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AS PAIXÕES NO ESTADO SOBERANO DE THOMAS HOBBES FABIANO SPRADA RESUMO A obra que servirá como base deste artigo é do filósofo Thomas Hobbes intitulada Leviatã. Em seu trabalho Hobbes nos mostra as necessidades de criação do Estado civil como forma de garantir a proteção e defesa dos homens. A única solução para que todos consigam viver juntos é a instauração de um poder, de um Estado e, principalmente, que ele seja soberano e absoluto. É este poder a que Hobbes compara como sendo um homem artificial criado pelo próprio homem para assegurar a paz entre todos. Segundo Hobbes os homens primeiramente encontrariam-se em um estado destituído de qualquer poder que pudesse assegurar a preservação da vida e da propriedade, seria o estado de natureza. A vida estaria em constante instabilidade. Sem qualquer poder que pudesse assegurar a paz, o estado seria de “guerra de todos contra todos”. O “homem seria o lobo do homem”. Isso ocorreria devido às paixões do gênero humano e a falta de um poder que pudesse garantir a paz. A única forma seria um acordo entre eles, visando a garantia da paz. Diante de tudo isso se pode dizer que a passagem do estado de natureza para o estado civil é necessária, já que naturalmente as paixões levam os homens a serem lobos dos próprios homens. É necessário que artificialmente se encontre um caminho, não de se abolir essas paixões (o que seria impossível, pois elas fazem parte da natureza humana), mas direcioná-las em favor do Estado. O artigo procura localizar o papel das paixões em todo percurso do contrato hobbesiano. O problema a ser investigado é se realmente as paixões são ou não essenciais na criação, na sustentação e na possível dissolução do estado civil proposto por Hobbes. A tese é de que as paixões levam os homens a serem lobos uns para os outros no estado de natureza, assim como elas os acompanham na instituição do Estado civil, além de atuarem decisivamente na sustentação e possível dissolução desse Estado. Palavras-chave: Paixões; estado de natureza; Estado civil; Soberania. 1 INTRODUÇÃO Dentro do sistema político hobbesiano, as paixões humanas ocupam papel fundamental para a sustentação do Estado absoluto. No plano jurídico, o Estado é perfeitamente construído, racionalmente absoluto e sólido. Não há brechas para rupturas ou contradições. No entanto, esse plano jurídico somente sai da ficção quando entra a forma de governo. O soberano autorizado pelos súditos coloca a máquina do Estado em movimento. Para isso, é necessário que todas as engrenagens funcionem harmoniosamente a fim de que os movimentos transcorram uniformes. O soberano precisa sustentar o “controle” das paixões, ou seja, fazer com que as opiniões dos súditos sejam favoráveis ao seu governo. O Estado sempre visa o bem e o progresso, no entanto, no plano do governo as coisas não ocorrem da mesma forma. É importante o ambiente construído dentro do Estado, a fim de que as circunstâncias causem paixões favoráveis à estrutura jurídica. A instituição do Estado inclui ao mesmo tempo a instituição da representação. Estado e governo, de uma certa forma se entrelaçam no momento do pacto. O que não ocorre, por exemplo, em Rousseau, onde se tem o povo, uma unidade, o Estado e depois o ato de eleger o representante, havendo a possibilidade de troca em caso de mau governo sem acarretar a dissolução do Estado. No sistema hobbesiano essa troca implica na dissolução, pois o soberano é o Estado enquanto seu representante. A soberania não admite fragmentações do poder, o Estado só permanece absoluto enquanto seu poder for irrestrito, representado pelo soberano. As paixões tendiam ao individualismo no estado de natureza porque as circunstâncias levavam a individualidade. Com a instituição do Estado e os consequentes benefícios proporcionados como paz, segurança, propriedade e prosperidade, pode-se dizer que as circunstâncias levaram a mudança das paixões, em prol de uma vida melhor. Mas será que elas realmente seguem esta tendência na consciência dos súditos ou apenas externamente, a fim de se evitar as punições que as leis civis empregam? Porque se elas realmente mudam de foco internamente, podemos dizer que a solidez da malha jurídica estende-se ao âmbito do governo, das questões éticas, tornando a soberania indissolúvel. Mas segundo Hobbes as ações externas dos súditos, o que eles aparentam ser, é mais importante do que na verdade são. Os súditos podem em consciência desejar de uma determinada maneira, porém, serão