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NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 1� Capítulo 1 Introdução As Teorias da Sistemática e da Biogeografia são comuns a todos os organismos. Portanto, não existe nenhuma justificativa para as antigas subdivisões entre Sistemática Zoológica e Botânica, Zoogeografia e Fitogeografia. A história da vida é uma só, mas o conhecimento existente sobre o que aconteceu é apenas fragmentário. Entretanto, a Sistemática e a Biogeografia podem originar hipóteses que busquem recuperar informações de como ocorreu essa história evolutiva. A evolução resultou, ao longo dos tempos, na diversidade de formas de vida, atuais e extintas. Se considerarmos a evolução, poderíamos dizer que a Sistemática seria o estudo das formas de vida no tempo. Se ao estudo adicionarmos o componente espaço, teremos a Biogeografia Histórica, que seria a análise das formas no tempo e no espaço. O objetivo da classificação seria agrupar os organismos em táxons, grupos de organismos definidos por compartilharem alguma característica em comum, que possuem ou poderiam possuir um nome. Objetivos do livro 1- Fornecer os conceitos básicos para a compreensão das teorias da Sistemática (em especial da Sistemática Filogenética) e da Biogeografia. 2- Possibilitar a comparação entre as diferentes escolas de Sistemática e Biogeografia, discutindo seus alcances e limitações. 3- Discutir as razões pelas quais os organismos se distribuem espacialmente segundo determinados padrões. 4- Fornecer fundamentos teóricos e práticos para que os interessados possam exercitar como se desenvolve uma análise sistemática e biogeográfica, e para que sejam capazes de acompanhar as discussões existentes na literatura especializada. Os conhecimentos adquiridos e as atitudes desenvolvidas serão de utilidade em outras disciplinas do currículo de Ciências Biológicas, quando várias das questões abordadas aqui poderão ser aprofundadas. A Sistemática Filogenética possibilita uma visão unificada da diversidade biológica, e o seu aprendizado pode atuar como um dos elementos integradores na formação dos profissionais das áreas biológicas. Os fundamentos da Sistemática Filogenética deveriam ser conhecidos por todos os pesquisadores interessados em realizar comparações entre características biológicas dos diferentes tipos de organismos, sejam características moleculares ou comportamentais, anatômicas ou fisiológicas, ou outras quaisquer. NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 2� O que é Sistemática? A primeira idéia que muitas pessoas têm sobre o trabalho de um sistemata, é que a ele caberia a tarefa de identificar os organismos e descrever as espécies novas. Para realizar a identificação, bastaria que o sistemata consultasse um manual de identificação, uma coleção de referência, ou um computador. Em seguida, copiaria o nome científico em uma etiqueta, que passaria a acompanhar o exemplar identificado. Uma vez obtido o nome específico, trabalhos mais “sérios” poderiam ser iniciados. Entretanto, o estudo da biodiversidade inicia-se pela Sistemática. A Sistemática Filogenética, em particular, visa reconstituir a história do grupo analisado, procurando resumir esse conhecimento através de uma classificação. Os nomes utilizados são os indexadores do conhecimento, e a classificação um sistema hierárquico de referência, onde a informação existente pode ser recuperada. Assim, o objetivo da Sistemática não é apenas descrever a diversidade existente, fornecendo um sistema geral de referência, mas também contribuir para a compreensão dessa diversidade, e fazer previsões sobre as características dos organismos. Biodiversidade Grande parte das formas de vida atuais ainda não é conhecida, ou seja, ainda não foram sequer caracterizadas, não receberam um nome. Mesmo dentre aquelas que possuem um nome, em muitos casos não se conhecem dados importantes, tais como os hábitos de vida, distribuições geográficas, vulnerabilidade às mudanças do ambiente, possíveis utilizações pelo homem. O nome das espécies parece exercer um poder