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A ARMADILHA DO ETHOS1 Thiago Fernandes Peixoto (Universidade do Estado da Bahia) RESUMO: Este estudo, a partir da confluência entre Retórica e Análise do Discurso, analisa a construção do ethos em um panfleto político, distribuído durante as eleições de 2006, no qual Lula escreve uma carta manifestando apoio a Jaques Wagner, candidato de seu partido ao governo da Bahia. A Análise do Discurso, por abarcar contribuições de diversas áreas, tornou-se, por si só, heterogênea Assim ocorre com os estudos do ethos, que buscam apoio, não só nessa disciplina, mas também na Sociologia, na Retórica, na Pragmática, na Filosofia da Linguagem, enfim, nos estudos que fazem emergir uma imagem de si, veiculada pelo enunciado, e, em uma esfera maior, no seu ato produtor, a enunciação. Como suporte teórico, este trabalho recorre aos estudos retóricos sobre o auditório e o orador em Chaïm Perelman e sobre as estratégias discursivas em Patrick Charaudeau. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Retórica; Ethos; Estratégia de Discurso; Argumentação. ABSTRACT: This study, based on the confluence between Rhetorical and Discourse Analysis, analyses the construction of ethos in a politic handbill passed out during the elections of 2006 in which Lula writes a letter demonstrating his support to Jaques Vagner, a candidate of his party to the government of Bahia. The Discourse Analysis covers several areas, and because of that, it became itself heterogeneous. The same occurs with the studies of ethos that seeks support not only in Discourse Analysis but also in Rhetorical, in Pragmatic, in Philosophy of Language and in studies that contributes to emerge an image of it, transmitted by the statement, and, in a larger sphere, in its producing act, the enunciation. As a theoretical support, this paperwork falls back on rhetorical studies about the auditorium and the orator in Chaïm Perelman and about the discursive strategies in Patrick Charaudeau. KEY-WORDS: Discourse Analysis; Rhetorical; Ethos; Discourse Strategy; Argument. “A fala é irredutível, é essa a sua fatalidade. O que foi dito não se pode emendar, salvo se for aumentado: corrigir é, aqui, estranhamente, acrescentar. Ao falar, nunca posso apagar, safar, anular; tudo o que posso fazer é dizer„anulo, apago, rectifico‟, em suma, falar uma vez mais” (BARTHES, s.d , p. 75). 1.1 A permanência do ethos Perguntar quais são os limites da Análise do Discurso hoje não é fácil, tamanho é o seu domínio de estudo. Uma resposta para essa questão poderia parecer mais viável há alguns anos quando, supunha-se, havia apenas a Escola Francesa de Análise do Discurso. Recentemente, uma estudiosa dessa disciplina, em uma palestra, afirmou que se ela não quiser perder seu estatuto de ciência, deve evitar o constante contato que mantém com outras ciências. Ela exemplificava o caso falando sobre os fundamentos da Análise do Discurso e suas diferenças com a Lingüística Textual. Os fundamentos aos quais ela se referia tratavam-se, na verdade, da teoria de Michel Pêcheux. O que vem ocorrendo em outros lugares que não somente naquela palestra. Certos livros que se dizem de introdução a AD expõe essa teoria sem mencionar que existem outras, algo que deve ser reprovado. 1 PEIXOTO, Thiago Fernandes. A armadilha do ethos In: III simpósio internacional sobre Análise do Discurso: emoções, ethos e argumentação, 2008, Belo Horizonte. anais do III simpósio internacional sobre análise do discurso: emoções, ethos e argumentação, 2008. v. 1. Posição contrária é a adotada por Dominique Maingueneau em sua apresentação do numero 117 da revista Langage, edição de março de 1995. O título da edição já é bastante revelador: “Les Analyses du Discours em France”. Análises do Discurso, no plural, porque são muitas. Maingueneau escreve sobre algo que se fazia necessário, o fato de que a AD não se trata de uma disciplina fechada e isolada em si mesma, mas de diversas correntes de estudo reunidas em uma nomenclatura estabelecida por convenção. O que elas tem em comum é o interesse por um objeto de estudo, o discurso, que somente pode ser definido em função da teoria que o estuda e que se diversifica ao infinito em função dos lugares e momentos de enunciação. Uma coisa bem