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ERGONOMIA em uma abordagem prática e contemporânea Eduardo Breviglieri Pereira de Castro Universidade Federal de Juiz de Fora Departamento de Engenharia de Produção 2 INTRODUÇÃO* *texto adaptado da Introdução do livro de Antoine Laville – “ERGONOMIA”, 1976. O termo Ergonomia é relativamente recente: criado e utilizado pela primeira vez pelo inglês Murrel, passa a ser adotado oficialmente em 1949, quando da criação da primeira sociedade de ergonomia, a Ergonomic Research Society, que congregava psicólogos, fisiologistas e engenheiros ingleses, interessados nos problemas da adaptação do trabalho ao homem. A etimologia do vocábulo Ergonomia não especifica bem o objeto dessa disciplina. Junção dos vocábulos ERGO (trabalho) + NOMOS (leis, normas), uma tradução literal seria o estudo das leis “naturais” do trabalho. Podemos melhor defini-la, entretanto, como sendo o conjunto de conhecimentos a respeito do desempenho do homem em atividade, a fim de aplicá-los à concepção das tarefas, dos instrumentos, das máquinas e dos sistemas de produção. A Ergonomia nasceu de necessidades práticas: ligada à prática, já que sem aplicação perde a razão de ser, ela se apóia em dados sistemáticos, utilizando métodos científicos. UMA ANTIGA HISTÓRIA Ainda não existe uma história propriamente dita da Ergonomia, pelo menos uma história identificável. Se os conhecimentos relativos ao comportamento do homem no trabalho vêm sendo recolhidos de modo sistemático há trinta anos, provocando o aparecimento dessa disciplina, é certo que a aplicação dos conhecimentos parciais e empíricos aos problemas do trabalho é muito antiga. Poderíamos mesmo dizer que ela remonta à criação das primeiras ferramentas. Na verdade, tamanha é a importância da adaptação da ferramenta ao homem, que os paleontólogos discriminam as primeiras etapas deste último na terra segundo o grau da “ergonomia” da primeira, ou seja, fala-se de uma “Era da Pedra Lascada” e de uma “Era da Pedra Polida”. Importância que vai 3 se revelando cadê vez mais, como pode ser observado pelo formato e o material de que são feitos os martelos de hoje (VER FIGURA A SEGUIR). Estes são escolhidos em função das características da matéria trabalhada (madeira, pedra, ferro, etc.) e do efeito procurado (precisão, força, etc.), além das características dos homens que os manejam (dimensão da mão, potência muscular utilizada, controle da massa que se movimenta, etc.). Na verdade, da maneira como entendemos hoje a disciplina, podemos considerar que as primeiras medidas e observações sistemáticas foram feitas seja por engenheiros e organizadores do trabalho, seja por pesquisadores, seja por médicos. 1. Os engenheiros e organizadores do trabalho o fazem numa perspectiva do aperfeiçoamento do rendimento do homem no trabalho. Podemos citar Vauban, no século XVII, e Belidor, no século XVIII, que tentam medir a carga do trabalho físico diário nos próprios locais de trabalho. Sugerem que uma carga demasiado elevada acarreta esgotamento e doenças, preconizando uma melhor organização das tarefas para elevar o rendimento. Um pouco mais tarde, engenheiros como Vaucanson e Jacquard montariam os primeiros dispositivos automáticos para suprimir alguns postos particularmente penosos: os tecelões nas tecelagens, por exemplo. Depois, viriam os organizadores do trabalho, como Taylor e seus precursores, que analisariam o trabalho, tendo em vista definir as melhores condições de rendimento. O modelo de desempenho do 4 homem sobre o qual eles se baseariam é análogo ao do funcionamento de uma máquina. 2. Os pesquisadores, físicos e fisiologistas interessam-se pelo homem em atividade para compreender seu desempenho. Leonardo da Vinci estuda as dimensões e os movimentos dos segmentos corporais: é o começo da antropometria (VER FIGURA ABAIXO) e da biomecânica. Mais tarde, Lavoisier descobre os primeiros elementos da fisiologia respiratória e da calorimetria. Faz ainda as primeiras tentativas de avaliação do custo do trabalho muscular. Coulomb introduz a noção de duração do esforço, criticando as experiências e observações que não duram mais que alguns minutos. Estuda os ritmos de trabalho em inúmeras tarefas e procura determinar uma carga ótima que considere as diferentes condições de execução do trabalho. 5 No século XIX, Chauveau define as primeiras leis do dispêndio energético no trabalho muscular. Marey desenvolve técnicas de medida (cápsulas manométricas que constituem os primeiros cardiógrafos e pneumógrafos) e as técnicas de registro (fusil fotográfico). Estuda os movimentos, bem como o andar. Finalmente, no início deste século, Jules Amar fornece as bases da Ergonomia do trabalho físico, estudando os diferentes tipos de contração muscular (dinâmica e estática). Interessa-se pelos problemas da fadiga, pelos efeitos do meio ambiente (temperatura, ruído, claridade). Multiplica os sistemas de registro (lima e plaina registradoras). Durante a Primeira Guerra Mundial, ocupar-se-á igualmente da reeducação dos feridos e da concepção de próteses. Seu livro “O motor humano”, publicado em 1914, é a primeira obra de Ergonomia, pois descreve os métodos de avaliação e as técnicas experimentais, fornecendo as bases fisiológicas do trabalho muscular e relacionando-as com as atividades profissionais. 3. Os médicos situam-se em uma corrente higienista de proteção da saúde dos operários. A partir do século XVII, Ramazzini, "verdadeiro criador da medicina do trabalho", segundo o Dr. Valentin, interessa-se pelas conseqüências do trabalho, descrevendo as primeiras doenças profissionais em uma série de monografias que tratam de atividades as mais diversas (problemas oculares de pessoas que fabricam objetos pequenos, problemas devidos à má postura e ao carregamento de cargas pesadas, a surdez dos caldeireiros de Veneza, etc.). Tissot, no século XVIII, interessa-se pelos problemas de climatização dos locais e também pela organização da medicina, propondo a criação de serviços particulares nos hospitais para curar as moléstias dos artesãos. Patissier, no início do século XVIII, desenvolve os temas de Ramazzini e Tissot, já então preconizando a reunião de dados estatísticos sobre a mortalidade e a morbidade por moléstias e acidentes na população operária. Villermé, à mesma época, realiza estudos estatísticos, efetuando uma importante pesquisa sobre as condições de trabalho em inúmeras fábricas de 6 todas as regiões da França, os quais culminam num relatório publicado em 1840 sobre o estado físico e moral dos operários. Tal relatório é considerado o ponto de partida para as primeiras medidas legais de limitação da duração do trabalho e da idade, de engajamento para as crianças. DESENVOLVIMENTO ATUAL Na primeira metade do século XX, o progresso dos conhecimentos em psicologia e fisiologia é considerável, mas as pesquisas sobre os problemas de trabalho ainda são raras. No início do século, na Alemanha, nos Estados Unidos e, depois, na Inglaterra, alguns psicólogos criam os primeiros institutos e centros de pesquisa orientados para o estudo desses problemas. Lahy, na França, participa desta corrente, pesquisando as condições de trabalho em algumas profissões. Mas a pressão do ambiente orienta a psicologia do trabalho para os problemas da seleção de pessoal. À parte algumas tentativas isoladas, somente na metade deste século é que ela sai do âmbito da psicologia diferencial para desenvolver pesquisas sobre a atividade do homem no trabalho). Na França, no início do século, Jules Amar cria o primeiro laboratório de pesquisas sobre o trabalho profissional, no Conservatório Nacional de Artes e Ofícios, e desse modo a fisiologiado trabalho encontra uma estrutura para se desenvolver. Mais tarde, os progressos da neurofisiologia e da psicofisiologia permitirão estender as pesquisas a domínios situados fora do âmbito muscular. Após seu aparecimento oficial, a Ergonomia tende a ampliar suas bases científicas: de um lado, em direção à Biometria, à Bioquímica e à Biomecânica; de outro, em direção à Psicologia Social e à Sociologia. Tal tendência levanta o problema de seus limites, questão ainda hoje atual. Sólidas bases científicas eram necessárias para a criação da disciplina, mas outros elementos, ligados à evolução dos problemas do trabalho, desempenharam na época um papel igualmente importante. 7 1. Exigências técnicas. A concepção de máquinas complexas e sua utilização em situações extremas exigem que se considere sempre mais o modo de atuação do homem. Este problema manifestou-se de forma brutal durante a última guerra mundial, quando se encontrou dificuldade na utilização de material bélico complexo. Mas, atualmente, pode-se encontrar ainda numerosos exemplos: O aumento da velocidade dos aviões e as exigências de segurança a elas ligadas impõem a concepção de um posto de comando adaptado às possibilidades do piloto que, submetido a longos percursos e à mudança de fusos horários, verá modificações na sua capacidade de pilotar; a construção de sistemas de produção inteiramente automatizados, como na indústria química, cria situações de trabalho onde o operador encarregado do controle permanecerá isolado, devendo, a partir de tinia série de indicações, acompanhar o bom andamento do processo de fabricação e intervir com rapidez em caso de raros incidentes, e isto durante muitas horas, tanto de dia como de noite; a fabricação miniaturizada, principalmente no ramo eletrônico, exige uma precisão extrema no trabalho, que só pode ser feito corretamente se a concepção do posto respeitar de maneira quase perfeita as exigências fisiológicas e psicológicas. O que se constata, aliás, é que estas diversas atividades de trabalho devem se efetuar em ambientes extremos ou artificiais: isto ocorre com o desenvolvimento de atividades em zonas geográficas muito quentes ou muito frias e, principalmente, com a multiplicação dos postos de trabalho em que os operadores são submetidos a ruído intenso, vibrações e condições térmicas impostas pelas técnicas de fabricação (como nas indústrias têxtil e alimentar). 