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212047294 TEMAS DE REDACAO EFOMM

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TEMAS DE REDAÇÃO 
EFOMM 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
SUMÁRIO 
Pág.3 ---------- 2010-2011 Pág.15 ---------- 2004-2005 
Pág.5 ---------- 2009-2010 Pág.17 ---------- 2003-2004 
Pág.7 ---------- 2008-2009 Pág.19 ---------- 2002-2003 
Pág.9 ---------- 2007-2008 Pág.21 ---------- 2001-2002 
Pág.11--------- 2006-2007 Pág.23 --------- 2000-2001 
Pág.13 ---------2005-2006 
 
COMO TREINAR 
 Este documento traz os textos das provas de 
português da EFOMM, do ano 2000 até o ano 
2011. 
As provas de redação da EFOMM são 
conhecidas por seus temas abstratos, geralmente 
baseados nos textos das provas de português. 
Então minha sugestão é a seguinte: que 
você interprete cada texto das provas e delas 
crie um tema, depois faça uma redação baseada 
nesse tema. 
Afirmo que essa é apenas uma sugestão, 
cada um tem seu modo de treinar redação. 
Espero tê-los ajudado, 
Henrique Audi Morokawa 
 
 
 
 
 
 
 
 3 
 
 
 
2010-2011 
A Última Crônica - Fernando Sabino 
"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao 
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. 
Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco 
ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária 
algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de 
ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer 
num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, 
torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, 
curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: 
"assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço 
então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. 
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas 
mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na 
contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de 
seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou 
também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de 
curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição 
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo 
mais que matar a fome. 
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou 
do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um 
pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente 
ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido 
do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a 
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a 
ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-
o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. 
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o 
garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e 
filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico 
preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e 
espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os 
observa além de mim. 
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na 
fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. 
Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com 
força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, 
 4 
cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns 
pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha 
agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está 
olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de 
bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se 
convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, 
nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a 
cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. 
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso." 
 
Crônica publicada no livro "A Companheira de viagem" (Editora Record, 1965) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2009-2010 
 
Bruno Lichtenstein 
Foi preso o menino Bruno Lichtenstein, que arrombou a Faculdade de Medicina. 
O menino Bruno Lichtenstein não é arrombador profissional. Apenas acontece que o 
menino Bruno Lichtenstein tem um amigo, e esse amigo é um cachorro, e esse cachorro 
ia ser trucidado cientificamente, para estudos, na Faculdade de Medicina. O poeta 
mineiro Djalma Andrade tem um soneto que acaba mais ou menos assim: 
"se entre os amigos encontrei cachorros, 
entre os cachorros encontrei-te, amigo". 
Mas com toda a certeza o menino Bruno Lichtenstein jamais leu esses versos. 
Também com certeza nunca lhe explicaram o que é vivissecção, nem lhe disseram que 
seu cão ia ser vivisseccionado. Tudo o que ele sabia é que lhe haviam carregado o 
cachorro e que iam matá-lo. Se fosse pedi-lo, naturalmente, não o dariam. Quem, neste 
mundo, haveria de se preocupar com o pobre menino Bruno Lichtenstein e o seu pobre 
cão? Mas o cachorro era seu amigo — e estava lá, metido em um porão, esperando a 
hora de morrer. E só uma pessoa no mundo podia salvá-lo: um menino pobre chamado 
Bruno Lichtenstein. Com esse sobrenome de principado, Bruno Lichtenstein é um 
garoto sem dinheiro. Não pagará a licença de seu amigo. Mas Bruno Lichtenstein havia 
de salvar a vida de seu amigo — de qualquer jeito. E jeito só havia um: ir lá e tirar o 
cachorro. De longe, Bruno Lichtenstein chorava, pensando ouvir o ganido triste de um 
condenado à morte. Via homens cruéis metendo o bisturi na carne quente de seu amigo: 
via sangue derramado. Horrível, horrível. Bruno Lichtenstein sentiu que seria o último 
dos infames se não agisse imediatamente. 
Agiu. Escalou uma janela, arrebentou um vidro, saltou. Estava dentro do 
edifício. Andando pelas salas desertas, foi até onde estava o seu amigo. Sentiu que o seu 
coração batia mais depressa. Deu um assovio, um velho assovio de amizade. 
Um vulto se destacou em um salto - e um focinho quente e úmido lambeu a mão 
de Bruno Lichtenstein. Agora era fugir para a rua, para a liberdade, para a vida... 
Bruno Lichtenstein, da cabeça aos pés, tremia de susto e de alegria. Foi aí que 
ele ouviu uma voz áspera e espantada de homem. Era o dr. Loforte. O dr. Loforte 
surpreendeu o menino. Um menino pobre, que tremia, que havia arrombado a 
Faculdade. Só podia ser um ladrão! Bruno Lichtenstein não explicou nada — e fez bem. 
Para o dr. Loforte um cachorro não é um cachorro — é um material de estudo como 
outro qualquer. 
Na polícia apareceu o pai do menino. O pai, o professor e o delegado 
conversaram longamente — e Bruno Lichtenstein não ouvia nada. Só ouvia, lá longe, o 
ganir de um condenadoà morte. 
Já te entregaram o cachorro, Bruno Lichtenstein. Tu o mereceste, porque tu foste 
amigo. Não te deram nem te darão medalha nenhuma — porque não há medalha 
 6 
nenhuma para distinguir a amizade. Mas te entregaram o teu cachorro, o cachorro que 
reivindicaste como um pequeno herói. Tu és um homem, Bruno Lichtenstein — um 
homem no sentido decente da palavra, muito mais homem que muito homem. Um 
aperto de mão, Bruno Lichtenstein. 
 
