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O Barcelona e a nova ciência das redes

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O Barcelona e a nova ciência das redes 
Chelsea é uma remanescência do futebol do século passado. No entanto, como as regras do 
jogo continuam no passado, já se sabia, antes da partida, que tudo poderia acontecer 
Augusto de Franco* 
 Aqui onde moro atualmente, nos Jardins, em São Paulo, ouvi na última terça-feira, ao 
final da partida Barcelona x Chelsea, gritos enfurecidos: "Chupa Barcelona Filho da Puta!". A 
partida empatou (2 x 2), mas o Barcelona foi eliminado da Champions League porque precisava 
vencer por dois gols et coetera. 
 Fiquei pensando se Albert Camus, prêmio nobel de literatura, não tinha razão quando 
dizia que de todas as suas experiências na vida, a que maior conhecimento lhe proporcionou 
sobre os homens foi o futebol. Aquele buzinaço que se seguiu à partida, comemorando o não-
futebol do Chelsea, me disse muita coisa desagradável. 
 Revelou, de certo modo, as entranhas da intolerância. Mais do que isso, entretanto, 
soou como um eco lúgubre e uma reprodução invertida dos lamentos dos seres humanos 
aprisionados nas redes centralizadas. 
 Quem viu o jogo pôde perceber que o Chelsea, a partir de certo momento (coincidente 
com o início da partida, hehe), praticamente não jogou bola. Matou o tempo. Matou o futebol. 
Mesmo assim, contou com o entusiasmo de fervorosos torcedores. Mais do que isso, contou 
com bad feelings de uma multidão que mais parecia estar se vingando da arte. 
 Arte? Como é possível? Para com isso! Está errado! O que queremos é a guerra. Não 
queremos um lírico Iniesta fazendo firulas no meio-campo. Queremos a força, a garra, o vale-
tudo orientado pelo resultado do gigante Drogba. Fora Iniesta, seu anão imprestável! Drogba é 
o nosso herói! 
 Bem, devo dizer que meu interesse no assunto não é propriamente futebolístico e sim 
investigativo e decorre de minhas explorações na nova ciência das redes. Há bastante tempo 
venho observando como a topologia da rede “produz” o comportamento coletivo. 
 É claro – não vou negar – que prefiro me deleitar assistindo ao novo futebol criativo do 
Barcelona do que o futebol de resultados dos times ingleses e italianos que envelheceram mal 
e que só sabem dar chutão pra frente para tentar surpreender uma defesa desarmada. Ainda 
não me deformei a ponto de gostar da realpolitik: para isso não preciso de futebol, basta 
acompanhar a guerra, a luta política pervertida como arte da guerra ou a concorrência 
simétrica adversarial praticada pelas empresas hierárquicas. 
Mas isso agora não vem ao caso. 
 Diz-se que o Barcelona perdeu porque ficou vulnerável. Concordo. Acho que o futebol 
do Barcelona é extremamente vulnerável, mesmo, não a um ou outro adversário que tenha 
estudado suas fraquezas, e sim às regras do futebol, que não acompanharam a evolução do 
futebol. 
 O velho futebol do século 20 é – como observou argutamente George Orwell no artigo 
“The Sporting Spirit” (London: Tribune, December 1945) – uma espécie de “guerra sem 
mortes” (“It is war minus the shooting”, escreveu ele textualmente). Não é bem um jogo, uma 
atividade lúdica da qual se possa tirar fruição, admirada em si mesma ou por si mesma, uma 
coreografia estrutural coletiva onde as coordenações de coordenações comportamentais se 
encaixam sinergicamente (a essência da dança e daí a arte), mas um vale-tudo no qual se 
exaltam as capacidades dos indivíduos de obter por qualquer meio a vitória, seja dando uma 
joelhada desleal nas costas do jogador adversário, seja falsificando abertamente as regras 
(pois, afinal, “guerra é guerra” e na guerra, como se sabe, é necessário que a primeira vítima 
seja a verdade). 
 Parece óbvio que o futebol one-touch oriented do Barcelona exigiria novas regras no-
touch oriented. Por exemplo, as regras atuais do futebol deixam um jogador tirar outro 
fisicamente da jogada com um encontrão (que se for feito com o ombro ou com o tronco, na 
maior parte dos casos não é falta, e sim “disputa normal” do jogo). Ora, nessas condições, 
quem se prepara melhor para o vale-tudo (quem se prepara para a guerra) tende a prevalecer. 
 Transformado em uma espécie de variação de baixa intensidade do futebol americano, 
o futebol vai assim se rendendo aos atributos físicos dos jogadores individualmente e à 
chamada tática traçada de antemão por algum chefe-técnico que monta seus ardis com base 
no comando-e-controle. Não é à toa o deslizamento de categorias próprias da guerra para o 
futebol: tática, estratégia, ofensiva, defensiva, espírito de corpo ou coesão e aplicação 
individual (quer dizer, subordinação a um esquema pré-determinado). 
 Faz sentido e a utilização desses conceitos só corrobora a hipótese de George Orwell. 
Mas o problema é que tudo isso favorece o ânimo adversarial e diminui as nossas 
oportunidades de sentir aquele prazer tipicamente humano de contemplar as interações 
sociais (quer dizer... aquelas interações tipicamente humanas). 
 O Chelsea é uma remanescência do futebol do século passado. No entanto, como as 
regras do jogo continuam no passado, já se sabia, antes da partida, que tudo poderia 
acontecer. Quer dizer: que o não-futebol poderia vencer o futebol. Como venceu, pelas regras. 
Não apenas o Chelsea, mas qualquer outro time poderia (e poderá) vencer o Barcelona, sem 
violar as regras. Porque é fácil derrotar o Barcelona. Basta, para tanto, derrubar seus 
jogadores. Se o jogador não está em pé ele não pode jogar. Ponto. 
 No entanto, o futebol do Barcelona não foi derrotado pelo futebol de outros times. 
Nem poderá sê-lo. Mesmo que o Barcelona venha a perder todas as próximas partidas que 
disputar, parece óbvio que um número maior de caminhos (mais passes por unidade de 
tempo) significa a configuração de uma topologia de rede mais distribuída do que centralizada. 
E que quanto mais distribuída for a topologia da rede, mais conectividade e mais interatividade 
haverá. E que, assim, mais possibilidades surgirão de fazer a bola chegar ao gol adversário (a 
regra suprema do jogo). É matemático. O que não quer dizer que ocorrerá sempre. 
 
