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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Ringo Bez de Jesus A interpretação médica para surdos: a atuação de intérpretes de LIBRAS/Português em contextos da saúde Florianópolis 2013 Ringo Bez de Jesus A interpretação médica para surdos: a atuação de intérpretes de LIBRAS/Português em contextos da saúde Trabalho apresentado à Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para a conclusão do Curso de Graduação Bacharelado em Letras LIBRAS. Professora Orientadora: Dr. Audrei Gesser Florianópolis 2013 Para minha amada mãe Rose. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha família, aos meus pais, Rosali (Rose) e Aguinaldo (Carioca) e aos meus irmãos, Rubens Bez, Rubia Bez, Cristiane Bez e Elizangela Bez, por me encorajar na aventura diante da vida, por acreditarem em meu sonho e por contribuírem significativamente na formação de meu caráter e na estabilidade emocional vivida em nosso lar. Queridos pais cada esforço não foi em vão para que seu primeiro filho pudesse se formar em uma Universidade Pública e ser orgulho de todos. A meus antigos e novos amigos, pelos maravilhosos momentos vividos e as marcas que serão deixadas eternamente em meu coração, em especial aos meus amigos Diego Martins, Michel Douglas, Tomaz Beche e Valdelucio Marques que carrego a minha vitória pessoal com muita gratidão pelos momentos de dor e alegria que passamos juntos. Ao Márcio Correia das Chagas, pelo apoio e pela dedicação que me sustentou durante a minha graduação, em especial ao carinho e amor dedicado ao nosso tempo vivido nessa etapa de minha vida. Aos Surdos, pelo maravilhoso caminho percorrido até hoje, pela paciência e pelo carinho que depositaram em mim. Em especial, a minha primeira e única professora de LIBRAS, Luciana Silva, pela dedicação e pelo esforço, que, aos meus 15 anos, depositou em minhas mãos e que me trouxe a este horizonte a comunidade surda brasileira. Aos professores do Letras LIBRAS aqueles que contribuíram diretamente em minha formação acadêmica e como intérprete de LIBRAS. Com saudações especiais a minha orientadora Audrei Gesser pelo desempenho e pela dedicação destinada ao acompanhamento desse trabalho e à professora Silvana Aguiar pelos maravilhosos momentos vividos e trocas de figurinhas que contribuíram com muita ênfase para minha formação como intérprete. À equipe de Tradutores e Intérpretes de LIBRAS/Português da UFSC, onde com toda sua experiência e competência foi um dos pilares em minha vida de formação acadêmica e pessoal nessa Universidade, cujo papel foi fundamental para o meu desenvolvimento e aprimoramento profissional durante a minha graduação. Aos diretores da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral, Valdo Cavallet e Vera Lúcia Israel, que diante de todos os impedimentos e barreiras puderam sempre me impulsionar a pensar na academia como um espaço social para humanização, onde os pilares que me rodeiam fazem parte do conhecer-compreender, compreender-propor e do propor-agir. Ao coletivo Gozze! de luta pela diversidade sexual, pelo apoio e por me fazer vivenciar uma Universidade mais plural pautada no reconhecimento e na visibilidade das diferenças. Enfim, a todos que aqui não pude citar, e que se pudesse, com certeza seriam muitas páginas e nomes registrados, serei eternamente grato pelos momentos de alegria vividos e pelos incansáveis sorrisos que troquei com cada um de vocês. RESUMO Este trabalho de conclusão de curso tem por finalidade, através de uma pesquisa de campo, de cunho exploratório, descrever a atuação de intérpretes de LIBRAS/Português em contextos médicos. Nesse sentido, os dados foram obtidos através da aplicação de questionários e entrevistas em vídeo, buscando informações de como se efetiva a interpretação para surdos na área da saúde. A interpretação em contextos médicos é um dos ramos da grande área emergente dos estudos da interpretação comunitária que merece uma atenção especial dos pesquisadores, visto a grande importância e o papel desempenhado na saúde pública dos cidadãos. No Brasil, estudos em interpretação médica em contextos de línguas orais também carecem de mais atenção, da mesma forma os contextos de línguas de sinais estão invisibilizadas, visto que a politica de acessibilidade destinada as ditas “pessoas com necessidades especiais”, é uma política mundial de respeito às diferenças e à pluralidade. Contudo, tanto a atenção dispensada à formação destes profissionais como também o desconhecimento das realidades de atuação por parte dos profissionais da saúde apresentam uma lacuna deficitária, e isto se percebe quando se examina a atuação dos intérpretes na área médica. Palavras-chave: intérprete de LIBRAS/português; interpretação médica; comunidade surda. ABSTRACT This study aims at describing, through a field research of an exploratory nature, the role of LIBRAS/Portuguese interpreters in medical contexts. Accordingly, the data was collected through questionnaires and videos recordings, seeking information on how effective interpretations were for deaf people in healthcare settings. Interpretation in medical settings is one of the branches of a great emerging field in community interpreting studies that deserves special attention from researchers especially considering that the health is of great importance in citizens’ life. In Brazil, studies in medical interpretation in the context of oral languages also require more attention. In the same way are the contexts of sign languages, because the policy of accessibility for "people with disabilities" is a global policy acknowledging differences and diversity. However, both the focus regarding these professionals training as well as the lack of knowledge of working realms by the health professionals present a huge gap, and this is perceivable when one examines the performance of sign language interpreters in the medical field. Keywords: LIBRAS/Portuguese interpreters; medical interpretation; deaf community. SUMÁRIO AGRADECIMENTOS RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 1 A COMUNIDADE SURDA BRASILEIRA E A LIBRAS .................................................. 12 1.1 Os intérpretes de LIBRAS/Português e sua formação ........................................................ 15 1.2 As legislações vigentes do Brasil ....................................................................................... 18 2 O SUS E AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL .......................................................... 20 2.1 O atendimento dos surdos na saúde pública ....................................................................... 22 2.2 A interpretação em contextos da saúde .............................................................................. 26 2.3 O conceito de intérprete-médico ......................................................................................... 28 3 A ABORDAGEM QUALITATIVA COMO PILAR METODOLÓGICO DE PESQUISA31 3.1 Procedimentos para coleta e análise dos dados .................................................................. 33 3.2 Descrição do contexto da pesquisa e dos participantes ...................................................... 34 4 ENTRE O LEGAL E O REAL: PRÁTICAS E DESAFIOS DELINEADOS NOS DISCURSOS SOBRE A RELAÇÃO MÉDICO-INTÉRPRETE-PACIENTE SURDO ......... 36 4.1 As relações de trabalho na interação médico-intérprete-paciente surdo ............................ 39 4.2 A lei é Legal! Resistências e visibilidade das legislações nos espaços sociais .................. 48 4.3 A formação do intérprete como o caminho frente às demandas no cenário brasileiro ....... 49 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 54 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 56 ANEXO 1 – Modelo de questionário aplicado com os intérpretes de LIBRAS ...................... 59 ANEXO 2 – Modelo de questionário aplicado com os agentes da saúde ................................ 60 ANEXO 3 – Modelo de questionário aplicado com os surdos ................................................. 