2. Exigências econômicas. O desenvolvimento dos meios técnicos de produção se faz acompanhar de um aumento da complexidade das máquinas, mas também de seu custo: não se toleram sua má utilização ou algum incidente em sua manobra; necessidades técnicas e pressões econômicas exigem sua contínua 8 utilização; o trabalho em equipes alternadas e o trabalho noturno abarcam número sempre maior de trabalhadores; o índice de ausência e o turn-over aumentam em muitos setores industriais, acarretando um elevado custo econômico para a sociedade. 3. A pressão social dos trabalhadores. Submetidos a condições de trabalho que põem em risco sua saúde, a um ritmo acelerado de produção, à fragmentação das tarefas, a agressão do meio ambiente (ruído, poeira, vibrações), a alterações periódicas dos horários de trabalho, etc., os trabalhadores não toleram a diferença entre os imensos esforços exigidos por uma industrialização sempre mais aperfeiçoada e as raríssimas ações realizadas para mudar as condições de trabalho, salvo quando se trata de aumentar a produção. A noção de melhoria das condições de trabalho aparece muito cedo na história do movimento operário; mas, freqüentemente, ela só se traduz em reivindicações de medidas de proteção (limitação da jornada de trabalho, proteção contra o ruído), que são mais fáceis de serem alcançadas e generalizadas. Entretanto, a resistência para suportar condições de trabalho penosas aumenta nos países industrializados como se verifica pelo apelo a mão-de-obra estrangeira e por sua significativa presença em empregos onde as condições de trabalho são severas (trabalho em cadeia, construção civil, etc.). Esses três tipos de pressão impulsionaram o desenvolvimento de pesquisas sobre o desempenho do homem em atividade, particularmente em atividade profissional, levando a que se reunissem os conhecimentos já adquiridos a fim de torná-los úteis à organização e concepção dos meios de trabalho, sem, contudo provocar aplicações idênticas, na prática. A utilização de conhecimentos ergonômicos liga-se aos objetivos das empresas, das populações que as compõem e da sociedade a que pertencem. Tais conhecimentos servem tanto para aumentar a eficácia de um sistema de produção como para diminuir a carga de trabalho do operador. Mas esses objetivos muitas vezes são contraditórios, constatando-se freqüentemente que a melhoria de um posto de 9 trabalho feita a partir de dados ergonômicos não se faz acompanhar simultaneamente por uma atenuação na carga de trabalho para o operário: um dispositivo mais aperfeiçoado no comando de uma máquina fará com que um mesmo operador conduza duas delas; o rendimento aumenta, mas também aumenta simultaneamente o trabalho do operário. A Ergonomia se aplica dentro de um determinado quadro político. Assim, não se constitui num fator de melhoria das condições de trabalho. Na maioria dos casos, foi através de pressões sociais, feitas principalmente pelos sindicatos e pelos operários, que as mudanças mais significativas foram alcançadas. QUADRO DA ERGONOMIA Definição Assim, a Ergonomia pode ser definida como "o conjunto de conhecimentos científicos relativos ao homem e necessários à concepção de instrumentos, máquinas e dispositivos que possam ser utilizados com o máximo de conforto, segurança e eficiência" (A. Wisner). Nesse caso, se a Ergonomia é, de início, uma tecnologia, isto é, um corpo de conhecimentos sobre o homem aplicável aos problemas levantados pelo conjunto homem-trabalho, ela tem, contudo, métodos específicos de estudo e pesquisa sobre a realidade do homem no trabalho que definem um tipo de pensamento que lhe é próprio, colocando questões às diversas ciências sobre as quais se apóia (principalmente à Fisiologia e à Psicologia) e suscitando pesquisas no terreno do homem em atividade. A Ergonomia pode ser considerada um conjunto de conhecimentos interdisciplinares. A Psicologia e a Fisiologia são as duas principais ciências onde a Ergonomia foi buscar raízes e continua a se edificar. Mas o desempenho do homem no trabalho é de grande complexidade, e a Ergonomia ampliou progressivamente o campo de suas bases 10 científicas: assim, ela recorre a conhecimentos adquiridos em setores tão diversos como a Antropologia e a Sociologia para estabelecer suas normas de aplicação. Aliás, isso pode ocasionar um grave risco: carente de limites, esta disciplina estaria condenada ao desaparecimento. Entretanto, se a Ergonomia conserva seu objetivo principais qual seja, a concepção de situações e instrumentos de trabalho de acordo com o desempenho do homem, então ela é diretamente identificável. Disciplinas afins Estes objetivos diferenciam bem a Ergonomia de disciplinas como a Organização do Trabalho ou a Segurança do Trabalho. O objetivo da Organização do Trabalho é conceber sistemas de "produção" mais eficazes do ponto de vista econômico, técnico e social. O homem é apenas um dos elementos considerados, e sua atividade está diretamente subordinada à eficácia do conjunto do sistema. Na Medicina do Trabalho, o objetivo prioritário é a defesa da saúde do trabalhador, a conservação de sua integridade física e mental. Colocando-se, de início, em um plano preventivo, ela só se liga à tecnologia no nível do exame crítico do dispositivo de produção. Já a Segurançado Trabalho coloca-se num nível tecnológico para realizar seu próprio objetivo: conservação da integridade física do trabalhador. Tal diferenciação corresponde a uma realidade francesa. Ela pode evoluir, pois é grande o intercâmbio dessas disciplinas. Pode-se constatar que alguns médicos do trabalho, agentes e engenheiros de segurança e organizadores do trabalho realizam por vezes atividades especificamente ergonômicas. Em outros países, na prática, as diferenciações não são as mesmas. Cada um dos dois aspectos - tecnologia da concepção dos meios de produção adaptados ao desempenho do homem e higiene industrial para a proteção da saúde física e psíquica dos trabalhadores - pode ter uma importância diferente. 11 Clientela Na prática atual, os conhecimentos sobre o homem no trabalho são utilizados por engenheiros na concepção ou correção dos meios de produção e de produtos, pelos organizadores do trabalho na organização de sistemas de produção em que o homem intervém, pelos serviços de higiene e segurança no estabelecimento de normas e limites que, uma vez ultrapassados, porão em risco a saúde dos trabalhadores, pelos departamentos de pessoal em seu papel de formação, pelos sindicalistas em seu papel de defesa das condições de trabalho. Entretanto, fora do âmbito estrito da empresa, certos dados ergonômicos são utilizados por arquitetos na concepção de locais de trabalho (oficinas, escritórios, centros comerciais, alojamentos, etc.), por designers, por criadores de uma profissão ou tarefa, por reeducadores. Classificação Distingue-se habitualmente uma ergonomia de correção de uma ergonomia de concepção. A primeira procura melhorar as condições de trabalho existentes e é freqüentemente parcial (modificação de um dos elementos do posto, claridade, dimensões) e de eficácia limitada, além de ser onerosa do ponto de vista econômico, pois o controle de ruído de uma máquina já fabricada, por exemplo, é mais difícil de fazer, menos eficaz e mais custoso do que quando a máquina ainda se encontra em fase de projeto. A ergonomia de concepção, ao contrário, tende a introduzir os conhecimentos sobre o homem desde o projeto do posto, do instrumento, da máquina ou dos sistemas de produção. Outras diferenciações são ainda estabelecidas: ergonomia dos meios de produção - isto é, dos componentes do trabalho - e ergonomia do produto. No último caso, trata-se de conceber o objeto fabricado considerando os dados ergonômicos correspondentes ao número de consumidores (carros, aparelhos eletrodomésticos, etc.). 12 Além disso, já se começa a formular questões em outro nível: de que maneira conceber um produto, um objeto que possa ser fabricado considerando-se os dados ergonômicos dos postos de trabalho, isto é, conceber o objeto a ser fabricado considerando não apenas as limitações técnicas, econômicas e comerciais, mas também as limitações ergonômicas de fabricação. Podemos, enfim, distinguir uma ergonomia de proteção do homem que trabalha, para evitar o cansaço, a velhice precoce, os acidentes, etc., e uma ergonomia de desenvolvimento, que permitirá a concepção de tarefas de forma a elevar a capacidade e a competência dos Operadores. Desse modo, os problemas levantados pelo envelhecimento das aptidões e capacidades do homem no trabalho podem ser estudados apenas na perspectiva do homem envelhecendo no trabalho: quais são as condições nas quais o trabalhador idoso pode continuar a assumir sua tarefa sem cansaço nem aceleração dos processos de envelhecimento? Elas podem ainda ser estudadas também a partir de uma perspectiva dinâmica: quais são as condições nas quais o trabalhador mais velho pode aumentar sua competência? No primeiro caso, obedece-se a recomendações ergonômicas que permitem a conservação do posto no curso da vida profissional (dimensões do posto, limite dos esforços físicos, limites do ritmo de trabalho, sistema de auxílio aos trabalhadores, etc.). No segundo caso, tende-se a preconizar uma concepção do conteúdo do trabalho, de modo a permitir o aumento da capacidade profissional do trabalhador, com a idade. É claro que esta última perspectiva não pode se realizar quando as condições de conservação do posto não são respeitadas. 