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Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 Um estudo da paternidade: aproximação entre a abordagem fenomenológica existencial e a abordagem relacional sistêmica Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Resumo: Este trabalho discute uma aproximação entre a Abordagem Relacional Sistêmica e a Abordagem Fenomenológica Existencial, através de similaridades que possam ser encontradas entre estes aportes teóricos. Reflete a respeito de um enriquecimento do trabalho do terapeuta. Adotou-se como objeto de estudo a expressão da paternidade, no atendimento de uma família formada por pai, mãe, e três crianças. Através deste trabalho, pôde-se observar que a reflexão a respeito das aproximações entre as duas teorias é pertinente, sem a intenção de unificar as duas abordagens, mas no sentido de que, respeitando-se as características e limitações de cada teoria, elas podem enriquecer a compreensão dos casos clínicos, e aprofundar o trabalho do profissional, tanto no seu fazer terapêutico quanto no seu ser terapêutico. Palavras-chave: paternidade; relação; comunicação; fenomenologia; existencialismo; abordagem sistêmica. A study of paternity: approximations of the phenomenological existential approach to the relational systemic approach Abstract: The present article is an attempt to bring together the relational systemic and the phenomenological existential approaches and to find out the similarities between this two theories. The aim was to enrich the therapist practice. The subject chosen was a family in therapy in which the expression of paternity was examined. The members of the family were a father, a mother and 3 children. The results show that the reflection relating the two theories is Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 75 convenient. It’s important to state clearly that there was no intention of unifying them. Preserving each one’s characteristics and limitations both approaches can enrich and enlarge the comprehension of clinic cases and may also deepen the therapist practice not even in his acting as a therapist but also in his being a therapist. Keywords: paternity; relationship; communication;fenomenology; existencialism; systems approach. Introdução A noção de Paternidade compreende diversos aspectos, entre eles ter autoridade, estabelecer limites, transmitir afeto, ser um modelo de masculinidade, ser um modelo de relacionamento de casal, mostrar caminhos para a vida, indicar possibilidades de crescimento, ser um agente de diferenciação entre mãe e filho, que funcionam como um modelo para relações saudáveis pela vida. Esses são conceitos que se escuta muito e que parecem pertencer a um “ideal” de pai. Como isto se diferencia de “estar em presença” de pai. Descobrir infinitas possibilidades de ser pai, todas elas funcionais e operativas, parece ser desafio suficiente para um trabalho bastante extenso. Pode-se compreender o pai dentro do contexto de uma determinada família, o que implica em ter uma visão sistêmica. Implica em olhar para os relacionamentos que se constroem destro deste sistema familiar, não apenas para os seus indivíduos, com suas demandas pessoais intrapsíquicas. Se falarmos da paternidade a partir deste referencial, estaremos falando de fronteiras, limites, relacionamentos, pois um pai só existe em função da existência do filho. São papéis mutuamente constitutivos. Da mesma forma, o papel do pai não se constitui sem a existência de uma mãe. Por outro lado, se pensarmos um pouco no existencialismo de Heidegger (apud Abbagnano, 2000), com o seu conceito de “ser-no- mundo” podemos perceber que tudo aquilo que apreendemos, ou Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 76 como agimos está sempre relacionado com a presença do outro, o que faz com que cada relação seja única. Para se compreender melhor algumas semelhanças entre as duas teorias, procurou-se observar algumas características da postura terapêutica em cada abordagem. Uma abordagem sistêmica No início da investigação sobre comunicação humana, Bateson (apud Bebchuk, 1994) percebeu que não há contrário nas interações (não existe uma não-interação) e que, portanto, não é possível a alguém não comunicar. Esta comunicação pode ser de confirmação (na qual uma pessoa confirma a existência, as habilidades e capacidades de outra), de rejeição (quando a existência do interlocutor é percebida e admitida, mas sua proposta relacional é rejeitada), ou de desconfirmação ou desqualificação (quando o emissor recebe uma resposta que não deixa claro se sua mensagem foi recebida ou não, se foi entendida ou não – assim sua existência não é confirmada, pois sua realidade e a autoria de sua mensagem não é reconhecida). A comunicação pode ser considerada como um fator estruturante dentro da organização familiar. Ao continuar os estudos sobre comunicação, esta começou a ser vista também como uma construção que modela o relacionamento na família. Segundo Maturana (apud Bebchuk, 1994), não é o que alguém diz, mas a emoção sob a qual a