61 9 INTRODUÇÃO A proposta para este trabalho de conclusão de curso é analisar a interpretação em contextos da saúde, com foco na interpretação médica. Segundo Queiroz (2011), os estudos voltados para interpretação médica são minimamente investigados no Brasil, e esses serviços, quando ofertados, têm se mostrado bastante despreparado para receber os estrangeiros e atender a comunidade brasileira não falante da língua portuguesa. Todavia, tais discussões e politicas públicas de acessibilidade estão mais avançadas se comparadas com os serviços que demandam a interpretação para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). O foco atribuído a este objeto de estudo é instigado pela necessidade de se pensar como as comunidades linguísticas minoritárias que não falam a língua oficial do seu país são assistidas em contextos da saúde, via mediação do intérprete de LIBRAS. Sabe-se que o português não é a única língua falada no território brasileiro, e que tantas outras línguas (como é o caso das línguas indígenas1 e da língua de sinais) acabam sendo invisibilizadas no dia a dia mesmo asseguradas por políticas públicas de acesso à saúde e a promoção de serviços públicos essenciais para população num contexto geral. Então, como se efetiva a interpretação para surdos no contexto médico? No que tange à política voltada à comunidade surda brasileira, alguns instrumentos são ofertados, mas acabam mascarados diante de outros interesses em nome das políticas de inclusão social. Neste caso, pode-se destacar o serviço de intérpretes educacionais de LIBRAS/Português, garantido pela Lei nº 10.436/2002 e assegurada pelo decreto no 5.626/2005, que institui a presença do profissional tradutor intérprete em todos os contextos privados e públicos, mas que na prática está longe de ser instituída, e na pior das hipóteses é um profissional pouco reconhecido e/ou valorizado. Diariamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) atende vários cidadãos surdos com diferentes diagnósticos, desde tratamentos complexos a consultas eletivas, deslocando-se regularmente às Unidades de Saúde ou até mesmo ao Programa de Saúde da Família sem qualquer atendimento de interpretação em sua língua materna nesses espaços públicos, quando são assistidos pelo intérprete ad hoc2, providenciado pelo próprio paciente, e muitas 1 É importante ressaltar que no ano de 2005, o Ministro do Estado da Saúde, Senhor Humberto Costa, emitiu a portaria de número 1062/GM de 4 de julho de 2005 que institui a Criação do Selo Hospital Amigo do Índio e do Comitê de Certificação e Avaliação do Selo Hospital Amigo do Índio, que tem como objetivo principal a gestão da política nacional de atenção à saúde para os povos indígenas, respeitando as suas características étnico-culturais das comunidades. http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2005/GM/GM-1062.htm 2 Segundo Queiroz (2011, p.50), a figura do intérprete ad hoc pode ser definida como um mediador bilíngue (membro familiar, amigo, profissional da saúde, voluntários e até mesmo crianças) que interpretam o diálogo entre paciente e provedor de saúde, sem um treinamento especifico. 10 vezes sem competência para atuar no respectivo procedimento. Considerando-se que a LIBRAS foi reconhecida, via Decreto nº 5626, entendemos que é direito do cidadão brasileiro surdo acessar a saúde em sua integridade. Para tanto, as políticas públicas devem assegurar esse direito via atendimento mediado por um profissional intérprete. Se observarmos o artigo 25 do decreto acima citado podemos entender que muitas questões ainda estão descobertas pela prática diária da rede de atendimento do SUS: CAPÍTULO VII DA GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE DAS PESSOAS SURDAS OU COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA Art. 25. A partir de um ano da publicação deste Decreto, o Sistema Único de Saúde - SUS e as empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, na perspectiva da inclusão plena das pessoas surdas ou com deficiência auditiva em todas as esferas da vida social, devem garantir, prioritariamente aos alunos matriculados nas redes de ensino da educação básica, a atenção integral à sua saúde, nos diversos níveis de complexidade e especialidades médicas, efetivando: I - ações de prevenção e desenvolvimento de programas de saúde auditiva; II - tratamento clínico e atendimento especializado, respeitando as especificidades de cada caso; III - realização de diagnóstico, atendimento precoce e do encaminhamento para a área de educação; IV - seleção, adaptação e fornecimento de prótese auditiva ou aparelho de amplificação sonora, quando indicado; V - acompanhamento médico e fonoaudiológico e terapia fonoaudiológica; VI - atendimento em reabilitação por equipe multiprofissional; VII - atendimento fonoaudiológico às crianças, adolescentes e jovens matriculados na educação básica, por meio de ações integradas com a área da educação, de acordo com as necessidades terapêuticas do aluno; VIII - orientações à família sobre as implicações da surdez e sobre a importância para a criança com perda auditiva ter, desde seu nascimento, acesso à Libras e à Língua Portuguesa; IX - atendimento às pessoas surdas ou com deficiência auditiva na rede de serviços do SUS e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, por profissionais capacitados para o uso de Libras ou para sua tradução e interpretação; e X - apoio à capacitação e formação de profissionais da rede de serviços do SUS para o uso de Libras e sua tradução e interpretação. § 1o O disposto neste artigo deve ser garantido também para os alunos surdos 11 ou com deficiência auditiva não usuários da Libras. § 2o O Poder Público, os órgãos da administração pública estadual, municipal, do Distrito Federal e as empresas privadas que detêm autorização, concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde buscarão implementar as medidas referidas no art. 3o da Lei no 10.436, de 2002, como meio de assegurar, prioritariamente, aos alunossurdos ou com deficiência auditiva matriculados nas redes de ensino da educação básica, a atenção integral à sua saúde, nos diversos níveis de complexidade e especialidades médicas. Diante deste cenário que por um lado conta com uma política em fase de implementação, cujas instituições da saúde ainda não contam com profissionais intérpretes contratados e/ou concursados em sua grande maioria, há, por outro, uma evidente lacuna na formação desses profissionais para atuar nesse contexto especial da saúde. Diante desta problemática, pretendemos, neste estudo, responder às seguintes perguntas: a) Quais as políticas atuais voltadas ao intérprete de LIBRAS/Português? Como elas estão sendo asseguradas na prática?; b) Como se dá a formação deste profissional para atuar em contextos da saúde?; e c) Quais os desafios do intérprete neste cenário? Como se dá a interação médico- paciente-intérprete? Para alcançar esses objetivos, seguiremos a abordagem de pesquisa qualitativa, com enfoque especial na pesquisa de campo, de caráter exploratório-descritivo. Vale ressaltar que a pesquisa qualitativa tem se mostrado eficiente em analisar dados obtidos em um contexto delineado pelo pesquisador, além da confiabilidade nos dados originados in loco. Nessa abordagem, muitas vezes, as hipóteses fazem parte da vivência do próprio pesquisador com a realidade investigada. Os dados serão gerados por meio de questionários semiestruturados, gravações em áudio e vídeo e através de diários retrospectivos, aplicados aos sujeitos de pesquisa. Portanto, contarão com a participação de surdos pacientes, intérpretes, agentes da saúde e minhas próprias vivências com esse tipo de interpretação. Assim, entendemos que poderemos dar voz e compreender melhor os diferentes pontos de vista dessa interação no contexto médico. Para articular e tentar responder as perguntas dessa pesquisa, organizamos o trabalho da seguinte forma. Na seção 1 apresentaremos um panorama da comunidade surda e o papel da LIBRAS na vida dos cidadãos surdos, bem como os caminhos construídos para a formação dos intérpretes de LIBRAS/Português, todos esses temas relacionados nas legislações vigentes no Brasil. Em seguida, na seção 2, trataremos de alguns itens legais referentes ao Sistema Único de Saúde (SUS) para ancorar a discussão no que diz respeito ao atendimento do indivíduo surdo na saúde pública. Ainda nesta parte, faremos uma discussão teórica sobre a interpretação em contextos da saúde, tentando relacionar o arcabouço da área das línguas 12 orais para o discussão voltada às línguas de sinais. Na seção 3, discorreremos sobre a abordagem de pesquisa, os procedimentos para coleta e análise dos dados, e apresentaremos uma breve descrição do contexto e dos participantes dessa pesquisa. A seção 4 apresentará reflexões com base nos dados coletados, e discutirá sobre as práticas e desafios observados nos discursos quanto a relação dos profissionais da saúde, intérprete e surdo. 