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São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 1 A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE: de menor a sujeito... o que mudou? Juliana Iglesias Melim* RESUMO Este estudo é parte de uma dissertação de Mestrado em elaboração, que visa analisar a participação política no Conselho de Direitos da Criança e do adolescente de Vitória / ES. Através da história das políticas sociais, observa-se que apenas com a criação do Estatuto da Criança e do adolescente esses segmentos passaram a ser formalmente reconhecidos como sujeitos de direitos. Assim, o presente estudo é um suporte importante para entendermos como os conselheiros representam os usuários das políticas que formulam e quais caminhos estão sendo abertos quanto à elaboração de políticas sociais capazes de promover a cidadania e o protagonismo infanto-juvenil. Palavras-chaves: criança e adolescente, direitos, política de atendimento. ABSTRACT This study it is part of a research, that it aims at to analyze the participation politics in the Council of Rights of the Child and the Adolescent of Victory ES. With the creation of the Statute of the Child and the Adolescent these segments had formal started to be recognized like citizens of rights. The present study it is a support important to understand as the council members represent the users of the policy that they formulate and which ways are being opened how much to the elaboration of social policy capable to promote the citizens and infant-youthful protagonism. Keywords: child and adolescent, rights, policy of attendance. 1 INTRODUÇÃO Este estudo é parte de uma dissertação de Mestrado em elaboração, que visa analisar a participação política no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória/ ES, buscando compreender em que grau ela sofre impactos da cultura política, do neoliberalismo e dos modos de representação da realidade pelos conselheiros. Retomar e compreender essa história poderá facilitar a análise das implicações que temos hoje em relação à implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando uma conjuntura de pressão política e muita experiência com a tradição conservadora do paternalismo e assistencialismo, mesclado com ações de repressão e violência ainda se mostra presente como instrumento para o enfrentamento dos graves e crônicos problemas sociais brasileiros. Nesse sentido, a questão que se coloca como central nos dias atuais é pensar qual o lugar das crianças e adolescentes neste “novo” contexto criado pelo Estatuto. Como * Mestranda em Política Social. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 2 os conselheiros de direitos, “novos” atores na formulação da política de atendimento representam as crianças e os adolescentes pobres e como essa representação irá interferir nas ações desses atores. 2 HISTÓRIA SOCIAL DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA: algumas formas de representar esses segmentos Durante longos anos a teologia cristã pregava uma imagem dramática da infância. O início da vida era visto como o fruto do pecado original, fato que fica claro nas palavras de Santo Agostinho descritas por Lins (1997, p. 94) “se o deixássemos [a criança] fazer o que lhe agrada, não há crime em que não se precipitaria [...]. Não é um pecado desejar o seio chorando?” Deve-se destacar que o pensamento de Santo Agostinho predominou durante muito tempo na história da “atenção” à infância, mantendo um clima de austeridade e violência nas famílias e nas escolas. Nesse sentido, a educação tinha como principal objetivo recuperar a criança, salvá-las do pecado que lhes impregnava, e, para tanto a severidade no tratamento era peça chave. No que se refere à adolescência, como fase socialmente distinta, a história nos aponta que essa etapa só foi reconhecida como conhecemos hoje no final do século XIX e início do século XX (ARIÈS, 1981). Crianças e adolescentes não eram reconhecidos como tais, mas sim como adultos em miniaturas, o que faz com que as fases da infância e da adolescência, como pensadas hoje, sejam fenômenos das sociedades modernas. Desse modo, a adolescência irá surgir mediante a criação de um tempo de preparação para a vida adulta, ou seja, com a substituição da aprendizagem obtida no seio familiar pela realizada na escola. Tal necessidade por um intervalo de tempo para tornar-se adulto também se justificou pela acentuada divisão e especialização das atividades econômicas, ocorridas após a Revolução Industrial, e que passaram a exigir um tempo maior de preparação para o mercado de trabalho. Em suma, podemos dizer que na história