mítico. Acredita-se que o simples conhecimento do nome resolve qualquer problema, quando o que importa é a informação que pode ser indexada a este nome. O nome é o indexador que facilita o acesso à informação existente. Uma primeira questão em relação à biodiversidade seria: quantas espécies de seres vivos existem no mundo? Uma visão aproximada do conhecimento atual da diversidade dos organismos viventes mostra o seguinte quadro. O que esse total de cerca de 1,5 milhões de espécies representa em termos da biodiversidade existente na terra? Sabe-se que a maior falta de dados sobre o número de espécies ocorre, principalmente, entre os animais invertebrados terrestres e marinhos, os fungos, vírus e bactérias. Por exemplo, quantas espécies de nematódeos de vida livre e parasitas existem? Certamente muito mais do que as cerca de 12.000 espécies descritas. A riqueza de espécies da região tropical há muito foi observada e registrada pelos cientistas, desde os primeiros naturalistas europeus que a conheceram. Hoje utiliza-se o termo megadiversidade tropical para expressar essa enorme diversidade. Henry Walter Bates foi um naturalista inglês que permaneceu na Amazônia, de 1848 a 1859, coletando animais para serem vendidos ao Museu Britânico. No material que ele coletou, foram reconhecidas aproximadamente 15000 espécies, das quais cerca de 8000 foram consideradas novas para a ciência. Em 1863, publicou um livro sobre essa viagem, “Um Naturalista no Rio Amazonas”, onde registrou a coleta de cerca de 550 espécies de NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 3� borboletas nas proximidades de Tefé, Pará. Para sua surpresa, verificou que existiam mais espécies de borboletas em Tefé do que em toda a Inglaterra! Tabela 1. Número de espécies descritas (segundo Parker, 1982). Táxon N Aproximado Virus 1.000 Monera 5.000 Fungi 47.000 Algae 27.000 Platae 250.000 "Protozoa" 31.000 Animalia 1.050.000 TOTAL 1.411.000 Algumas estimativas sobre a diversidade de espécies nas regiões tropicais foram elaboradas. Como exemplo, poderia ser citado o estudo efetuado por Terry Erwin (Smithsonian Institution, Washington. D.C.), com base na diversidade dos besouros das florestas pluviais tropicais, no Panamá, Brasil e Peru. Erwin coletou os insetos por meio de fumigações com piretrina, um inseticida biodegradável que atua principalmente sobre artrópodes traqueados. Os insetos mortos pelo inseticida eram recolhidos sobre folhas de plástico distendidas sob as árvores, levados ao laboratório, montados, identificados até família e separados em morfo-espécies. A dimensão média dos exemplares adultos capturados ficou compreendida entre 2-3 mm. Tabela 2. Besouros coletados sobre Luehea seermanni no Panamá (segundo Erwin, 1982). Dezenove exemplares da árvore L. seermanni foram amostradas, sendo coletadas quase 1200 espécies de besouros. Cento e sessenta e três espécies de besouros ocorreram em todas as 19 amostras coletadas e, portanto, Erwin considerou que estariam relacionadas diretamente com a espécievegetal amostrada. Isso representa 13,5% do total de espécies coletadas de besouros. As outras espécies seriam ocasionais, coletadas de passagem sobre o vegetal (86,5%). Por hectare (= 10000 m² ) de floresta tropical, ocorrem cerca de 70 espécies de Besouros N de espécies % de espécies obrigatórias N de espécies obrigatórias herbívoros 682 20% 136.4 predadores 296 5% 14.8 fungívoros 69 10% 6.9 saprófagos 96 5% 4.8 TOTAL 1143 162.9 NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 4� árvores semelhantes a Luehea seermanni, o que equivaleria a ocorrência de 11.410 espécies obrigatórias de besouros. Como os besouros representam cerca de 40% das espécies de insetos, teríamos 31.120 espécies de insetos nas árvores de um hectare. Erwin acrescentou a esse valor mais 1/3, correspondente ao número de espécies de besouros que vivem na serapilheira e no solo da mata, ou seja, mais 10.269 espécies. O resultado seria um total de 41.389 espécies de besouros por hectare de floresta tropical! Com base nesses dados, Erwin apresentou, ainda, uma estimativa