considerados virtuosos os que cultivarem uma 2 boa aparência diante de todos. As minhas intenções não são tão importantes, desde que nas relações dentro do Estado eu seja moralmente correto, atue em benefício do Estado a fim de manter a soberania. Assim sendo, como realmente se comportam as paixões com a instituição do Estado? Mudam de foco ou permanecem como no estado de natureza? Seriam apenas contidas pelo medo da punição do não cumprimento dos ditames da lei civil? A “regulação” das paixões nos súditos partiria de dentro para fora como em Rousseau, ou seriam apenas as aparências que se moldariam por causa do medo da punição? Estas questões são de grande importância para se entender o porquê da possibilidade da dissolução do Estado, que enquanto ficção jurídica é indissolúvel, mas que no plano do governo pode acabar dissolvido. Podemos comparar todo este plano jurídico com a alma. Se entendermos que a alma é eterna, podemos entender que o Estado enquanto ente de razão é eterno. No entanto a alma precisa do corpo para manifestar-se, para fazer-se concreta materialmente. Esse corpo é o Estado civil instituído pelo pacto. Não mais uma ficção, mas uma realização. É o Estado civil representado pela figura do soberano, constituído de leis e de uma forma de governo. A alma busca o bem do corpo para que os dois existam juntos. É a comunhão da razão e da opinião, da ficção e da realidade, da ciência do justo e do injusto com as paixões. No entanto o corpo é mortal, enquanto a alma é eterna. As doenças corrompem o corpo, a fragmentação do poder, as doutrinas sediciosas, o mau governo, corrompem o Estado civil, levando a sua dissolução. São as paixões que tanto levam os homens a prosperarem, a manterem suas vidas, como também causam as doenças do corpo, aquelas que afetam o sistema. O homem enquanto matéria, movido por paixões, não pode ser responsável pela ruína de algo que ainda não existe. O Estado enquanto ente de razão não se dissolve, é eterno. No entanto, quando o homem passa ao papel de artífice, como instituidor do Estado, a dissolução torna-se possível. A concepção do homem até o século XVII era o do homem social (zoon politikon), dotado de uma sociabilidade inerente a sua natureza. Essa concepção vem de Aristóteles e foi levada adiante durante muito tempo. Essa concepção não dá a devida importância às paixões no que diz respeito às causas das ações humanas. O homem concebido apenas aos olhos da razão não é na realidade o 3 homem que vive em uma sociedade civil, é uma ficção de um homem social em sua essência. O homem apenas racional é igual ao Estado apenas enquanto ente de razão: é eterno, mas não atua, não se move. O verdadeiro homem é aquele que atua por meio das paixões, são elas que despertam os desejos, as ações de todos em busca de algo. Um homem sem paixões é como algo imóvel, estático: “... E ao homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus sentidos eimaginação ficam paralisados.” (Hobbes, Leviatã, cap. XI, p. 60) É devido a isso tudo que se faz necessário que o soberano se ocupe dos homens enquanto seres com paixões. Como seria impossível conhecer a todos por meio das paixões, pois elas se manifestam de maneiras diferentes nos diferentes seres humanos, o soberano deve direcionar o apetite dessas paixões no sentido de serem favoráveis ao Estado soberano e absoluto. O verdadeiro homem é o “homo hominis lupus” (“o homem é o lobo do homem”), o homem como inimigo do homem, causador da tensão das relações de puro poder no estado de natureza. Ainda assim é um homem que gera relações, que movimenta a vida, que a torna real. As paixões são causas desse movimento de vida, as paixões são a causa do estado incerto do homem no estado de natureza e serão as paixões, direcionadas pelo poder soberano dentro do governo a buscarem o fundamento do edifício jurídico. Assim, podemos constatar a presença das paixões em todas as etapas do Estado civil, confirmando ser o elemento que move todas as ações humanas. Por isso, a fim de confirmar de uma maneira mais clara a presença e importância das paixões e resolver as questões propostas, as que se referem à mudança das paixões no Estado instituído e a possível causa de sua dissolução, iremos começar uma análise pelo estado de natureza, depois a passagem para o Estado civil, em seguida a atuação das paixões dentro do Estado e por fim a possível causa de dissolução. 