar, totalizando 297.800 toneladas, dos quais 63 pertenciam ao Lloyd Brasileiro, 23 à Companhia Comércio e Navegação, 20 à Companhia Nacional de Navegação Costeira, e os restantes a companhias menores. Ao romper relações diplomáticas com a Alemanha, em abril de 1917, o Brasil 52 F.P. Walters, op.cit., p.56. 53 Afonso Arinos de Melo Franco, “As relações exteriores na década de 1920-1930”, in As relações exteriores na Primeira República, vol.III (SP, pesquisa bibliográfica/INSIDE, 1983, 6 v.), p.11-13. 54 Cervo & Bueno, op.cit., p. 198-199. Ver também Vinhosa, op. cit., p. 211-231. 55 O texto completo do Tratado de Versalhes pode ser acessado no site da Internet mantido pelo Departamento de História da Universidade de San Diego: <http://ac.acusd.edu/History/text/versaillestreaty/vercontents.html>. havia arrestado, a título de “posse fiscal”, 46 navios mercantes alemães surtos em portos brasileiros, o que representava, portanto, mais de um quarto da Marinha mercante brasileira. 56 Destes, 30 foram posteriormente afretados à França, mediante convênio entre os dois países. Durante a Conferência, a comissão de finanças em dado momento resolveu que todos os navios alemães apreendidos seriam partilhados entre os aliados na proporção de suas perdas marítimas. Essa decisão iria atingir duramente o Brasil, que havia capturado tonelagem maior do que suas perdas e seria então obrigado a ceder navios a países que haviam perdido mais na guerra, como se pode ver pela tabela a seguir: PROPORÇÃO ENTRE PERDAS MARÍTIMAS E NAVIOS ALEMÃES CAPTURADOS País interessado Perda (toneladas) Captura (toneladas) Inglaterra 8.000.000 500.000 França 930.000 50.000 Estados Unidos 430.489 628.000 Brasil 25.000 216.000 Fonte: Francisco L. T. Vinhosa. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial. RJ, IHGB, 1990, p. 225. Os Estados Unidos estavam na mesma situação do Brasil (tonelagem de captura maior do que as perdas) e tinham todo o interesse em não permitir a adoção de uma medida que favoreceria claramente a Inglaterra e a França. Quando, em abril de 1919, cogitou-se da possibilidade de que o Brasil não assinasse o Tratado de Versalhes caso as resoluções sobre os navios ex-alemães não fossem alteradas, Epitácio Pessoa escreveu a Woodrow Wilson afirmando que aquela era “uma questão capital para o Brasil” e que, desse modo, fazia um apelo ao governo norte-americano, “seu antigo amigo e aliado”, a fim de que este intercedesse em favor da tese brasileira. Em sua resposta, Wilson prometeu tratar do assunto com a maior consideração, salientando que os Estados Unidos “jamais fariam intencional ou conscientemente qualquer coisa que pudesse prejudicar os interesses brasileiros”.57 E, como se sabe, ao amparo dos princípios contidos no artigo 297 do Tratado de Versalhes, prevaleceu afinal a tese do Brasil de não aceitar a partilha dos navios na proporção das perdas marítimas de cada país, como pretendia a França. Quanto à indicação do Brasil como membro temporário do Conselho da Liga, 56 Cf. Relatório do MRE, 1918, p. 66 e 71. Ver também Ministério da Marinha, História naval brasileira (RJ, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1985, vol. 5, tomo II), p. 246. 57 E. Pessoa, in Obras completas, op.cit., p. 209-213. Epitácio teve ainda de solicitar a ação urgente de Domício da Gama junto à delegação norte-americana para esse fim. 58 Domício fez saber a Polk, Subsecretário de Estado, a “importância política” que o Brasil ligava a essa representação, declarando-se “ansioso” pelo resultado. 59 A seleção dos quatro países de “interesses limitados” a ocuparem assentos não permanentes no Conselho da nova organização foi decidida pelas grandes potências em conversações exploratórias no mês de abril. Tendo Robert Cecil, delegado britânico, concordado com a designação de pelo menos um país da América Latina, o coronel Edward House, conselheiro particular de Wilson, indicou o Brasil para o posto. A notícia foi comunicada em primeira mão a Epitácio por Stephen Bonsal, intérprete confidencial de Wilson na Conferência. 