 
 
 Eis os diagramas ilustrativos (publicados originalmente por Paulo Ganns, na Escola-de-
Redes) do jogo Barcelona x Santos em dezembro de 2011. Veja-se a diferença das topologias 
(caricaturadas na imagem para evidenciar a diferença). 
 
E eis agora minhas variações do diagrama do Paulo Ganns, comparando a rede distribuída 
configurada pelos passes do Barcelona com a representação de um emaranhado quântico 
(acima) e a rede centralizada do Santos Futebol Clube com o organograma de uma organização 
centralizada (abaixo). 
 
Pois bem. O mais importante, do ponto de vista das redes, vem agora. 
 O campo social gerado pela alta interatividade do Barcelona (um time highly 
connected) enseja a manifestação daqueles fenômenos acompanhantes da auto-organização e 
da inteligência coletiva: seus jogadores se aglomeram (clustering) e desaglomeram de acordo 
com o fluir da partida, jogam a maior parte do tempo sem a bola, mudando de lugar 
continuamente (o time é realmente mobile), praticam o imitamento ou cloning (clonagem 
variacional dos movimentos dos outros jogadores do mesmo time e, às vezes, do time 
adversário), eventualmente enxameiam (swarming) e diminuem o espaço-tempo para os 
fluxos do adversário; quer dizer, contraem o tamanho social do mundo composto pelos vinte e 
dois players (o Barcelona provoca o efeito Small-World). 
 Basta observar: seus jogadores são pequenos, seus passes são pequenos, o Barcelona 
causa esse amassamento (crunching) e talvez esta seja sua principal virtude: o Barcelona é a 
prova viva de que small is powelful! 
 Por tudo isso, não tenho receio de afirmar que há mais inteligência coletiva embutida 
num jogo do Barcelona do que em todas as partidas travadas pelo Real Madrid, ainda que este 
último possa ter craques com mais assertividade e mais combatividade e sejam mais – comodirei? – results-oriented do que os jogadores do Barcelona. 
Bem... aqui começa minha investigação. 
 O jogo aparentemente bobo do Barcelona, de ficar trocando passes redundantemente 
na intermediária, é em geral censurado pelos comentaristas futebolísticos (e por outros 
metidos a profundos conhecedores de futebol) como sintoma de falta de objetividade. Mas a 
contração de redundância (repetição de caminhos) com distribuição (multiplicação de 
caminhos) é o que compõe a resiliência, uma das características principais da sustentabilidade 
(ou do que chamamos de vida). 
 O tempo de posse de bola é um indicador indireto dessa resiliência quando revela a 
frequência da mudança de trajetória da bola e a repetição de caminhos (não é raro ver um 
jogador do Barcelona trocar passes com outro jogador mantendo os dois praticamente as 
mesmas posições, ou num movimento solidário de dois corpos, como se fosse um haltere se 
deslocando ou Plutão e Caronte em translação). 
 Sim, o Barcelona imita a vida. Ao contrário do que se pensa, a vida nunca trabalha com 
economia de esforços, e sim com repetição intermitente (iteração) de ações similares. E a vida 
não economiza esforços simplesmente porque não precisa fazer isso, porque multiplicação de 
caminhos configura abundância, e não escassez. 
 O Barcelona clona o funcionamento do formigueiro. Como as formigas, seus jogadores 
não têm posição fixa, mas podem mudar de função várias vezes em uma mesma partida. Como 
nos mostrou a cientista Deborah Gordon (1999), em “Formigas em ação”, ao contrário do que 
se acreditava, as formigas mudam de função (dependendo das necessidades coletivas do 
formigueiro, uma forrageira pode virar “soldado”, por exemplo). 
 