O texto acima foi extraído do livro "1939 - Um episódio em Porto Alegre (Uma fada no front)", Ed. 
Record - Rio de Janeiro, 2002 - pág. 37. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 7 
2008-2009 
 
Encontro na praça 
 
José Luís da Cunha Fernandes, morador no Saco de São Francisco, uma tarde 
dessas, teve um encontro singular. Ia voltar de barca para Niterói e portava sua máquina 
fotográfica. Sua intenção era pegar o pôr-do-sol no Rio de dentro da barca. Mas ali na 
Praça 15 de Novembro, em frente à estação de embarque, deu-se o encontro de José 
Luís com uma rara personalidade. 
Ninguém reparava nela, no insólito de sua presença, no inesperado de sua 
postura, em tudo que era de chamar atenção. Mas José Luís, que sabe ver, e não apenas 
olhar, maravilhou-se. Maravilhou-se e voltou imediatamente à infância, pois o ser que 
ali se encontrava parado em meio à multidão, ele o conhecera em menino, e desde então 
nunca mais o vira. Nunca. E de tanto não o ver, por assim dizer se esquecera dele. As 
conversas, as leituras, as atividades de todo dia não costumam referir-se à existência 
dessa figura de repente desaparecida. Então, ela ficara encaixotada num desvão da 
memória, mas tão escondido estava o caixote que era como se não existisse. E assim se 
passaram anos. 
O que José Luís encontrou na Praça 15 foi uma esperança. 
E estava pousada no alto da caixa de correio. Estava pousada. 
Quantas crianças de hoje conhecem a esperança? Quantas ligam esse nome a um 
organismo vivo, que habita o folclore pela cor, que é promessa de felicidade? Menino 
do interior ainda pode ver, um dia ou outro, a esperança. Menino da cidade, terá muita 
sorte se a encontrar no Alto da Boa Vista ou no Parque da Cidade. Mas no cotidiano dos 
bairros superpovoados, nas ruas inteiramente plantadas de edifícios secos e agrestes, 
quem já viu esse bichinho? Quem sabe de sua esperteza em imitar folhas de arbusto, 
iludindo não só os outros insetos, que ele deseja papar, mas até a gente? 
Pois em contrário a todas as possibilidades, a esperança postara-se naquele 
trecho febril do Rio de Janeiro, não ligando para o tumulto, a pressa, o barulho, a poeira, 
o fumo de descarga dos veículos. Ele elegera o cocuruto da caixa da ECT para a 
habitação provisória. Ali estava, quieta, verde, ortóptera, saltadora mas imóvel, 
mimética mas em sua cor natural, estridulante mas silenciosa, guardando todas as 
potencialidades: simplesmente esperança, esperança para servi-los. 
E em que servia a esperança ao povo que ia quase correndo e não lhe dava a 
mínima confiança? Só José Luís era capaz de sabê-lo, por ser o único a tomar 
conhecimento do inseto em cima da caixa. Percebeu logo que a esperança cumpria 
delicada tarefa. 
Em primeiro lugar, oferecia ou tentava oferecer boas notícias nas cartas 
colocadas no interior da caixa. Palavras de carinho, promessas de emprego, 
reconciliações, doente que ficou bom, dívida que se conseguir pagar, beijos. Talvez as 
cartas dissessem o contrário disso, mas a esperança concentrava seu princípio influente 
nas próximas correspondências, as definitivas. Bem que a ECT podia designar a 
esperança para seu logotipo. Inseto ágil, pulando como ele só: imagem de velocidade, 
que se vem conseguindo implantar no tráfego postal. 
Em seguida, a esperança dirigia-se a todos, que voltavam a Niterói ou vinham de 
lá; e ainda aos avulsos, que ficam por aqui mesmo, e transitam na Praça. ―Ó vós todos 
que passais, aqui estou (dizia a esperança em seu falar tetigonídeo, que o vulgo 
infelizmente não capisca) para que repareis o meu verde e o guardeis na rotina pelo que 
ele vale. Vale o melhor. Vale a capacidade de transformar o real em transreal e usufruir 
 8 
as coisas deleitáveis que esse pode distribuir em forma de paz de espírito e coração 
sensível. Nem tudo é sujo na vida. Há claridades. Mas a claridade começa dentro de 
você, de vós mesmos... Depois é que ela se espalha pela cidade e pela vida dos outros. 
Eu, a esperança, à maneira dos reis antigos, vos envio saudar.‖ 
Ninguém ouviu, ninguém traduziu. Só José Luís, que documentou a presença da 
esperança, fotografando-a. Ia fotografar o crepúsculo, mas antes teve a sorte de 
fotografar nada menos que uma virtude teologal em minúscula forma vivente. 
Carlos Drummond de Andrade 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 9 
2007-2008 
 