60 Assim, em 28 de abril de 1919, na sessão plenária que aprovou o texto final do Pacto da Liga das Nações, foram homologadas as indicações do Brasil, da Bélgica, da Grécia e da Espanha. O Conselho ficaria então composto por cinco membros permanentes (as grandes potências: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão) e quatro membros não permanentes. A entrada do Brasil para o Conselho da Liga, conseguida, portanto, graças à ação providencial dos Estados Unidos, foi interpretada pelo governo brasileiro como uma grande vitória, “honra vivamente ambicionada por todas as nações”.61 Pode-se afirmar que o Brasil adotou com relativo sucesso uma estratégia de troca com os Estados Unidos na Conferência da Paz, constituindo tacitamente umaparceria assimétrica instrumental à defesa de seus interesses materiais e ao fortalecimento de seu prestígio internacional. Epitácio Pessoa, cultor dessa política, barganhou a ajuda norte-americana nas questões concretas de interesse capital para o país, fazendo algumas concessões em relação ao Pacto da Liga. O limite dos protestos do Brasil era dado somente pela sua condição de aliado fiel dos Estados Unidos. Quanto ao discurso em prol dos direitos das potências menores, cristalizado no princípio da igualdade dos Estados (idealismo), o Brasil terminou por negá-lo na prática aceitando o princípio inverso, o da classificação das potências (realismo), expresso na constituição do Conselho da Liga, que concedia unicamente às grandes potências o privilégio de ali permanecerem ad infinitum. Em outras palavras, enquanto sua própria participação nas decisões da Conferência era limitada pelo controle das grandes potências, o Brasil se uniu ao coro de protesto dos pequenos Estados, mas diante de um fato consumado que lhe foi dado pela dinâmica internacional, com a possibilidade de vir a pertencer ao órgão de cúpula da Liga, o Brasil se rendeu à sua aspiração de grandeza e aceitou de bom grado uma posição diferenciada no concerto das nações. 58 Pessoa a Gama, teleg. urgente, Paris, 12 abr. 1919, in Obras completas, op.cit., p.30. 59 Gama a Ipanema, teleg., RJ, 14 fev. 1919; Gama a Ipanema, teleg., RJ, 13 abr. 1919, AHI 235/3/8. 60 Stephen Bonsal, Unfinished business (Garden City, Doubleday, Doran, 1944), p.204. 61 Pessoa a Gama, teleg., Paris, 2 jun. 1919, in Obras completas, op.cit., p.51. 1.4. O debate interno sobre a adesão do Brasil à Liga A opinião pública mundial manifestou durante a Grande Guerra o seu descontentamento com os métodos tradicionais de condução da diplomacia, como as políticas de equilíbrio de poder, os “conchavos de gabinete”, o sistema de alianças e a corrida armamentista, que se acreditava terem inexoravelmente levado o mundo à hecatombe. Dizia-se também que a aplicação do direito internacional esbarrava no princípio da soberania absoluta dos Estados, que não admitiam submeter-se a uma autoridade supranacional, argumento esse comumente utilizado por juristas internacionalistas. No Brasil, esse tipo de abordagem esteve representado, entre outros, por Antonio Moreira de Abreu, que, escrevendo para o Diário de Minas, em 1918, preconizava o estabelecimento de um órgão protetor nas relações internacionais, “de um poder superior à vontade dos governos dos Estados singulares”, que viesse a traçar a rota jurídica a seguir na órbita internacional. 62 Por este prisma, como assinala Lynn Miller, a Liga das Nações teria inaugurado o “desafio do século XX à ordem de Westfália”, em referência à paz concluída após a Guerra dos Trinta Anos, em 1648, quando os Estados europeus se reconheceram mutuamente como unidades políticas soberanas e independentes. 