4 2 DESENVOLVIMENTO 2. O estado de natureza hobbesiano Imaginemos uma época em que os homens não se encontrassem sob um Estado civil. Uma época sem leis civis, sem contratos civis, sem qualquer poder maior que os governassem. Os homens agiriam conforme suas paixões, que são no modelo hobbesiano movimentos de aproximação (apetite) ou de repulsa (aversão) em relação a um objeto. Estes movimentos se dariam segundo opiniões acerca de algum objeto, por isso uma opinião boa resultaria em um apetite e uma opinião má em uma aversão. Estas opiniões seriam resultados de um discurso mental, ou seja, associações mentais (imagens) que os homens fariam em relação a um objeto, criando dessa forma uma opinião capaz de resultar em uma ação de apetite ou de aversão. Por isso as paixões no estado de natureza são motivadas pelos objetos e situações que existem neste estado. Não há o meu e o teu, pois um mesmo objeto pode ser desejado pelos mesmos homens. Essa situação leva a disputa, a competição entre os indivíduos, uma vez que todos são igualmente capazes de atingirem seus objetivos: “... Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII p. 74 e 75) Em um estado de insegurança em relação aos objetos, a competição entre os indivíduos se dá pelo lucro, ou seja, quanto mais provisões eu conquistar maior e melhor serão as minhas condições de vida. Essa competição gera a desconfiança entre os homens, já que não existe o direito de propriedade. E isso leva a terceira causa de discórdia que é a glória, pois em um estado destituído de qualquer poder legítimo, aquele que mais aparentar alguma forma de poder, seja pelos bens 5 adquiridos, seja pela boa imagem, melhores condições de vida usufruirá: “... De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII, p. 75) “O poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro.” (Hobbes, Leviatã, cap. X, p. 53) Seriam todos dotados de uma liberdade tal que suas ações só poderiam visar como fim último à garantia da vida, já que esse é o bem maior de qualquer indivíduo. Os homens nessa época agiriam guiados exclusivamente por suas vontades, pois aqui ainda não está presente a linguagem, condição para que se possa utilizar a razão de maneira instrumental, ou seja, como artifício para os julgamentos das ações. Não devemos conceber, contudo, um homem desprovido de qualquer razão, mas da instrumental, que é aquela que nomeia as coisas e permite que através de cálculos com nomes o homem seja capaz de conjecturar sobre causas e efeitos, a fim de agir da melhor maneira possível. O que há no estado de natureza é a linguagem mental, por isso os cálculos se processam somente por meio dessa linguagem (o que podemos considerar de uma certa forma como algo racional, uma vez que os atos não são puramente instintivos, mas que associam imagens e resultam em uma opinião). Contudo, sem um cálculo mais apurado, podemos supor que as ações busquem sempre satisfações individuais, deixando-se de lado um bem coletivo. Sem uma regulação dessas ações o resultado seria uma busca livre dos objetos que satisfariam os apetites de cada um, gerando atrito entre os homens. Não haveria a segurança de posse dos objetos de desejo, ou mesmo, o equilíbrio das relações que encontramos em uma sociedade. Dos homens podemos dizer que apesar de suas diferenças de corpo e de espírito, são todos iguais no que se refere à esperança de satisfação de seus desejos, pois apesar de uns serem mais fortes que outros, apesar de uns parecerem mais capazes que outros, todos se julgam aptos a gozarem seus apetites: “... A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em 6 conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.” “Quanto às faculdades do espírito (...) encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade da força.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII p. 74) Nesse estado onde as garantias da vida e da propriedade não estão asseguradas é preciso encontrar meios para que isso se torne viável. Desse modo no estado de natureza o poder é essencial para essa garantia. O poder constitui-se nos meios que possuo para garantir a minha vida e os meus bens. No entanto esse poder é facilmente sucumbido por um poder maior que o meu. Os homens de maior poder podem, se quiserem, apropriar-se dos bens de homens de menor poder, e como no estado de natureza nada assegura o direito de propriedade com certeza a busca por mais poder ocorre. É da natureza humana que essa busca ocorra, pois os homens tem: “... um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte.” (Hobbes, Leviatã, cap. XI p. 60) Sem leis civis e sem governo essa busca pode ocorrer de forma a provocar a guerra entre os homens, dado que seus desejos são diferentes entre si. O bem adquirido por umpode ser o bem desejado por outro, e sem nenhum poder capaz de eficientemente regular essas relações o estado de guerra é inevitável. Nesse estado não há justiça e nem injustiça, pois como não existem leis é impossível julgar quem está certo e quem está errado: “... Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII p. 77) Existem é claro as leis de natureza, que são aquelas que já estão intrínsecas na natureza humana. São aquelas que dizem que não se deve matar, que se deve preservar a vida, enfim, aquelas que naturalmente nos levam a entender que não devemos fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que nos fizessem. Mas infelizmente no estado de natureza não existe um poder que faça com que isso se cumpra. 7 O poder é somente regulado pela força e guiado pelas paixões. Não significa que a todo momento um homem queira aniquilar outro para obter seus bens, porém a possibilidade disto é que gera o estado de insegurança e guerra: “... Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII p. 75) É de se esperar que a vida em sociedade seja inviável, que a competição, a desconfiança e a busca da glória resultem em paixões que busquem somente o bem próprio, gerando assim a discórdia entre os homens. Podemos afirmar, no entanto, que apesar de ser possível, por um lado, constatar que o homem no estado de natureza é de uma certa forma social, porque exerce relações com outros homens, relações essas de puro poder, por outro podemos afirmar que essa aparente sociabilidade não dá conta da garantia de uma vida próspera e segura. Desse modo faz-se necessário criar de uma maneira artificial uma situação em que os homens tenham a possibilidade de garantir da melhor forma possível o maior de seus bens: a vida. É necessário que as relações de poder transformem-se em relações de direito. Isso tudo só pode ocorrer com a instituição de um poder de direito em uma sociedade de direito. Faz -se necessária à instauração de um poder que diga o que é justo e o que é injusto e que garanta o cumprimento dessa justiça. Como esta só existe em comunhão com as leis, a solução é a instauração de um Estado civil com leis civis, ou seja, leis criadas a fim de regulamentar a harmonia e a garantia da vida em sociedade, levando as paixões a tenderem para a sustentação do Estado que visa o coletivo e não para a individualidade do ser humano: “... Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis de natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição”.(Hobbes, Leviatã., cap. XVII, p.104). 8 2.2 A Passagem para o Estado civil Para que esta passagem ocorra e seja legítima é preciso o consentimento de todos, é necessário que todos autorizem, para que assim o novo estado tenha o poder de fato, capaz de propiciar aquilo que antes era inviável. Com certeza a busca, os desejos humanos, sempre existiram e sempre existirão, pois é isso que move os seres humanos, é isso que dá vida e alento as relações entre os indivíduos. Portanto, o caminho não é suprimir as paixões, mas direcioná-las em favor do Estado. Existindo algo que possa garantir todos os benefícios que inexistem no estado de natureza é fácil compreender o desejo e a necessidade dos homens em passar de um estado natural para uma vida em sociedade. A garantia da paz e da propriedade e consequentemente de uma vida melhor, são as razões que levam os homens a desejarem este novo Estado: “... O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza (...)”(Hobbes, Leviatã, cap. XVII, p. 103) No estado de natureza as relações de puro poder, localizadas no âmbito do discurso mental e que levam a guerra, fazem com que os indivíduos sejam levados a buscar relações de direito, localizadas no discurso verbal e presentes somente no Estado civil. As relações de poder levam a insegurança, enquanto as relações de direito buscam instituir um poder legítimo, que visa propiciar um estado social através da razão. 