São Bernardo (Graciliano Ramos) 
 
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. 
Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou 
antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. 
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o 
retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou 
forçado a escrever. 
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, 
acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha 
permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me 
desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel. 
Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, 
tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? 
Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração. 
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas 
palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que 
não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra 
nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão. 
Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se 
massas negras. 
– Casimiro! 
Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, vigiando. 
– Casimiro! 
A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as 
árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. 
Detenho-a: não quero luz. 
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge 
no lado de lá da mesa. Digo baixinho: 
– Madalena! 
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a 
vejo com os olhos. 
Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não 
enxergo sequer a 
toalha branca. 
–Madalena... 
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente 
que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente 
das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma 
pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? 
Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. 
Mandrião! 
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos 
cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos. 
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. Aporta do escritório abre-se de manso, 
os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente 
 10 
piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio 
daquele tempo. 
Agora seu Ribeiro está conversando com d. Glória no salão. Esqueço que eles 
me deixaram e que esta casa está quase deserta. 
– Casimiro! 
Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de 
sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é 
atual ou remota. 
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; 
bato na mesa e tenho vontade de chorar. 
São Bernardo, Rio de Janeiro, Record, 1983. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 11 
2006-2007 
 
Seca 
 
Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o 
fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, 
que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro 
de mais um mês estaria virada de lama. 
Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um 
baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto 
era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era 
farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado 
que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. 
O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e 
áspera, tal e qual quem falava: 
− Cidadão, vim lhe vender este couro de bode. Aquele ―cidadão‖, assim 
desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bom-
dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que 
não ouvira ¾ e foi-se pondo de pé. 
− O quê? Que é que você quer? 
O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num 
fio pelo cal da parede: 
− Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. 
Essa cabra passou perto − não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a 
carne para comer. Agora, o couro − o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá 
farinha. 
− E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar? 
O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba 
esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha: 
− Ninguém perguntou a ela o nome do dono... 
Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara: 
− Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor? 
Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e 
vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um 
em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. 
Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar: 
− Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o 
bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de 
quem é o sinal dessa criação. 
O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando 
graça para um dos companheiros: era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre 
Augusto? Está aqui o sinal... 
O Augusto veio olhar também e ficou danado: 
− Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava cheia de 
cabrito novo! 
Mas o olho do homem escuro era feio e, se ele se assustara vendo-se cercado 
pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado 
para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas 
cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão. 
 12 
Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom 
coração; e gritou para o corredor: 
− Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha! 
Depois, retornando ao homem: 
− Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! 
Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças! Leve essa farinha, comam e tratem 
de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem 
ir! 
O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro 
acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do 
companheiro. O velho reclamava em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o 
malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. 
Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que 
marchavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta 
ali no terreiro. Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e 
foi com ele para trás da casa. 
Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá 
viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que 
fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços 
cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou 
depois que não gostava de briga. 
MORALIDADE: Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi 
uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor 
de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. 
Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima 
de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, 
mudou muito. 
QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras. São Paulo: Ática, 1997, p. 14-17. (Para gostar de ler). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 13 
2005-2006 
Texto 1: 
 