complexa para ser fechada em uma só teoria. Nem por isso estamos falando de um bloco disperso e desordenado de estudos, mas de uma área de confluência entre diversas ciências, que não somente a lingüística, com preocupações muito variadas. Veja-se o caso da Retórica, a Análise do Discurso engloba hoje muito do que no passado era preocupação apenas dela. A Retórica costuma ser definida como arte criadora da persuasão. Sendo a persuasão o ato de fazer alguém aderir a um certo posicionamento. Isso pode parecer tanto vago quanto duvidoso. Vago porque o que seria exatamente fazer com que alguém adira a um posicionamento? E o que seria um posicionamento? Duvidoso porque, desde Aristóteles, a Retórica está mais voltada para a defesa do que para o ataque. O filósofo grego coloca o estudo retórico como sendo uma técnica para sabermos quando alguém está tentando nos persuadir. O que não anula o fato de que exista o contrário, isto é, aqueles que querem aprender a persuadir. No século XX, porém, a Retórica ampliou seu horizonte. Observemos o que um retórico escreve: “O campo da moderna retórica alargou-se muito. Longe de limitar-se aos três gêneros oratórios dos antigos ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas modernas de discurso persuasivo, a começar pela publicidade, e mesmo dos gêneros não persuasivos, como a poesia. Não contente com reivindicar todo o campo do discurso, vai bem além, pois se apodera de todas as espécies de produções não verbais. Elabora-se assim uma retórica do cartaz, do cinema, da música, sem falar da retórica do inconsciente.” (REBOUL, 2004, p.82) Não é também isso o que a Análise do Discurso se propõe analisar, todas as formas de discurso que se propagam na sociedade? Vejamos um caso de ethos na confluência dessas duas disciplinas. Durante a campanha eleitoral do ano de 2006 foi divulgado na Bahia um panfleto no qual havia uma foto dos então candidatos Jaques Wagner, ao governo do estado, e Luiz Inácio Lula da Silva, a reeleição da presidência da república. Era a figura de dois senhores de barba e cabelo grisalhos. Estavam bem vestidos e ao lado um do outro. Lula usava uma jaqueta, Wagner um blazer, e os dois estavam com camisas azuis. Os candidatos ali apresentados lembravam dois irmãos. Mostravam-se alegres, estavam sorrindo, olhando para algo fora da foto, possivelmente para o eleitor. Wagner acenava com sinal de positivo. Ao fundo podia-se ver as cores da bandeira nacional. Abaixo, o nome de ambos (com muitas estrelas), entre o número do Partido dos Trabalhadores, 13, e o cargo almejado por cada um. Logo acima da foto havia a seguinte frase: “Essa parceria é melhor pra Bahia”, escrito em letras brancas sobre um fundo azul. A pergunta que desde já poderia ser formulada é: por que “essa parceria é melhor pra Bahia?” Quais são as propostas aqui apresentadas? A resposta é: nenhuma. Assim como em quase toda propaganda política. O que há, de fato, é uma imagem de sedução, um parecer que se passa por um modo de ser. A propaganda política é um desses lugares nos quais se propagam imagens de sedução. De fato, custamos aceitar que não são os candidatos que apresentam as melhores propostas os mais votados, mas aqueles que constroem uma melhor imagem de si. Os mais simpáticos, engraçados, alegres. Dessa forma, o panfleto não poderia ser diferente, como bem salienta Roland Barthes: “A fotografia eleitoral é, pois, antes de mais nada, reconhecimento de uma profundidade, de um irracional extensivo à política. O queé exposto, através da fotografia do candidato, não são seus projetos, são suas motivações, todas as circunstâncias familiares, mentais, e até eróticas, todo um estilo de vida de que ele é, simultaneamente, o produto, o exemplo, e a isca”. (BARTHES, 2001 p. 103) O que está ali representado é aquilo que, desde a retórica antiga, se entende por ethos: a imagem que o orador projeta de si mesmo com o objetivo de influenciar seu auditório. A necessidade de saber convencer mediante caracteres apropriados a cada gênero de discurso é anterior ao estudo dos meios de persuasão: “Antes ninguém seguia uma rota traçada, nem se submetia a uma teoria e, entretanto, a maioria se exprimia com cuidado e ordem” (CÍCERO apud PLEBE, 1978, p. 1). É a própria necessidade de o homem viver entre outros homens, de