9 O Estado civil aparece primeiramente como algo puramente jurídico. É um ente de razão, porque é criado no âmbito da razão, no âmbito do discurso verbal. O Estado é o resultado de cálculos da razão, que medindo causas e efeitos, mostra que a única maneira de se preservar a vida e garantir a propriedade é através da sociedade, da instituição de um Estado civil, de um poder maior que todos os outros, capaz de conduzir de maneira harmoniosa todos os que a ele aceitarem submeter- se. A forma de este Estado ser instituído é através de um pacto. É necessário que todos aceitem esta nova forma de vida, a fim de que ela aconteça. Este pacto é feito através da autorização de todos. O poder de um Estado só pode ser maior que todos os outros poderes, se todos os indivíduos autorizarem que seus poderes individuais formem um único poder soberano, capaz de produzir os benefícios necessários à preservação da vida de cada um. Ocorre a transferência de poderes para formar um único poder. Isso significa dizer que cada indivíduo abdica daquela liberdade irrestrita que tinha de fazer o que achasse melhor para a preservação e bem estar de sua vida, para deixar esta decisão nas mãos de um poder soberano. É a restrição da liberdade em troca da garantia de uma melhor manutenção da vida. Antes se podia buscar tudo, mas não havia direito legítimo a nada, agora não se pode buscar tudo, mas há legitimação do direito de propriedade. Os indivíduos aceitam de comum acordo e livremente eleger um poder de fato. Na verdade, os homens por medo do miserável estado em que se encontram preferem abdicar da liberdade de seus poderes sobre todas as coisas, para transferirem esse poder para o Estado. Assim os indivíduos todos aceitam serem governados por um poder maior, que é a soma dos poderes de cada um, transformando o Estado civil em único e absoluto detentor das decisões que melhor conduzirão a vida em sociedade: “... Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que écomo se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do 10 Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. (...)”(Hobbes, Leviatã, cap. XVII, p. 105 e 106) Após este primeiro momento puramente jurídico surge a figura do soberano, que irá conduzir esse Estado da melhor forma possível. É importante ressaltar que o soberano não participa desse pacto, uma vez que seria impossível que ele fizesse um acordo com cada pessoa. O soberano só poderia fazer um pacto com o povo (todos os indivíduos reunidos), mas antes da instituição do Estado só existe multidão (pessoas individuais), sendo por isso inviável tal acordo. O soberano passa a possuir o poder absoluto e não está sujeito ao pacto, ficando assim acima de qualquer outro poder dentro do Estado. 2.3 As paixões dentro do Estado civil O que pode parecer é que com a instituição do Estado civil as paixões sucumbiram-se a um poder jurídico. É como se no estado de natureza as paixões humanas fossem o combustível de todas as ações e que no Estado civil esse combustível fosse substituído por um poder externo que decide agora todas as minhas ações. Se assim for, o que aconteceu com as paixões? Teriam dado lugar à razão e desaparecido? Teriam sido reprimidas pelo poder soberano? Esta última opção parece ser a mais aceitável de todas, pois desaparecer é de fato impossível uma vez que são elas que movem todos os homens. No entanto, a repressão de algo, soa com um tom negativo, como se fosse obrigado, forçado a realizar, como se na primeira oportunidade o desejo fosse reverter essa situação. Para um poder que necessita ser soberano, isso seria uma constante ameaça a sua soberania. Como resolver então a questão das paixões, a fim de que todos optem pela submissão ao poder soberano? O que acontece com as paixões no âmbito do Estado constituído? 11 Diante desse novo ambiente proporcionado pelo Estado civil, pelo poder soberano, é racional afirmar que também as paixões sofram uma mudança considerável. Na verdade não são as paixões que mudam em si, mas são os homens que passam a desejar de forma diferente, pois as causas que geravam as paixões no estado de natureza são diferentes das causas que geram as paixões no Estado civil. Antes havia a competição que fazia os homens combaterem pelo lucro. Agora existe a possibilidade de prosperar e de se garantir a propriedade. Antes havia a desconfiança, que levava os homens a combaterem pela segurança. Agora existe a proteção do Estado. Antes havia a busca incessante pela glória, que levava os homens a combaterem pela aquisição de poder. Agora existe um poder soberano de direito que proporciona a garantia das relações de direito. A liberdade de cada indivíduo é a liberdade a que o Estado prevê para os súditos, pois o Estado é livre para agir conforme julgar melhor para a obtenção de seus interesses. Se todos pudessem ser livres em tudo, a segurança e a paz estariam ameaçadas e o estado de natureza retomado. O mesmo acontece entre os Estados, pois quando eles são livres entre si, ou seja, são independentes uns dos outros e, portanto, livres para agir como melhor julgarem, todos se encontram em condição de guerra: “... Porque tal como entre homens sem senhor existe uma guerra perpétua da cada homem contra seu vizinho, sem que haja herança a transmitir ao filho nem a esperar do pai, nem propriedade de bens e de terras, nem segurança, mas uma plena e absoluta liberdade de cada indivíduo; assim também, nos Estados que na dependem uns dos outros, cada Estado (não cada indivíduo) tem absoluta liberdade de fazer tudo o que considerar (isto é, aquilo que o homem ou assembleia que os representa considerar) mais favorável a seus interesses. Além disso, vivem numa condição de guerra perpétua, e sempre na iminência da batalha (...)”