do número total de insetos existentes nas florestas pluviais intertropicais. Considerou as espécies obrigatórias de besouros coletados na árvore L. seermanni (163 spp.) e as espécies obrigatórias da serapilheira e solo (cerca de 1/3 do número de espécies da árvore, ou seja 54 spp.), o que totalizaria 217 espécies obrigatórias de besouros. Como os besouros representam, proporcionalmente, cerca de 40% das espécies dos insetos, calculou, por aritmética simples, em 542 as espécies obrigatórias de insetos associadas a uma espécie de árvore tropical: 217 (40%) + 325 (60%) = 542. Levando em conta que o número de espécies de árvores existentes nas regiões intertropicais do mundo é de cerca de 50.000, chegou ao total de cerca de 30 milhões de espécies de insetos. Quantas espécies realmente existem, se as 1,5 milhões de espécies descritas, 5 milhões ou mais de 30 milhões, é algo ainda muito especulativo. Torna-se óbvio, também, que as classificações devem ser elaboradas com a parcela de organismos que já é conhecida, e que devem possuir capacidade de previsibilidade, possibilitando a inclusão, no sistema, das novas espécies que irão sendo, paulatinamente, caracterizadas e descritas. Não é possível esperar que toda as espécies sejam conhecidas para iniciar a sistematização da diversidade. O papel da Sistemática na Biologia e Importância da Sistemática A classificação torna a diversidade acessível a todas as áreas biológicas. Uma classificação que reflita o parentesco é mais informativa e permite a previsão de como vão se apresentar às características, mesmo em espécies ainda não descobertas. Por exemplo, permite prever a ocorrência ou não de certas substâncias, como enzimas ou hormônios, em um determinado grupo de organismos. Assim, pode servir de orientação para o fisiólogo ou para o bioquímico selecionarem qual o material adequado para o estudo de determinado problema biológico, ou para o fitoquímico restringir o grupo de organismos onde vai realizar a busca de determinado composto que é de seu interesse. Existem aspectos aplicados diretamente relacionados com a Sistemática. Os nomes dos organismos e as informações associadas podem apresentar importância para a Agricultura, Saúde, Ecologia, Genética, Biologia Molecular e Biologia do Comportamento, entre outras áreas. A Biologia Aplicada depende das identificações corretas, que evitam gastos inúteis ou danos sérios. Para ilustração, podemos citar um exemplo clássico: - Mosquitos vetores e não vetores da malária. Até a algum tempo atrás, todos os mosquitos eram combatidos, mesmo aqueles que não atuavam como vetores do Plasmodium. A “espécie” Anopheles maculipennis demonstrou ser um complexo de NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 5� espécies diferentes, com hábitos e ecologias diferentes. O reconhecimento dessas diferentes espécies e de suas respectivas biologias possibilitou a adoção de medidas mais eficientes para o controle da malária. Outros três exemplos práticos da importância da Sistemática podem ser retirados do dia a dia de um Sistemata entomólogo, no caso, um dos autores. - Bruquíneos em ervilhas enlatadas. O sistemata foi procurado por um Engenheiro de Alimentos, que buscava assessoria para resolver uma questão pendente. A firma na qual ele trabalhava enlatou ervilhas provenientes da Argentina. Entretanto, as ervilhas estavam carunchadas, e toda a produção ficou comprometida. A partida de ervilhas estava coberta por seguro, mas vinculado ao local onde teria ocorrido a infestação das ervilhas pelos besouros: no local de origem das ervilhas (Argentina), ou nos armazéns de estocagem do produto (Brasil). A primeira providência do sistemata foi realizar a identificação da espécie, possibilitando o acesso à informação existente sobre a biologia da espécie, o que levou à solução do problema. As larvas dos bruquíneos desenvolvem-se no interior de sementes, especialmente leguminosas. Algumas espécies só são capazes de se criarem nas vagens em desenvolvimento, nas plantações. Outras, entretanto, criam-se tanto nas sementes em desenvolvimento, como