1 A COMUNIDADE SURDA BRASILEIRA E A LIBRAS A comunidade surda brasileira tem sua representatividade em população no Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Censo do ano de 2000, entre os 5,7 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência auditiva, um pouco menos de 170 mil se declararam surdos3. Esse dado é de extrema relevância para a visibilidade da comunidade surda e para o reconhecimento de políticas pautadas na diferença linguística desses sujeitos. Os números do censo no nosso País flagram o quantitativo em relação a uma perda auditiva dos indivíduos, mas a história mostra outras narrativas atingindo diretamente a vida dos surdos, pois, se observada de perto, enxergaremos as trajetórias árduas, tristes e cheias de conflitos. Ilustrativo a este respeito é o emblemático Congresso de Milão, ocorrido em 1880. Neste evento, muitos estudiosos, políticos e familiares discutiram a vida dos sujeitos surdos, e na ocasião a língua de sinais, no mundo, foi banida em prol da filosofia oralista na educação dos surdos. Desde então muitos fatos e eventos ocorreram em relação a essa comunidade, marcada sempre pelo descaso das políticas públicas do Estado e pelo não reconhecimento da sua diferença linguística. Se retomarmos um pouco da história da vida dos surdos, será possível observar que eles sempre se organizam em comunidades, as conhecidas Associações de Surdos, ou em Associações Desportivas para Surdos. Nesses espaços, os surdos interagem com seus pares e desenvolvem atividades de interação cultural, artística, esportiva, educativa e também política. Desde pequenos os surdos encontram nessas comunidades um local potencial para desenvolver e adquirir a língua de sinais, visto que a maioria desses sujeitos nascem em famílias que desconhecem a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Neste sentido, as associações de surdos desenvolvem um papel muito importante na luta por direitos e a garantia dos serviços de atenção básica para a população surda. Vale ressaltar que muitas 3 Dado coletado do site Oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=438 13 famílias que têm filhos ou parentes surdos têm seu primeiro contato com LIBRAS dentro dessas comunidades, estabelecendo, depois da primeira visita, encontros semanais regulares e por boa parte da vida. Além das associações de surdos, outra instituição que merece grande respeito e precisa ser lembrada é o Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES), sediada no Rio de Janeiro. Esta instituição, fundada em meados do século XIX, teve como nome representante o surdo francês E. Huet (INES, 2013). O INES foi um marco para educação de surdos no Brasil, onde nos anais da história registra-se que Huet4, em junho de 1855, apresentou ao Imperador D. Pedro II um relatório com a intenção de fundar uma escola para surdos no Brasil. Assim, é notório que situação criada pela institucionalização do INES, no dia 1º de janeiro de 1856, também foi essencial para difusão da LIBRAS para a comunidade surda (e ouvinte) brasileira. Este local foi onde os primeiros surdos puderam ter sua escolarização, alfabetização, educação, profissionalização e socialização com as condições mínimas que atendessem suas especificidades linguísticas. Até o ano de 1908 era considerada a data de fundação do Instituto o dia 1º de Janeiro de 1856. A mudança deu-se através do artigo 7º do decreto nº. 6.892 de 19 de março de 1908, que transferiu a data de fundação para a da promulgação da Lei 939 de 26 de setembro de 1857 que em seu artigo 16, inciso 10, consta que o Império passa a subvencionar o Instituto. Antes desse decreto, os alunos eram subvencionados por entidades particulares ou públicas e até mesmo pelo Imperador (INES, 2013). Desde então, movimentos de todas as ordens foram tomando corpo, e após muita luta e insistência da comunidade surda no ano de 2002, todos puderem celebrar a conquista do reconhecimento linguístico da língua de sinais pelo governo brasileiro. A lei nº 10.436/2002, conhecida como “Lei de LIBRAS”, em seu Art. 1o, é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e outros recursos de expressão a ela associados. Porém, muitos pontos ainda necessitam ser questionados na legislação, emboraa lei reconheça a LIBRAS como meio legal de comunicação dos surdos , em nenhum ponto ela menciona a oficialidade da língua no país, isso coloca em choque a compreensão e construção efetiva de politicas linguísticas no Brasil. A lei de LIBRAS foi um marco para o desenvolvimento de políticas públicas de atenção aos surdos no Brasil. A legislação trata de forma ampla vários aspectos, no nível educacional, social, político, jurídico e da assistência à saúde do cidadão surdo. A LIBRAS é uma língua. Ao contrário do que muitos pensam, ela não é uma linguagem ou uma forma de gesticulação pantomímica, como muitas vezes é definida. A este respeito, 4 Huet foi diretor da Escola para surdos na França: o Instituto dos Surdos-Mudos de Bourges. 14 Gesser (2009, p. 09) reforça: Ainda é preciso afirmar que LIBRAS é língua? Essa pergunta me faz pensar: na década de 1960, foi conferido à língua de sinais o status linguístico, e, ainda hoje, mais de quarenta anos passados, continuamos a afirmar e reafirmar essa legitimidade. A sensação é mesmo a de um discurso repetitivo. Nota-se portanto que a comunidade surda brasileira convive com a descrença das pessoas em relação à sua língua, e portanto acaba tendo que se ocupar pela disseminação da LIBRAS, por que ao fazer isso está também lutando pelo reconhecimento das identidades surdas. Nessa direção, fala-nos Perlin (2004, p. 77) que “[...] as identidades surdas são construídas dentro das representações possíveis da cultura surda, elas moldam-se de acordo com a maior ou menor receptividade cultural assumida pelo sujeito”. No bojo da luta em prol da LIBRAS está também a questão da cultura surda, pois para esse grupo minoritário a língua é também um artefato cultural e tem sua representatividade na constituição dessas identidades, tornando-se assim grande propulsora para discussões mais amplas no nível social e político de inclusão dos surdos nas políticas linguísticas. Essas questões perpassam o trabalho com grupos minoritários. Conforme nos apontam Chaveiro, Barbosa e Porto (2008, p. 581): Estudos mostram que para trabalhar com grupos minoritários é essencial compreender sua cultura, a população surda que usa a língua de sinais, é linguística e culturalmente um grupo minoritário, mas a maioria dos cursos na área da saúde caracterizam a surdez apenas como condição patológica não compreendendo a população surda como um grupo minoritário. A cultura surda é um ponto muito discutido em todos os contextos que apresenta a realidade dessa comunidade, muitos ouvintes negam a existência dessa comunidade e outros ainda a localizam negativamente frente a essa discussão: isso se dá como forma de guetos e de não interação com a cultura ouvinte majoritária. A cultura surda é legítima e merece uma atenção especial na formulação de políticas públicas, pois não se deve ver uma comunidade, um povo e uma diferença sem pensar a cultura. “A cultura surda é o lugar para o sujeito surdo construir sua subjetividade de forma a assegurar sua sobrevivência e ter seu status quo diante das múltiplas identidades” (PERLIN, 2004, p. 78). Contudo, não podemos deixar de lembrar que a comunidade surda vem lutando insistentemente a favor do reconhecimento da diferença desses sujeitos, não em relação ao reconhecimento da “deficiência”, mas pelo olhar da diferença linguística minoritária. Ante mão, para a efetivação dos direitos e acesso a essas políticas, em muitos momentos essa comunidade é resumida a sua questão física e biológica, e não simplesmente a sua diferença linguística: 15 A violência contra a cultura surda foi marcada através da historia. Constatamos, na história, a eliminação vital dos surdos, a proibição do uso de línguas de sinais, a ridicularizarão da língua, a imposição do oralismo, a inclusão do surdo entre os deficientes, a inclusão dos surdos entre os ouvintes. Tudo isso tem se constituído em trucidamento da identidade surda, surdocidio provocado pela presença do modelo de identidade ouvinte, em condescendência a automutilação ou ciborguização dos surdos. (PERLIN, 2004, p. 79) Não se pode negar que, historicamente, esses sujeitos foram alvos da intolerância e desprezo de uma sociedade desinformada e opressora. Muitos relatos e histórias de surdos são diariamente contados e recontados, e o teor desses acontecimentos revelam que muitos surdos se calaram durante anos, com muitos direitos negados, como o é o caso do tardio reconhecimento da sua língua e o direito de ter tradutor/ intérprete de LIBRAS/Português. Essas reivindicações fazem parte de uma gama de pautas da comunidade surda em sua história. Porém, diante das dificuldades, esse movimento surdo vem ganhando espaço e reconhecimento nas conquistas de igualdade, tanto pela sua língua quanto pela capacidade do exercício de cidadania, nos espaços sociais como na educação, no trabalho, na justiça e na saúde. No que concerne essa pesquisa, os pacientes surdos necessitam de uma atenção especial da equipe de saúde. Segundo Chaveiro, Barbosa e Porto (2008), assim como Munari, Medeiros e Duarte (2010), ao atender uma pessoa surda, os profissionais da saúde se deparam com dificuldades para estabelecer uma comunicação eficaz. É necessário discutir esse direito do acesso em língua de sinais nos contextos da saúde. Deve-se levar em consideração que esses sujeitos possuem, assim como nós, ouvintes, o seu direito à cidadania e o respeito pela diferença linguística da sua comunidade. Vejamos agora um pouco da história da formação dos intérpretes de LIBRAS e sua relação com a comunidade surda. 