fazer-se impor por meios que excluem a violência física o que faz com que a arte de persuadir ganhe valor. Ocorre o mesmo com os estudos sobre o ethos. Costuma-se remontar a Aristóteles sua sistematização enquanto componente oratório. Contudo, é difícil pensar em uma época na qual ninguém tenha construído uma imagem de si com a finalidade de influenciar aqueles a quem se dirigem as palavras. Tentar demonstrar a certeza do que se fala, que se está sendo sincero, selecionar as palavras consoante são direcionadas a um rei ou a um camponês, o próprio tom com que se fala, tudo isso pressupõe a construção de uma imagem de si. Para os retóricos antigos, a exemplo de Aristóteles, o ethos se caracteriza pelas qualidades que o orador deve demonstrar em seu discurso para parecer digno de crédito - tal como a prudência, a virtude e a benevolência, uma vez que “as pessoas de bem inspiram confiança mais eficazmente e mais rapidamente em todos os assuntos de um modo geral” (Retórica I, 2) - e por ele se exprimir de forma apropriada ao seu tipo social. Esse estudo continuará sendo realizado por outros retóricos como Cícero, Quintiliano e Pascal. As ciências da linguagem retomaram recentemente essa noção estendendo-a a toda forma de interação verbal, tanto falada quanto escrita, e não apenas ao estudo dos discursos pronunciados diante de um grande público, como faziam os retóricos antigos. Mesmo a Nova Retórica, de Perelman, não descarta a relevância dos textos escritos, uma vez que estes adquiriram grande importância na sociedade moderna. Entretanto, nem sempre esses novos estudos utilizam o termo ethos, ele só aparece nas ciências da linguagem a partir de Ducrot2. Contudo, não é de outra coisa que se trata, por exemplo, a condição de sinceridade, de Searle, ou a necessidade de o orador adaptar-se ao seu auditório, em Perelman e Olbrechts-Tyteca, ou ainda a fotogenia eleitoral, de que fala Barthes em Mitologias. Mesmo uma foto, como a que descrevemos acima, é portadora de um ethos3: a barba e o cabelo grisalhos confere, aos candidatos, experiência de anos vividos; a jaqueta e o blazer, jovialidade; o sorriso no rosto tira deles qualquer sinal de rancor, na verdade, dá-lhes um ar de simpatia. Isso é relevante, pois se o homem é sedutor o que ele diz é convincente. 1.2 A nova retórica e as estratégias de legitimidade e credibilidade Apesar de nem sempre receber esse nome o ethos está presente nos estudos da linguagem, seja ela verbal ou não. O Tratado da argumentação e a teoria das estratégias discursivas de Charaudeau demonstram bem isso. O Tratado da argumentação: a Nova Retórica, escrito por Chaïm Perelman e sua colaboradora Lucie Olbrechts-Tyteca, renovou os estudos retóricos no século XX, mas quase não teve repercussão no ano em que foi publicado (1958). Foi somente a partir do final da década de 70 que esse trabalho se firmou como um dos pilares dos estudos retóricos. 2 O dizer e o dito. A primeira publicação data de 1984. 3 Ver Ekkehard Eggs. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: Amossy, 2005. A maior preocupação desses autores está relacionada ao auditório e a constante necessidade que tem o orador de adaptar-se a ele. Conforme se nota no Tratado, seriam três os pré-requisitos para qualquer argumentação: linguagem em comum, para que os interlocutores possam se compreender; reconhecimento da hierarquia do orador e de seu auditório, já que não é qualquer pessoa que pode falar o que quiser para qualquer um; conhecimento daqueles a quem se quer persuadir. De fato, qualquer orador quer persuadir um auditório, mas quem vem a ser o auditório? Seria a pessoa que o orador tem a sua frente ou a quem ele chama pelo nome? Nem sempre, assinala Perelman, porque o político que concede uma entrevista ao jornalista está mais preocupado com os leitores do jornal do que com a pessoa com quem ele está falando naquele momento. Torna-se, então, necessário definir o auditório como sendo “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 22). O auditório não é, dessa forma, uma pessoa física, mas uma abstração criada pelo orador, que teria, mais ou menos esquematizado, a visão de quem ele seria, para assim poder persuadi-lo. Podendo, para isso, relacioná-lo a alguma categoria: idade, sexo, classe social. As argumentações mal