nas sementes armazenadas. A espécie em questão apresentava o desenvolvimento restrito ao campo, sendo incapaz de atacar grãos armazenados. Com base no laudo elaborado pelo sistemata, a firma brasileira recebeu o seguro devido. - Dermestídeos em peles de coelhos. Um comerciante brasileiro realizou uma importação de peles de coelhos, provenientes da Austrália. As peles foram transportadas por via marítima e, ao chegarem ao porto de Santos, permaneceram armazenados nas docas por um certo período. Foi constatado, entretanto, que as peles estavam severamente danificadas pela ação de insetos. Larvas e adultos do inseto foram enviadas a um sistemata para estudo, o que possibilitou a identificação da espécie, (Dermestes maculatus, uma praga cosmopolita), e o acesso às informações do ciclo da vida da espécie. Pela duração do ciclo de vida (período de metamorfose larva-adulto), tamanhos das larvas, existência de pupas e adultos, o sistemata concluiu que a infestação deveria ter tido origem no porto de embarque, e não nos armazéns brasileiros. - Curculionídeos de projeto de mestrado. Um pós-graduando estava desenvolvendo projeto para verificar a ação de determinado inseticida sobre uma espécie de caruncho, Sitophilus zeamais, que ataca grãos de milho armazenado. A parte prática já estava praticamente completada, consistindo na ação de diferentes dosagens do inseticida sobre os gorgulhos. Solicitou que o sistemata confirmasse a identificação da espécie, com base na pequena amostra fornecia. Ao identificar o material, o sistemata constatou a ocorrência de duas espécies distintas, mas muito semelhantes, Sitophilus zeamais e S. oryzae. A parte experimental teve de ser refeita, com base em uma cultura contendo apenas S. zeamais. Introdução às Escolas de Sistemática. A biodiversidade existente é resultante dos processos evolutivos. As relações de parentesco existentes são únicas, isto é, existe apenas uma única história evolutiva do que NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução6� ocorreu nesses milhões de anos de vida na Terra. Vimos que, teoricamente, para que as classificações sejam mais informativas, devem expressar as relações filogenéticas de seus membros. Se a história evolutiva é uma só, por que as classificações de um mesmo grupo de organismos podem ser diferentes? Para tentar responder a esta indagação, será preciso discutir algo sobre a história da sistemática e como são construídas as classificações. O ponto de partida da Sistemática é o estudo comparado das semelhanças e diferenças compartilhadas entre os organismos. Essas semelhanças podem ser estruturais, etológicas (i.e., comportamentais), ecológicas, citológicas ou bioquímicas. A priori, nenhum desses tipos de semelhanças é mais importante que os demais. Entretanto, as “semelhanças” compartilhadas podem possuir significados diferentes, se considerarmos a história evolutiva. Os processos fundamentais que causam a diversidade são a anagênese e a cladogênese (Figura 1.1). Anagênese são os processos pelos quais um caráter, ou seja, qualquer atributo de uma linhagem histórica sujeito a descendência– aqui definida como um grupo de organismos que compartilham uma história evolutiva única, surge ou se modifica numa população -ao acaso ou não, lenta ou rapidamente. Os processos anagenéticos são responsáveis pelo aparecimento das novidades evolutivas dentro de uma mesma linhagem histórica sem que haja o surgimento de novas linhagens. Diversificação de linhagens é resultado de um processo diferente chamado cladogênese. Cladogênese são os processos responsáveis pela quebra da coesão original existente em uma linhagem histórica – que em alguns casos equivale a uma população, gerando duas ou mais linhagens. As barreiras geográficas podem ser responsáveis por eventos cladogenéticos, isolando partes de uma mesma população. Com o acúmulo de eventos anagenéticos nas populações isoladas, pode ocorrer especiação. Notem que dentro deste cenário teórico, anagênese promove divergência entre as linhagens a cladogênese determina a divergência independente de novas