pessoa fala, que define o dizer como uma ação. Um escutar que aceita o outro, ou um escutar que o rejeita ou desqualifica, levam a significados diferentes, definindo ações diferentes ao escutar. Os significados que se formam são coerentes com o estado emocional de quem participa da conversação. Desta forma, as ações na linguagem estão totalmente entrelaçadas com as emoções que as sustentam. Quando muda a emoção, muda também a escolha por determinada ação. Portanto, o fundamento de nosso agir é emocional, ou seja, não há ação sem um desejo ou Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 77 emoção que o faça possível. Mesmo quando a ação está revestida de racionalidade, há um desejo por trás desta, que a sustenta. O pensar também se fundamenta no emocional. A emoção da aceitação ou rejeição do outro predispõem reflexões e discursos diferentes. Nós, seres humanos, existimos na linguagem. Não podemos sair dela, nem transcendê-la. Ela atua na coordenação dos comportamentos, ações e emoções. É um processo contínuo, recursivo e consensual, no qual o falar de uma pessoa afeta o seu interlocutor e vice versa, nas suas ações, em sua corporalidade e em suas emoções. Devido ao entrelaçamento consensual de emoção e linguagem, a conversação determina o fluxo de emoções, sendo modulada de forma recíproca. Na psicoterapia, a emoção e a linguagem também são determinantes. Se a pessoa que busca o atendimento encontra uma emoção de aceitação e legitimidade de suas próprias histórias, ela tem espaço para ser ela mesma, para se observar e para refletir. Esta aceitação tem por base um escutar com curiosidade, interesse e respeito pelo relato do outro, mesmo se este relato não parecer o mais conveniente para o momento. Não há uma diferença hierárquica entre o paciente e o terapeuta. Não há um “doente” a ser “curado”, mas situações de sofrimento humano, originadas pelas dificuldades de relacionamento com os outros, pela carência de espaço para que a própria identidade seja reconhecida e propicie encontros harmônicos com os outros. As histórias têm sentido como relatos de uma experiência subjetiva, dentro de um contexto específico. Todos os pontos de vista passam a ser úteis e necessários, pois contém algum significado, que está presente na conversação. É um exercício de escutar o outro, apenas escutando, semplanejar o próximo passo, sem formular hipóteses ou interpretações. É uma forma de estar presente no diálogo. É procurar entender o interlocutor a partir de seus próprios valores, códigos e padrões. “Escutar então, significa abrir-se ao Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 78 discurso do outro com a intenção de compreendê-lo nos termos de sua própria lógica”. (Maturana, apud Bebchuk, 1994, p.161). A compreensão passa a ser um processo contínuo de conversação entre terapeuta e paciente (ou família), que abra portas para novas conversações e suscite emoções de participação na construção de significados. Quando participamos de uma “boa conversação”, significa que escutamos e fomos escutados. Uma postura fenomenológica Pode-se dizer que a fenomenologia é a descrição dos dados da experiência imediata; ela busca mais compreender do que explicar o fenômeno. O fenômeno é considerado aquilo que aparece, ao se estabelecer um contato, com uma intencionalidade de criar uma relação. Por sua vez, a psicologia existencial pode ser definida como uma ciência empírica da existência humana que emprega o método da análise fenomenológica. Um dos principais aspectos da psicologia existencial é o fato de não se basear no princípio de causalidade, mas sim na motivação e compreensão como princípios operativos numa análise do comportamento humano. Também, não aceita a dualidade mente- corpo. A psicologia existencial propõe a unidade do indivíduo-no- mundo, tal como concebida por Heidegger (apud Jolivet, 1961). Ainda, esta análise não busca a explicação causal do fenômeno, subjacente ao mesmo, mas sim sua descrição ou sua compreensão. Busca a essência do fenômeno. Esta, só pode ser alcançada por uma pessoa aberta para o mundo. Para analisar o comportamento, o psicólogo existencial precisa ver o que há para ser visto sem qualquer hipótese ou julgamento prévio. Podem-se observar algumas contribuições da fenomenologia para a postura do ser-terapêutico. Para existir um movimento de compreensão, é necessário haver inicialmente um movimento de envolvimento existencial. É função do terapeuta a compreensão da Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 79 consciência do outro através da própria consciência. Para se envolver com a existência do outro, é necessária uma abertura no próprio ser- terapêutico: é necessário “abrir-se mão” daquilo que já se sabe, dos próprios pré-conceitos e teorias, para se poder captar o outro, que é desconhecido. Há sempre uma relação afetiva presente no envolvimento existencial, no encontro de duas consciências, que pode permitir uma transformação. Este movimento inicial de envolvimento pressupõe buscar, intencionalmente, um espaço na própria consciência. Num segundo momento, para