63 Contudo, a despeito de se apresentar na época como um experimento revolucionário, a Liga das Nações não representou uma alteração fundamental no sistema de Estados soberanos. Para Inis Claude, seus fundadores sancionaram o sistema interestatal vigente, com o seu núcleo na Europa, a inviolabilidade das soberanias e o predomínio político das grandes potências. 64 A Liga, por conseguinte, possuía também uma natureza eminentemente conservadora, resultado de concessões de parte a parte entre as potências vitoriosas sobre como remodelar a nova ordem mundial do pós-guerra. A estrutura da organização reproduziu os paradoxos existentes entre as tendências históricas de longa duração e as pressões e os interesses de curto prazo dos Estados. Delineou-se, dessa forma, o arcabouço político-ideológico implícito na constituição dos três órgãos principais da Liga: o Conselho, a Assembléia e o Secretariado. O Conselho, órgão restrito, incumbido da gerência da paz, foi por assim dizer uma nova edição revista do Concerto Europeu, destinada a garantir às grandes potências o controle sobre o poder de decisão da Liga; a Assembléia, aberta e universal, atendeu às reivindicações liberais e democráticas de debate público e de diplomacia parlamentar, consoante à tendência 62 Diário de Minas, 4 jul. 1918, artigo de Antonio Moreira de Abreu, in A.M. Abreu, A Liga das Nações (RJ, Papelaria Brasil, 1919), p.13. 63 Lynn H. Miller, Global order: values and power in international politics (Boulder, Westview Press, 1990), p.43-52. 64 Inis L. Claude, Jr., Swords into plowshares (New York, Random House, 1971), p.54. esboçada nas duas Conferências da Haia; o Secretariado, por fim, seria o escritório administrativo encarregado de coordenar a cooperação amistosa entre os Estados nas áreas técnicas de interesse comum, como já vinha ocorrendo por meio de agências internacionais tais como a União Telegráfica Internacional e a União Postal Universal. 65 A adesão do Brasil à Liga das Nações recebeu algumas críticas internas. O Deputado Maurício de Lacerda, por exemplo, contrário ao alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, entendia que a Liga já tinha nascido “falida, incapaz, desmoralizada pelo internacionalismo imperialista que introduziu em cada um de seus artigos”. Lacerda previa que a Liga seria formada primordialmente entre três ou quatro grandes países, aos quais iriam-se agregando os pequenos, o que lhe induzia a pensar que a Liga seria, enfim, um mero “instrumento de captação dos fracos na rede dos fortes”.66 O cão da guerra contido pela focinheira da Liga das Nações. Extraído de Literary Digest, 13 de setembro de 1919. O eixo central do debate girou em torno das eleições presidenciais de 1919, disputadas entre Rui Barbosa, pela oposição, e Epitácio Pessoa, candidato oficial, este último tendo sido eleito em 13 de abril quando ainda se encontrava em Paris. Essa circunstância trouxe para o âmbito da política interna os temas da participação brasileira na Conferência da Paz e, de forma mais ampla, da orientação de política externa seguida pelo governo. Em sua primeira mensagem ao Congresso Nacional como Presidente da República, Epitácio Pessoa fez uma longa explanação sobre os esforços da delegação brasileira na 65 Id., ibid., p.43. 66 Anais da Câmara dos Deputados (1919), vol.I (RJ, Imprensa Nacional, 1920), sessão de 15 maio 1919, p.279-289. questão do café e, principalmente, na dos navios ex-alemães. Somente no parágrafo final da parte relativa às relações exteriores algumas palavras foram dedicadas à organização da Liga das Nações e à colaboração do Brasil, que teria estado “sempre ao lado da causa dos fracos, de todas as reivindicações justas, de todos os nobres ideais”, sendo devido aos seus próprios méritos e à sua “elevação moral” que se obteve a “honra insigne” de figurar entre os nove membros do Conselho. 