linhagens. Estes dois elementos respondem pelo incremento da diversidade biológica em nosso planeta, porém outros processos podem diminuir a diversidade, como as extinções. Ainda, este cenário é considerado o modelo mais freqüente de especiação nos organismos que apresentam reprodução sexuada, o chamado “modelo ortodoxo de especiação de Mayr”. Os efeitos dos processos de anagênese e cladogênse estão representados na Figura 1.1. Neste exemplo teórico, consideremos história evolutiva das espécies atuais C, D e E, a partir da espécie ancestral A. Pode-se observar que, devido a anagênese, os caracteres se modificam no tempo, e graças aos eventos cladogenéticos, ocorrem o surgimento de novas linhagens, ou seja, especiações. Examinemos o caráter 1. Do instante t1 até t4, ele aparece sob duas formas, 1a ou 1b; a e b são maneiras distintas com que esse caráter se expressa, ou seja estados distintos do caráter 1, que em conjunto formam uma série de transformação do caráter 1. O estado 1a (primitivo) passou para o estado 1b (derivado) na espécie A, e foi transmitido dessa forma para todos os descendentes de A, ou seja, B, C, D e E, sem nenhuma outra transformação ao longo desta história. Essa direção da transformação, 1a Æ 1b, é denominada “polaridade do caráter”. NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 7� Examinemos agora o caráter 6. Ele aparece sob três formas ou estados, 6a, 6b e 6c, que em conjunto formam a série de transformação do caráter 6, e cuja polaridade é 6a Æ 6b Æ 6c; uma série de transformação linear. É importante notar que os conceitos de “estado primitivo” e “estado derivado” são relativos. No caso do caráter 6, 6b é “derivado”em relação a 6a, mas é “primitivo” em relação a 6c. ª Ao consideramos o caráter 7, podemos observar que a série de transformação possui dois estados, 7a (primitivo) e 7b (derivado). Entretanto, pode ser notado que o estado 7b aparece independentemente duas vezes, em C e em E, em tempos distintos. Notem que as espécies C e E compartilham o estado 7b não por que compartilham um ancestral comum exclusivo, pois o ancestral comum a essas espécies, A, é também ancestral de D, mas por que o que denominamos como“estado b do caráter 7” surgiu independentemente em C e E ao longo da história evolutiva dessas linhagens. Figura 1.1. História evolutiva de cinco espécies (A, B, C, D e E), com a indicação dos eventos de anagênese e cladogênese ocorridos ao longo do tempo (t1 a t4). NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 8� Como vimos neste exemplo, as espécies C, D e E, e isso serve de maneira geral para todos os organismos em nosso planeta, podem compartilhar três tipos distintos de semelhanças: 1. Aquelas que decorrem da presença de um caráter em seu estado “primitivo”, a partir do qual um estado secundário derivou, como é o caso do estado 3a compartilhados pelas espécies C e D e estado 4a compartilhados por C e E (Figura 1.1). A este tipo de semelhanças denominamos plesiomorfias, ou seja, o compartilhamento de estados plesiomórficos. 2. Aquelas que decorrem da presença de um estado “derivado” em relação a um estado “primitivo”, como é o caso do estado 1b compartilhados pelas espécies C, D e E e os estados 2b e 8b compartilhados pelas espécies D e E (Figura 1.1). A este tipo de semelhanças denominamos apomorfias, ou seja, o compartilhamento de estados apomórficos. 3. Finalmente, aquelas que decorrem de estados “derivados”, porém com origens independentes, como é o caso do estado 7b compartilhados pelas espécies C e E (Figura 1.1). A este tipo de semelhanças denominamos homoplasias, ou seja, o compartilhamento de estados homoplásticos. Esses três tipos de semelhanças podem ocorrer em um mesmo táxon. Importante salientar que os termos plesiomórfico e apomórfico só devem ser aplicados para os caracteres, e não para os táxons onde ocorrem. É freqüente na literatura biológica, especialmente em livros-texto, referências a “grupo mais primitivos” e “grupos mais evoluídos”. Ora, os processo anagenéticos podem ocorrer em todas as linhagens, todas elas podem apresentar mais ou