deixar refletir a presença do outro em sua consciência, surgem novamente os valores e pensamentos próprios, que permitem uma reflexão, uma elaboração. E, ao trazer a reflexão à tona, abrir-se novamente ao envolvimento existencial, criando um vazio na consciência e permitindo a entrada do outro. Abertura esta que provoca medo – o medo do desconhecido. O “ser-no-mundo” - DASEIN Dasein, ou “ser-no-mundo”, é um conceito fundamental em psicologia existencial, e significa o todo da existência humana. “É uma abertura para o mundo iluminada, compreensiva – um estado de ser-no-mundo em que a existência total do individuo que é e virá-a- ser, pode aparecer, tornar-se presente e ser presente.” (Jolivat, 1961, p.87) Na análise existencial do Dasein, trata-se de ver o que está na experiência e de descrevê-lo tão precisamente quanto a linguagem o permita, não se prendendo a uma terminologia científica, mas tendo muita proximidade inclusive com a literatura. O ser-no-mundo restaura a unidade entre o homem e o mundo. Não há cisão entre eles, entre sujeito e objeto – não são duas coisas separadas, mas totalmente interligadas. “O homem não tem existência independente do mundo e o mundo não tem existência independente do homem”.(Jolivat, 1961, p.87) A análise existencial aborda a Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 80 existência humana considerando que o homem é no mundo, tem um mundo e deseja ultrapassar o mundo. Apenas quando o homem atualiza suas potencialidades, ele pode viver uma vida autêntica. Quando ele se nega ou se restringe em função dos outros ou do ambiente, ele está tendo uma existência inautêntica. E o homem é livre para fazer esta escolha. Entretanto, as escolhas do homem são limitadas pelo seu campo existencial: o lugar no mundo onde o indivíduo foi lançado. Por exemplo, uma mulher tem um campo existencial diferente de um homem. Compete a cada um explorar ao máximo as possibilidades de seu campo, a fim de levar uma vida autêntica. O outro O homem define-se como ser social e o seu desenvolvimento depende da relação com os outros. A fenomenologia existencial propõe que a coexistência não se baseia apenas em oposição ou complementaridade, mas também naquilo que os outros têm em comum com o indivíduo. Essa característica da coexistência propicia a compreensão da existência alheia. Segundo Heidegger (apud Augras, 1997), essa compreensão não é necessariamente intelectual, mas um modo de ser existencial, que estabelece fundamento para qualquer outro conhecimento. Desta forma, compreender o outro inclui compreender a própria alteridade. A coexistência é também co-estranheza. Há um emaranhado na dialética entre a alteridade e a identidade, comum a todos os homens. “A ambigüidade da compreensão do outro, que se origina na compreensão do desconhecido que cada um é para si, revela-se em todos os relatos míticos. Todo mito fundamenta-se na duplicidade do mundo, definido como real e irreal ao mesmo tempo”. (Augras, 1997, p.57). Para a fenomenologia, acontecem fenômenos que são parcialmente desvendáveis para o indivíduo, enquanto que outras Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 81 partes permanecem obscuras. A compreensão varia com a abertura do indivíduo: ela situa-se no intérprete e não no fenômeno. A linguagem É através da linguagem que o homem procura compreender o mundo. “Compreender o mundo é interpretá-lo. Entender o mundo é elaborar um conjunto de signos e símbolos que lhe dêem significação humana”. (Augras, 1997, p.75). Ao descrever o mundo, o homem retrata-se a si próprio: o mundo é criado pelo homem, através de um conjunto de significações, que fazem do mundo a imagem do homem. No sentido inverso, pode-se dizer que a descrição do mundo nos dá a descrição do homem. É através desta construção de significados que o homem organiza o mundo que o cerca e o domina. Os símbolos que ele cria para descrever o mundo têm a capacidade de transformá-lo. A função simbólica configura a dimensão da integração homem- mundo. A fala, o discurso, revela aquilo de que se fala. O ser-no- mundo exprime-se pelo discurso. O discurso e a sua manifestação, a fala, é um aspecto integrante da revelação do ser no mundo como tal. A consciência de realidade implica na compreensão, na explicitação e no enunciado. O discurso apresenta-se então como meio de revelar a ambigüidade do ser no mundo. A função da linguagem não é, portanto, apenas comunicativa. É a revelação da situação de um ente que existe em si e para os outros, como singular e idêntico. Nos diversosrelatos míticos, a palavra é sempre considerada como criadora, geradora de mundos diversos. Criar ou revelar o mundo tornam-se equivalentes. O que distingue as línguas não são apenas os signos e sons, mas também as diferentes visões de mundo. Cada cultura se diferencia pelos seus conteúdos, significados e estrutura. Da mesma forma, a fala do indivíduo exprime a organização do seu mundo, constantemente criado, questionado, ameaçado e reconstruído. A investigação da fala pode ser uma via de Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 82 acesso ao mundo próprio do indivíduo, uma via para a investigação clínica. O estudo da linguagem pode ser fonte de parâmetros para uma avaliação da situação do indivíduo dentro do seu mundo. A linguagem também exerce uma função mediadora entre a realidade interna e a realidade circundante, fazendo uma integração dialética das tensões inerentes à situação de ser no mundo. No plano psicológico, o discurso funciona como elemento de comunicação, como fonte de encontro do outro e, através deste processo, de si próprio.