1.1 Os intérpretes de LIBRAS/Português e sua formação A vida dos intérpretes de LIBRAS tem sido marcada e construída concomitantemente à vida dos surdos. Em muitos casos, essa trajetória nasce em contextos religiosos. Assim nos relata Peixoto e Peixoto (2012, p. 2) ao constatarem que “[...] na história é dado um grande destaque à atuação de religiosos na comunidade surda, enquanto existe uma história paralela que é a atuação da comunidade surdas nas religiões”. Os trabalhos realizados pelas pastorais dos surdos e movimentos religiosos protestantes mantiveram durante muito tempo a atuação desses intérpretes no contexto comunitário. Para Pereira (2012), em uma comunidade de Várzea Queimada, no Piauí, onde se concentra um número considerável de surdos no vilarejo, 16 a ação da pastoral católica na vila induziu a comunidade a considerar uma espécie de “surdez genética” e incrementa outras relações morais, principalmente se tratando de parentesco e casamentos. Empiricamente, e por meio da minha própria formação como intérprete construída no mesmo contexto supracitado, posso dizer que a formação para atuar em níveis mais complexos, como conferências, universidades, contexto jurídico, educacional, área médica e em outros ambientes linguísticos desconhecidos, ficam a desejar na formação desses sujeitos que atuam exclusivamente em contextos religiosos. Na igreja, um sujeito que está aprendendo língua de sinais será estimulado a ter os seus primeiros contatos com a interpretação, é fato, e desde muito cedo, vivenciará o ato interpretativo para auxiliar as atividades no entorno da comunidade, digamos, religiosa. Mas, é também observável, que esta atuação não é suficiente para que o indivíduo atue em todos os âmbitos discursivos e áreas e contextos de interpretação,visto que cada uma delas necessita de formação especifica. Há uma validade nessa trajetória profissional religiosa como primeiro contato do intérprete, pois para além desse contexto, a formação deste foi sempre empírica ou quando muito, era feita em entidades como: FENEIS, Associações dos Surdos e os programas de capacitação promovidos pelas Secretarias Estaduais de Educação, em parceira com institutos e universidades. Não se configurava nesse cenário qualquer formação equivalente a formação de outros profissionais em nível superior. Com os avanços das discussões científicas, sobre a função do intérprete e, principalmente, com o reconhecimento da figura do tradutor intérprete de LIBRAS/Português, esse profissional galgou espaços em diferentes contextos, em parceria com a luta da comunidade surda. Um exemplo disso é a realização, no ano de 2006, pela parceria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Ministério da Educação lançaram a primeira edição do Exame de Proficiência em LIBRAS (ProLIBRAS): “[o] exame ProLIBRAS é um exame de proficiência que objetiva certificar instrutores e professores de língua de sinais e tradutores e intérpretes de língua de sinais” (QUADROS; SZEMERATA; COSTA; FERRARO; FURTADO; SILVA, 2009, p. 09). Este exame foi um marco para a difusão e movimentação de intérpretes em todo território, pois, além de ser um exame de reconhecimento político e profissional, ele teve seu peso diante das conquistas reivindicadas pela comunidade surda. Lembro-me muito bem da época em que tanto surdos como ouvintes tinham a certificação do ProLIBRAS como grande referência para atuação de intérpretes credenciados pela UFSC. Vale ressaltar que diante deste exame, observando-se as suas diretrizes de criação, é 17 perceptível que a habilitação não garante a legitimidade de atuação dos intérpretes em contextos comunitários. No que diz respeito à função e à utilização do exame, ele visa “[...] (2) certificar a proficiência em tradução e interpretação da LIBRAS/Língua Portuguesa/LIBRAS, para o exercício dessa função, prioritariamente, em ambientes educacionais” (Documento Básico do Exame ProLIBRAS, 2006, não publicado) (QUADROS; et alii, 2009, p. 26). Nos Estados Unidos, a forma de certificação para intérpretes ocorre de modo diferente “[...] não existe certificação de intérpretes médicos para ASL e a CCHI (Certification Commission for Healthcare Interpreters), indica o RDI (Registry of Interpreters for the Deaf) para interessados em certificação; no entanto, até o momento, essa instituição se limita à certificação generalista para intérpretes de ASL e outra especifica para contextos jurídicos” (QUEIROZ, 2011, p. 78). Retornando ao contexto brasileiro, é muito importante marcar que, logo após dois anos do lançamento do exame de proficiência em tradução e interpretação da LIBRAS/Língua Portuguesa/LIBRAS, foi lançado o bacharelado em Letras LIBRAS na modalidade a distância pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Este curso foi, e ainda é, um dos mais importantes espaços de formação dos intérpretes de LIBRAS/Português no Brasil. No ano de 2009, foi inaugurada a primeira turma do bacharelado na modalidade presencial, onde se percebe um marco para a própria universidade, enquanto comunidade acadêmica, pois visibiliza surdos e ouvintes, neste último caso, diante da grande exposição da figura do intérprete de LIBRAS/Português no âmbito científico.5 O currículo do ano de 2009 do bacharelado em Letras Libras tem duração de quatro anos e habilita bacharéis para exercerem a função de tradutores/intérpretes de LIBRAS/Português para atuação de forma geral no contexto social. Sua formação contempla uma gama de disciplinas voltadas para linguística, estudos da tradução e educação dos surdos, além de proporcionar um ambiente prático de atuação para os futuros tradutores/intérpretes de LIBRAS. Em relação à atuação dos intérpretes em contextos médicos, o bacharelado ainda não apresenta uma disciplina transversal para áreas comunitárias, jurídica e política. Porém, alguns professores da área dos estudos da tradução e interpretação, como as professoras Audrei Gesser e Silvana Aguiar, têm desenvolvido atividades em torno de áreas carentes de atenção na formação dos tradutores/intérpretes. 5 Destaque-se também a realização do Congresso Nacional em Pesquisas em Tradução e Interpretação de LIBRAS e língua portuguesa, realizado no ano de 2012 pela Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC e do Curso de Graduação em Letras Libras da UFSC. 18 O curso de graduação na UFSC desdobra-se em ações em outras localidades. Isso porque o bacharelado em Letras LIBRAS tem ganhado espaço em outras regiões do Brasil, que instauram seus cursos com suas próprias especificidades locais. Além da UFSC, sabe-se que em outras universidades, faculdades e instituições de ensino públicas ou privadas já se tem a oferta dessa habilitação, para construção desse sujeito tradutor/intérprete de LIBRAS/Português, e em outras ainda estão no âmbito do planejamento. No entanto, a discussão sobre a criação de disciplinas mesmo em cursos de curta duração para formação de intérpretes em contextos não educacionais ainda é pormenorizada e invisibilizada. 1.2 As legislações vigentes do Brasil A conquista de direitos para comunidade surda vem ganhando força nos últimos anos tanto para o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como para o direito ao acesso por meio de tradutor intérprete de LIBRAS/Português, e agora mais atualmente a discussão sobre a educação bilíngue para surdos. Essa atenção, hoje voltada aos surdos por parte das prerrogativas e das leis, desdobra-se a partir de um débito histórico de marginalização dos surdos perante o Poder Público, como nos aponta Júnior (2004, p. 36): “[o] portador de deficiência6 nunca foi respeitado em sua dignidade humana pelo Poder Público”. Abro um parêntese aqui, para registrar que minha ideia em relação aos surdos não condiz com a apresentada nas legislações. O sujeito surdo é um cidadão como qualquer outro, porém, com uma língua diferente da língua portuguesa, com sua cultura e identidade própria. A grande maioria dos documentos legais, os surdos ainda são considerados pessoas com “deficiência”, e os dados aqui apresentados servem de efeito para uma análise contrastiva histórica. Ainda em concordância com o que nos aponta Júnior (2004, p. 148), é interessante analisar que o código civil brasileiro considerava aquele sujeito surdo-mudo, que não conseguia se expressar, como sujeito incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil, e que, portanto, “se a orientação didático-pedagógica não for adequada, a incapacidade nessa situação será a relativa, podendo o surdo-mudo realizar atos civis, desde que assistido”. Parece ser muito incoerente (e resistente?) a visão do Poder Público sobre o sujeito surdo, visto que historicamente somente no ano de 2012 o governo esteve aberto à discussão sobre a educação bilíngue, aquela que possivelmente poderia ser a orientação didático- pedagógica adequada, conforme existia no código civil. Nos alerta Júnior (2004, p. 148):6 É importante justificar essa posição. A meu ver, os surdos não são “portadores de necessidades especiais”, porém, para o Poder Público brasileiro em suas prerrogativas e legislações, o surdo é citado em diferentes categorias como pessoas com deficiência, pessoas com necessidades especiais e portadores de necessidades especiais. 