13 CAPÍTULO 1 TRABALHO, TECNOLOGIA E ERGONOMIA O TRABALHO AO LONGO DA HISTÓRIA* *Adaptação de trechos de Domenico de Masi, 2000 Como já deve estar claro, a ergonomia não teria sentido se não existisse o trabalho humano. Desta forma, antes de partirmos para os problemas relacionados diretamente à disciplina, é necessário compreender e estabelecer uma base sólida do que já foi, o que é e o que pode vir a ser o trabalho humano. Em outras palavras, é prudente conhecer a evolução e um conceito para esta atividade do homem. O trabalho humano sofreu grandes transformações ao longo dos tempos, assim como seu conceito. Para os gregos, por exemplo, tinha uma conotação estritamente física: "trabalho" era tudo aquilo que fazia suar, com exceção do esporte. Quem trabalhava, isto é, suava, ou era um escravo ou era um cidadão de segunda classe. As atividades não-físicas (a política, o estudo, a poesia, a filosofia) eram "ociosas", ou seja, expressões mentais, dignas somente dos cidadãos de primeira classe. É interessante notar que, mesmo no século XIX, a concepção de trabalho era muito ligada à de sofrimento. No seu Tableau de l'état physique et moral des ouvriers dans les fabriques de coton, de laine et de soie, de 1840, Villarmé referia que naqueles tempos os escravos das Antilhas trabalhavam nove horas por dia, os condenados ao trabalho forçado nas instituições penais, dez, e os operados de algumas indústrias de manufaturas trabalhavam dezesseis horas por dia. Para os católicos, o trabalho era uma sentença condenatória, como reafirmará a Rerum Novarum, em 1891. Para os liberais, era uma disputa mercantil. Para Marx, era a 14 única possibilidade de redenção, junto com a revolução e, por isso, era um direito a ser conquistado. Nesta época, somente Taylor, no plano prático, e Lafargue, no plano teórico, consideram o trabalho um mal que deve ser reduzido ao mínimo ou evitado. Entre as visões do trabalho que se confrontavam naquele período, a de Taylor era a mais libertadora e cheia de vitalidade. A sociedade industrial permitiu que milhões de pessoas agissem somente com o corpo, mas não lhes deixou a liberdade para expressar-se com a mente. Na linha de montagem, os operários movimentavam mãos e pés, mas não usavam a cabeça. Depois de algum tempo, o movimento se tornava completamente automático. Na realidade, a sociedade industrial não só fez com que, para muitos, se tornasse inútil o cérebro como também fez com que somente algumas partes do corpo fossem utilizadas. Isto era diferente da sociedade rural na qual o camponês, para usar a enxada ou a pá, assim como o pescador para pescar, além de utilizar o corpo inteiro, usava talvez um pouco mais o cérebro. Mesmo no século XX, em uma fábrica automobilística, a Alfasud (Itália), uma pesquisa com cerca de dois mil operários mostrou que uma etapa de trabalho durava setenta e cinco segundos. Calcule-se quantas vezes se repetia esta tarefa ao longo de uma jornada de oito horas! Era um trabalho para macacos: basta-se observá-lo por poucos minutos para aprender a realizá-lo. Na nossa sociedade, definida como pós-industrial, o trabalho repetitivo, seja ele físico ou intelectual, vem sendo cada vez mais realizado pelas máquinas. Aos humanos, no trabalho ou no ócio, resta a interessante tarefa de serem criativos. Mas parece realmente difícil aceitar essa nova condição e dela usufruir, pois não se abandonam num segundo os hábitos adquiridos. Estamos habituados a desempenhar funções repetitivascomo se fôssemos máquinas e é necessário um grande esforço para aprender uma atividade criativa, digna de um ser humano. 15 Qual o futuro do trabalho na nossa sociedade pós- industrial?* *Resenha do Livro “O Fim dos Empregos” de Jeremy Rifkin Em "O Fim dos empregos", Jeremy Rifkin apresenta uma visão um tanto preocupante, e, ao mesmo tempo, esperançosa do futuro. O autor argumenta que o mundo está entrando em uma nova fase na história, com a sociedade caminhando para um declínio dos empregos. Esta nova fase, a “terceira revolução industrial”, é o resultado do surgimento de novas tecnologias, como o processamento de dados, a robótica, as telecomunicações e as demais tecnologias que aos poucos vão repondo máquinas nas atividades anteriormente efetuadas por seres humanos. De fato, o que vemos hoje, como um prenúncio das previsões de Rifkin é a automatização de escritórios, comércio e indústria a níveis nunca antes observados. Computadores fazem o trabalho de dezenas de seres humanos. Robôs, de milhares, e a custos infinitamente inferiores, sem férias, dores de cabeça, TPM ou benefícios. A mais sombria previsão de Rifkin é que os trabalhos perdidos pelo ser humano para as máquinas nunca mais serão feitos por homens. Ele afirma que a automatização proveniente de máquinas e computadores, oferece um ganho em produtividade e uma redução de custos, que a princípio oferece a falsa visão que mais pessoas poderão entrar no mercado de consumo e adquirir bens. A teoria é de que automatização gera maior produção e maior produção gera aumento da produtividade. A produtividade, por sua vez, gera preços baixos. Preços baixos aumentam a demanda, aumentando por sua vez a produção, que a seu turno aumenta o nível dos empregos. Ora, isto é rejeitado por Rifkin, já que a cadeia é correta a não ser na sua conclusão: a produção hoje não aumenta o nível dos empregos, mas sim, traz mais automatização reduzindo o trabalho dos seres humanos. O autor faz uma análise meticulosa de como a tecnologia afetou e continua afetando a forma em que as pessoas tem realizado suas 16 tarefas na agricultura, produção e setores de serviço durante o final do século XX. No passado, afirma Rifkin, as "vítimas" do desemprego causado por novas tecnologias eram absorvidas por outros setores do ciclo laboral. Desempregados da indústria de alta tecnologia iam para a indústria de baixa, os de baixa para os serviços, os de serviços para a construção, os de construção para a agricultura e assim sucessivamente. Hoje em dia, com tecnologias de ponta até na agricultura, como as ceifadeiras e colheitadeiras automáticas, milhares de trabalhadores estão sendo substituídos por duas ou três máquinas que fazem o mesmo trabalho a um custo inferior, e em turnos ininterruptos. Uma realidade, no entanto, está prevista por Rifkin: por mais que o nível de empregos decline, nem todos estarão desempregados na nova sociedade baseada na informação. Para ele, um pequeno número de trabalhadores no setor da informação e do conhecimento irá prosperar, já que o seu "know-how" será cada vez mais necessário na criação, desenvolvimento e manutenção dos equipamentos necessários à automação. Os profissionais da tecnologia se constituirão em uma nova elite da sociedade. Outro segmento que irá sobreviver na nova economia global será o da alta administração. Dados afirmam que os altos executivos atuais são o segmento que mais tiveram os seus rendimentos aumentados nos últimos 50 anos. O mais preocupante é que o salário de um Chief Executive Officer, nos Estados Unidos pulou de 29 vezes o salário de um operário em 1979 para 93 vezes em 1988... Algumas conseqüências desta nova distribuição do trabalho na sociedade podem ser previstas: novas formas de distribuição dos frutos da implementação da automação terão que ser implementadas nos próximos anos. Primeiramente, os dramáticos avanços em produtividade terão que ser "casados" com a redução de horas trabalhadas e com o aumento de salários. Infelizmente, as tendências nos últimos anos mostraram o contrário: os americanos estão paradoxalmente trabalhando mais horas por dia do que faziam na década de 20 e recebendo cada vez menos participações nos lucros das empresas que trabalham. Este fenômeno é o resultado da 17 introdução da tecnologia, que tem possibilitado às empresas demitir trabalhadores criando um verdadeiro exército de desempregados. Os que permanecem nos empregos, no entanto, se sentem compelidos a trabalhar cada vez mais, por salários cada vez menores. As empresas que se auto denominam "competitivas" tem optado por trabalhar com uma folha de pagamento cada vez menor, obrigando os trabalhadores a produzir mais. A Segunda solução proposta por Rifkin para contra atacar os impactos criados pela tecnologia cabe aos governos. Consiste em que eles criem um maior apoio para o Setor Social, onde diferentemente dos setores comerciais, as mudanças de ganhos e perdas são menos importantes, e o que importa, no fim, é o aspecto social. Um exemplo são as 1 milhão e quatrocentas mil organizações sem fins lucrativos americanas, que contribuem com aproximadamente 6% da economia e é responsável por 9% do nível de emprego total. O aspecto sombrio de Rifkin se reflete nos números que apresenta como fatos e previsões. O mais terrível é que 2020 é o ano em que virtualmente se esgotarão as possibilidades de emprego. Temos portanto 17 anos para nos preparar para um mundo que se automatizou aproveitando a mão de obra humana ou para literalmente chegarmos ao "fim dos empregos". DA TECNOLOGIA AO CONCEITO DE TRABALHO* *Traduzido e adaptado de Christophe Dejours, 1995 Quais são as relações de distinção entre técnica e trabalho? Podemos afirmar que não