sucedidas poderiam ser o fruto de uma visão distorcida do auditório. Posição incomoda essa, pois não há dependência entre a argumentação e as convicções pessoais do orador, sendo que tudo dependeria das crenças do auditório. O ethos criado por aquele que fala ou escreve seria então a imagem que, de antemão, se esperaria ver expressa por ele: o auditório faz uma imagem do orador, mas este já criou antes uma imagem daquele. Note-se a mudança de tom motivada pela diferença de auditório: Enunciado1: “Na hora de partilhar o pão, tem cara que quer mais pão do que outro, não quer dividir, repartir”. Enunciado2: “Precisamos engajar-nos – política e materialmente – na única guerra da qual sairemos todos vencedores: a guerra contra a fome e a miséria. Erradicar a fome no mundo e a miséria é um imperativo moral e político”. Os dois enunciados foram proferidos por Lula, mas em momentos diferentes. O primeiro foi no lançamento da Agenda Social Quilombola, no Palácio do Planalto, o segundo na abertura da 58ª Assembléia-Geral da ONU. No primeiro exemplo, o auditório presumido seria composto por brasileiros ávidos por melhorias sociais (requer-se assim uma fala popular), no segundo, por chefes de estado, mas não somente por eles, pois o que ali é dito pode repercutir em outros lugares. “O importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ele se dirige” (IDEM p. 26-27). Os argumentos selecionados pelo orador mostram como ele concebe seu auditório, uma vez que é em função deste que se elabora a argumentação, de suas crenças, explícitas ou não, do que ele considera relevante, digno de crédito. Mostra-se, ainda, muito delicada a questão de que aqueles a quem se dirige a argumentação por sua vez contra argumentam, mesmo que isso não seja verbalizado. Esse fato, aliado a enorme variedade de alguns auditórios, revela-se um dos maiores problemas para eficácia da argumentação. Seria, então, necessário que o orador, para persuadir a todos, expusesse uma quantidade incabível de argumentos, algo que não é possível em alguns gêneros de discurso. Ao contrário, apresentar-se sob uma luz favorável já é um argumento dos mais fortes. Isso acontece freqüentemente na propaganda política. Quase não são expostos programas de governo, mas motivações pessoais dos candidatos (mesmo porque a maior parte dos eleitores não os entenderia, além do mais não se pode expô-los detalhadamente nas propagandas, já que elas têm tempo e espaço curtos). É importante o conhecimento que oorador possui do seu auditório, mas de igual forma é decisivo o papel desempenhado por aquilo que o auditório reconhece no orador, ou seja, seu estatuto social, aquilo que se pode saber do seu histórico de vida, suas convicções expressas. Pensando dessa forma entramos na problemática da legitimidade e da credibilidade. A legitimidade está para o poder, assim como a credibilidade está para a competência, e ambos fazem parte daquilo que Patrick Charaudeau entende por estratégia de discurso. Essa noção procura compreender o que fundamenta um ato de linguagem. Ela recobre perguntas como: “O que me autoriza a falar?” e “Como posso ser levado a sério?”, o que já não é pouca coisa. É necessário saber que existe um dentro e um fora da linguagem: não é por eu ser um rei que tudo o que falar será acatado. A situação e o papel do interlocutor determinarão isso. Charaudeau vai de desencontro às idéias de Bourdieu, para quem o poder das palavras corresponde ao poder de seu porta-voz, tudo já estando de antemão demarcado. Não sobraria, assim, papel algum para ser desempenhado pela linguagem. Bourdieu é sociólogo e o alvo de suas criticas é Austin4, mas dessa forma ele acaba por atacar vários estudos da linguagem, inclusive a noção de ethos. Ora, o padre que diz “Eu te batizo” não pode dizer “Eu te condecoro”. Nem dizer “Eu te batizo”, em uma situação de comunicação fora da cerimônia do batizado, com todas as convenções exigidas, nem mesmo dizer isso se ele não for o padre escolhido para batizar determinada pessoa. Entretanto, não basta apenas poder falar, é necessário ainda ser ouvido, ser dotado de credibilidade. Ao contrario da legitimidade, a credibilidade não é dada, é construída. Ela se pauta em uma capacidade, em um saber fazer. Ninguém pode obrigar o orador a ser sincero, mas ele deve, ao menos, aparentar sinceridade para ser levado a sério. Vê-se que a credibilidade não se confunde com o ethos, ela está para o ethos, o qual pode tornar uma pessoal crível ou não. . “Logo, a legitimidade vem ao sujeito, não somente do espaço externo, mas do „grau de adequação‟ que se estabelece entre a identidade psicossocial do sujeito (espaço externo) e seu comportamento enquanto ser linguageiro, comunicante (espaço interno)” (CHARAUDEAU, 1996, p.29). 