social da criança e do adolescente duas grandes concepções se destacaram no que diz respeito à relação dos adultos com esses dois segmentos da população. Podemos dizer que houve um tempo em que predominou um olhar sobre a criança que a tomava como um adulto em miniatura. Exigiam- se da criança comportamentos de adulto, forçando-a a crescer para acabar o mais rapidamente possível com o mal de ser criança. Com as descobertas psicológicas, houve o reconhecimento das peculiaridades do período de crescimento e da diversidade qualitativa USER Realce USER Realce USER Realce São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 3 do comportamento de crianças e adolescentes. Reconhece-se que crianças e adolescentes são diferentes física e psicologicamente dos adultos. Esses modos de pensar a infância e adolescência trouxeram conseqüências nos modos de tratá-los. Se na primeira tendência prevalecia uma maneira intolerante e agressiva de tratar a criança, a segunda trouxe exageros no considerar esses indivíduos como menores, no sentido de incapazes, de objeto de tutela e de proteção. Isso teve reflexos também nas leis e no imaginário das relações sociais, como veremos a seguir. 3 A TRAJETÓRIA DAS POLÍTICAS BRASILEIRAS DE ATENÇÃO ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES: de menor a sujeito... o que mudou? Rizzini (1997), ao descrever e analisar a história das políticas sociais para as crianças e adolescentes no Brasil indica que a preocupação do Estado com a infância só aparece a partir do século XIX. Assim, as primeiras medidas dos poderes públicos com relação à infância pobre eram destinadas apenas aos meninos desvalidos, excluindo os escravos e as meninas. A assistência pública criou, nesse período, o Asilo de Menores Desvalidos. A ação de internação foi mantida por longos anos da história brasileira e tendo como objetivo educar ou “recuperar” o “menor” pobre através do trabalho, pois entendia-se que a capacidade de trabalho era o único bem da população empobrecida1. O interesse pela infância surge na tentativa de transformar a nação, pois essa fase da vida passou a ser considerada como um período em que os indivíduos podiam ser moldados para o bem ou para o mal. A infância pobre era o alvo das principais iniciativas. Entretanto, deve-se ponderar que essas ações não almejavam diminuir as desigualdades sociais, mas, sim, exercer controle social sobre a família pobre e buscar criar uma nação com um povo dócil. Com o advento da República, o discurso higienista2 ditava as ações que deveriam ser realizadas em relação às camadas populares da sociedade. A higiene pública aparecia como mecanismo utilizado pelos governos nas tentativas de controle e “regularização” da vida social. É nesse contexto que surgem as polícias das famílias com o discurso de que eram para o bem dos infantes. Essas polícias têm o poder de entrar nas casas e intervir na 1 Segundo Castel (1998) a pobreza passa a ser encarada como um problema durantea transição da Idade Média para a Idade Moderna, com o surgimento do capitalismo. Nesse período, a pobreza vai deixando de ser vista como algo natural ou resultado da vontade divina e, por isso, passa a ser considerada como capaz de desordenar o mundo – logo precisa ser combatida. Seguem-se, nesse contexto, os primeiros ensaios de políticas sociais. 2 “Assim como ocorrera em alguns países europeus foi a questão sanitária-higienista que propiciou, no Brasil, o despertar para as precárias condições de vida de amplos segmentos da população vivendo nos centros urbanos impulsionados pela indústria. [...] A propagação das doenças relacionava-se diretamente às catastróficas condições de higiene às quais estavam submetidas grande parte da população. [...] A denúncia realizada pelos sanitaristas abriu caminho para a própria intervenção sobre a pobreza” (VALLADARES, 1991, p. 84-85). USER Realce USER Realce USER Realce São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 4 moralidade da família. A pobreza ou a orfandade justificava a retirada da criança do seu lar e de sua comunidade (RIZZINI, 1997). Essas práticas se perpetuaram até que, em 1927, criou-se uma legislação específica para a infância brasileira – o Código de Mello Mattos. Pela primeira vez, são criadas, em forma de lei, diretrizes para o “cuidado” com a infância empobrecida. Entretanto, essas diretrizes eram apenas relacionadas ao internamento das crianças, reforçando as práticas anteriores. Os anos corriam e o “menor” continuava sob o domínio da esfera jurídica, enquanto que a criança abastada ficava sob proteção médico-educacional. Todavia, é somente nos anos 40 que o governo inaugura uma