19 “[i]nexistindo a orientação educacional referida, o surdo-mudo será considerado absolutamente incapaz, devendo ser representado na prática de todo e qualquer ato civil.” De acordo com o código civil revogado, se lê em seu Art. 5 que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil” e em seu item “III - os surdos mudos, que não puderem exprimir a sua vontade”. Apesar de todo esse emaranhado e confusões do Poder Público, o sujeito surdo conquistou alguns direitos que não podem ser deixado de ser citado neste trabalho. A lei nº 10.436/2002, de 24 de abril de 2002, em seu artigo 1o, afirma que é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e outros recursos de expressão a ela associados. No que concede ao regulamento desta lei para efeito de consulta é o decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Ainda em relação à Lei de LIBRAS, para efeito desta pesquisa é importante mencionar o Art. 3o, em que se lê “[a]s instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor”. Podemos mencionar ainda outra legislação importante, a Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que garante o tradutor intérprete de LIBRAS/Português ao surdo, quando do acesso à saúde pública. Ela estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. No seu capítulo VII, do Art. 18, fala da acessibilidade nos sistemas de comunicação e sinalização. “O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes de escrita em braile, linguagem de sinais, e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação.” Ao lermos os documentos legais fica claro e notório que o serviço de interpretação é um direito do cidadão surdo, em seus variados contextos, da saúde ao jurídico. A Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 2010, conhecida popularmente como a lei do intérprete de LIBRAS, apresenta a formação profissional e as atribuições do tradutor intérprete, no exercício de suas competências. A nível internacional, Queiroz (2011, p. 73) nos fala que “[d]iferente do Brasil, as legislações estadunidenses de acessibilidade linguística são mais claras em relação aos instrumentos necessários para garantir a acessibilidade, como por exemplo o uso de intérpretes em hospitais. Ademais, há o favorecimento financeiro por parte de reembolso da administração pública.” Trata-se de uma realidade muito diferente da nossa que apenas assegura ao paciente uma consulta e um atendimento com mais qualidade: 20 Segundo KELLY (2009), entre 15.000 a 17.000 pessoas praticam interpretação sinais[...] Não há registro dos primeiros cursos de treinamento em interpretação médica. De acordo com Izabel Arocha (2010), os primeiros cursos surgiram depois da constituição das associações e eram ministrados por intérpretes com alguma experiência. Atualmente existem inúmeros programas de treinamento nos Estados Unidos (QUEIROZ, 2011). Apesar das legislações vigentes no Brasil e no mundo, o cenário atual que se encontra à formação do intérprete-médico deixa a desejar. O grande avanço dos legisladores não se reflete na prática da atenção social para saúde dos cidadãos surdos. É necessário um despertar crítico das pessoas para conscientização dessas ações tanto para as questões competentes às legislações quanto para o acesso à saúde pública, com qualidade e respeito, que será tema do nosso capítulo seguinte. 2 O SUS E AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos mais populares serviços de assistência à saúde dos cidadãos brasileiros. A sua principal característica é o acesso universal à saúde pública gratuita aos cidadãos. A política desse serviço tem como “[...] finalidade alterar a situação de desigualdade na assistência à Saúde da população, tornando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão, sendo proibidas cobranças de dinheiro sob qualquer pretexto.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013). Do Sistema Único de Saúde fazem parte os centros e postos de saúde, hospitais – incluindo os universitários, laboratórios, hemocentros, bancos de sangue, além de fundações e institutos de pesquisa, como a FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Vital Brasil. Através do Sistema Único de Saúde, todos os cidadãos têm direito a consultas, exames, internações e tratamentos nas Unidades de Saúde vinculadas ao SUS da esfera municipal, estadual e federal, sejam públicas ou privadas, contratadas pelo gestor público de saúde. (MINISTÉRIO DA SAUDE, 2013). Dessa forma, a política nacional de atendimento do SUS conta com a participação de instituições privadas. Segundo o Ministério da Saúde, publicado no portal da saúde, (2013), “[o] setor privado participa do SUS de forma complementar, por meio de contratos e convênios de prestação de serviço ao Estado quando as unidades públicas de assistência à saúde não são suficientes para garantir o atendimento a toda a população de uma determinada região.” No entanto, quando as políticas de saúde se referem às políticas de acessibilidade, tanto o SUS quanto o programa saúde da família7, não apresentam plano de capacitação para 7 A Saúde da Família é entendida como uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a 21 o treinamento de seus agentes para o atendimento ao surdo ou deficiente auditivo. No manual intitulado “A pessoa com deficiência e o Sistema Único de Saúde”, do Ministério da Saúde, a política nacional reconhece que “[a] acessibilidade tem como objetivo permitir um ganho de autonomia e de mobilidade a uma gama maior de pessoas, inclusive àquelas que tenham […] dificuldade em se comunicar, para que usufruam os espaços com mais segurança, confiança e comodidade.” Todavia, ao se deparar com o atendimento na rede do SUS, o paciente surdo encontra inúmeras dificuldades, em especial as barreiras na comunicação. A sociedade se adapta para incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam em parceria equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos”. (SASSAKI, 1997, p. 03). Essas discussões sobre a acessibilidade no SUS foram marcadas na discussão do manual supracitado. No que se refere ao capítulo da capacitação de recursos humanos, o governo aponta como prioritário, ofertando até mesmo cursos de qualificação e atualização. Em contrapartida, os agentes e gestores de saúde não têm recebido capacitação necessária paraatender os sujeitos que sinalizam (LIBRAS) nas unidades de saúde pública. É facilmente perceptível no manual como a LIBRAS e as questões relativas à comunidade surda não são apresentadas em nenhum tópico, apenas o sujeito deficiente auditivo é lembrado como forma de diagnóstico e reabilitação. Para Suzana Lakastos (2004), em uma reportagem divulgada no site8, “direitos especiais para pessoas especiais”, no ano de 2004, do Jornal do Advogado da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil): Se dependesse apenas da lei, o portador de deficiência física ou mental brasileiro seria um dos mais felizes do mundo. A legislação específica sobre o assunto no país é considerada uma das melhores. O assunto aparece na Constituição, já foi regulamentado por leis específicas federais, estaduais e municipais e conta com regras precisas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) para cada situação. Fora do papel, no entanto, falta fiscalização na implementação dessas regras, que acabam ignoradas pelo próprio Poder Público. Além disso, o maior desafio é o da mudança cultural, e esta não se realiza por decreto. Frente a toda essa discussão, o que nos resta é apresentar por meio de pesquisas aos implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Estas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais freqüentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. http://dab.saude.gov.br/atencaobasica.php.Conheça mais sobre as estratégias de atenção básica à saúde (PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013). Acessado em 10 de junho de 2013. No link http://dab.saude.gov.br/atencaobasica.php 8 http://www.centromarianweiss.com.br/noticia.php?id=8 22 órgãos e as autarquias a realizarem ações de fiscalização e implantação de serviços de assistência à saúde dos surdos. Recentemente, o governo federal, através da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, publicou em seu site oficial uma notícia9 sobre a instalação de centrais de intérpretes gratuitos aos surdos. Dentre os serviços que serão oferecidos, a atuação em contextos médicos é uma das prioridades, o que nos resta saber é se a rede pública de saúde está preparada para receber esses profissionais e se os profissionais que atuarão nesse contexto são qualificados a contento para exercer o atendimento voltado à interpretação médica. 