são sinônimos, face às disciplinas especificamente implicadas na conceitualização de trabalho, em especial a ergonomia. A primeira distinção refere-se à noção de ato. Sob a luz da investigação ergonômica, em especial a ergonomia de língua francesa, somo levados a atribuir um lugar primordial à análise da atividade, diferenciando-a da definição de tarefa. A tarefa é que deseja-se obter ou que deveria-se fazer. A atividade é, perante a 18 tarefa, o que é feito realmente pelo operador para tentar atingir, o mais perto possível, os objetivos fixados pela tarefa. Em relação à técnica, o trabalho é caracterizado, por conseguinte, pelo quadro social de obrigações e de limitações que o precede. Por diferença com um ato não situado em relação a uma prescrição, ou seja, um ato referente a uma fabricação qualquer, o trabalho stricto sensu implica um contexto que contribui de maneira decisiva para defini- lo. Também, no conceito de trabalho, substituir-se-á à noção de ato aquela de atividade mais precisa e mais específica. Por outro lado, a eficácia é certamente uma dimensão central comum à técnica e ao trabalho. Mas o trabalho sempre é situado num contexto econômico. O critério isolado da eficácia da atividade sobre o real é insuficiente para homologar uma atividade como um trabalho. É necessário ainda que esta eficácia seja útil. Esta utilidade pode ser uma utilidade técnica, social ou econômica. Mas o critério utilitário, ou mesmo utilitarista no sentido econômico do termo, é inexpugnável do conceito de trabalho. É sobre este critério que pode-se estabelecer a distinção entre um lazer e um trabalho, entre o trabalho e o não-trabalho. Jogar tênis, jogar cartas, etc., todas estas atividades implicam o uso de técnicas. Mas se a eficácia técnica dos atos não está sujeita aos critérios de utilidade, está no domínio do lazer ou do não-trabalho. É em relação a este critério utilitarista que se distingue a pessoa em férias do monitor. Para este último, trata-sede uma atividade julgada e reconhecida não somente para a sua eficácia técnica, mas pela a sua utilidade social e econômica (em proveito de um município ou um clube privado, por exemplo). O real como conceito (aporte da ergonomia) Devemos agora abordar de maneira mais precisa que o temos feito até agora o conceito de “real”, na teoria da técnica e no trabalho. Estivemos considerando equivalentes três termos: o ambiente físico, a realidade e o real. Mas não podemos progredir na crítica dos 19 pressupostos teóricos próprios a cada uma das abordagens do fator humano, se não esclarecemos o conceito de real, que apresenta não somente um conteúdo teórico e enigmático, mas que tem também implicações epistemológicas essenciais à nossa discussão. Definiremos o real como “o que, no mundo, se ressalta pela sua resistência ao controle técnico e ao conhecimento científico”. Em outros termos, o real é aquilo sobre o qual fracassa a técnica, após todos os recursos técnicos terem sido utilizados corretamente. O real está, por conseguinte, substancialmente ligado ao fracasso. É o que no mundo nos escapa e se torna por sua vez um enigma a decifrar. O real se apresenta assim como um convite constante ao trabalho de investigação e de descoberta. Mas, assim que dominada pelo conhecimento, uma nova situação faz emergir novos limites de aplicação e de validade, assim como novos desafios ao conhecimento e o saber. Consequentemente, o real não é da competência do conhecimento, mas o que está para além do domínio de validade do conhecimento e o "know-how" atuais. O real apreende-se primeiro sob forma da experiência na acepção de experiência vivida. O real deve, por conseguinte, conceitualmente ser distinguido da realidade. A realidade é “o caráter daquilo que não se constitui tão somente um conceito” mas um estado de coisas. A dificuldade lexical vem que o adjetivo que corresponde à realidade é também: real. O que designamos por real aqui não é o caráter real de um estado de coisas - a sua realidade - mas o real como substantivo. O real é a parte da realidade que se opõe à simbolização, ou à prescrição do ergonomista. A contribuição decisiva da ergonomia à teoria do trabalho é ter indicado o caráter incontornável, inexorável, e sempre renovado do real no trabalho (A. Wisner, 1993). Trata-se, no plano conceitual, de um progresso cuja importância é incomensurável e do qual as consequências para a abordagem do fator humano não foram, até agora, corretamente assumidas, nem mesmo por certos 20 ergonomistas que se encontraram em certa medida ultrapassados pelas incidências teóricas e práticas das suas próprias descobertas. Com efeito, “o real do trabalho” é uma dimensão essencial à inteligibilidade dos comportamentos e das condutas humanas numa situação concreta. A falibilidade humana perante a tarefa é inevitável, dado que o real não se faz compreender que sob a forma do fracasso. E é precisamente, parece, esta noção de fracasso que falta na teoria ergonômica e na teoria do trabalho, noção no entanto indefectivelmente ligada à do real. A prescrição, ou seja, aquilo que em ergonomia designa-se sob o nome de tarefa ou modos operacionais prescritos, se ela nunca pode ser respeitada integralmente quando o trabalhador se esforça para atingir os objetivos da tarefa, é precisamente devido ao real do trabalho. A tarefa, ou seja, aquilo que se deseja fazer, não pode nunca ser atingida exatamente. É necessário sempre nenovar os objetivos fixados no início. Tal é a demonstração feita pela análise ergonômica da atividade. Em outros termos, o real do trabalho, se aceitarmos assumir as consequências teóricas do conceito, conduz à conclusão que a atividade real contem sempre uma parte de fracasso face ao qual o operador ajusta os objetivos e a técnica. O fracasso, parcial, é por conseguinte incluído fundamentalmente nos conceitos de eficácia e de utilidade, fato ignorado pela a maior parte das concepções do fator humano. Em direção a uma outra definição de trabalho Perante o fracasso de uma técnica, de um "knowhow" ou um conhecimento, uma trabalhador pode se superar e ganhar experiência com a sua falha. E de fato, “a atividade” real contem já uma parte de reajuste, realinhamento dos modos operacionais perante a resistência do real, para chegar o mais perto possível dos objetivos fixados pela tarefa. A atividade condensa, portanto, em certa medida o sucesso do saber e o fracasso causado pelo real, num 21 compromisso que contem uma dimensão de imaginação, de inovação, de invenção. Na perspectiva assim aberta, podemos dar ao trabalho uma nova definição: “atividade coordenada útil”. Esta nova definição enuncia- se nos termos seguintes: “O trabalho é a atividade coordenada realizada pelos homens e as mulheres para fazer face ao que, numa tarefa utilitária, não pode ser obtido estritamente pela execução da organização prescrita.” Esta definição contem as noções inicialmente retidas para caracterizar o trabalho. Mas leva em conta de maneira mais precisa o real: aquilo que na tarefa não pode ser obtido pela execução prescrita de maneira rigorosa. E insiste na dimensão humana do trabalho: é o que deve ser ajustado, renovado, imaginado, inventado, acrescentado pelos homens e as mulheres para ter em conta o real do trabalho. A ERGONOMIA E O TRABALHO* *Tradução e Adaptação de Françoise Darses e Maurice de Montmollin, 2006 Estabelecida uma definição adequado do trabalho humano, pode-se tentar, numa segunda etapa, estabelecer qual seria, por sua vez, a atividade realizada pelo ergonomista. Esta, é “compreender o trabalho para transformá-lo”, como indica o título da obra de Daniellou et al (1997). Em outras palavras, para compreender o trabalho, é necessário analisá-lo, apoiando-se sobre conceitos e métodos que exporemos inicialmente. Para transformar o trabalho, é necessário efetuar uma intervenção cuja execução explicaremos subseqüentemente. Estes dois eixos do trabalho do ergonomista (compreender e intervir) são designados geralmente “diagnóstico ergonômico” e “intervenção ergonômica”. A maneira de conduzir estas duas fases da ação ergonômica pode variar, de acordo com os contextos, mas também em função das escolhas metodológicas e teóricas que faz o ergonomista. 