menos modificações. As novidades evolutivas em uma linhagem podem ser muito diferentes daquelas ocorridas em outras linhagens próximas, podendo inclusive resultar em biologias distintas. A colocação que pode ser feita é que dois grupos possuem mesma idade de origem, ou um grupo é mais antigo do que outro que teve origem mais recente. Cada um desses grupos poderá apresentar caracteres nas condições plesiomórficas, apomórficas ou homoplásticas. É interessante notar ainda que, o tipo de semelhança considerada pelo sistamata determina a noção de parentesco entre as espécies. Por exemplo, se o sistemata considera que plesiomorfias são indicativas de relações de parentesco, em nosso exemplo o estado 3a indicaria que C e D são mais próximas entre si. No caso de homoplasias serem consideradas, o exemplo sugere que C e E são mais próximas entre si pois compartilham o estado 7b. Estes dois grupos contrariam a história evolutiva das espécies C, D e E. A Sistemática tem uma longa história como ciência e passou por pelo menos duas fases de discussões teóricas entre os membros da comunidade científica que resultaram em mudanças radicais na maneira como seus praticantes determinamgrupos de organismos, ou seja, como classificamos os organismos em nosso planeta. O reconhecimento ou não destes três tipos de semelhanças, a distinção ou não entre eles, e como são utilizados na classificação, acarretam as diferenças principais entre as seguintes Escolas de Sistemática: 1. Tradicional, Essencialista, Lineana ou Tipológica; 2. Evolutiva ou Gradista; 3. Numérica ou Fenética e 4. Filogenética ou Cladística. NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 9� 1. Tradicional, Essencialista, Lineana ou Tipológica. É a escola mais antiga e baseia-se na lógica aristotélica. Para Aristóteles, os seres vivos representavam uma série básica de tipos e formas imutáveis. O essencialismo sustenta que a tarefa da ciência é descobrir a “verdadeira natureza dos objetos”, ou seja, a sua realidade oculta ou essencial. Os objetos possuiriam caracteres essenciais e caracteres acessórios ou facultativos. O sistemata, com o auxílio da intuição, discriminaria os caracteres essenciais. Estes poderiam ser descritos, levando a uma definição (base das “descrições” dos organismos). Um ou mais exemplares poderiam representar a espécie (base para a designação dos “tipos nomenclatórios” das espécies). As classificações assim obtidas não seriam “elaborações” da mente humana, mas sim descobertas da ordem divina da criação. Essa escola leva em conta a similaridade geral. Espécies mais semelhantes são colocadas em um mesmo gênero, os gêneros mais semelhantes em uma mesma família, e assim por diante. Considera tipos básicos, denominados arquétipos, e leva em conta os desvios em relação aos arquétipos. Entretanto, não existe um método objetivo para o reconhecimento do que é essencial, ou para mensurar a semelhança. O que vale é a experiência, a opinião do sistemata. Qualquer um dos três tipos de semelhanças (plesiomofias, apomorfias ou homoplasias) pode ser utilizado para justificar as classificações dessa escola. Embora atualmente os princípios desta Escola sejam incompatíveis com a noção que possuímos sobre a origem e diversificação das espécies, a tradição essencialista ainda perdura no trabalho de alguns sistematas contemporâneos que seguem, intuitivamente, princípios essencialistas. 2. Evolutiva ou Gradista. A Escola Evolutiva de Sistemática baseia-se na teoria sintética da evolução. Teve um grande impulso com o avanço da genética de populações (1920-1940, trabalhos de Wright, Haldane, Huxley e Dobzansky). A base teórica pode ser encontrada nas obras de seus maiores defensores: Simpson (1961) e Mayr (1942, 1963, 1969). A Sistemática Evolutiva se baseia na filogenia, mas não precisa, obrigatoriamente, exprimí-la, bastando “ser consistente” com ela. Para a classificação, leva em consideração, além da filogenia, a quantidade das mudanças evolutivas e a natureza das mudanças, ou seja, o “tipo de ecologia” adotado pelo grupo de organismos analisado. Entretanto, não