2.1 O atendimento dos surdos na saúde pública Como relatamos anteriormente, o atendimento dos surdos na saúde pública está em processo de construção e ainda apresenta sérias deficiências. Ainda assim queremos marcar que uma vez determinada essa atuação, compactuamos que conceito de saúde para o surdo “[...] merece um cuidado Humanizado, visão Holística, onde o cliente é assistido de uma forma global como indivíduo singular, respeitada as suas crenças, seus valores, seu contexto histórico e, seus limites físicos, intelectual, social e mental” (SANTOS; SHIRATORI, 2004, p. 70). Isto porque o efeito do não cumprimento das legislações estabelecidas pelo Poder Público para acessibilidade na Saúde já sofre um grande atraso em sua efetivação, e para a parte interessada (os surdos) esse atraso parece ser ainda maior e mais complexo, pois “[...] não há um Programa de Saúde eficaz que atendam as necessidades de saúde do surdo” (SANTOS; et alii, 2004, p. 76). Há também a pressão para o cumprimento de adequações arquitetônicas. Esta parece ser mais visível do que o cumprimento de ações significativas para acessibilidade na comunicação. Tipicamente, vivemos numa sociedade onde o “material” físico visível faz a grande diferença para a popularização de ações governamentais. Embora nossa preocupação esteja focada nos recursos humanos dessa prática, o atendimento de qualidade para o surdo requer que um cenário médico físico adequado, mas que sobretudo, entenda que esse sujeito necessita emergencialmente do uso de uma língua diferente da portuguesa para que seu direito de atendimento seja efetivado. Tal adaptação10 precisa ser relembrada e estudada pelas instituições de promoção dos serviços médicos, e não somente cobrada pelos pacientes surdos, essa realidade precisa ser questionada por todos os contextos. 9 http://www.sedh.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/pessoas-com-deficiencia/ acessado em 10 de junho de 2013. 10 Vale ressaltar que em uma interação cujo par linguístico se dá entre língua orais, o intérprete pode se localizar em um local não visível durante a interação médico-paciente, apenas elevando o tom de voz. No passo que em se tratando de uma língua visual, como o caso da LIBRAS, o intérprete precisa ser visualizado pelo paciente. 23 Chaveiro e Barbosa (2005, p. 421) enfatizam ao dizer que “[n]ão adaptar às necessidades dos grupos minoritários é um fator de exclusão social.”, e acrescentamos que ao se sentir excluído, ao surdo lhe é tirado todos os seus direitos de acessar os serviços públicos e essenciais à existência humana. O surdo não pode deixar de ter a qualidade e o atendimento por imprudência e falta de informação de uma massa majoritária, mas deve, sim, ser respeitado em sua singularidade linguística. O intérprete nesse contexto, portanto, é uma demanda urgente. Para o profissional intérprete de LIBRAS não lhe é possível chegar a esse patamar de cobrança social, resolvendo as lacunas existentes, como é o caso dos indivíduos que necessitam de barreiras arquitetônicas diferenciadas. Esse fato ocorre devido ao grande mito que muitas pessoas preservam de que o sujeito surdo pode escrever ou oralizar e que tudo estaria acessível a eles. Essa crença se dá pelo motivo de que muitos surdos oralizados ou deficientes auditivos usufruem dessa possibilidade para se comunicarem em muitas interações com ouvintes, mas quando se trata de um contexto do nível da formalidade e da seriedade que é o contexto da saúde; da vida de uma pessoa, esse mecanismo de comunicação nem sempre é suficiente e o mais adequado. Em relação à escrita e à oralidade da língua portuguesa do sujeito surdo, precisamos entender que “[t]anto o português escrito como o oral de que os surdos faz uso são estigmatizados, já que não atingem os ideais de língua impostos por uma maioria ouvintes” (GESSER, 2009, p. 57). Isso se dá ao fato, ainda segundo Gesser (2009, p.58), em relação à falta de oportunidades de uma escola que trabalhe especificadamente o acesso à língua padrão dessesujeito, “[...] no caso dos surdos, tenha professores proficientes na língua de sinais, que permita a alfabetização na língua primeira e natural dos surdos”. Essa escola deve ser um próximo passo para a efetivação da cidadania dos surdos, visto a necessidade emergente de escolarização e alfabetização dessa minoria linguística. O senso comum concebe a língua falada “do ponto de vista dos ouvintes, culturalmente conjugada ao som” (GESSER, 2009, p. 48), mas isto não exclui a possibilidade de o sujeito surdo falar. Ele fala porque utiliza a língua de sinais, e a diferença acontece porque a comunicação é por meio dos contatos dos olhos e das mãos. Portanto, a LIBRAS é uma língua vivenciada no campo espaço-visual dos falantes. Os agentes de saúde desconhecem ou não usam a LIBRAS em interações com surdos em contextos de consulta, atendimentos emergenciais, etc. Se pautam muitas vezes no usa da escrita. As dificuldades de estabelecer comunicação na escrita são cotidianas na vida do surdo. Este, ao se deparar com vocabulários rebuscados ou com escritas num nível complexo de compreensão acabam ficando à mercê da boa vontade das pessoas em serem flexíveis para se comunicar. Por outro lado, pautar um 24 atendimento médico exclusivamente na interação via escrita pode ser limitante e desgastante para os dois lados: médicos e surdos. No trabalho de Santos e Shiratori (2004, p. 74), o depoimento de uma surda reflete em partes o que estamos discutindo aqui. Ela diz que apresenta muitas dificuldades quando vai ao médico, pois não domina muito bem o português padrão (escrito) e acaba não entendendo o que os médicos escrevem. Precisa recorrer a familiares para acompanhá-la na consulta. O surdo precisa de seu espaço e de sua vivência em sua língua, pois como afirma Gesser (2009, p. 60) ao fazer o contraponto de que o surdos não sobreviveriam sem o português na sociedade majoritariamente ouvinte, é justamente o contrário, afirma a autora: “[n]a verdade, o surdo não ‘sobrevive’ se lhe for tirado o direito de usar sua língua primeira em seus ambientes de convívio social”. Portanto, não se pode deslocar esses sujeitos sem ao menos entender as realidades impostas ou pensar mecanismos de convivência harmoniosa e plena, pensando sempre o papel e a importância das línguas em jogo. Na revisão de literatura para este estudo, sobre o atendimento de pacientes surdos na rede de saúde, uma pesquisa chamou atenção. O trabalho foi realizado pela acadêmica Érika Machado Santos, do 9º período da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto (EEAP), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com funcionários do Instituto Nacional de Educação e Integração dos Surdos no Rio de Janeiro. No estudo apresentado, foi revelado por meio de uma tabela sucinta quais pontos relacionados à saúde os surdos tinham dúvidas e quantas vezes ele apareceram na somatória dos participantes, dos quais necessitavam de mais esclarecimentos em saúde. A seguir, uma cópia da tabela divulgada pela acadêmica na revista eletrônica de enfermagem da Universidade Federal de Goiás: Questões de saúde (dúvidas) Nº % Diabetes 7 64% Planejamento Familiar 7 64% Câncer (mama e colo do útero) 5 46% Questões relacionadas a sexo 2 18% Doenças sexualmente transmissíveis 5 46% Hipertensão 8 73% Hábitos Alimentares 2 18% Uso de medicações 2 18% Esses dados mostram que, diante de tantas informações que nos cercam pelos meios de comunicação, os surdos ainda apresentam muitas dúvidas que poderíamos considerar essenciais para informação e organização de uma vida saudável. Para a maioria dos ouvintes é 25 muito possível que existam dúvidas em relação às doenças citadas, mas estamos numa posição bem mais confortável, pois vivemos num país cuja língua dominante de interação (oral ou escrita) é o português. Inúmeras indagações devem ser feitas, pois campanhas publicitárias que são realizadas pelo Ministério da Saúde em relação a tais fatos aqui apresentados. Porém, isso ressalta, ainda de acordo com um trabalho acadêmico que realizei na disciplina de Estudos da Tradução II no Curso Letras LIBRAS ministrada pela professora Audrei Gesser, quando analisei quais campanhas do Ministério da Saúde – em relação as campanhas de prevenção do HIV/AIDS – haviam sido legendadas ou teriam a interpretação de LIBRAS. Já esperava que não houvesse interpretação para a língua de sinais em vídeo, mas para minha surpresa nenhuma delas era de fato direcionada à compreensão e à educação em saúde para os surdos. Informar a população assuntos que dizem respeito à prevenção de doenças de elevado risco é uma obrigação das políticas públicas de saúde, e quando se trata de acessibilidade para as minorias é também de competência das políticas que