1.3 O ethos Lula Já foi possível notar que ao aceitar que existe um dentro e um fora da linguagem nos afastamos de teóricos como Dominique Maingueneau e Oswald Ducrot, para quem o ethos é uma construção interna ao ato de tomar a palavra. Ora, é necessário reconhecer que, principalmente em matéria de política, existe uma imagem que circula na sociedade independente de qualquer fala. Lula é um político popular: gosta de futebol, tido como “paixão nacional” (aliás, é torcedor fervoroso do Corinthians), de estar entre amigos, de abraçar o povo mais carente... É de conhecimento geral que ele é nordestino, teve que sair de sua terra natal devido a dificuldades, foi metalúrgico, sindicalista. É considerado um homem persistente, pois somente conseguiu se eleger após mais de uma década concorrendo ao cargo presidencial. É esse ethos prévio de Lula que lhe confere legitimidade para falar em fome, miséria, persistência, sofrimento, povo excluído. Afinal, seu histórico de vida lhe confere esse poder. 4 “Na verdade, a força ilocucionária das expressões (illocutionary force) não poderia estar localizada nas próprias palavras, como, por exemplo, os vocábulos „performativos‟, nas quais tal força estaria indicada, ou melhor, representada, no duplo sentido (...) O poder das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz”.(BOURDIEU, 1998 p. 85,87). Apesar da argumentação mudar em função do auditório e, assim, o ethos também mudar, existem traços que fazem com que possamos falar em um “ethos Lula” e não somente no ethos construído por Lula em tal ou tal discurso. Existem imagens que são mais fortes que outras. Getulio Vargas, por exemplo, apesar de ter sido taxado de demagogo, tirano, facista por alguns, ficou mais conhecido como “pai dos pobres” e não há nada que possa mudar isso. Qualquer imagem de si construída no domínio político é frágil5, sua eficácia depende do contexto. A imagem de populista construída por Lula, de homem do povo, o fez ser taxado de “comunista” em outras eleições. O que lhe valeu a perda de muitos votos. Essa será, porém, uma estratégia eficaz a partir das eleições de 2002, ano em que ganhou pela primeira vez as eleições presidenciais. Tanto que em 2006 o slogan da campanha será: “Lula de novo com a força do povo”. O mito do comunista já estava muito longe. No verso da foto podia-se ler a transcrição de uma carta escrita por Lula, manifestando seu apoio a Wagner. Quem seria o auditório presumido nessa propaganda? No inicio da carta ele interpela como sendo seus interlocutores: “Meu querido Jaques Wagner”, “Meus queridos companheiros do PT da Bahia”, “Meus amigos da Coligação „A Bahia de todos nós‟”. Seria, porém, ingenuidade pensar que são apenas esses. Quem seria esse auditório então? Pode-se dizer que ele é constituído por todo o povo baiano. Qual é o objetivo de um panfleto político em época de eleições? Ganhar votos. Então porque escrever uma carta, para apenas manifestar apoio a um candidato, e publicá-la? Não seria mais fácil apenas pedir os votos e apresentar as boas razões para ser votado? As coisas não são tão simples assim. Falar de suas qualidades poderia causar o efeito inverso. Pelo contrário, deixar tudo subentendido, que se é o mais honesto etc. é o que vai causar boa imagem de si. O ethos positivo criado pelo político não pode ser dito, deve ser mostrado. O que não exclui que uma pessoa cause uma imagem de si ao explicitar de forma direta suas qualidades, ao se auto-elogiar, mas essa imagem dificilmente pode ser boa. O ethos é silencioso. O que fica implícito nesse panfleto é que seria bastante vantajoso que o governador de um estado fosse amigo do presidente, assim como Wagner é seu. Contudo, ambos são candidatos e não se pode, para eficácia dessa vantagem, votar apenas em um deles. Tem-se que votar nos dois. Como Lula fala para seus