22 A análise do trabalho A análise do trabalho, na sua acepção mais ampla e, por conseguinte, mais vaga, designa o conjunto das atitudes (sociológicas, econômicas, psicológicas, organizacionais, assim como ergonômicas) que permitem dizer algo sobre o trabalho humano. A ergonomia deve, por conseguinte, precisar o que entende, ela, por este vocábulo. Analisar o trabalho é, primeiramente, fazer a distinção entre trabalho prescrito e trabalho real. Mas isto não é totalmente específico à ergonomia: a organização do trabalho, sob todas as formas, sempre tratou do trabalho prescrito e também interessou-se pelo trabalho real - mas mais freqüentemente para reprimi-lo que para inspirar-se. A verdadeira especificidade da ergonomia (sobretudo a dita “da escola francesa”) aparece com a introdução da distinção tarefa/atividade. Então, o trabalho real reveste-se de certa “nobreza” e o trabalho prescrito vê-se às vezes acusado de “rústico”. O trabalho prescrito e o trabalho real Trabalho prescrito. - É que a hierarquia especifica formalmente, oralmente ou por escrito (através instruções, de notas e regulamentos), em relação: • objetivos quantitativos: número de peças a produzir, número de processos a monitorar, de prazos a respeitar, de pacientes a tratar; • objetivos qualitativos: defeitos a evitar, apresentações a respeitar; • procedimentos a seguir (desde Taylor, sempre o aspecto mais importante dotrabalho prescrito): seqüências de montagem, 23 modalidades de reparo, procedimentos de comunicações ar- solo; • regras e normas: algumas, mesmo não sendo especificadas explicitamente, não por isso são menos prescritas, provocando freqüentemente sanções no caso de descumprimento. É o caso das convenções culturais e sociais das coletividades do trabalho. O trabalho prescrito supõe também que certas condições mínimas são preenchidas: locais adaptados, máquinas, ferramentas, dispositivos diversos em funcionamento e, de maneira mais geral, um ambiente físico tolerável. Trabalho real - é o que se passa certamente na oficina ou no escritório, ao fio dos dias e as noites, nas condições locais com as máquinas e os procedimentos como apresentam-se realmente, tendo em conta todos os riscos. É que os trabalhadores (operadores, agentes, empregados, etc.) realizam diariamente, em relação: • objetivos quantitativos e qualitativos: o trabalho real exprime-se aqui em termos de desempenhos, realizados ou não; • procedimentos: o trabalho real exprime-se aqui em termos de comportamentos (utiliza-se as vezes os termos ações ou modos operacionais) mais ou menos em conformidade com as prescrições. Os erros humanos geralmente são interpretados pelas hierarquias como resultantes do descumprimento dos procedimentos prescritos. Neste primeiro nível da análise do trabalho, o ergonomista sempre mostra que o trabalho real não é nunca exatamente conforme com o trabalho prescrito: os documentos impressos não estão atualizados, o computador está avariado e o pessoal de manutenção está de férias, a válvula é inacessível, o material entregue não está nos conformes, o circuito foi alterado, as instruções estão imcompletas, 24 os preços aumentaram, a alternativa não estava prevista, o caso nunca produziu-se e a exceção é a regra. E, entretanto, tudo acabe se arranjando, porque adapta-se e os trabalhadores se adaptam ativamente, sem se incomodar demasiadamente com as prescrições oficiais. Mas, às vezes, também, não sem esforços dispendiosos, tanto em termos de cansaço como de dinheiro. E no entanto, impávidos, os “prescritores” do trabalho continuam a preferir a idéia imaginária que fazem do trabalho e da atividade dos trabalhadores, concebendo e organizando postos de trabalho que supõem um universo totalmente transparente, estável e previsível. Postos de trabalho que se revelam, com efeito, insuportáveis sem incessantes adaptações locais por parte dos seus ocupantes. Relações entre o trabalho prescrito e o trabalho real. A constatação repetida de uma diferença entre o prescrito e o real não está em contradição com o quadro teórico taylorista. Mas este subordina estritamente “o real” ao “prescrito”. É por isso que, sob a perspectiva ergonômica, convém distinguir quatro casos. O trabalho real não corresponde ao trabalho prescrito porque: • o trabalhador não apresenta “as capacidades”, “as aptidões” para realizá-lo. Propõe-se então selecionar outro trabalhador. Esta abordagem, que evita qualquer modificação do trabalho, é totalmente estranha à ergonomia; • as condições materiais não estão adaptadas: calor e barulho, iluminação, máquinas e instrumentos, assentos, estas condições do trabalho atrapalham, cansam, ferem o executante do trabalho e, por conseguinte, perturbam a execução do trabalho. Alguns acrescentam as condições sociais do trabalho (por exemplo, as remunerações insuficientes, as perspectivas de promção inexistentes) mas nesse caso é difícil traçar uma relação direta com os comportamentos. O papel do ergonomista aqui é clássico: é a adaptação da máquina ao homem; 25 • os procedimentos prescritos são não-adaptados ao olhar dos objetivos prescritos: insuficientes, vagos, ou mesmo errados, ou ainda impossíveis de serem seguidos porque excessivamente detalhados. O papel do ergonomista aqui também é clássico (porém mais comtemporâneo): assinalar estas insuficiências. Pode ser menos clássico se não são os procedimentos, mas a sua transmissão aos operadores que é não-adaptada. Trata-se então de um caso de informação e/ou de formação insuficiente que pode ser assinalada; • o operador, a justo título, não seguiu os procedimentos prescritos e mesmo algumas vezes alterou os objetivos prescritos. Aqui, a especificidade da contribuição do ergonomista, ao contrário do organizador estritamente taylorista, é demonstrar que para ser um bom executor, ou seja, atingir os verdadeiros objetivos sem erros nem incidentes, o operador tem o direito e o dever de ser inteligente (em outros termos, adaptar-se e adaptar) e assim ser induzido a demonstrar iniciativa e autonomia (o que pode dar criar espaço para negociações, um termo totalmente excluído do vocabulário taylorista clássico). Nestes quatro casos, e no último muito claramente, uma análise do trabalho que se satisfaz com a comparação dos comportamentos reais com os comportamentos prescritos revela-se rapidamente insuficiente. O ergonomista é, assim, conduzido de aprofundar a sua análise para não somente descrever e avaliar mais precisamente os comportamentos, mas também explicá-los. É esta a sua “expertise” específica. A tarefa A distinção tarefa/atividade extende, ao precisá-la, a distinção trabalho prescrito/trabalho real. Ela tem um lugar central na análise do trabalho vista pela ergonomia “de língua francesa”. Os primeiros autores (Faverge, principalmente) caracterizaram a tarefa como 26 aquela que responde à pergunta “o que fazer?” e a atividade à pergunta “como fazer?”. Mas nesta caracterização há ambigüidade, porque esta última pergunta, aquela do “como fazer”, pode referir-se igualmente tanto aos procedimentos prescritos (como é preciso fazer?) quanto às atividades (como deve ser feito?). A análise da tarefa pelo ergonomista retoma e precisa a descrição do trabalho prescrito: objetivos (por exemplo, hierarquizados em sub- objetivos), procedimentos e restrições diversos (explicitados pelas instruções ou as ajudas on-line), condições de trabalho (físicos, organizacionais, cognitivos, etc.). A análise da tarefa não exige do ergonomista métodos que lhe sejam específicos. O objetivo aqui não é o de alterar o trabalho real, mas o de avaliar as tarefas do trabalho prescrito com o propósito de estabelecer escalas de remuneração ou critérios de recrutamento. A Atividade O conceito de atividade permite aprofundar o conceito do trabalho real. Mas este conceito muito popular em ergonomia de língua francesa (qualificada como “centrada na atividade”) nem sempre é definido muito claramente. É por isso que se propõe aqui introduzir algumas distinções. Nota-se que a distinção tarefa/atividade (no sentido ergonômico que entendemos neste texto) não existe na literatura de língua inglesa. O termo “tasks” é ali muitas vezes utilizado para descrever as atividades. Entretanto, a “task analysis” clássica não inclui a análise da atividade. A atividade apreendida através dos comportamentos. - é um aprofundamento do modelo do trabalho real, porque inclui na descrição o detalhe das seqüências de comportamentos: gestos, posturas, olhares, bem como as verbalizações dos operadores (comunicações com outros operadores, em especial). Esta análise da atividade permite a reconstituição fina das seqüências de ação que conduzem à realização das tarefas, levando em consideração os aspectos coletivos do trabalho (por meio da análise das interações). 27 Historicamente, é o modelo “dos tempos e movimentos” de origem taylorista o modelo dos métodos de cronometragem correspondentes que inspiraram esta maneira de compreender a atividade. Do ponto de vista psicológico, é a atividade apreendida através do modelobehaviorista do início do XX. Esta descrição da atividade, conhece hoje uma forte renovação de interesse. Com efeito, certas atividades muito dinâmicas (condução de veículos, condução de aeronaves) não podem nem ser interrompidas nem comentadas pelo operador simultaneamente à sua realização, e devem, por conseguinte, ser estudadas por métodos de observação ditos não-invasivos, que não alteram a dinâmica da ação. A atividade como uma lógica de ações. - a restrição da análise apenas aos comportamentos revelou-se insuficiente para explicar as atividades onde os componentes mentais (ou “cognitivos”) são predominantes. Os deslocamentos das peças pelo jogador de xadrez não fazem sentido para o observador a não ser que se possa reconstituir as reflexões que os precederam. É por isso que a análise da atividade como lógicas de ações é sem dúvida hoje o domínio mais estudado, e também o mais difícil. Trata-se de procurar reconstituir os encadeamentos (“os cursos de ações”, “as histórias”), que preparam, desencadeiam, conduzem e, por conseguinte, explicam as ações dos operadores. Os modelos e os quadros teóricos que se impuseram provêm todos de trabalhos internacionais de psicologia cognitiva que foram efetuados nos anos 1960 sobre o tratamento cognitivo da informação. Diferentes tipos de raciocínios (inferências, deduções, analogias…) foram descritos. Diversos modos de resolução de problema foram identificados: diagnóstico, tomada de decisão, estratégias, heurísticas, planificações. Somam- se ainda a análise das competências dos operadores, que compreendem os conhecimentos, "knowhow", metaconhecimentos, etc., mobilizados em relação a uma tarefa dada. Seria inútil procurar apreender estas competências antes de análise, por interrogação dos operadores, fora da atividade, e ainda mais por interrogação da hierarquia (seria então um caso de análise “das exigências da tarefa”). As competências favorecem a