“A fala enuncia o encontro. Na medida em que o indivíduo se expressa, a sua intencionalidade é sempre comunicativa, porque a expressão implica a compreensão da coexistência. A função da mediação entre o eu e o outro, articula a compreensão deste mundo revelado na interação”.(Augras, 1997, p. 82). O silêncio, a reticência, a mentira são tão expressivos quanto a palavra verdadeira. A tensão dos opostos (que aparece na mentira), o equilíbrio constantemente ameaçado e restabelecido representam a especificidade da situação do ser no mundo. A compreensão do ser supõe o reconhecimento prévio da ambigüidade e da insegurança de toda interpretação, se fundamentando na intersubjetividade. Para a fenomenologia, compreender não é modo de conhecer, é modo de ser. A compreensão de uma situação é uma hermenêutica, portanto há uma impossibilidade de um indivíduo esgotar o reino infinito da realidade. O único ponto de partida aceito pela fenomenologia para compreender o outro é através da própria subjetividade. Aceitar as restrições na compreensão é aceitar os próprios limites. No exercício da psicologia, o caminho para o conhecimento do cliente passa pelo autoconhecimento do terapeuta. “Reconhecer dentro de si limites e contradições, permite então partir para a compreensão, limitada, das contradições do outro”. (Augras, 1997, p.84). Família: o contexto onde ocorre paternidade Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 83 Ao buscar referências sobre o lugar do pai, a pesquisadora foi ao encontro de algumas perspectivas diferentes, para construir um fundamento a respeito do conceito de paternidade para o trabalho. Para compreender melhor a estruturação e a organização familiar, foi proposto o estudo das idéias de Salvador Minuchin e de Murray Bowen. Uma visão estruturalista Segundo Salvador Minuchin (1990), há uma estrutura subjacente ao funcionamento da família. Esta estrutura não dita a maneira como as pessoas se comportam, mas estabelece alguns limites e organiza a forma como elas preferem agir. É um sistema que opera a partir de padrões transacionais, observáveis através de seus comportamentos e comunicações. “Transações repetidas estabelecem padrões de como, quando e com quem se relacionar e estes padrões reforçam o sistema”.(Minuchin, 1990, p.57). Estes padrões regulam o comportamento dos membros da família e são mantidos tanto por algumas regras universais (por exemplo, deve existir uma hierarquia de poder, em que pais e filhos têm diferentes níveis de autoridade; ou deve existir uma complementaridade de funções em um casal, onde eles aceitam a interdependência e trabalham como equipe), quanto pelas expectativas mútuas dos membros da família (que incluem negociações explícitas ou implícitas ao longo dos anos de acomodação). Desta forma, o sistema se mantém a si mesmo, oferecendo resistência à mudança e mantendo padrões preferidos, sempre que possível. Quando surgem situações de desequilíbrio no sistema, é comum os membros da família reivindicarem temas como lealdade familiar e tentativas de manipulação que induzem culpa. É necessário que a estrutura familiar tenha flexibilidade suficiente para se adaptar ao desenvolvimento de seus membros ou às circunstâncias externas, Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 84 quando estas se transformam, para permitir a continuidade do sistema, proporcionando um esquema de referência para os seus membros. “O sistema familiar diferencia e leva a cabo suas funções através de subsistemas. Os indivíduos são subsistemas dentro de uma família. Díades podem ser subsistemas. Os subsistemas podem ser formados por geração, sexo, interesse ou função”.(Minuchin, 1990, p.58). Cada indivíduo pertence a diferentes subsistemas, nos quais tem diferentes níveis de poder e onde aprende habilidades interpessoais diferenciadas. Um indivíduo pode ser filho, irmão, marido, pai, etc. Em cada subsistema ele ingressa em diferentes relações complementares. A criança tem que agir como um filho, enquanto seu pai age como um pai. A mesma criança terá uma relação completamente diferente com seu irmão mais novo – ela agirá como um irmão mais velho. As fronteiras de um subsistema são as regras que definem quem participa e como. Sua função é de proteger a diferenciação do sistema. Cada subsistema familiar tem funções e demandas específicas para cada membro. O desenvolvimento das diferentes habilidades depende da liberdade que cada subsistema tem em relação aos outros. Para o desenvolvimento adequado da família, é importante que as fronteiras dos subsistemas sejam nítidas. Para o funcionamento da família é mais importante manter, por exemplo, as linhas de responsabilidade e autoridade bem delineadas, do que determinar quem exerce a função parental. Todas as famílias vivem ao longo de um continuum, onde os pólos são as fronteiras excessivamente difusas ou rígidas (famílias emaranhadas ou desligadas). Para o funcionamento apropriado da família as fronteiras dos subsistemas devem ser nítidas e definidas, o suficiente para que os membros levem a cabo suas funções, sem interferência indevida. Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 85 As famílias emaranhadas possuem fronteiras difusas, isto é, elas giram em torno de si mesmas, com um conseqüente aumento da comunicação e preocupação entre seus membros, a diferenciação do sistema familiar fica difusa. Já em famílias com fronteiras rígidas a comunicação é difícil e as funções protetoras da família ficam prejudicadas. Quando nasce o primeiro filho, há necessidade de um novo nível de formação familiar. Deve ser delineada uma fronteira, que permita o acesso da criança a ambos os pais, porém excluindo-a das funções conjugais. Atualmente, o modelo patriarcal de autoridade se desvaneceu. Espera-se que os pais compreendam as necessidades de desenvolvimento dos filhos e expliquem as regras que se impõem. A paternidade é um processo extremamente difícil, e ninguém o desempenha a seu inteiro contento. Não basta compreender a distribuição estrutural da família. Ela não é suficiente para dar conta da complexidade que envolve os membros de um grupo familiar. O fundamento de seu funcionamento se baseia no tipo de comunicação e relacionamento que seestabelece. Certa medida de complementaridade é o princípio definidor de todos os relacionamentos. Em qualquer casal, o comportamento de uma pessoa está ligado ao comportamento da outra. “Os casais precisam nutrir seu casamento para poderem funcionar como pais”.(Minuchin, 1990) Por exemplo, quando há um superenvolvimento da mãe com os filhos, há um isolamento ou subenvolvimento do pai; ou quando um é extremamente desligado, o outro tende a ser emaranhado. Ao longo de seu trabalho, Minuchin expõe com clareza a necessidade de limites e fronteiras bem delineadas, a necessidade do estabelecimento de linhas de responsabilidade e autoridade na família, mas não faz diferenciação a respeito de quem deve estabelecer estes limites. O que importa é a relação de Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 86 complementaridade que se estabelece entre as gerações, permitindo o aprendizado e desenvolvimento da família como um todo. Os filhos aprendem a ser filhos, enquanto os pais aprendem a ser pais. Ele também ressalta a importância da relação do casal como um subsistema conjugal adequado, para permitir que o subsistema parental seja bem sucedido. Quando observamos o desenvolvimento das famílias, podemos compreendê-lo como um longo processo de diferenciação, tal como postula Murray Bowen (apud Elkaim, 1998), a respeito da importância da diferenciação do ego no desenvolvimento do indivíduo. A diferenciação do ego Segundo Bowen (apud Elkaim, 1998), a “diferenciação do ego” é um conceito fundamental no desenvolvimento do ser humano. É ao mesmo tempo um conceito intrapsíquico e interpessoal. Sua idéia principal diz respeito ao grau em que as pessoas se fusionam ou se fundem emocionalmente com outra, com duas ou mais pessoas para criar um eu comum. Bowen (apud Elkaim, 1998) observou que existe uma grande dificuldade de se tornar objetivo, quando se está diante da família, o que chamou de fusão emocional na família, fenômeno este que está presente em todas as famílias, em maior ou menor grau. No ponto central da diferenciação do ego situa-se a relação primária de uma pessoa com seus pais. Quanto maior o grau de indiferenciação com relação à família de origem, tanto maior será o grau de indiferenciação na família nuclear. Este processo de transmissão multigeracional de conteúdos emocionais, pode levar a dificuldades no estabelecimento de limites, pois quando a objetividade se perde, os limites e fronteiras do sistema familiar ficam difusos. O que impede o natural desdobramento desse processo é o nível de diferenciação e de ansiedade crônica apresentado pelos pais ou Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 87 responsáveis pela criança. Quanto mais os pais precisam da criança para completar seus próprios egos parciais, mais a criança desenvolverá a necessidade de outra pessoa para completar o seu. Nestes momentos surgem os processos de triangulação familiares, o que faz com que a ansiedade do sistema se reduza, mas congela os conflitos, onde eles se encontram. Enquanto esta triangulação (perversa) continuar, o relacionamento aberto entre pares não pode ocorrer, o que prejudica o desenvolvimento e a diferenciação do indivíduo. Outro fator que interfere no desenvolvimento da diferenciação do ego é a maneira como os pais administram essa ligação em sua própria união. O grau de fusão é determinado pelas ligações emocionais não-resolvidas. A