67 Rui Barbosa contestou a interpretação oficial de que o Brasil havia granjeado uma elevada posição internacional como líder das pequenas nações na Conferência da Paz. Fazendo um paralelo com a sua própria atuação na Segunda Conferência da Haia, Rui centralizou sua argumentação nos reparos à política de “protetorado” seguida pelo Brasil, afirmando então: “Brasileiro sou; e, porque sou brasileiro, não abato a minha Pátria a nenhuma amizade internacional por mais alta, por mais gloriosa, por mais benfazente que seja. (...) Entre os Estados Unidose o Império Britânico, nenhuma tendência nutro, que me levasse jamais a converter o Brasil no protegido internacional desta ou daquela. Não. O que eu quereria, era ver a minha Pátria igualmente acatada por ambas, mantendo para com as duas essa independência, estritamente observada, que as menores de todas as nações, as Bélgicas e as Suíças, logram manter, quando é o povo que exerce a soberania. (...) Antes de amigo dos Estados Unidos, ou de qualquer outra nação do mundo, amigo sou do Brasil”.68 O Imparcial, jornal vinculado à campanha de Rui Barbosa, dedicou particular atenção à defesa do princípio da soberania nacional no tocante à Liga das Nações. Em editorial de 3 de maio de 1919, o jornal sustentou que na Conferência em Paris havia prevalecido a “oligarquia das grandes potências” na condução dos trabalhos, restando aos demais países a função de “penetras”. A Liga seria uma “sociedade das grandes e das pequenas nações” e seu Conselho composto de uma maioria formada pelos big five e uma “minoria de representantes transitórios da poeira impalpável das soberanias secundárias”. Assim, ao entrar para o Conselho, o Brasil aceitava a sua classificação “entre os povos de soberania subalterna” em relação às potências de primeira grandeza. Finalmente, levantando objeções jurídicas relativas à compatibilidade entre o Pacto da Liga e a Constituição brasileira, O Imparcial criticou o governo por ter aderido a um acordo internacional que transferia ao estrangeiro “atributos essenciais da nossa soberania”.69 Como resposta, o governo brasileiro fez publicar no Jornal do Commercio, de 6 de maio, um artigo de Clóvis Bevilaqua, consultor jurídico do Itamaraty. Nesse artigo, 67 “Mensagem do Presidente da República ao Congresso Nacional em 3 de maio de 1920”, in Mensagens Presidenciais:1919-1922, op.cit., p.141. 68 Rui Barbosa, “O caso internacional”, in Obras completas, vol.XLVI, op.cit., p.244 e 257. 69 “A Liga das Nações e a soberania nacional”, O Imparcial, editorial de 3 maio 1919; ver também O Imparcial de 4 maio 1919, “A vitória e os princípios”, e de 7 maio 1919, “Renúncia da soberania”. Bevilaqua defendeu o princípio da autolimitação e procurou legitimar a aceitação em tese de regras internacionais que pudessem porventura criar restrições à soberania de um Estado. Conforme se pode depreender de sua análise, a reciprocidade entre as partes contratantes era a chave da fundamentação jurídica que justificava a solidariedade do Brasil aos aliados no caso da Liga: “É bem de ver que nações ciosas de sua dignidade não entrariam para essa agreminação, por mais elevados que fossem os intuitos visados, se tivessem de abdicar de sua soberania, de aceitar uma posição que as diminuísse moral ou periodicamente. O Brasil aceita, em benefício da concórdia dos povos, os deveres que a Liga impõe, como os aceitam os Estados Unidos, a França, a Inglaterra e todas as potências que se congregaram para criar obstáculos à guerra”.70 Aníbal Pinheiro, jornalista enviado por O Imparcial a Paris, após estudar as atribuições previstas no Pacto da Liga para o Conselho e a Assembléia, concluiu que existia uma “supremacia absoluta” das cinco grandes potências nas deliberações da organização. Pinheiro estava convencido de que a representação brasileira no Conselho tinha sido “uma isca que nos atiraram, em