adaptação - ou provocam a inadaptação - às situações novas. Para designar estas competências, 28 o termo “habilidade” apenas é utilizado na ergonomia de língua francesa (ao contrário do seu equivalente inglês skill) devido à sua imprecisão e o perigo de confusão com os termos “capacidades” ou - pior ainda “aptidões”. A atividade como “o vivido”. – as emoções, os sentimentos, as manifestações de afetividade, a subjetividade e a psique têm sido consideradas por muito tempo como poluições que vêm perturbar a pureza das lógicas de ação, muito mais que como componentes integrantes da atividade. Contudo, a análise de situações de trabalho que envolvem riscos e as que comportam normalmente interações afetivas (cuidados médicos e guichês, por exemplo), restringem os ergonomistas a conceber modelos e métodos que levem em conta estes componentes da atividade. O perigo seria aqui satisfazer-se com aproximações clínicas procedentes da psicologia ou da psicopatologia. A atividade como processos biológicos. - Em paralelo às seqüências de comportamentos e as seqüências de lógicas de ação, e na medida em que se revelar necessário para a sua explicação (o que depende muito dos tipos de tarefas), o ergonomista pode analisar os ritmos cardíacos, o diâmetro da pupila, as secreções hormonais, etc. Por exemplo, a evolução do ritmo cardíaco do piloto durante uma manobra difícil pode ajudar a interpretar os seus comportamentos. Métodos de análise da tarefa e da atividade Ao observar sem preparação um empregado de escritório assentado frente ao seu terminal, um mecânico no ato de reparar uma máquina, um técnico em informática em frente ao seu terminal, há fortes possibilidades de que colhamos poucas informações úteis. É necessário um método de observação que permita saber como observar e, sobretudo, o que é necessário observar. Em seguida, é necessária uma técnica para recolher estes dados. E então, um método para interpretá-los, adequado aos modos de ação ergonômica. 29 Os métodos de análise da tarefa são comuns, em princípio, à ergonomia centrada “nos fatores humanos” e à ergonomia centrada “na atividade humana”. Ambasdevem, com efeito, identificar os objetivos e as restrições impostas pela situação técnica, econômica e social na qual deverão funcionar as máquinas ou os procedimentos. As informações necessárias para a concepção de um produto “grand-public” apresentam, contudo, freqüentemente um caráter de generalidade superior àquele requerido para um trabalho mais “profissional”, devido à diversidade das utilizações potenciais dos dispositivos concebidos (RABARDEL, 1995). Assim, se as fronteiras da tarefa de um piloto de avião de linha são identificáveis com muita precisão, o mesmo não acontece para a condução de um automóvel de turismo. Os métodos de análise da atividade distinguem-se pela sua amplitude: pode-se querer apreender o caráter multifatorial de uma situação (em detrimento de uma possível generalização) mas, as vezes, é útil estudar em detalhe o efeito de um fator sobre uma situação de trabalho (em detrimento de uma visão global do trabalho real). Pedido de análise e pré-diagnóstico Quando um pedido de análise do trabalho chega ao ergonomista, sempre é impregnado pelos objetivos claros da pessoa que o emitiu. É por isso que o ergonomista deve, antes de qualquer outra coisa, iniciar uma fase “de pré-diagnostico” ao curso da qual o pedido será estudado, ou seja, examinado, discutido e melhorado. Serão então considerados os fatores não considerados pelo contratante. Os parceiros que devem ser associados à análise (seja como serviço, como sub-contratante, como grupo de operadores, etc.) poderão então ser identificados. Determinar-se-ão também as modalidades de observação mais adequadas. É neste momento que serão precisados os objetivos, o programa, as colaborações, as modalidades de análise do trabalho, as necessidades eventuais “de acompanhamento”, etc. 30 A coleta de dados • análise documental • coleta de dados comportamentais por observação • produção de dados por verbalização • simulações • experimentação Tratamento dos dados e diagnóstico Uma vez coletados os dados, deve-se tratá-los e interpretá-los de modo a estabelecerum diagnóstico da situação de trabalho (e, mais precisamente, das disfunções da situação de trabalho). A intervenção ergonômica A ergonomia é uma engenharia de avaliação, de concepção e de melhoria do trabalho humano. Os seus métodos são, por conseguinte, inseparáveis das condições das suas intervenções. Assim, não há uma doutrina estabelecida que se impõe a outras. Além disso, apenas recentemente a classe dos ergonomistas se preocupa seriamente com a intervenção, fase esta, no entanto, essencial às suas atividades. Vejamos alguns de seus aspectos: Ergonomista : auditor, mediador ou co-conceptor ? Os diversos contextos nos quais a ação ergonômica opera, criam restrições que pesam sobre os modos possíveis de intervenção. Esta diferirá de acordo com o status do ergonomista (ergonomista de empresa, consultor, ergonomista institucional, etc.) e a sua especialização em domínios específicos (riscos industriais, concepção de produtos manufaturados, ergonomia informática, formação e gestão das competências, etc.). A ação ergonômica, por conseguinte, estará sujeitada a estes fatores e variará do ponto de vista da forma das suas intervenções (do diagnóstico simples à co- 31 concepção) e a sua duração (certas intervenções podem durar alguns dias, outras estender-se por vários anos). Os ergonomistas então serão levados a executar papéis diferentes, como ouvinte, mediador ou projetista: • quando responsável da auditoria de uma situação, o ergonomista efetua um diagnóstico que reflete o estado das condições de trabalho na empresa e levantaas causas das desfunções do trabalho. • em numerosos em casos, o ergonomista posiciona-se como um mediador, cuja função é apresentar os atores afetados pela transformação do trabalho e propor métodos de confrontação e integração dos seus pontos de vista (e, principalmente, os dos trabalhadores, utilizadores finais dos dispositivos). O ergonomista não contribui para a prescrição do trabalho, o seu papel estando restrito a estabelecer os espaços sociais para que os trabalhadores possam co- construir as mudanças do trabalho; • cada vez mais freqüentemente, o ergonomista executa o papel de prescritor, participando na concepção do sistema de trabalho tanto quanto outros projetistas. Nesta situação, espera-se do ergonomista que forneça as especificações ergonômicas (físicas e cognitivas) a se levar em conta quando da concepção. 32 CAPÍTULO 2 AS ESCOLAS DA ERGONOMIA* *Tradução de texto de Françoise Darses e Maurice de Montmollin, 2006 DUAS CORRENTES PRINCIPAIS EM ERGONOMIA A ergonomia se desenvolveu diferentemente na Europa e nos Estados Unidos. Isto levou ao surgimento de duas abordagens distintas na compreensão e na prática da disciplina. A primeira corrente, mais antiga e mais americana, considera a ergonomia como a descrição das capacidades dos seres humanos ao efetuar tarefas motoras e cognitivas. A anatomia e a fisiologia permitem conceber assentos, telas de computadores e horários mais adaptados ao organismo humano, e a psicologia, uma maneira melhor de apresentar as informações. A ergonomia é orientada aqui para a concepção dos dispositivos técnicos: máquinas, instrumentos, postos de trabalho, telas de computadores, "software", etc. A segunda corrente, mais recente e mais européia, considera a ergonomia como a análise global das situações de trabalho visando melhorá-lo. Sem pretender constituir-se em “uma ciência do trabalho” completamente autônoma, esta ergonomia reivindica a autonomia dos seus métodos. Por isso, constitui-se mais numa tecnologia que numa ciência. No exemplo descrito mais acima, ela se preocupará menos com o assento ou a tela do computador tomados separadamente, que do conjunto da situação de trabalho em questão. Nesta perspectiva, o cansaço e os erros do trabalhador só podem ser realmente explicados e, por conseguinte, diminuídos, apenas se a sua tarefa específica e a maneira específica de como realizar a sua atividade forem analisadas finamente nas suas especificidades locais. Pode-se descobrir assim, apenas citando um exemplo simples, que se permanecer assentado é penoso, não é (apenas) porque a cadeira é incômoda. É porque as informações que 33 aparecem na tela do computador são tais que forçam o operador a fixar os olhos na tela por longos períodos, o que implica numa postura rígida… O ergonomista, por conseguinte, é orientado aqui para a melhoria global da situação de trabalho: quem deve fazer o quê e, sobretudo, como fazê-lo, e poderia melhor fazê-lo? Objetivos que podem ser atingidos não só através de uma melhor concepção do dispositivo técnico, mas também com procedimentos de trabalho, pela transformação da organização e pelo desenvolvimento das competências dos trabalhadores. Estas duas ergonomias não são contraditórias, mas complementares. Em princípio, o mesmo ergonomista pode ser chamado, em função das circunstâncias (ou seja, em função das restrições da situação, dos interlocutores e dos financiamentos), a analisar a atividade de operadores reais e, concomitantemente, a utilizar os seus conhecimentos sobre o ser humano a fim de alterar a organização do trabalho, de ajudar a conceber um dispositivo de auxílio (instrumento informatizado, máquina ou método) e a desenvolver competências. A ergonomia é uma disciplina recente; é a razão pela qual o ergonomista tem ainda alguns problemas de identidade. Essencialmente, seu trabalho (sobretudo se