 Os jogadores do Barcelona também não têm dificuldade de mudar de posição (ou de 
função). Usando as antigas denominações (no caso, merecidas): o ponta-esquerda pode virar 
ponta-direita, o meio-campista pode virar beque ou centroavante, qual o problema? 
 O problema é que pensava-se em produtividade a partir da especialização, do 
desempenho ótimo de funções fixas: como na produção fordista, um indivíduo que repetiu 
milhares de vezes a mesma função tem mais chances de ser mais rápido e menos chances de 
errar no exercício daquela função determinada. Isso é válido, por certo, para a reprodução 
mecânica das mesmas ações. Aplicado ao futebol, porém, contribui para eliminar a 
criatividade, sobretudo a criatividade coletiva, quer dizer, o ambiente favorável à criação, à 
inovação. Instaura-se, assim, o futebol reprodutivo, a fábrica de jogar bola da sociedade 
industrial. 
 Nesse ambiente reprodutivo o que se destaca é o craque (o indivíduo), não o time (a 
rede social composta pelos jogadores interagindo segundo determinado padrão). Porque, em 
tais circunstâncias estruturais da rede centralizada (configurada pelo jogo retrógrado, quer 
dizer, pelos caminhos escassos que a bola percorre), só a genialidade individual pode romper o 
esquema, surpreender, sair fora da caixa. Tudo, então, passa a depender dos craques, dos 
indivíduos. É o futebol-burro com a sobressaliência dos pontos fora da curva, daqueles 
indivíduos inteligentes capazes, como se diz, de definir a partida com um lance magistral. 
 E é por isso que se atribui, não raro, o sucesso do Barcelona à genialidade do craque 
Messi. Sim, Messi é de fato um jogador excepcional, mas o futebol do Barcelona não depende 
de suas jogadas excepcionais. Com toda certeza as interações da dupla Xavi Hernánde-Andrés 
Iniesta e deles com o restante do time (com Lionel Messi, inclusive) são mais decisivas para o 
excelente comportamento coletivo (do time) do que os lances geniais individuais do fabuloso 
artilheiro argentino. 
 Essas bobagens são ditas porque ainda é bastante generalizada a crença de que o 
comportamento coletivo pode ser explicado a partir dos atributos dos indivíduos, de que a 
inteligência coletiva é a soma das inteligências dos indivíduos, e não uma nova qualidade que 
emerge das relações entre eles. 
 Os gritos enraivecidos de terça, comemorando a eliminação do Barcelona (sim, porque 
o time não perdeu o jogo, foi desclassificado pela tabela), revelam que existe base social para 
legitimar mais um retrocesso no futebol. Dir-se-á que o “estilo-Barça” esgotou-se, que o 
“futebol-arte” não pode resistir ao “futebol-de-resultados”, que “Messi entrou numa fase 
ruim” e outras besteiras semelhantes. Já se dá até como certa a derrota do Barcelona para o 
Real Madrid no Campeonato Espanhol (e isso pode acontecer mesmo). 
 Assistiremos, provavelmente, a mais uma das tristes revoltas daqueles escravos que 
introjetaram a escravidão a tal ponto que, em vez de lutarem para se libertar dessa condição, 
não suportam ver que existem pessoas livres e querem torná-las também escravas como eles.

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