 O Outro 
Na redação, o secretário fazia sua cozinha, quando a senhora, não primaveril, mas 
ainda não invernosa, dele se aproximou timidamente. E sacando da bolsa um recorte de 
jornal, perguntou-lhe se sabia o endereço de Emílio Moura, autor dos versos ali 
estampados. 
O secretário explicou-lhe que o assunto era de competência do Silva, encarregado 
do suplemento literário. O Silva não ia demorar, estava na hora dele. Não queria sentar-
se, esperar? 
Ela recolheu cuidadosamente o fragmento e dispôs-se a aguardar o Silva, que, como 
acontece nessas ocasiões, tardou um pouquinho. Mas que tardasse dois anos, não fazia 
diferença, a julgar pelo semblante da senhora, de paciente determinação. 
Diante do Silva, exibiu novamente o papelzinho e fez-lhe a pergunta. 
— Endereço do Emílio Moura? Pois não, minha senhora. Com licença, deixe ver 
aqui no caderninho: rua tal, número tantos, em Belo Horizonte ... 
O rosto da senhora se transfigurou: 
— Belo Horizonte? O senhor tem certeza de que ele está em Belo Horizonte? 
— Se está, no momento, não sei, minha senhora. Mas sempre morou lá, isso eu posso 
lhe garantir. 
Nova mutação se operou na fisionomia da visitante, onde o desaponto parecia querer 
instalar-se, mas era combatido pela dúvida: 
— O senhor ... o senhor conhece pessoalmente Emílio Moura? 
— Conheço, sim. Há muitos anos. 
— Muitos? Que idade tem ele, mais ou menos? 
— Fez cinqüenta há pouco tempo, a senhora não leu nos jornais a comemoração? 
— Tem certeza de que não está enganado? Perdoe a insistência, mas podia me fazer 
o retrato físico de Emílio Moura? 
— Perfeitamente. Trata-se de um senhor alto, magro, cabelos ainda pretos, pequena 
costeleta, bigodinho, usa piteirae fuma cigarro de palha. Que mais? Meio calado, 
extremamente simpático, muito querido por todos. Completo a ficha: professor da 
Universidade, casado, com filhos. 
A senhora olhava para o papel, dobrava-o, esboçava o gesto de jogá-lo fora, depois 
o desdobrava e alisava com carinho. E, na ponta de longo silêncio: 
— Senhor Silva, este pedacinho de jornal me trouxe uma grande esperança e agora 
uma profunda decepção. Muito obrigada. Desculpe. 
Ia retirar-se, sem que o Silva compreendesse níquel, mas voltou-se, e rapidamente 
desfolhou esta confidência: 
— Há quatro anos ando à procura de Emílio Moura. Éramos muito amigos, ele 
fazia versos lindos, que eu, na qualidade de sua melhor amiga, lia em primeira mão. Um 
dia, contou-me que ia viajar para Montevidéu, onde ficaria algum tempo. Escreveu-me 
de lá duas vezes, e da segunda anunciava que seguiria para o Canadá. Nunca mais 
recebi a menor notícia. Ninguém sabe informar nada. Quando li no jornal esta poesia 
com o nome dele, fiquei cheia de esperança, mas agora não sei o que pensar. O senhor 
me diz que Emílio Moura tem cinqüenta anos e é professor em Belo Horizonte. O que 
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eu conheço tem trinta e dois anos e nunca morou em Minas, que eu saiba, mas como os 
versos dele são parecidos com estes que o seu jornal publicou! A mesma doçura, uma 
sensação de fim de tarde, meio triste, o senhor não imagine ... Enganei-me. Desculpe 
mais uma vez, e passe bem, Sr. Silva. 
Saiu, levando nas mãos o papelzinho, como uma flor. 
Carlos Drummond de Andrade 
Texto 2: 
Me responda, sargento 
Dez anos, sargento, apartada do João. Uma tarde, sem se despedir, montou 
no cavalinho pampa, em dez anos de espera nunca deu notícia. Com a morte do meu 
velho, que me deixou o sítio, quinze dias atrás lá estava eu, bem quieta, cuidando da 
casa e da criação, ajudada pelo meu afilhado José, esse anjo de oito aninhos. Quem vai 
entrando sem bater palma nem pedir licença? Chegou maltrapilho, chapéu na mão me 
rogou para fazer vida comigo. Mais de espanto que de saudade aceitei, bom ou mau, eu 
disse, é o meu João. 
Nos primeiros dias foi bonzinho, quem não gosta de uma cabeça de homem 
no travesseiro? Logo começou a beber, não me valia em nada no sítio. Eu saía bem cedo 
com o menino a lidar na roça, o bichão ficava dormindo. Bocejando de chinelo e 
desfrutando as regalias, não quer castigar o corpinho, não joga um punhado de milho 
para as galinhas. Só então, sargento, burra de mim, descobri o mistério: ele voltou por 
amor da herança. Na primeira semana vendeu o leitão mais gordo do chiqueiro, não me 
deu satisfação, o sargento viu algum dinheiro? Nem eu. 
Ontem chegou bêbado e de óculos escuro, espantou o menino para o terreiro 
e, fechados no quarto, bradou que eu tinha um amante, o meu afilhado bem que era filho 
e, antes de contar até três, eu dissesse o nome do pai. Por mais que, de joelho e mão 
posta, negasse que havia outro homem, por mim o testemunho dos vizinhos, ele me 
cobriu de palavrão, murro, pontapé. Pegou da espingarda, me bateu com a coronha na 
cabeça. Obrigou a rezar na hora da morte e pedir louvado. Que eu abrisse a boca, 