é europeu) consiste em utilizar os instrumentos e os métodos de análise do trabalho. Contudo, analisar o trabalho não é um fim em si. É por isso que são evocados seguidamente problemas que exigem intervenções. Primeira corrente: o homem como máquina e a adaptação da máquina ao homem A ergonomia mais antiga, mas ainda hoje mais utilizada, consiste em levar em conta as características gerais do homem em geral, “a máquina humana”, para melhor adaptar-lhe as máquinas e os dispositivos técnicos. Podemos chamá-la de “ergonomia dos fatores humanos”, designada “human factors” pelos ergonomistas anglófonos. É a concepção clássica do sistema homem-máquina, 34 onde a análise ergonômica privilegia a interface entre os componentes materiais e os componentes (ou “fatores”) humanos. É uma ergonomia tipicamente americana. As características “da máquina humana” Características antropométricas. - Altura, dimensão dos diferentes segmentos corporais, pesos… Distingue-se evidentemente sub- populações: homens e mulheres inicialmente, mas às vezes grupos étnicos, e mesmo crianças caso tratar-se de dispositivos de uso geral (transportes, em particular). Características ligadas ao esforço muscular. – As contrações musculares são estudadas diretamente (por eletromiografia), bem como o consumo de oxigênio e o ritmo cardíaco que são utilizados como índices dos gastos energéticos. Características ligadas à influência do ambiente físico. – Estudam-se os efeitos do calor e o frio, as poeiras, os agentes tóxicos, o barulho, as vibrações e, mais recentemente, as acelerações bruscas. É o domínio onde a ergonomia associa-se à medicina do trabalho. Características psico-fisiológicas. – Estudam-se o olho e os desempenhos visuais, a orelha e os desempenhos auditivos, em primeiro lugar (e sob diversas condições) a visão noturna, a audição diante do barulho, por exemplo, mas também a olfato, o tato, os tempos de reação. Acrescentam-se as características vinculadas não só à sensação, mas a fenômenos centrais como a percepção visual (limiar de discriminação de diferentes formas, por exemplo) ou, nos anos 1950 e 1960, a atenção e a inspeção (detecção de sinais raros e aleatórios). Características dos ritmos circadianos. - Eles regulam a atividade biológica durante vinte e quatro horas, em especial a alternância vigília-sono. Estuda-se a influência das suas perturbações (devidos ao trabalho em turnos alternados, por exemplo) sobre o sono, e mais geralmente sobre a saúde. 35 Transversalmente ao estudo das características acima citadas, foram estudados os efeitos do envelhecimento, notadamente os seus efeitos fisiológicos e psico-fisiológicos. Os ergonomistas assim reuniram, em primeira ou segunda mão, uma massa considerável de dados sobre “a máquina humana” e, em particular, sobre os seus limites. No início, e sem dúvida sob a influência da ergonomia militar, o homem estudado foi exclusivamente quase o jovem macho branco em excelente saúde, e corpulento. Desde então diversificou-se felizmente as fontes. Não somente levando em conta o envelhecimento, mas considerando-se por fim que as mulheres hoje trabalham tanto quanto os homens, que nem todos estão sempre em perfeita saúde, e que os deficientes constituem não somente uma categoria de usuários, mas também de trabalhadores. Assim, o homem “médio” tende a desaparecer, em proveito de um homem “estatístico” descrito por numerosos parâmetros. A adaptação da máquina ao homem De posse da sua documentação sobre as capacidades e os limites “do homem estatístico”, os ergonomistas empenharam-se em persuadir os responsáveis pela concepção de dispositivos técnicos (de instrumentos manuais até os sistemas mais complexos) a levar em conta os dados acumulados, inicialmente a fim de evitar aos utilizadores acidentes e cansaço excessivo, e maisrecentemente a fim de tornar o manejo destas máquinas mais eficaz, mais confortável e mais convivial. Para atingir este objetivo, o ergonomista pode participar ele mesmo da concepção. Algumas firmas conhecidas de aviação, automobilísticas e de novas tecnologias (por exemplo, na França, Airbus, PSA, Renault, Michelin, SNCF, France Telecom, etc.), dispõem de um serviço de ergonomia que opera ao seio mesmo da empresa. Para convencer os projetistas que levem em conta “os fatores humanos”, os ergonomistas utilizam-se de vias diretas (sob a 36 forma de métodos ergonômicos, grelhas de análise e cotação dos postos de trabalho, instrumentos de avaliação ou de testes de utilizadores) ou vias indiretas: publicações e normas. As publicações são constituídas, essencialmente, por manuais que recapitulam as diversas características “da máquina humana” e que mostram com exemplos significativos, o que pode ser feito para adaptar o melhor possível os dispositivos técnicos. Existem igualmente diversas normas ergonômicas que são elaboradas e difundidas pela ISO e outras Associações Nacionais de Normas Técnicas. Estas tentativas para se fixar oficialmente (e às vezes legalmente) os valores ótimos e os limites além dos quais considera-se que há perigo ou cansaço excessivo para o trabalhador, encontram, a bem da verdade, certa reserva por parte de muitos ergonomistas, que temem que tal prática incite os projetistas a contentar-se com esses poucos limites fixados, e renunciar a uma análise mais completa e mais específica. Porque a ergonomia não se preocupa tão somente em evitar aos trabalhadores os postos de trabalho fatigantes e perigosos ao excesso, incomoda-se também de pô-los nas melhores condições de trabalho possíveis. É por isso que a otimização dessas “condições de trabalho” visa tanto melhorar o desempenho quanto evitar o acidente ou o cansaço excessivo. É nesta dupla perspectiva que se situam os manuais clássicos: - características antropométricas conduzem a propostas relativas ao espaço de trabalho: altura das cadeiras e das mesas, inclinação dos consoles, dimensões das cabines; posturas às quais obrigam certos dispositivos; - características no que diz respeito ao esforço muscular permitem propor melhores instrumentos (por exemplo, das pás às pinças manuais); - estudos sobre o barulho e o calor deram lugar a numerosas prescrições para diminuir os ruídos ainda na fonte ou, na impossibilidade, através de dispositivos de proteção (capacetes, vestimentas especiais, cabines isolantes, etc.); 37 - o conhecimento das características psico-fisiológicas permitiu melhor adaptar a iluminação, evitando igualmente as luminosidades insuficientes, os contrastes que ofuscam ou os reflexos incômodos (sobre as telas de terminais, por exemplo). Os dados sobre a percepção visual forneceram uma abundante literatura sobre a concepção dos instrumentos de medida (os mostradores, os registradores, os alarmes visuais ou sonoros, em especial na aviação, seguidos pelos das salas de controle), a legibilidade das interfaces informatizadas, a discriminação dos símbolos pictográficos, etc. ; - estudos sobre o envelhecimento e, de maneira mais geral, sobre a diversidade das populações de trabalhadores permitiram inibir a concepção de dispositivos reservados a uma única categoria de trabalhadores “normais”, na realidade bastante excepcionais. Segunda corrente: o homem como ator num sistema de trabalho A segunda abordagem da ergonomia, mais européia, concebe a ergonomia menos como a aplicação de conhecimentos gerais sobre o organismo humano e mais como a análise da atividade de operadores específicos confrontados com tarefas específicas. Não se procura mais melhorar o trabalho de utilizadores abstratos e anônimos, mas o de operadores reais e identificados. Esta abordagem privilegia a dinâmica da atividade humana no trabalho muito mais que a permanência das características físicas e fisiológicas. O trabalho é analisado como um processo onde interagem o operador, ator capaz de iniciativas e de reações, e o seu ambiente sócio-técnico, ele também evolutivo e passível de alteração. O trabalho toma um sentido, em todas as acepções deste termo. A dimensão temporal é, por conseguinte, essencial. Sem ela, o ergonomista não poderia levar em conta aquilo sobre o que ele se 38 debruça hoje: as estratégias do operador para adaptar-se e para adaptar, os diagnósticos que elabora progressivamente e os problemas que resolve, os incidentes dos quais participa e o histórico de suas “soluções”. Tal ergonomia, tanto cognitiva que antropométrica ou fisiológica, não resolve, repetimos, os mesmos problemas que a ergonomia dos “fatores humanos”. Ela visa tanto a intervenção sobre lugares de produção quanto aqueles que têm lugar num escritório de estudos. É no atelier, na sala de comando e no escritório do setor terciário que intervem o ergonomista, a fim de melhorar localmente o trabalho, ou seja, incrementar a interação entre o operador e a sua tarefa, quer seja para melhorar o presente ou para conceber o futuro. Esta ergonomia do operador-ator é essencialmente uma ergonomia “das novas tecnologias”. Os desenvolvimentos da automatização e da informática exigem cada vez mais dos operadores conhecimentos e "knowhow" que lhes permitam adaptar-se à situações novas. Os casos dos operadores de salas de comando centralizadas das indústrias de processo contínuo (refinarias, usinas nucleares, por exemplo) são conhecidos hoje. Mas é necessário também citar os estudos que se referem ao universo da concepção de produtos manufaturados (automóveis e aeronaves) e, naturalmente, todo o domínio das atividades de serviço (da ergonomia hospitalar à ergonomia dos sites Web). Compreende-se, por conseguinte, que não se pode elaborar uma lista das “características