possui uma metodologia para incorporar os dados ecológicos na análise. Julga ser muito importante o conhecimento de fósseis para a reconstrução filogenética. Segundo os críticos dessa escola de classificação, a quantificação das mudanças evolutivas suficientes para justificar os agrupamentos seria muito subjetiva, assim como o modo de utilização dos dados ecológicos e paleontológicos. O objetivo da Escola Evolutiva seria utilizar semelhanças plesiomórfica e apomórficas para a classificação, evitando as semelhanças devidas às convergências (homoplásticas). No entanto, por falta de metodologia que permitiria discernir os três tipos de semelhanças, acaba baseando os agrupamentos também baseados em homoplasias. Em contraposição à subjetividade da Escola Evolutiva e ao autoritarismo inerente de uma Escola sem metodologia definida, na década de 1950 surgiram duas novas Escolas em sistemática que viriam travar um embate teórico nunca antes visto em Sistemática nos maiores periódicos (publicações científicas) duas décadas depois (veja Hull, 1988). 3. Escola Fenética ou Numérica. Essa Escola parte da premissa que a história evolutiva é desconhecida e não pode NÃ O DI ST RI BU IR Princípios de Sistemática e Biogeografia – Capítulo 1: Introdução 10� ser utilizada como base para uma classificação. A classificação seria uma ciência empírica, na qual a experiência desempenha papel preponderante e, portanto, livre de inferências genealógicas. A principal síntese da escola fenética pode ser encontrada em Sneath & Sokal (1973). O critério utilizado pela Taxonomia Numérica é a similaridade máxima ou global. Qualquer tipo de semelhança poder ser utilizado, plesiomorfias, apomorfias ou homoplasias. Todos os caracteres têm o mesmo peso e a mesma importância para a formação dos agrupamentos. A fenética não questiona a teoria da evolução, nem a existência de uma genealogia dos organismos, simplesmente exclui a informação filogenética do processo classificatório. A análise de muitos caracteres só foi possível com o desenvolvimento dos computadores. Muitos dos caracteres geralmente estudados são mensurações ou proporções. Cada táxon analisado é denominado OTU (originalmente, operational taxonomic unity, ou seja, unidade taxonômica operacional). Para formar os grupos mais semelhantes, são empregadas análises multivariadas, variáveis canônicas, e discriminantes. Conforme o tipo de estatística empregado, os resultados podem ser diferentes! 4. Escola Filogenética ou Cladística. Essa escola, assim como a Evolutiva, também procura basear sua classificação na história evolutiva. Julga ser possível apresentar hipóteses filogenéticas, passíveis de serem testadas, através de uma análise apropriada dos caracteres dos organismos atuais e, se existentes, também de fósseis. As hipóteses que não forem rejeitadas podem ser utilizadas na classificação. A teoria da Escola Filogenética foi apresentada inicialmente por Hennig (1950, 1966), e posteriormente desenvolvida por Farris (1972, 1979, 1982), Nelson & Platnick (1981) e Wiley (1981), entre outros. Na Escola Filogenética, o critério para agrupar os organismos é o monofiletismo, isto é, a descendência de um ancestral comum exclusivo evidenciado pelo compartilhamento de características apomórficas, e não a simples semelhança. Os graus de semelhança e divergência não são utilizados na classificação, enquanto que são fundamentais nas três outras Escolas. Voltamos agora à questão proposta no início dessas considerações. Por que não existe uma única classificação para todos organismos? Pelo exposto acima, fica evidente que classificações diferentes para o mesmo grupo de organismos não são, necessariamente, resultantes da descoberta de novos táxons, ou do emprego de novos caracteres, mas porque foram elaboradas por seguidores de escolas de classificação diferentes, que utilizaram de modo diverso os mesmos dados existentes ou porque os seguidores de uma mesma escola baseiam-se em dados diferentes, ou interpretam os mesmos dados de maneira diferente.
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