(Hobbes, Leviatã, cap. XXI, p. 131 e 132) O soberano irá procurar através das leis ditar o que no Estado civil passa a ser justo e injusto. Não será mais o papel arbitrário das paixões a regular a vida dos homens, mas sim o papel do poder transferido a um único indivíduo pela vontade comum dos súditos. Assim é racional conceber que os homens tendam a preferir um Estado civil a um estado de natureza, assim como também é racional compreender que as paixões dos homens mudam de foco, desejando situações que levem a paz ao invés 12 de situações que levem a guerra, preferindo um poder soberano capaz de nutrir necessidades e aspirações a vários poderes sem fundamentos sólidos. Portanto, as paixões não saem de cena, mas mudam de foco, pelo menos aparentemente, no âmbito do Estado. Torna-se essencial para o poder soberano que as opiniões dos súditos (paixões) estejam a seu favor. É necessário que os súditos validem a soberania através da aceitação e autorização por meio do pacto para que assim ela permaneça absoluta. “Fazei aos outros aquilo que quereis que eles vos façam”, esse é o resumo das leis naturais. Se todos agissem dessa maneira a desconfortável situação encontrada no estado de natureza não existiria. Sabe-se porém que as leis de natureza obrigam somente em consciência, sendo pois necessário a instituição de algo que faça valer os acordos entre os homens. A única forma é aplicar ao não cumprimento dos pactos um castigo, para então por medo desse castigo garantir o acordado. É o medo que leva os homens a desejarem um estado diferente do estado de natureza, é o medo da morte, da vida miserável. E é o medo que também faz com que os pactos sejam cumpridos. O medo, sempre visto como uma paixão negativa, na verdade exerce papel fundamental na passagem do estado de natureza para o Estado civil, bem como atua no sustento dos pactos e consequentemente do Estado, uma vez que este é instituído por meio de um pacto de autorização. 4 CONCLUSÃO O Estado enquanto ente de razão é eterno, ou seja, o Estado civil enquanto visto no plano jurídico é absoluto e indissolúvel, porém o que rege e nutre esse Estado, a forma de governo, pode levar a sua dissolução. É a capacidade de governo que garante a sustentação de todo o sistema jurídico que torna o Estado imponente. É a capacidade de governar que mantém absoluto o Estado civil. É a capacidade do soberano em atender as paixões dos súditos quanto à proteção e prosperidade da vida em sociedade que fizeram com que os homens desejassem 13 sair do lastimável estado em que se encontravam. As paixões dos súditos agora não tendem mais para aquelas situações que produziam um ambiente de guerra entre todos, agora elas tendem para a paz e o bem estar oferecido pelo Estado. Por isso um governo que não satisfaça essas aspirações é um mau governo. É necessário que o soberano mantenha as opiniões dos súditos favoráveis ao Estado, uma vez que são elas que mantém o povo fiel e obedienteao poder civil. Não basta instituir o Estado civil, é preciso mantê-lo absoluto. As paixões são circunstanciais, ou seja, os desejos passam de um objeto a outro dependendo das situações. Se os indivíduos desejaram o Estado civil é porque no estado de natureza as circunstâncias não eram favoráveis a eles, assim, é essencial que o governo procure sempre proporcionar uma sociedade que mantenha os homens a seu favor. É importante dizer que o plano jurídico (o Estado enquanto ente de razão, edifício jurídico) caminha lado a lado com as paixões, ou melhor, os dois se entrelaçam, seguem juntos. O fato de os súditos obedecerem ao poder soberano, não os exime de seus poderes, de suas paixões. 14 5.REFERÊNCIAS HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Col. Os Pensadores). ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2005. 15
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