encostou o cano, fez que apertava o gatilho. Não satisfeito, sacou da garrucha, apagou o 
lampião a bala. Disparou dois tiros na minha direção, só não acertou porque me desviei. 
Uma bala se enterrou na porta, a outra furou a cortina, em três pedaços a cabeça do São 
Jorge. 
Cansado de reinar, deitou-se vestido e de sapato, que a escrava servisse a 
janta na cama. Provou uma garfada e atirou o prato, manchando de feijão toda a parede: 
―Quero outra, esta não prestou‖. Deus me acudiu, ao voltar com a bandeja ele roncava 
espumando pelo dente de ouro. Agarrei meu filho, chorando e rezando corri a noite 
inteira, ficasse lá no sítio era dona morta. E agora, sargento, que vai ser da minha vida, 
que é que eu faço? 
Dalton Trevisan. O pássaro de cinco asas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 15 
2004-2005 
Texto 1: 
Memórias da Casa Velha 
Vou subindo a ladeira calçada de pedras velhas irregulares e escorregadias, 
ladeada de casas velhas, de paredes desbotadas. Tudo é silêncio e, não fosse aquela 
mulher, também velha e desbotada, que me espia triste do alto de uma janela, diria que 
ninguém mora mais aqui, que todos se foram, que muitos morreram e que outros se 
mudaram. 
Quando chego à última curva, a respiração se faz difícil pelo esforço da subida, 
mas sintome recompensado ao avistar o grande portão aberto em arco. Reconheço-o 
facilmente, embora suas grades estejam enferrujadas e não brancas, como antigamente. 
Até há pouco chovia. Agora um sol alegre ilumina a copa das árvores, vence a folhagem 
e espeta seus raios na relva. Mesmo assim, quando entro, sinto a terra úmida debaixo 
dos meus 
sapatos. 
Há quantos anos entrei por esta mesma alameda? Vinte, vinte e cinco? Talvez. 
Lembro-me que ficara impressionado com a majestade do jardim. Seria ele mais belo 
então? Mais tratado era, por certo. Agora, abandonado, tudo aquilo que perdeu em 
simetria, em colorido, ganhou em placidez, em santidade. Sim, penso que estou a entrar 
numa catedral vazia, enquanto caminho devagar, olhando em torno. 
Antes havia marrecos neste laguinho: agora, folhas mortas bóiam, sem pressa de 
chegar à outra margem. Aliás, não eram somente marrecos. Lembro-me de dois cisnes a 
me olharem espantados, sem compreenderem que aquele menino também os via pela 
primeira vez. 
―Um dia um cisne morrerá, por certo‖ quando li o soneto de Salusse, numa 
antologia de 
parnasianos, lembrei-me imediatamente do casal de cisnes que vivia neste lago. 
Se o cisne vivo nunca mais nadou, não sei. Sei que os bichos se foram todos. 
Apenas os pássaros continuam a usufruir deste jardim. Oiço o chilrear de centenas deles 
sobre a minha cabeça e, sem me importar com isso, vou subindo na direção da casa. 
Foi o vento na minha nuca ou foi de pura saudade que me veio este tremor? Lá 
está a varanda grande, cingida de trepadeiras. Minha mãe me segurava pela mão e 
falava, mas o alvoroço das moças era mais alto que a sua voz. Uma delas (quem seria?) 
apaixonou-se por meus cabelos louros e, naquela tarde em que aqui estive, penteou-me 
tantas vezes! 
Quando minha mãe abaixou-se para me beijar e partir, quase chorei na frente das 
moças. Depois esqueci. Elas brincaram comigo, me deram lanche, me deixaram correr 
no gramado. 
Olho a casa e penso que a gente que mora lá embaixo, na ladeira, deve andar a 
inventar coisas, a dizer que ela é mal-assombrada. Triste, coitada. Triste é o que ela é. 
Sei que ninguém mais vem cá e esta roseira deve saber também, mas, sem 
qualquer vaidade, continua a expor as suas rosas. Quanto àquele canteiro, que as 
rolinhas estão ciscando, era de crisântemos, mas não se usa mais essa flor. 
O casarão está em ruínas. Nada mais dá idéia de abandono do que esta janela de 
vidros quebrados ou aquela fonte sem repuxo. Já não há os crisântemos de outrora, a 
fonte , as moças na varanda, seu riso. 
Tudo é silêncio, tudo é quietude. Somente os pássaros. Os pássaros e as 
lembranças. 
 16 
Pela tarde, à hora do crepúsculo (hoje todos os crepúsculos terminam aqui) 
minha mãe veio me buscar. Quase a vejo caminhando, a sorrir para mim. Tão moça e 
tão linda (conta-se que, no seu tempo, foi a mais bonita aluna do Colégio Sion), ela me 
acenava com um embrulho na mão; o presente que prometera, caso me comportasse 
bem. 
A alegria que senti ao revê-la! Lembro-me que corri em sua direção e tão afoito, 
que caí de peito na relva, como um mergulho. O pão com geléia que uma das moças me 
dera caiu também e lá ficou esquecido. 
Não chorei. Contive as lágrimascomo contenho agora, enquanto vou descendo 
pelo mesmo caminho. Vou devagar, porém. Já não há nem a pressa, nem a alegria de 
então. 
(Sérgio Porto, in Antologia Escolar de Crônicas) 
Texto 2: 
De volta à casa paterna 
Como a ave que volta ao ninho antigo, 
depois de um longo e tenebroso inverno, 
eu quis também rever o lar paterno, 
o meu primeiro e virginal abrigo. 
 
Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, 
o fantasma, talvez, do amor materno 
tomou-me as mãos, olhou-me grave, terno, 
e passo a passo caminhou comigo. 
 
Era esta a sala! Oh, se me lembro! E quanto! 
Em que, da luz noturna à claridade, 
minhas irmãs e minha mãe... o pranto 
 
jorrou-me em ondas. Resistir, quem há-de? 
Uma ilusão gemia em cada canto, 
chorava em cada canto uma saudade. 
(Luís Guimarães Júnior, in Antologia de Poetas Brasileiros) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 17 
2003-2004 
O canarinho 
Atacado de senso de responsabilidade, num momento de descrença de si mesmo, 
Rubem Braga liquidou entre amigos, há um ano, a sua passarinhada. Às crianças aqui de 
casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não agüentou a crise da puberdade, 
morrendo logo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade 
dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos, com um fanatismo que impunha respeito ou 
piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme 
com a sua fé. A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, chamados 
―chapinhas‖ ou da terra, e que mais cantam por boa vontade que vocação. Não importa, 
conseguiu depressa um lugar em nossa afeição, que o tratávamos com alpiste, vitaminas 
e folhas de alface, procurando ainda arranjar-lhe um recanto mais cálido neste 
apartamento batido por umas raras réstias de sol, pois é quase de todo virado para o Sul. 
 Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o 
amávamos desse amor vagaroso e distraído com que enquadramos um bichinho em 
nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um 
pássaro comum, um cachorro vira-lata , o gato popular que anda pelos telhados. Com os 
animais de raça, há uma afetação que envenena um pouco o sentimento; com os bichos 
comuns, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem. 
 Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, 
a programá-lo em minhas preocupações. Verificava o seu pequeno cocho de alpiste, 
renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante 
mim mesmo com essa sentimentalidade serôdia; mas que havia de fazer! 
 Como nas fábulas infantis, um dia chegou o inverno, um inverno carioca, é verdade, 
perfeitamente suportável. Entretanto, como já disse, a posição do edifício não deixa o 
sol bater aqui, principalmente nesta época do ano. É a gente ficar algumas horas dentro 
de casa e sentir logo uma saudade física dos raios solares. Que seria então do canarinho, 
relegado agora à área, onde pelo menos ficava ao abrigo da viração marinha? Às vezes, 
quando sinto frio, vou à esquina, compro um jornal e o leio ali mesmo, ao sol, ao 
mesmo tempo que compreendo o mistério e a inquietação dos escandinavos, 
mergulhados em friagens e brumas durante uma boa temporada de suas vidas. 
E o canarinho, pois? Levá-lo comigo dentro da gaiola, isso não, eu não tinha 
coragem. Não devo ter reputação de muito sensato, e lá se iria (como diz Mário 
Quintana) o resto do prestígio que no meu bairro eu ainda possa ter. Assim, vendo o 
passarinho encorujado a um canto, decidimos doá-lo a um amigo comum, nosso e dos 
passarinhos, dono de um sítio. A comunicação foi feita às crianças depois do café. 
Pareciam estar de acordo, mas o menino, sem dar um pio, dirigiu-se até a área e soltou o 
canarinho. A empregada viu e veio contar-nos. 
 Mas, cadê o menino! Voara? Foi um susto que demorou alguns minutos, pois 
não o achávamos em seus esconderijos habituais, enrolado na cortina, debaixo da cama, 
atrás da porta. Restava um armário muito estreito a ser investigado, e lá estava ele, 
quieto e encolhido no escuro como no útero materno, com uma cara de expressão tão 
dividida, que o choro da menina se desfez em uma gargalhada cheia de lágrimas. 
 O canário também tinha sumido e, embora fosse quase certa a sua 
impossibilidade de ganhar a vida por conta própria, melhor assim, não voltasse nunca 
mais. 
 18 
 Mas voltou. Na hora do almoço, a empregada veio dizer-nos que ele estava na 
janela do edifício que se constrói ao lado, muito triste. É verdade. Lá está o canarinho, 
sem saber de onde veio, sem saber aonde ir, sem saber ao certo se gostamos dele, triste, 
arrepiado e com fome. Um ponto amarelo no paredão esbranquiçado, lá está o nosso 
canário-da-terra, a doer em nossos olhos. 
 Vai-te embora, canarinho, que não te quero mais. Mas ele fica, brincando de 
corvo, dizendo ―never more‖. Este refrão ―never more‖ me deixa meio esquisito. Estou 
triste. Todo mundo aqui de casa está triste, ridiculamente triste, nesta manhã luminosa 
de junho. 
Paulo Mendes Campos 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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2002-2003 
Texto 1: 
Árvores, mais árvores 
 