bom anzol, para que subscrevêssemos esse pacto inominável”.71 Tendo sido incorporado à Parte I do Tratado de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919, o Pacto da Liga das Nações foi levado ao Congresso Nacional para a sua ratificação em novembro de 1919, o que se deu sem maiores dificuldades. O deputado Joaquim Osório, simbolizando o estado de espírito da maioria dos parlamentares, pronunciou-se a favor do Tratado por entender que não havia nele uma só medida que contrariasse os interesses do Brasil, muito pelo contrário, todas as medidas, segundo ele, correspondiam às aspirações brasileiras e aos “sentimentos gerais da humanidade”.72 O nascimento oficial da Liga das Nações, porém, só se deu em 10 de janeiro de 1920, quando da entrada em vigor do Tratado de Versalhes. Em suma, o Brasil ingressou na Liga das Nações como membro originário por ter sido essa a conseqüência natural de sua decisão de integrar a aliança das potências vitoriosas na Primeira Guerra Mundial. As críticas da oposição, realizadas no contexto da campanha presidencial de 1919, denunciaram a posteriori a acomodação pragmática do Brasil na questão do Conselho. O apoio brasileiro à organização pela qual se bateu o Presidente Wilson não deixou de ser, por outro lado, mais um capítulo da política de aproximação entre o Brasil e os Estados Unidos na República Velha. 70 “A Liga das Nações e a soberania dos Estados”, artigo de Clóvis Bevilaqua, Jornal do Commercio, 6 maio 1919. 71 “A Liga das Nações: os seus poderes orgânicos”, artigo de Aníbal Pinheiro, O Imparcial, 10 maio 1919. 72 Anais da Câmara dos Deputados (1919), vol.X (RJ, Imp. Nacional, 1920), sessão de 7 nov. 1919, p.562-575. CAPÍTULO 2 LEALDADE E PRESTÍGIO NOS PRIMEIROS ANOS EM GENEBRA 2.1. A inserção do Brasil na ordem internacional de Versalhes As transformações engendradas pela Primeira Guerra Mundial tiveram um impacto duradouro no curso da história contemporânea. Suas conseqüências não se resumiram às alterações territoriais que redesenharam o mapa-múndi nem aos 440 artigos do Tratado de Versalhes, que os alemães receberam como um Diktat. Sobre os efeitos imediatos da guerra, bastaria dizer que o conflito assinalou a queda de pelo menos quatro grandes impérios: o Império Austro-Húngaro, o Império Alemão, o Império Russo e o Império Otomano. 73 Visto com o distanciamento dos olhos de um historiador, parece lícito afirmar que o mundo no pós-guerra presenciou o advento de dois movimentos de reação à velha ordem colonial eurocêntrica, ambos acenando com a realização da utopia e a superação dos males do passado, consubstanciados em ideologias globalizantes e sedutoras: de um lado, Wilson, trazendo para a Europa o sonho americano da democracia e da autodeterminação dos povos; de outro, Lênin, com o chamado à revolução socialista que viria a pôr fim nas ambições imperialistas das potências capitalistas. Tanto Wilson como Lênin, apesar de suas divergências, criticavam o velho sistema europeu de equilíbrio de poder e apelavam diretamente à ação dos povos para a sua redenção, fazendo-se apóstolos de um novo tempo de paz universal. 74 A ordem internacional que emergiu de Versalhes, no que se refere à diplomacia, marcou-se pelo embate entre forças contrárias, entre o velho e o novo, entre a conservação e a mudança. O período entreguerras pode ser caracterizado como uma era de crises e inquietações nas relações internacionais, já agora ampliadas para a dimensão de um sistema global, mas ainda artificialmente centradas na política européia, como se vê, por exemplo, pela escolha da cidade de Genebra, na Suíça, para a sede da recém-criada Liga das Nações. 75 A inserção do Brasil se dava em um contexto histórico profundamente alterado, 73 René Rémond, O século XX: de 1914 aos nossos dias (SP, Cultrix, 1974), p.30-31. Sobre o legado da Primeira Guerra Mundial para as relações internacionais no período entreguerras ver, entre outros, A.J.P. Taylor, The origins of the Second World War (Greenwich, Fawcett Publications, 1969), p.22-43. 