eleitores? Ele fala enquanto amigo de Wagner, militante do PT, candidato a presidência para um segundo mandato, mas também fala enquanto presidente, afinal ele ainda está no cargo. Não é à toa que a data e o local da carta são explicitados: “Brasília, 29 de junho de 2006”. Brasília é o local em que se concentra o poder executivo no Brasil, e 29 de junho de 2006 é uma referência atual, para a data na qual o panfleto foi distribuído, em que o presidente em exercício ainda era Lula. Toda data e local são mostrados em uma carta, mas aqui eles adquirem sentido diferente, porque não é a palavra que é significativa em si, mas o fato dela haver sido utilizada. Não existe apenas um ethos nesse panfleto, mas diversos. Há os que, de certa forma, pudemos explicitar ao descrever a foto dos candidatos e também os que estão mostrados na carta. Vejamos alguns. Lula se apresenta como homem sério: “O que está em jogo não é apenas vencer mais uma eleição”.Ele é virtuoso, pois não abandona seus amigos, nem seu partido - apesar dos escândalos sobre corrupção que pairavam naquele momento - pelo contrário, mantém-se fiel a eles. Ele 5 “Existem, então, três espécies de disposições; duas delas são vícios que envolvem excesso e carência respectivamente, e a terceira é uma virtude, ou melhor, o meio-termo (...) Por conseguinte, a pessoa que se encontra em um dos extremos empurra a pessoa intermediaria contra a outra, e, assim, o homem corajoso é chamado temerário pelo covarde, e covarde pelo temerário, e da mesma maneira nos outros casos.” (ARISTÓTELES, 2006, 1108b.) possui caráter, jáque quer advertir o povo do jugo a que pode ser submetido, e também é o chefe que quer guiá-los nesse árduo caminho, o que começou a fazer no primeiro mandato: “O que está em jogo é, na verdade, a possibilidade de consolidarmos nos próximos quatro anos o projeto que iniciamos em 2003, o projeto de assegurar ao País um desenvolvimento sustentável, com a justiça da distribuição, com tal consolidação dos direitos ao povo excluído que governo nenhum possa mais destruir ou privar”. Ele é humano, possui sentimentos fraternos tanto pelo povo quanto por seus amigos. Não é à toa que o léxico selecionado se compõe de palavras como querido, fidelidade, companheiro, alegria, tristeza. Ele é solidário, se preocupa com o povo que sofre, o povo excluído. Também trabalha em conjunto, sabe que não pode fazer tudo sozinho, por isso requer a colaboração de outros (principalmente do povo, que deverá elegê-lo - aqui é a imagem da soberania popular), Lula não é egocêntrico: “Confio no povo da Bahia e no trabalho de nossos militantes”.É ao mesmo tempo doce e forte, mesmo porque o político não pode se isolar em um desses extremos: “Por isso é que tenho certeza que podemos contar, uma vez mais, com a garra, com a força e a generosidade de nossa Militância”. São essas diversas mesclagens de imagens o que lhe confere credibilidade. Credibilidade sem a qual o ato de convencer tende ao fracasso. O ethos é o que confere o sucesso desse empreendimento, que modifica o modo de ver do publico tornando o que o orador deseja uma opinião aceitável. Não ocorreria o mesmo se apenas se expusessem os argumentos. Os trabalhos sobre o ethos constituem-se mais em duvidas que em certezas. Tentar trabalhar o ethos político enquanto imagens que circulam na sociedade não é algo fácil. Constitui, na verdade, tarefa das mais complicadas. Esperamos, porém, que essa pequena síntese possa contribuir com os interessados em investigar os diversos discursos que, a todo momento, encontramos ao nosso redor. Referências AMOSSY, R (org). Imagens de si no discurso. São Paulo: Contexto, 2005. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ARISTOTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. _____________. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006. AUSTIN, J.L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artmed. 1990. BARTHES, R. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, s.d. ___________. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BONNAFOUS, S. L‟analyse du discours politique. In: MARI, H. et al. Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte. Carol Borges- NAD/ FALE/ UFMG, 1999 p. 317-325. BOURDIEU, P. 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