política mais nítida de atendimento à infância pobre, criando órgãos federais responsáveis por planejar e gerir as ações para essa parcela da população. A política para a infância passou a ser centralizada na esfera federal de governo (RIZZINI, 1997). Surge nesse período o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), entretanto, o desempenho desta instituição foi conturbado, devido a inúmeras denúncias de desvio de dinheiro, bem como de atos violentos cometidos contra os internos. Os castigos corporais eram tão freqüentes e intensos que muitas vezes levavam a criança ao óbito. Nesse cenário de violência de todo tipo o SAM passou a ser conhecido como Sem Amor ao Menor. Com a falência do sistema SAM (1964), é criada a FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor) e as FEBEM’s (Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor). Mudavam-se os nomes, mas as práticas e as representações continuavam as mesmas: as crianças e adolescentes pobres ainda eram os menores da sociedade e, por isso, a violência praticada contra eles era aceita por muitos segmentos sociais. O Código de Menores Mello Mattos perdurou por sessenta anos, quando, em 1979, sofreu uma reformulação que introduziu na lei a Doutrina da Situação Irregular, - situação essa que era entendida como aquela em que se encontrava a criança privada das condições essenciais à sua subsistência. Assim, o Estado continuava a ter plena autonomia de retirar a criança pobre do seu lar. Dessa forma, podemos pontuar algumas características que marcaram a história das políticas sociais brasileiras, em que predominava como produção simbólica da infância e da adolescência a concepção de delinqüente e abandonado. Destaca-se nessa época a criminalização da pobreza – a criança pobre era tida como um futuro marginal em potencial e, por isso, era preciso reprimi-la e corrigi-la pela violência. As políticas eram compensatórias e não preventivas, sendo centralizadas na esfera federal de governo. O assistencialismo evidenciava a clara segmentação e a não-cidadania das crianças pobres. Essa situação começa a mudar somente com o processo de derrocada do regime militar, onde paulatinamente a infância e adolescência passaram a fazer parte da agenda da luta por direitos na sociedade brasileira. USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 5 A promulgação da Constituição Federal de 1988 marcou um novo direcionamento político e social em nosso país, no qual as demandas populares passaram a ter a possibilidade de se manifestar no interior do Estado. No campo da criança e do adolescente, a Constituição em seu artigo 227, normatiza preceitos que possibilitaram a regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. O Estatuto irá mudar a concepção de criança e adolescente. A concepção histórica de “menor” abandonado e delinqüente é questionada e este passa a criança e o adolescente passam a ser considerado sujeitos de direitos – visto que vivem em um Estado Democrático de Direitos -, em condição peculiar de desenvolvimento – já que ainda está em processo de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social – e com prioridade absoluta. Assim, o Estatuto também irá introduzir algumas mudanças no conteúdo, no método e na gestão das ações destinadas à criança e ao adolescente. A mudança de conteúdo refere-se ao acréscimo de novos direitos para a infância e a juventude e envolve tanto os direitos individuais (vida, liberdade e dignidade) quanto os coletivos (econômicos, sociais e culturais). A mudança de método, segundo Costa (1993, p. 21) “aponta na direção da superação do assistencialismo como princípio definidor das relações entre os pobres e o ramo social do Estado, ou seja, as políticas e programas governamentais voltados para o atendimento de suas necessidades”. Quanto à mudança de gestão o ECA estabelece dois princípios básicos para a política de atendimento à infância e à adolescência: a descentralização político–administrativa e a participação da população por meio de suas representações organizativas. No que se refere à participação da população na formulação e fiscalização das políticas sociais, tanto a Constituição quanto o Estatuto abrem espaço para a criação dos conselhos gestores de políticas públicas, o que no caso da criança e do adolescente corresponde aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. Esses conselhos se caracterizam por serem órgãos públicos, paritários, deliberativos e que controlam as ações, formulam políticas, e realizam o controle social, coordenando e fiscalizando o desempenho das instituições governamentais e não-governamentais que compõem a rede de