74 Geoffrey Barraclough, Introdução àhistória contemporânea (RJ, Guanabara, 1987), p.113-118. 75 Uma análise mais detalhada da política internacional na Europa pós-Versalhes será feita no Capítulo 4, item 4.1. repleto de dificuldades econômicas, disputas políticas e dissensões internas. Alguns traços marcaram a política externa brasileira na década de 1920: alinhamento com os Estados Unidos e tentativa do Brasil de estabelecer uma relação especial entre os dois países; busca de reconhecimento internacional e uso da diplomacia multilateral como instrumento para fortalecer o prestígio do país no exterior; continuidade do modelo econômico de valorização do café e de estímulo à agroexportação; e resistência às propostas de desarmamento, tema dominante na agenda mundial nos anos vinte, em função da sensação de vulnerabilidade estratégica e de isolamento diplomático na América do Sul. 76 A diplomacia brasileira na época era construída grosso modo sobre o legado de dois expoentes da República Velha: o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa. Do Barão, homem pragmático, um executor mais do que um intelectual, permaneceu a idéia de “aliança não escrita” com os Estados Unidos e de restauração do status brasileiro no plano sub-regional. 77 De Rui Barbosa, mestre da retórica e acima de tudo um doutrinador, conservou-se a matriz universalista de seu pensamento jurídico-liberal, cujas diretrizes se converteram pouco a pouco em princípios “tradicionais” que à política externa cabia cultivar e preservar no relacionamento internacional. Assim, as oligarquias dominantes conduziam as relações exteriores do país baseando-se a um só tempo em uma prática realista e em um discurso idealista, tendo de recorrer às vezes a grandes malabarismos para não manchar de manifesta incoerência a reputação diplomática do Brasil no estrangeiro. Para essas oligarquias agromercantis então no poder, como assinala Clodoaldo Bueno, o Brasil era tipicamente uma “nação satisfeita”, sem ambições territoriais, de vocação pacífica e liberal, e de acordo com a divisão internacional do trabalho que lhe conferia o papel de exportador de produtos primários, notadamente o café. Além disso, o comparecimento às conferências internacionais americanas e às reuniões do Conselho da Liga das Nações dava ao Brasil “a ilusão de estar participando das decisões internacionais”. 78 Na América do Sul, buscava-se a consolidação das fronteiras e a estabilidade na Bacia do Prata, visando a conter a influência argentina nos países vizinhos. A rivalidade com a Argentina, aliás, não se limitava à luta pela supremacia regional, mas se estendia à competição por prestígio internacional na Europa e, em particular, na Liga das Nações. Parecia que o país já havia alcançado o seu ponto ótimo de desenvolvimento econômico, como país “essencialmente agrícola”, pouco restando a fazer senão garantir a defesa nacional contra agressões externas (o que alimentava certa preocupação defensiva na 76 Stanley E. Hilton, “Brazil and the post-Versailles world: elite images and foreign policy strategy, 1919-1929”, Journal of Latin American Studies, (nº 12, part II, November 1980, p.341-364), passim; Amado Cervo & Clodoaldo Bueno, História da política exterior do Brasil (SP, Ática, 1992), p.182-183; Afonso Arinos de Melo Franco, “As relações exteriores na década de 1920-1930”, in: As relações exteriores na Primeira República, vol.III (SP, pesquisa bibliográfica/INSIDE, 1983, 6v.), passim. 77 Sobre a política exterior do Barão do Rio Branco ver Bradford Burns, The unwritten alliance: Rio-Branco and Brazilian-American relations (New York, Columbia Univ. Press, 1966) e Cervo & Bueno, op.cit., p.162-181. 