Conta-se que o velho Beethoven, já surdo e misantropo, numa das múltiplas 
ocasiões em que mudou de domicílio em Viena, perguntou ao novo senhorio logo ao 
transpor a porta de entrada: — ―O senhor tem árvores no seu quintal?‖ E como o 
homenzinho respondesse com a negativa, resolveu logo: — ―Então não me serve, gosto 
mais de uma árvore do que de um homem‖. 
Mas não é preciso ser surdo, nem misantropo, nem gênio, para pensar assim. 
Talvez que para tanto baste ser civilizado. É o eterno ciclo que se repete. O homem 
transformou de tal modo a crosta do planeta com os cinco dedos da sua técnica que já se 
aborrece da sua obra fria e acabada. E volta-se então para a velha Natureza em busca de 
vida, de emoção, de saúde. 
A gente começa com vasinhos de flores. Os holandeses, encurralados nos seus 
istmos, havia muito que não os dispensavam. Os americanos, encarrapitados nas gaiolas 
dos arranha-céus, tratam-nas até com harmônios e ultravioletas. Nós já vamos ficando 
um pouco assim. Entre nós há até quem goste de ―cactus‖, esses ―cactus‖ que nos fazem 
tremer de calor à distância. Mas é tão pouco ainda! Como se haveria de trepar numa 
árvore, esse mais salutar dos esportes, na opinião do entendido professor Carrel? 
É verdade que os ricos inventaram o ―sítio‖, pedacinho bem educado da fazenda, 
com geladeira e rádio, aonde se vai de automóvel, levando sempre muita comida, 
porque com a terra não se pode contar. E os que podem lá vão, todos os sábados, no 
gozo requintado de uma natureza quase sintética. 
Os menos ricos, que não têm ―sítio‖ próprio, já resolveram o problema a seu 
modo: fogem de quando em quando para um retiro qualquer improvisado em hotel. De 
qualquer forma é um retorno salutar à árvore. Só os pobres das grandes cidades ainda 
não a compreendem, ainda não a estimam: passam 2 de 11 todos os dias por ela nas 
ruas, nos parques, no subúrbio distante, e não lhe sabem sequer o nome, porque ignoram 
o consolo que há no seu aconchego e na sua sombra. 
Como é triste uma criança que cresceu longe das árvores! Desconhece o encanto 
de folhear um livro de figuras sob a proteção matizada e fresca de uma fronde, não 
suspeita das vantagens que há em procurar um fruto reçumante escondido no meio da 
ramaria, perde a melhor oportunidade detonificar o olfato no convívio dos odores 
resinosos. 
É preciso que a criança viva junto à árvore, no campo, no jardim e sobretudo na 
cidade, cada vez mais monstruosa e implacável. A árvore irá desenvolver nela uma 
sucessão de emoções, cada qual mais nobre; no princípio é o respeito quase religioso 
ligado também à idéia de proteção; aos poucos se cria a noção de confiança e amizade; e 
donde vem os frutos, é onde se pendura o balanço; finalmente o amor verdadeiro, 
produto de tudo isso e muito mais ainda do germe do gozo estético que existe nos mais 
brutos. 
O apartamento não mata a árvore, valoriza-a. O indispensável é que a infância 
urbana não se escravize ao cimento armado. O arranha-céu, ganhando a altura, abre 
lugar aos parques. E para lá é que é necessário mandar as crianças, como obrigação 
quotidiana, para que sintam as árvores como coisa sua. Não esquecer então que as 
árvores devem ter nome. A nossa indiferença neste ponto é tão grande, que muitas 
delas, aclimatadas de longa data entre nós, são mais conhecidas por denominações 
científicas ou estrangeiras: ―eucalyptus, bougainvilleas, flamboyants‖. 
 20 
Já se disse que o poeta é um homem para o qual o mundo exterior existe. Nesse 
mundo exterior o que há de mais belo é a árvore. Nós temos cada vez mais urgência de 
poesia neste mundo mecânico e desarticulado. Deixai que a árvore reconduza a criança 
às fontes da poesia perene e insubstituível! 
REBELO, Marques , Árvores, mais árvores. In: Antologia Escolar de Crônicas, organizada por Herberto 
Sales. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint. S.A. 
 
Texto 2: 
 
Súplica por uma árvore 
 
Um dia, um professor comovido falava-me de árvores. Seu avô conhecera Andersen, 
um pequeno deus que encantou para sempre sua infância, todas as infâncias, com suas 
maravilhosas histórias. Mas, além de conhecer Andersen, o avô desse comovido 
professor legara a seus descendentes uma recordação extremamente terna: ao sentir que 
se aproximava o fim de sua vida, pediu que o transportassem aos lugares amados, onde 
brincava em menino, para abraçar e beijar as árvores daquele mundo antigo – mundo de 
sonho, pureza, poesia – povoado de crianças, ramos flores, pássaros ... O professor 
comovido transportava-se a esse tempo de ternura, pensava nesse avô tão sensível, e 
continuava a participar, com ele, dessa cordialidade geral, desse agradecido amor à 
Natureza que, em silêncio, nos rodeia com a sua proteção, mesmo obscura e enigmática. 
Lembrei-me de tudo isso ao contemplar uma árvore que não conheço, e cujo 
tronco há quinze dias se encontra ferido, lascado pelo choque de um táxi desgovernado. 
Segundo os técnicos, se não for socorrida, essa árvore deverá morrer dentro em breve: 
pois a pancada que a atingiu afetou-a na profundidade da sua vida. 
MEIRELES, Cecília, ―Súplica por uma árvore‖. In: O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: 
Nova Fronteira, 1980, p. 63). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 21 
2001-2002 
 
Uma galinha 
 
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da 
manhã. 
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para 
ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua 
intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se 
adivinharia nela um anseio. 
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, 
em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o 
tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, 
em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, 
hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada 
viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade 
de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de 
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado 
onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-
se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. 
Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si 
mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um 
caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia 
soado. 
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às 
vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava 
outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão 
livre. 
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que 
havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se 
poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na 
sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria 
no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. 
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. 
Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por um asa através 
das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se 
um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. 
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, 
exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, 
parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando, 
abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e 
abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a 
 22 
menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se 
do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos: 
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso 
bem! 
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. 
Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não 
era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe 
e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. 
Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa 
brusquidão: 
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! 
— Eu também! jurou a menina com ardor. 
A mãe, cansada, deu de ombros. 
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a 
família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida 
para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: ―E dizer que a obriguei a 
correr naquele estado!‖ A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o 
sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas 
capacidades: a de apatia e a do sobressalto. 
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se 
de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o 
corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça 
a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. 
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se 
recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os 
pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dadoà fêmeas cantar, ela não cantaria 
mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia 
cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era 
uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. 
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos. 
 