tratam da inclusão social. Proporcionar dados concretos e orientações baseadas em princípios de cuidados com saúde é comprometimento de todos os gestores, sejam em quaisquer esferas das políticas públicas. E é neste viés que a educação tem também o seu papel: A educação em saúde exerce um papel fundamental na construção da autonomia de cada pessoa, preparando-as para se defender e fazer escolhas conscientes no que diz respeito ao seu modo de viver. Porque educar para a Saúde não significa o ensino de conteúdos de higiene pessoal e geral, mas também a adoção de posturas e comportamentos que levam o indivíduo e a comunidade a valorizar modelos adequados de qualidade de vida [...] (SILVEIRA, 1985, p.12 apud SANTOS; et alii, 2004.) Os surdos, assim como qualquer cidadão, também são acometidos de doenças, tragédias, riscos de saúde como vimos anteriormente. O Ministério da Saúde, no entanto, parece carecer de ferramentas que auxiliam o processo de compreensão e visibilidade das campanhas com este público em mente. Essa discussão é importante, pois, como nos alertam Chaveiro, Barbosa e Porto (2008, p. 581) “[a]s pessoas surdas têm pouco conhecimento da assistência em saúde, incluindo menor compreensão dos programas preventivos como HIV/AIDS e visitam com menor frequência os médicos, comparados com pessoas que ouvem.” O fato é que, na minha visão e de acordo com os relatos de ocorrências vivenciadas durante minha carreira de intérprete, os surdos não têm recebido atendimento adequado as suas necessidades e ficam à mercê das políticas não efetivadas pelo Poder Público. Toda essa 26 problemática culmina no serviço prestado propriamente dito, isto é, “[...] as barreiras de comunicação entre paciente surdo e profissional da saúde podem colocar em risco a assistência prestada, podendo prejudicar o diagnóstico e tratamento” (CHAVEIRO; et alii, 2008, p. 582). É necessário um despertar nas políticas de inclusão social sobre o real e verdadeiro papel da acessibilidade dos surdos, além dos espaços educacional, devendo eles ser estendidos a qualquer serviço público, considerado como essencial para a dignidade humana. 2.2 A interpretação em contextos da saúde A discussão sobre interpretação em contextos da saúde é uma área recente e carente de pesquisas. Conforme Queiroz (2011), a pesquisa em interpretação comunitária é uma realidade não explorada no contexto dos estudos da tradução no Brasil. Como aponta Roberts (1994, p. 127), mesmo a interpretação comunitária (IC) – ou como é conhecida internacionalmente, community interpreting (CI) – sendo “[...] a forma de interpretação mais antiga do mundo, a atividade tem sido negligenciada tanto por profissionais como por pesquisadores (QUEIROZ, 2011, p. 24)”. Segundo Junior e Vasconcellos (2008, p. 8) a mais importante obra dos Estudos da Tradução no mundo ocidental,conseguimos localizar a interpretação comunitária e as línguas de sinais como constituidoras do campo disciplinar desse estudo, listada em seu item 18 na proposta. Sabe-se que aos poucos essa temática tem ganhado uma atenção progressiva em relação aos contextos em que se emergem nas realidades locais, mas devemos nos lembrar que ela ganha uma menor atenção em relação à interpretação educacional e de conferências no estado em que se encontram as políticas brasileiras. Estas duas áreas são contempladas em anos de formação por conta da demanda de mercado de trabalho. Em relação ao contexto da interpretação das línguas de sinais, nós, intérpretes de LIBRAS/Português, dialogamos em diferentes interfaces, porém nossa realidade mais recorrente diante da demanda sempre recaiu para o campo educacional. Não obstante, os sujeitos surdos têm conquistado seu espaço social na garantia de direitos, e os intérpretes têm sido protagonistas em mediar também essa nova realidade na comunidade surda. A busca por embasamento teórico que permeou essa pesquisa foi um tanto complexa, pois a maioria dos materiais sempre se referia aos contextos educacionais deixando a desejar contextos como o jurídico, da saúde e o intérprete atuante do contexto politico. Este trabalho foi norteado primeiramente pela leitura de uma investigação científica desenvolvida no 27 programa de pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC. O estudo foi realizado pela pesquisadora Mylene Queiroz, intitulada, “Interpretação médica no Brasil”, orientada pelo Dr. Markus Weininger, no ano de 2011. Mas como se define o intérprete comunitário? De acordo com Queiroz (2011, p. 37) Roberts (1998, p. 2) afirma que: (...) um intérprete comunitário se diferencia dos demais tipos de intérpretes porque: I) intérpretes comunitários servem primeiramente para assegurar o acesso a serviços públicos, e é então provável que seu trabalho esteja ligado a contextos institucionais; II) eles estão mais aptos para interpretar interações de diálogos do que discursos; III) rotineiramente interpretam ‘de’ e ‘para’ ambas ou mais línguas faladas no âmbito de trabalho; IV) a presença do intérprete fica muito mais evidente no processo de comunicação do que as interpretações de conferência; V) um número de línguas, sendo muitas delas línguas minoritárias, que não são a língua do país, são interpretadas no nível comunitário, diferentemente do número limitado de línguas faladas em trâmites do comércio e diplomacia internacional feita por intermédio do intérprete acompanhante ou de conferência; e VI) o intérprete comunitário é frequentemente mencionado como um “advogado” ou “mediador” cultural, função esta que vai além do tradicional papel neutro do intérprete. Na academia científica esse tratamento é dado recentemente, e não poderia ser diferente na prática. Isso porque a prática de interpretação da LIBRAS/Português no contexto médico, mesmo instituída por lei no Brasil, não é uma prática recorrente exercida por profissionais. Segundo Queiroz (2011, p. 25), Austrália, Brasil, Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos são exemplos de países que estabelecem o direito a um intérprete aos usuários de setores públicos que têm limitação para comunicar-se na língua oficial do país. É necessário um aprimoramento urgente e uma discussão ampla em nível político-social e acadêmico sobre a não oferta desse profissional, quais pistas e estratégias que o intérprete- médico pode proporcionar ao indivíduo surdo que necessita de intepretação e as devidas providências que podem ser tomadas para a consolidação do serviço. Sabe-se que internacionalmente os intérpretes-médicos têm conseguido atenção, até mesmo porque um dado interessante, segundo Queiroz (2011), diz respeito ao fato de que “os intérpretes médicos que, no final dos anos 80, formaram a primeira organização profissional de intérpretes comunitários fora do domínio judicial (cf. POCHHACKER, 2004; POCHHACKER E SHLESINGER, 2007)”. Diante disso, é real e tão imprescindível a organização a nível nacional, como a da divisão da Internacional Medical Interpreters Association (IMIA), no desenvolvimento de discussões e organização dos profissionais que atuam nesse contexto. De qualquer modo, os pacientes falantes de outras línguas orais que são estrangeiros no Brasil não contam com serviços de interpretação nos hospitais. Esse é um dado retirado da minha leitura da dissertação de Queiroz (2011) e do meu conhecimento empírico diante das 28 leituras de artigos e entrevistas da internet, onde parece ser muito popular essa reclamação em relação ao atendimento em línguas estrangeiras. Essa realidade é muito cruel para diversas pessoas independente de serem surdos ou de serem estrangeiros que residem no Brasil; ambos os casos não são falantes da Língua Portuguesa e precisam de uma atenção especial para o atendimento médico com interpretação em sua língua materna. Vejamos agora uma breve discussão em torno das definições da nomenclatura “intérprete-médico”. 