serviços e atenção à criança e ao adolescente. Assim, à medida que o papel dos conselhos é formular as políticas de atendimento à criança e ao adolescente na sua área de abrangência, cabe ao mesmo elaborar o Plano de Atendimento à Criança e ao Adolescente. Esse plano deve envolver todas as políticas que compõem o Sistema de Garantias apregoado pelo ECA, ou seja, devem constar no plano, as Políticas Sociais Básicas (destinadas à todas as crianças e USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce USER Realce São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 6 adolescentes), as Políticas de Assistência Social (voltada para as crianças e adolescentes em estado de necessidade), as Políticas de Proteção Especial (que envolve as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social) e as Políticas de Garantias (que atende às crianças e adolescentes envolvidos em conflitos de natureza jurídica). Entretanto, os Conselhos de Direitos ainda encontram alguns desafios3 para formularem, de fato, políticas sociais universais e redistributivas, o direito que é considerado universal acaba esbarrando na precariedade das ações. O direito confronta-se, neste estado decoisas, com a questão da exclusão, entendida aqui como qualquer obstáculo ao exercício da cidadania. O que se verifica é que as conquistas presentes na legislação não foram acompanhadas por um comprometimento do Estado e da própria sociedade, uma vez que tem havido um constante desmonte das políticas sociais, principalmente daquelas que são necessárias à universalização dos direitos civis, políticos e sociais. Nesse sentido, vimos que toda essa trajetória histórica de representações e práticas discriminatórias ainda interfere em nossa atualidade, muito embora as leis tentem romper com isso. Assim, faz-se importante compreender quais sentidos os conselheiros de direitos, novos atores na defesa dos direitos da infância e da adolescência dão as crianças e adolescentes usuários das políticas sociais. 4 CONCLUSÕES A questão que permanece ao final do trabalho é a possibilidade de as crianças e adolescentes pobres ainda trazerem o estigma do menor, ou seja, daquele que é inferior, delinqüente e sem cidadania e por isso as políticas dirigidas para eles estarem ligadas, de alguma forma, à criminalidade, dando continuidade à Doutrina da Situação Irregular revogada pelo ECA. Essa questão é pertinente devido a toda história que trabalhamos no presente estudo, onde as representações e práticas conferidas as crianças e adolescentes pobres eram pautadas na repressão, violência e assistencialismo. Faz-se pertinente também, se pontuarmos rapidamente que programas governamentais de atendimento a essa população, como exemplo, o projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano, destinado a adolescentes moradores de bairros periféricos que tenham entre 15 e 18 anos, tenha sido um projeto apresentado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Esse exemplo deixa clara a continuidade histórica da criminalização da pobreza. 3 Cf. MELIM, J, I. O Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente em Vitória: um estudo sobre o seu papel na gestão de políticas sociais. 2004. 106 f. Monografia (Graduação em Serviço Social) – Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2004. USER Realce USER Realce São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 7 A quase inexistência de políticas que promovam o protagonismo infanto-juvenil e a cidadania da nossa infância e adolescência e o fato dos conselheiros de direitos pertencerem a um grupo que trabalha para que essas políticas aconteçam, despertam a possibilidade de investigar e analisar o modo como os conselheiros pensam a criança e o adolescente. Compreender essas questões é fundamental para verificarmos quais caminhos estão sendo abertos para estes sujeitos, questionar modelos que inviabilizam a percepção de diferentes modos de viver esta fase do desenvolvimento humano, bem como traçar políticas sociais capazes de atender esta diversidade. REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981. CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 4 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. COSTA, A. C. É possível mudar. São Paulo: Cortez, 1993. LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas idéias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. RIZZINI, I. O século perdido: Raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1997. VALLADARES, L. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil. In: BOSCHI, R. R. (Org.). Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: IUPERJ / Vértice, 1991.