Fonte: Os Cem Melhores Contos do Século. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 23 
2000-2001 
Quem é carioca 
 
Claro que não é preciso nascer no Rio para ser genuinamente carioca, ainda que 
haja nisto um absurdo etimológico. É notório que há cariocas vindos de toda parte, do 
Brasil e até de fora do Brasil. Ainda há pouco tempo chamei Armando Nogueira de 
carioca do Acre, nascido na remota e florestal cidade de Chapuri. Armando conserva, de 
resto, a marca acriana num resíduo de sotaque nortista, cuja aspereza nada tem a ver 
com a fala carioca, que não cospe as palavras, mas antes as agasalha carinhosamente na 
boca. Mas não é a maneira de falar, ou apenas ela, que caracteriza o carioca. Há sujeitos 
nascidos, criados e vividos no Rio — poucos, é verdade — que falam cariocamente e 
não têm, no entanto, nem uma pequena parcela de alma carioca. Agora mesmo estou me 
lembrando de um sujeito ranheta, que em tudo que faz ou diz põe aquela eructação 
subjacente que advém de sua azia espiritual. Este, ainda que o prove com certidão de 
nascimento, não é carioca nem aqui nem na China. E assim, sem querer, já me 
comprometi com uma certa definição do carioca, que começa por ser não propriamente, 
ou não apenas um ser bem-humorado, mas essencialmente um ser de paz com a vida. 
Por isso mesmo, o carioca, pouco importa sua condição social, é um coração sem 
ressentimento. Nisto, como noutras dominantes da biotipologia do carioca, há de influir 
fundamentalmente a paisagem, ou melhor, a natureza desta mui leal cidade do Rio de 
Janeiro. 
Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, é impossível a gente não sofrer um 
certo afeiçoamento imposto pela natureza. A paisagem, de qualquer lado que o olhar se 
vire, se oferece com a exuberância e a falta de modos de um camelô. O carioca sabe que 
não é preciso subir ao Corcovado ou ao Pão de Açúcar para ser atropelado por um belo 
panorama (belo panorama, aliás, é um troço horrível). Por isso mesmo, nunca um só 
carioca foi assaltado no Mirante Dona Marta, que está armadinho lá em cima à espera 
dos otários, isto é, dos turistas. 
Pois o que o carioca não é, o que ele menos é — é turista. O que caracteriza o 
carioca é exatamente uma intimidade com a paisagem, que o dispensa de encarar, por 
exemplo, a Praia de Copacabana com um olhar que não seja o rigorosamente familiar. O 
carioca não visita coisa nenhuma, muito menos a sua cidade, entendida aqui como 
entidade global e abstratamente concreta. Ele convive com o Rio de igual para igual e 
nesta relação só uma lei existe, que é a da cordialidade. O carioca está na sua cidade 
como o peixe no mar. 
Por tudo isso, qualquer sujeito que não esteja perfeita e estritamente casado com 
a paisagem ou, mais do que isto, com a cidade, não é carioca — é um intruso, um corpo 
estranho. E é isto o que transparece à primeira vista, não adianta disfarçar. O carioca 
autêntico, o genuíno mesmo, esse que chegou ao extremo de nascer no Rio, esse não 
engana ninguém e nunca dá um único fora — sua conduta é cem por cento carioca sem 
o menor esforço. O carioca é um ser espontâneo, cuja virtude máxima é a naturalidade. 
Não tem dobras na alma, nem bolor, nem reservas. Também pudera, sua formação, 
desde o primeiro vagido, foi feita sob o signo desta cidade superlativa, onde o mar e a 
mata — verde e azul — são um permanente convite para que todo mundo saia de si 
mesmo, evite a própria má companhia — comunique-se. Sobre esse verde e esse azul, 
imagine-se ainda o esplendor de um sol que entra pela noite adentro — um sol que se 
apaga, mas não se ausenta. Diante disto e de mais tudo aquilo que faz a singularidade da 
beleza do Rio, como não ser carioca? 
 24 
Apesar de tudo, há gente que consegue viver no Rio anos a fio sem assimilar a 
cidade e sem ser por ela assimilada. Gente que nunca será carioca, como são, por 
exemplo, Dom Pedro II e Vinícius de Morais, autênticos cariocas de todos os tempos, 
segundo Afonso Arinos. A verdade é que nem todo mundo consegue a taxa máxima de 
―cariocidade‖, que tem, por exemplo, um Aloysio Salles. No extremo oposto, está 
aquele homem público eminente que vi passeando outro dia em Copacabana. Ia de 
braço com a mulher e, da cabeça aos sapatos, como dizia Eça de Queiroz, proclamava a 
sua falta de identificação com o que se pode chamar ―carioca way of living‖. Sapatos, 
aliás, que não eram esporte, ao contrário da camisa desfraldada. Esse é um que não 
precisa abrir a boca, já se viu que está no Rio como uma barata está numa sopa de 
batata, no mínimo por simples erro de revisão. 
 
Fonte: Antologia Escolar de Crônicas,.organizada por Herberto Sales. 
 
	A Última Crônica - Fernando Sabino
	O Outro
	Nova mutação se operou na fisionomia da visitante, onde o desaponto parecia querer instalar-se, mas era combatido pela dúvida:
	A senhora olhava para o papel, dobrava-o, esboçava o gesto de jogá-lo fora, depois o desdobrava e alisava com carinho. E, na ponta de longo silêncio:
	2003-2004
	O canarinho

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