2.3 O conceito de intérprete-‐médico Em relação às línguas orais no campo dos Estudos da Tradução, o conceito de “intérprete-médico” é ainda pouco estudado. Queiroz (2011) e IMIA (p.10), nos materiais disponibilizados no seu site11 à divisão Brasil e em seu próprio código de ética, não se hesita em utilizar a nomenclatura “intérprete-médico” para se referenciar a este profissional que “[tem como] função principal [...] possibilitar a comunicação entre um profissional médico e um paciente que não fala a mesma língua”. Esse profissional é responsável por manter e estabelecer a comunicação de forma harmoniosa entre o paciente e a equipe de saúde, do qual esse sujeito consultará. Outros estudiosos problematizam essa nomenclatura, “[...] [n]a literatura, termos tais como intérprete de cuidados da saúde, intérprete de hospital e intérprete- médico são encontrados. O termo intérprete-médico (medical interpreter) é o mais utilizado” (QUEIROZ, 2011, p. 41). De todo modo, o fato é que essa prática, mesmo no campo das línguas orais que têm mais tradição e visibilidade comparada ao contexto das línguas de sinais, é ainda uma realidade distante em ambientes da saúde no Brasil. No que diz respeito ao atendimento aos surdos via interpretação entre a LIBRAS e o Português, há alguns profissionais que vêm atuando empiricamente e se esforçando para manter e constituir essa prática: Os intérpretes da LS não têm ainda uma formação adequada para atuar na área de saúde. Espera-se que os cursos oferecidos em graduação e pós-graduação em todo o Brasil possam reverter este quadro, capacitando-os para atuar de modo mais profissional. Assim, as pessoas surdas poderão usufruir, sem constrangimento ou receio, da presença do profissional intérprete da Língua de Sinais. (CHAVEIRO, et alii, 2010, p. 643). Em minha prática interpretativa para surdos, vivenciei muitas situações em contextos médicos, e a partir de diários retrospectivos lembro-me que a minha primeira atuação como 11 http://www.imiaweb.org/countries/Brazil.asp 29 “intérprete-médico” ocorreu quando tinha 16 anos e foi muito significativa. Eu era ainda muito jovem, e não me considerava “pronto” para entrar num consultório médico para atuar no campo da interpretação. Lembro-me que o consultório era no Centro Cívico de Curitiba, e a surda que atendi chamava-seJosiane, que na ocasião parecia estar muito aflita. Ela era uma surda muito gentil, e mesmo inseguro em interpretá-la eu não poderia deixá-la de lado, pois ela foi uma das pessoas com as quais convivi e tive a oportunidade de aprender a LIBRAS. Josiane um dia me encontrou me informou que necessitava de um intérprete para consulta médica que era de extrema importância para um diagnóstico. Até então eu realmente não imaginava a dificuldade que estava por enfrentar, pois nunca havia tido tal experiência com a interpretação médica. Recordo que ao entrar na sala do médico ele estava muito surpreso como a minha presença, talvez pela idade ou talvez por não ter esse procedimento tão recorrente em sua vida profissional. Arrisco-me a dizer que a maioria dos surdos não tem acesso à saúde privada. No entanto, essa surda era quase que uma exceção. Josiane entregou os exames ao médico, muito ansiosa e logo disse que gostaria de saber de tudo, sem rodeios. O médico olhou para Josi e pra mim e disse: “Seus filhos têm Talassemia”. Por certo momento, eu realmente fiquei paralisado, justamente pela expressão facial que ela fez e pela forma com que o médico vinha a dar o diagnóstico. Por falta de competência referencial não conseguia transladar nas línguas envolvidas para promover o nível de compreensão desejado. Eu, em primeiro momento, como a maioria dos intérpretes optei por soletrar a palavras, mas Josiane parecia que estava não entendendo a situação. Então resolvi perguntar ao médico, o que era tal doença. Quando lhe fiz pergunta, o médico pareceu não entender, então questionou à Josiane se realmente ela não sabia, pois aquela era uma doença hereditária, ela disse que sabia que tinha a doença, porém o rosto dela estava a me dizer que se sentia perdida. Ela perguntou ao médico “E o que fazer?”. Ele disse que não existia algo naquele momento a fazer, mas deveria fazer o controle dos filhos sempre. Eu me senti num momento de muita tensão, mas a situação exigia de mim um autocontrole sobre minhas próprias emoções. Josiane queria saber muitas informações sobre o estado de saúde dos filhos. Quando perguntei ao médico a origem daquela doença, as consequências, e o tratamento, eu não lembro de sua reação, mas o que me resta na memória é que ele explicou algumas coisas para Josiane, e ela parecia estar um pouco confusa ainda com a situação. Depois desse fato nunca mais pude acompanhá-la nas consultas, pois não tinha mais tempo disponível e acabamos nos distanciando. Esse episódio me ensinou que muitas questões estão em jogo numa relação como esta, e que “compreender o relacionamento entre profissional da saúde e a pessoa surda é condição 30 necessária para qualificar os serviços prestados à população surda” (CHAVEIRO, BARBOSA, PORTO, MUNARI, MEDEIROS, DUARTE, 2010, p. 640). Não se pode negar que qualquer profissional necessita estar em harmonia com o ambiente do qual faz parte essa realidade. Especialmente em relação ao intérprete de contextos médicos, estar num hospital ou num atendimento requer um equilíbrio emocional muito grande, em especial para nós, intérpretes de LIBRAS, que conhecemos a realidade de tais sujeitos surdos e a grande dificuldade que eles têm em acessar a saúde com qualidade. Estar envolvido com alguém que apresenta problemas de saúde (ou até mesmo familiares que tenham algum problema), exige um controle afetivo muito forte por parte desse profissional, visto que algumas realidades podem refletir extremamente em nosso convívio social, afinal, os seres humanos adocem e esse é o ciclo natural de vida. O intérprete naturalmente se torna um membro muito presente desse vínculo com o paciente e deve tratá-lo com muita dignidade e profissionalismo. Queiroz (2011, p. 41) constata: O intérprete precisa estar seguro, para interpretar desde questões que envolvem terminologia médica (científicas e técnicas) em suas diversas especificidades, até questões de ordem administrativa, que envolvem padrões de atendimento de um sistema de saúde, até as questões pessoais que envolvem a confidencialidade do atendimento. O intérprete, além de toda essa bagagem de responsabilidades, ainda é participante ativo do contexto geral de onde ocorre o atendimento, pois “[a] presença do intérprete faz com que se torne possível para o paciente e o profissional médico alcançar os objetivos do encontro como se estivessem comunicando-‐se diretamente um com o outro” (IMIA, 1995, p. 10). Para que tudo isso ocorra harmoniosamente, é necessário um desempenho de toda equipe de saúde e a compreensão da realidade em que o profissional intérprete-médico esteja inserido. Deve-se entender que o paciente muitas vezes coloca toda sua confiança na expectativa de ser bem atendido mediado pela interpretação: A grande maioria das pesquisas realizadas sobre o tema concorda que a prática da interpretação comunitária em cenários médico-hospitalares vai além da mera função de tradução linguística para auxiliar profissionais da saúde e pacientes a lidar com diversas questões de diferenças culturais e institucionais (ANGELELLI, 2004). Dados empíricos resultantes de uma investigação liderada por Pochhacker e Kadric (1999) apontam que profissionais da saúde de alguns hospitais de Viena esperam que o intérprete faça mais do que traduzir. A expectativa de que o intérprete auxilie para além das palavras surge tanto do lado do paciente quanto do provedor de saúde. Ambos os lados esperam que o intérprete explicite, por exemplo, questões culturais e de políticas institucionais. Destarte, o processo de comunicação faz uso não somente de componentes orais, escritos e visuais, como também sociais e culturais (crenças e valores) QUEIROZ (2011, p. 42). 31 Essas questões aqui levantadas fazem parte de uma construção histórica e simbólica pelo reconhecimento da figura do intérprete-médico e devem ser problematizadas por todas as equipes que dispõem desse profissional, ainda mais no que tange sua função e responsabilidades. Portanto, o código de ética da IMIA publicado em 1995 pode ser um grande auxiliador na tarefa de compreensão e avaliação do atendimento desse profissional. Nele temos: O Conselho Nacional de Interpretação de Saúde analisou o Código de Ética e Conduta Profissional para Intérpretes Médicos e votou em defesa do uso deste documento como sendo a melhor declaração de códigos para intérpretes atualmente disponível. O Conselho felicita a Associação Internacional de Intérpretes Médicos a o Centro de Desenvolvimento Educacional, Inc., coautores do documento, por seus valorosos esforços em seu desenvolvimento e encorajar outras organizações a afiliarem-se oferecendo avaliação neste trabalho em desenvolvimento. (IMIA, 1995, p. 08) Compete, portanto, a nós, intérpretes, equipe da saúde e pacientes que utilizam os serviços de interpretação, dialogar e sensibilizar a sociedade, mostrando e visibilizando a nossa atuação no contexto. Além de protagonizar a luta pela efetivação dos intérpretes- médicos na saúde pública, estaríamos atendendo um público que há tempo tem sido deixado de lado por conta de uma diferença linguística. 3 A ABORDAGEM QUALITATIVA COMO PILAR METODOLÓGICO DE PESQUISA A abordagem metodológica é uma peça-chave para o desenvolvimento e condução de uma boa pesquisa. Não há pesquisas sem método e sem um problema. Eles são embriões de um desenvolvimento científico de qualidade. Muitos pesquisadores enfrentam dificuldades em desenhar o problema de suas pesquisas, por conta disso o andamento delas pode sair prejudicado ou sem grande valia para comunidade científica. A abordagem do problema que minha pesquisa será de
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