78 Cervo & Bueno, op.cit., p.203. área militar) 79 e desfrutar, com indisfarçável regozijo, dos ganhos simbólicos em termos de prestígio advindos da participação brasileira na Conferência da Paz de Paris. Quanto a isso, digna de nota é a viagem de regresso da França de Epitácio Pessoa, durante a qual o Presidente eleito esteve de passagem pela Bélgica, Itália, Grã-Bretanha, Portugal, Estados Unidos e Canadá. Em todos os lugares que visitou, Epitácio recebeu manifestações de apreço e de simpatia pelo Brasil que confirmavam a boa imagem do país após a guerra, fato reconhecido mesmo pelos órgãos de imprensa da oposição, dentre eles O Imparcial. 80 Durante o governo Epitácio Pessoa, foram elevadas à categoria de Embaixada as representações diplomáticas no Rio de Janeiro da Grã-Bretanha, Itália e França (1919), da Bélgica (1921), e do Japão, Argentina e Chile (1922). 81 Anote-se, ainda, a visita dos reis belgas em 1920, que no entender de Laurita Gabaglia era “uma honra sem precedentes”, 82 e a vinda de dois Secretários de Estado norte-americanos: Bainbridge Colby (1920) e Charles E. Hughes (1922). Lisonjeado por todos esses sinais de reconhecimento internacional, Epitácio não hesitou em definir as relações do Brasil com as outras nações como “excelentes”, destacando que “a situação de acatamento e prestígio” de que gozava o país no convívio internacional era “fato notório” que muito desvanecia o governo.83 O período posterior à Primeira Guerra Mundial marcou também o declínio da influência britânica e o avanço da penetração norte-americana na economia brasileira. 84 Era grande a importância atribuída pelo Brasil à cooperação com os Estados Unidos, seja pela percepção de traços distintivos comuns que colaborariam para separar os dois países da América hispânica, seja pelos laços comerciais e financeiros cada vez mais estreitos, dos quais a dependência brasileira do mercado consumidor norte-americano era apenas uma de suas facetas. Entre 1921 e 1925, 42% do total das exportações brasileiras se dirigiam aos Estados Unidos. Em 1926, essa soma equivalia a 47% do total. Segundo Victor Valla, o Brasil, disputando a posição de líder sul-americano com a Argentina, procurava prestígio, apoio, proteção e um mercado permanente para suas exportações de café, ao passo que os Estados Unidos viam o Brasil como um parceiro confiável em um continente hostil e 79 Ver Lawrence H. Hall, João Pandiá Calógeras, minister of war, 1919-1922 (PhD Dissertation, New York University, 1984). 80 Os discursos, pronunciamentos e homenagens recebidas por Epitácio Pessoa nesses países estão coligidos in Obras completas, vol.XIV (RJ, INL, 1961), p.73-134. 81 Relatório do Ministério das Relações Exteriores, anos de 1919 a 1922. 82 Laurita Pessoa Raja Gabaglia, Epitácio Pessoa: 1865-1942 (SP, José Olimpio Ed., 1951), vol.I, p.385. 83 “Mensagem ao Congresso Nacional de 3 de maio de 1922”, in Mensagens Presidenciais: 1919-1922 (Brasília, Câmara dos Deputados, 1978), p.415. 84 Cf. Cervo & Bueno, op.cit., p.183-187; Paul Singer, “O Brasil no contexto do capitalismo internacional (1889-1930)” in Bóris Fausto (org.), História Geral da Civilização Brasileira, vol.8 (SP, Difel, 1975); Emily S. Rosenberg, World War I and the growth of United States preponderance in Latin America (PhD Dissertation, State University of New York, 1973), p.76-110; e Victor V. Valla, A penetração norte-americana na economia brasileira (1898-1928) (RJ, Ao Livro Técnico, 1978). antiamericanista, além de representar um mercado promissor para seus produtos industrializados. 85 No período 1919-1930, os Estados Unidos foram de longe o principal parceiro comercial do Brasil, tanto do ponto de vista das exportações quanto das importações, com expressivo superávit para o Brasil na balança comercial. A Grã-Bretanha ainda contribuía com parcela importante das importações brasileiras,