necessidade que uma pessoa tem de outra para se completar é algo trazido desde a família de origem a todos os relacionamentos futuros, portanto um produto do relacionamento do indivíduo com seus pais. A diferenciação intrapsíquica é considerada também a capacidade de separar o sentimento do pensamento. A pessoa diferenciada é capaz de equilibrar pensamento e sentimento, podendo estar em contato intenso com os outros, tomar decisões por seu próprio pensamento e agir de acordo com suas crenças. A ausência de diferenciação entre o pensamento e o sentimento ocorre juntamente com a ausência de diferenciação entre o si próprio e os outros. Bowen sinaliza então a importância da diferenciação do ego da dupla parental, para o desenvolvimento adequado da família. PROPOSTA DE ANÁLISE Considerando esses posicionamentos teóricos, onde se focou alguns aspectos da abordagem fenomenológica existencial e alguns aspectos da abordagem sistêmica, a pesquisadora procurou analisar o atendimento de uma família, onde a paternidade se mostrou como Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 88 uma característica marcante, e enriquecer o trabalho terapêutico, a partir de uma compreensão mais abrangente do caso atendido. Metodologia Sujeito: O sujeito da pesquisa é uma família atendida em uma instituição universitária, cujo objetivo é a formação de Especialistas em Terapia Familiar, entre setembro de 2001 e julho de 2002. A família é formada por um pai, de 46 anos, uma mãe, de 29 anos, e três crianças, do sexo feminino, de 11, 8 e 3 anos. O pai é um policial militar e a mãe, atualmente é do lar. Gozam de boa saúde e são de classe social média. Material pesquisado: Transcrição de trechos de sessões terapêuticas, gravadas em fitas de vídeo. Análise de Dados: Após uma leitura cuidadosa, foram destacadas as comunicações que se referiam à paternidade. Organizou-se um quadro para a análise dessas comunicações, sob os aspectos estruturais (fronteiras e papéis), relacionais (tipo de comunicação), antropológicos (herança transgeracional) e sob uma abordagem fenomenológica. A partir deste quadro, foi possível analisar as correlações entre vários aspectos das diferentes teorias, buscando especialmente suas similaridades. Descrição do caso Pedro ficou sozinho com sua filha, Vera, desde que ela era um bebê, de cerca de um mês de idade, pois a mãe dela, uma cigana, era droga-dependente. Ela tem um comportamento considerado por Pedro, como inadequado, promíscuo (tem seis filhos de pais diferentes; não cria nenhum deles e atualmente mantém relacionamento com indivíduos marginalizados da sociedade). Ele possui a guarda da filha há muitos anos. Sempre cuidou sozinho dela. Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 89 Seu trabalho era de artesanato em couro, o que permitia um horário mais flexível. Há seis anos começou a trabalhar na Policia Militar, e sempre teve alguém morando junto com ele que ajudava a ficar com Vera. Teve algumas namoradas, mas nada firme, desde que Vera nasceu. Quando Vera nasceu, Pedro se preocupou muito com a saúde dela, pois a mãe não havia interrompido o consumo de drogas durante a gestação, e ele temia algum mau desenvolvimento do feto. Com poucos meses de vida, a menina teve meningite, mas também não houve seqüelas. Entretanto, estas dificuldades de saúde, somadas às dificuldades financeiras, de relacionamento com a mãe e as dificuldades de criar a filha sozinho, contra a opinião de toda a sua família de origem, e contra a opinião da avó materna, que queria doar a menina (os filhos anteriores já haviam sido doados), acabaram gerando uma ligação muito profunda entre pai e filha. Poderia se vê- los como dois sobreviventes de uma catástrofe. Atualmente a mãe de Vera raramente vê a filha - apenas quando coincide de encontrá-la na casa da avó. Pedro evita estes encontros. Vera sempre opinou a respeitodas namoradas de Pedro. Ele começou a namorar Valéria com o seu incentivo, pois ela não gostava da namorada anterior. Nesta ocasião Vera tinha oito anos. Valéria por sua vez era separada há alguns anos, e tinha uma filha, Daniela, de quatro anos. Em pouco tempo (cerca de três meses), Pedro e Valéria resolveram morar junto e Valéria engravidou de Carol, o que parece ter sedimentado mais a relação dos dois. Quando se pergunta desde quando estão juntos, o casal em uníssono responde “há quatro anos”, e o pai continua: “Mas a minha (vida) com minha filha é à parte – porque fiquei oito anos sozinho com ela”.