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O que é ensinar português

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O que é ensinar português?
Para romper o círculo vicioso do preconceito linguís​tico no ponto em que temos mais poder para atacá-lo —a prática de ensino —, precisamos rever toda uma série de “velhas opiniões formadas” que ainda dominam nossa maneira de ver nosso próprio trabalho. Logo de início, convém fazer a pergunta: o que é en​sinar português? Que objetivo pretendemos alcançar com nossa prática em sala de aula?
Os métodos tradicionais de ensino da Língua no Brasil visam, por incrível que pareça, a formação de professores de português! O ensino da gramática normativa mais estrita, a obsessão terminológica, a paranoia classificatória, o apego à nomenclatura — nada disso serve para formar um bom usuário da língua em sua modalidade culta. Es​forçar-se para que o aluno conheça de cor o nome de todas as classes de palavras, saiba identificar os termos da oração, classifique as orações segundo seus tipos, decore as definições tradicionais de sujeito, objeto, verbo, conjun​ção etc. — nada disso é garantia de que esse aluno se tornará um usuário competente da língua culta.
Quando alguém se matricula numa auto-escola, espe​ra que o instrutor lhe ensine tudo o que for necessário para se tornar um bom motorista, não é? Imagine, porém, se o instrutor passar onze anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada peça, de cada parafuso, de cada correia, de cada fio; explicando de que modo uma parte se encaixa na outra, o lugar que cada uma deve ocupar dentro do compartimento do motor para permitir o funcionamento do carro e assim por diante... Esse alu​no tem alguma chance de se tornar um bom motorista? Acho difícil. Quando muito, estará se candidatando a um emprego de mecânico de automóveis... Mas quantas pessoas existem por aí, dirigindo tranquilamente seus carros, tirando o máximo proveito deles, sem ter a menor ideia do que acontece dentro do motor?
 Hoje em dia, cada vez mais pessoas estão usando um computador. A retumbante maioria delas consegue fazer um bom uso de sua máquina conhecendo apenas os pro​gramas, os softwares. O hardware, isto é, a parte mecânica do computador, a estrutura física das placas, dos chips, das conexões etc., fica para os especialistas, os técnicos.
E então? O que pretendemos formar com nosso ensi​no: motoristas da língua ou mecânicos da gramática? Devemos insistir nos componentes hard ou devemos dar preferência ao bom manejo dos soft?2
Nós, sim, professores, temos que conhecer profunda​mente o hardware da língua, a mecânica do idioma, por​que nós somos os instrutores, os especialistas, os técni​cos. Mas não os nossos alunos. Precisamos, portanto, redirecionar todos os nossos esforços, voltá-los para a descoberta de novas maneiras que nos permitam fazer de nossos alunos bons motoristas da língua, bons usuários de seus programas.
Por isso é que Sírio Possenti, depois de exibir argumen​tos com os quais concordo integralmente, diz nas páginas 53-54 de Por que (não) ensinar gramática na escola:
Todas as sugestões feitas nos textos anteriores só farão sentido se os professores estiverem convencidos — ou puderem ser convencidos — de que o domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de uma metalinguagem técnica. Em outras palavras, se ficar claro que conhecer uma língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Que saber uma língua é uma coisa e saber analisá-la é outra. Que saber usar suas regras é uma coisa e saber explicitamente quais são as regras é outra. Que se pode falar e escrever numa língua sem saber nada “sobre” ela, por um lado, e que, por outro lado, é perfeitamen​te possível saber muito “sobre” uma língua sem saber dizer uma frase nessa língua em situações reais.
Quando digo coisas assim em público, algumas pessoas levantam a objeção de que o ensino da nomenclatura tradicional é necessário porque são essas coisas que serão cobradas ao aluno no momento de fazer um concurso ou de prestar o vestibular. Se é assim, cabe a nós, professores, pressionar pelos meios de que dispomos – associações profissionais, sindicatos, cartas à imprensa – para que as provas de concursos sejam elaboradas de outra maneira, trocando as velhas concepções de língua por novas. Não temos de nos conformar passivamente com uma situação absurda e prosseguir na reprodução dos velhos vícios gramatiqueiros simplesmente porque haverá uma cobran​ça futura ao aluno.
	Quanto ao vestibular — Deus seja mil vezes louva​do! —, ele está desaparecendo. Diversas universidades públicas e privadas estão encontrando novos meios de seleção e admissão de alunos aos cursos superiores. Afi​nal, poucas instituições houve no Brasil tão obtusas, ne​fastas, injustas, antidemocráticas e perniciosas quanto o vestibular. Nunca consegui entender por que uma pessoa que quer estudar Direito precisa fazer prova de física química, biologia e matemática, se o que ela aprendeu. dessas matérias já foi avaliado na conclusão do 2º grau. 
 Com o fim do vestibular, desaparecerá também —assim esperamos ardentemente — toda a indústria que se formou em torno dele: os nefandos ‘cursinhos” onde nin​guém aprende nada, onde não há nenhuma produção de conhecimento mas apenas reprodução de informações desconexas, onde centenas de alunos se apinham numa sala, onde tudo o que se faz é entupir a cabeça do aluno com “truques” e “macetes” que em nada contribuem para a sua verdadeira formação intelectual e humanística.
Hard em inglês significa “duro, rígido”, enquanto soft significa “macio, maleável” Qual dessas duas opções de ensino você acha que nossos alunos escolheriam se tivessem chance’
BIBLIOGRAFIA: BAGNO,Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

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