gerais” das atividades dos operadores humanos. O olho é sempre o mesmo, mas não o olhar. O centro de gravidade das investigações em ergonomia desloca-se: não é mais a coleta em laboratório de dados confiáveis sobre “os fatores humanos”, mas é a análise sobre o terreno das modalidades específicas da atividade do operador em ação. Estudam-se as interações entre o humano e os seus dispositivos de trabalho (fala-se de um “sistema homem-máquina”). As publicações e os manuais não tratam mais da natureza humana, mas dos métodos de análise do trabalho, bem como sobre os modelos e as teorias que justificam- 39 no. O contraste é sensível: enquanto que a literatura em língua francesa trata essencialmente da análise do trabalho, os manuais de inspiração “fatores humanos” (em sua maior parte, anglo-saxões) consagram-lhe não mais que uma ou duas páginas sobre o tema. Esta abordagem clínica da atividade humana torna mais difícil a generalização dos resultados adquiridos pelos estudos. Mas ela também não a impede, na medida em que as observações ergonômicas são hoje suficientemente numerosas para que regularidades possam ser identificadas, em relação às restrições da situação de trabalho e às estratégias utilizadas pelos operadores. Somos capazes de determinar classes de situações de trabalho a partir das quais pode-se analisar uma situação nova. Por exemplo, sabe-se que, numa sala de comando de um processo contínuo, os operadores responsáveis pela supervisão têm tendência, no caso de um incidente, a buscar referência em uma situação familiar. A análise do trabalho inscreve-se, por conseguinte, ao mesmo tempo numa visão clínica (é a situação que é o objeto da análise) e numa visão geral (esta situação deve fazer parte de um conjunto de situações do mesmo modo tipo). O ergonomista deve, conseqüentemente, saber tirar partido destas duas perspectivas. Complementaridade entre ergonomia “dosfatores humanos” e ergonomia “da atividade humana” A ergonomia “da atividade humana” apresenta uma fraqueza, se encarada do ponto de vista da ergonomia “dos fatores humanos”: ela não permite estabelecer facilmente catálogos de dados gerais utilizáveis diretamente para a concepção de dispositivos técnicos. Ela é mais freqüêntemente centrada na singularidade dos episódios de trabalho que sobre a construção de conhecimentos transferíveis a outras situações similares. Em contrapartida, ela pode responder à “ergonomia dos fatores humanos” que esta última cessa de ser útil onde precisamente os responsáveis pela produção têm hoje a maior necessidade de conselhos: as situações críticas, em que são as competências dos operadores (e não somente o seu conforto 40 postural ou visual) que permitem evitar as catástrofes. A ergonomia contemporânea não pode mais satisfazer-se em propor mostradores mais legíveis. Deve também forjar instrumentos que permitam - mais localmente, mais individualmente e, por conseguinte, mais lentamente e mais dispendiosamente - analisar os processos de interação entre os operadores e o seu ambiente, a fim de alterar os próprios processos, agindo igualmente tanto sobre as competências dos operadores quanto sobre a organização do trabalho ou ainda sobre as características dos sistemas técnicos. É a este preço que a informação legível torna-se significativa para o operador. A atividade essencial de um operador é a de receber a informação relevante do ambiente, adaptar as regras e tomar decisões; numa palavra, de resolver problemas. Certamente, o desejo de certos “prescritores” do trabalho é que os dispositivos (principalmente computadores) tomem para si este raciocínio, de tal modo que os operadores fiquem apenas com a tarefa de escolher entre um conjunto de alternativas pré-selecionadas. Assim, pensam com otimismo que as falhas de raciocínio como as que conduziram os operadores da central nuclear de Three Mile Island à beira da catástrofe não poderiam produzir-se. Isso é esquecer que os auxílios automatizados, sejam eles tão potentes quanto possível, encontram rapidamente os seus limites diante da complexidade das situações industriais, particularmente no caso da gestão dos mal-funcionamentos. É irreal pensar que modelos completos de incidentes possam ser previstos e as suas respostas programadas. É raro que todos os parâmetros de uma decisão possam ser identificados e integrados em ferramentas de auxílio à decisão. Sem excluir uma melhoria destes instrumentos e destas interfaces, o crescimento das competências, a melhoria dos fluxos de informação, a coesão do coletivo, continuam a ser ainda as melhores das precauções. Pode-se afirmar que problema do compromisso entre a redação dos procedimentos e o desenvolvimento das competências está hoje no meio das investigações em ergonomia. 41 Esta oposição entre uma ergonomia dos fatores humanos e uma ergonomia da atividade humana não é uma oposição estéril. Se uma síntese é improvável, uma articulação é possível e necessária. Não é contraditório conceber para o operador sentado frente ao seu terminal de computador um assento confortável e uma tela com bom contraste, e então procurar saber como este operador compreende as mensagens que aparecem sobre esta tela e quais tratamentos ele lhes aplica. Também não é contraditório propor um desenho de mostrador que permita a percepção exata de uma medida, e depois tentar apreender porque, num tal momento no desenrolar das operações em curso, é este mostrador que é olhado e como suas informações são tratadas. E se é exigido do operador de computador que saiba desenvolver estratégias de programação de "software", deve-se simultaneamente preocupar-se em saber se as características de ruído, iluminação e postura do seu posto de trabalho autorizam uma atividade mental continuada. Não é necessário estabelecer hierarquias entre estas duas abordagens ergonômicas. É verdade que as 2500 vítimas Bhopal resultaram de uma cascata de ações inadaptadas devido a uma organização falha, dos dispositivos de controle mal concebidos e dos operadores incompetentes, mas isso não é uma razão para se negligenciar os sofrimentos dorsais de dezenas de milhares de caixas de supermercado cujos postos de trabalho foram mal concebidos. 42 CAPÍTULO 3 SISTEMAS EM ERGONOMIA* *Adaptado de Itiro Iida, 2005 O enfoque ergonômico é baseado na teoria de sistemas. A palavra sistema geralmente é utilizada com muitos sentidos: sistema de governo, sistema fluvial, sistema de refrigeração. Entretanto, para o nosso caso será adotado um conceito que vem da biologia: "sistema é um conjunto de elementos (ou subsistemas) que se interagem entre si, com um objetivo comum e que evoluem no tempo". Assim, existem três aspectos que caracterizam um sistema: os seus componentes (elementos ou subsistemas); as relações (interações) entre os subsistemas; e a sua permanente evolução. COMPONENTES DE UM SISTEMA Um sistema pode ser tão amplo quanto um país, região ou uma grande empresa, ou ser focalizado em algum detalhe como uma célula (biologia) ou posto de trabalho. Em qualquer um desses casos, é composto pelos seguintes elementos: � Fronteira - são os limites do sistema, que pode tanto ter uma existência física, como a membrana de uma célula ou parede de uma fábrica, como pode ser urna delimitação imaginária para efeito de estudo, como a fronteira de um posto de trabalho. � Subsistemas - são os elementos que compõem o sistema, e estão contidos dentro da fronteira. � Interações - são as relações entre os subsistemas. � Entradas (inputs) - representam os insumos ou variáveis independentes do sistema. 43 � Saídas (outputs) - representam os produtos ou variáveis dependentes do sistema. � Processamento - são as atividades desenvolvidas pelos subsistemas que interagem. entre si para converter as entradas em saídas. � Ambiente - são variáveis que se situam dentro ou fora da fronteira e podem influir no desempenho do sistema. Um exemplo de sistema poderia ser uma fábrica onde entra matéria-prima (entrada) que, após uma série de transformações (processamento), em diversas operações (subsistemas), resulta no produto final (saída). O ambiente interno é representado por variáveis como a iluminação, temperatura e ruídos dentro da fábrica. O ambiente externo é o ruído da rua, o clima seco ou chuvoso, a luz solar e assim por diante. As fronteiras desse sistema coincidem com as paredes da própria fábrica. Se desejarmos estudar uma operação em particular, por exemplo, a solda, podemos restringir o sistema colocando a fronteira em torno dessa operação. Assim, esse novo sistema seria composto dos subsistemas soldador e o aparelho de solda. As entradas desse novo sistema seriam as peças a serem soldadas e as saídas, as peças já soldadas. O processamento seria representado pela operação de soldagem. Inversamente, se desejarmos estudar mais amplamente as atividades da fábrica, podemos ampliar a fronteira do sistema. Por exemplo, incluindo-se dentro da fronteira os transportes para a chegada dos materiais e os de saída para a distribuição dos produtos. O SISTEMA HOMEM-MÁQUINA-AMBIENTE O sistema homem-máquina-ambiente é a unidade básica de estudo da ergonomia. Em comparação com a biologia, seria a célula, que 44 compõe os órgãos. No nosso caso, órgãos seriam os departamentos, empresas ou organizações produtivas. O sistema homem-máquina-ambiente é constituído basicamente de um homem e uma máquina que interagem entre si para a realização de um trabalho. Pode abranger também mais homens e mais máquinas, como no caso de uma linha de produção. O conceito de máquina
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