(SIC) Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 90 O casal fala que quer manter a relação, a família, Pedro inclusive frisa que é a primeira vez que Vera conhece uma família estruturada, inclusive uma casa estruturada, mas o relacionamento atual entre Vera e Valéria é muito difícil, pois Pedro sempre critica sua forma de atuar como “mãe”. Com certeza Valéria não atende ao ideal de mãe que Pedro passou para Vera. O que se observa é que há uma intimidade maior entre pai e filha do que entre o casal. (por exemplo, os assuntos financeiros são discutidos antes com a filha do que com a esposa). Ao mesmo tempo se observa uma intimidade entre Valéria e sua mãe, o que gera ciúme e desconforto para Pedro. Para Pedro é muito importante a harmonia do lar, o que lhe custa um esforço muito grande, causando muito cansaço. Ao pesquisar um pouco sobre sua família de origem, Pedro conta que era muito ligado à sua mãe, ajudando-a nas tarefas domésticas, especialmente na costura, o que lhe possibilitou a atividade profissional com o couro. Sua mãe faleceu cedo, quando Pedro tinha 18 anos. Até então seu relacionamento com o pai era péssimo, chegava a odiá-lo. Após a morte da mãe, o pai começou a se aproximar de Pedro, quando se tornaram grandes amigos, num relacionamento mais próximo do que com os outros irmãos. Seu pai também já faleceu. Pedro conta que quando pequeno, quem estabelecia as regras da casa era a mãe, sendo o pai mais passivo. Conta também que a relação entre os pais não era boa: havia muitas brigas e distanciamento. Por este discurso, pode-se observar que Pedro estava sempre envolvido em um triângulo perverso, onde a relação dual excluía um terceiro. Com relação a sua vida afetiva, Pedro conta que sempre se relacionou com mulheres que já tinham filhos e que era mais fácil para ele se imaginar como pai do que como marido. Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 91 Na história familiar de Valéria, repete-se a dificuldade de aprender a conviver com um modelo de casal que seja funcional, pois seu pai era alcoólatra, sempre se desentendeu com sua mãe, que trabalhava e criava sozinha os seus filhos, até que o casal se separou. Valéria é a mais velha dos irmãos, tendo ficado bastante próxima de sua mãe e a auxiliando no cuidado com os irmãos. Ela admira a mãe e a enxerga como uma batalhadora, tendo muito respeito por suas opiniões. Casou-se muito jovem, na primeira vez, porque havia engravidado; este casamento durou cerca de um ano. O pai de Daniela mantém contato bastante esporádico com a menina, tendo constituído nova família. Valéria sempre trabalhou fora de casa, porém neste último ano está cuidando mais da casa e das crianças, e diz que “está aprendendo a ser mãe” (SIC). Segundo Pedro, ela não é muito carinhosa com as crianças maiores, apenas com a caçula. De acordo com Valéria, as crianças maiores não precisam de tanto contato físico. Os problemas de relacionamento entre Vera e Valéria iniciaram quando Carol, a filha do casal, nasceu. Parece que apenas neste momento Vera viu o seu lugar ameaçado: a respeito de uma namorada ela poderia influenciar o pai, mas ela havia perdido para sempre o lugar de filha única deste pai tão especial. Discussão dos resultados Esta família procurou o atendimento com uma queixa de mau aproveitamento escolar de sua filha mais velha, Vera. No entanto, logo no início, a família se apresenta com uma aparente disfunção na sua estrutura: um distanciamento do casal com a entrada das filhas entre ambos. Segundo Bateson e Watzlavick (apud Bebchuk, 1994), todo comportamento é uma comunicação. Assim, tanto o distanciamento físico entre o casal durante a sessão pode ser visto como uma metáfora da organização de sua estrutura, quanto o Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 92 sintoma pode ser considerado como uma forma de comunicação. Este sintoma, logo na primeira sessão é redefinido pela própria família, como um problema de relacionamento entre a enteada e a madrasta. Estes comportamentos podem estar conectados a uma desordem hierárquica dentro da família (Minuchin, 1990) ou podem surgir como soluções para a sobrevivência de um grupo. É uma família que se constituiu pela transformação abrupta de dois núcleos uniparentais (o pai com sua filha e a mãe com sua filha) em um grupo mais complexo, não apenas pela união destes dois núcleos, mas pelo nascimento de uma terceira filha, comum ao casal. Esta estruturação é que vai moldar os padrões de comportamento dos membros da família (Minuchin, 1990). Na primeira sessão, o pai apresenta a família demonstrando uma certa rigidez. A sua frase: “Essa é filha da mãe (aponta Daniela), essa filha do pai (aponta Vera) e essa filha de mãe e pai” (SIC), mostra a falta de integração na família. Se considerarmos que, segundo Maturana (apud Bebchuk, 1994), cada vez que uma pessoa descreve uma ação, ela se torna um observador que seleciona a informação de acordo com seus próprios parâmetros, podemos deduzir que a dificuldade de integrar a família é também uma dificuldade do pai. Do ponto de vista da fenomenologia, o que podemos observar é que para este pai, cada menina é diferente, a relação com cada uma delas nasceu de outra maneira. A relação que está se enfocando aqui é especialmente a relação de Pedro com sua filha mais velha. Sua ligação com ela é anterior à da esposa e, portanto, este vínculo é mais forte, aparentando ser superior. Segundo Minuchin (1990), quando um dos membros do casal parental está em uma situação inferior à de um filho, as fronteiras entre os subsistemas da família estão difusas. Segundo ele, há algumas regras universais que facilitam o desenvolvimento Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 93 familiar como, por exemplo, que deve existir uma hierarquia de poder em que pais e filhos têm diferentes níveis de autoridade, assim como deve existir uma complementaridade de funções em um casal, onde eles aceitam a interdependência e trabalham como equipe. Em uma visão fenomenológica, pode-se observar que a solidão do pai em sua vida com a menina é marcante. É importante compreender essa solidão como um princípio operativo do comportamento de Pedro. Pode-se vê-la como formadora da unidade ser-no-mundo, de Heidegger (apud Abbagnano, 2000). Para ele, o Ser nunca é um ser isolado, independente do mundo. O ser está sempre em relação com o outro, com o mundo. O pai fala com freqüência da falta de referencias físicas (de casa) e emocionais (de família) para a filha. Ele está comunicando suas próprias carências e o no que ele se identifica com a filha. Está fazendo um pedido de ajuda para a terapia. Parece que o pai percebe a falta de uma estruturação melhor como família,mas ao mesmo tempo se ressente por incluir algo diferente em sua própria vida. Esta díade pai-filha tem sobrevivido de forma isolada por muito tempo; parece estar difícil se abrir para algo novo – o que é novo e diferente pode representar uma ameaça à sua relação, fazendo com que as fronteiras fiquem mais rígidas. Minuchin (1990) fala que é necessário que a estrutura familiar tenha flexibilidade suficiente para se adaptar ao desenvolvimento de seus membros ou às circunstâncias externas quando estas se transformam, para permitir a continuidade do sistema, proporcionando um esquema de referência para os seus membros. De certa forma, pode-se relacionar esta preocupação de Pedro com sua filha, como uma expressão da estrutura fundamental dos relacionamentos, que segundo Heidegger (apud Abbagnano, 2000), é um tomar conta do outro. O que se nota é que Pedro procura resolver os problemas de sua filha por ela, preocupado com o que deve Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 94 proporcionar a ela, o que caracteriza esta forma de coexistência de inautêntica. Vai se verificar, ao longo das sessões, que esta forma de coexistir acaba gerando um cansaço muito grande, um peso e um receio da responsabilidade para Pedro, pois ele tem medo de não conseguir proporcionar para a filha e agora, para toda a família, aquilo que ele considera necessário. Desta forma, a expressão de seu próprio ser fica comprometida e não há espaço para sua auto- realização, seja como pai, como esposo ou até mesmo como homem. Ele não pode confrontar seu ser autêntico. A angústia da morte, do nada, do vazio, fica escondida pelo cotidiano, pela preocupação em proporcionar à família tudo aquilo que esta necessitar, como uma fuga anônima. Na abordagem fenomenológica existencial, estar em contato com esta angústia é uma via de acesso para uma transformação da relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Segundo Augras (1997), é através da linguagem e da compreensão de que todo significado dado a um fenômeno supõe a possibilidade de ser re-interpretado, que torna possível a transformação do ser. Num paralelo, podemos dizer que, numa abordagem relacional sistêmica, a narrativa construída em uma família modela o mundo compartilhado por ela. Segundo Maturana (apud Bebchuk, 1994), é através da linguagem que damos diferentes significados, conteúdos e emoções a esse mundo compartilhado. Somente através de um espaço de aceitação existencial do indivíduo, é que pode se iniciar uma mudança na sua narrativa, o que gera uma transformação na sua relação com o outro, e com sua visão de mundo. Para Pedro viver uma existência autêntica, ele precisaria atualizar suas potencialidades, o que somente seria possível se ele estivesse consciente de suas possibilidades existenciais. Seria necessário ter presente sua criatividade para vislumbrar essas novas possibilidades. Para alterar sua compreensão da relação com os outros, com a filha e com a família, é necessário compreender a Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 95 própria alteridade. Pedro precisaria estar consciente da sensação de ser si mesmo, e não apenas ser em função de cuidar dos outros. O outro poderia ser considerado como um referencial para si, mas como um espelho de suas relações e não um espelho ao contrário, onde ele tem se escondido de si mesmo. Pode-se observar uma fusão emocional entre pai e filha. Há uma indiferenciação entre os dois. O conceito de “diferenciação do ego” é para Bowen (apud Papero, 1998) fundamental no desenvolvimento do ser humano. Nota-se em diversos momentos esta fusão: o pai responde pela filha, quando esta é questionada na sessão; ele a superprotege, justificando todas as suas ações; não consegue colocar limites para a filha – ele mesmo se considera mole; sua história comum de luta pela vida, pela sobrevivência, levou a um vínculo baseado em lealdade, intimidade e cumplicidade, reforçado pela condição de solidão e isolamento em relação à própria família de origem e ao ambiente social. No ponto central da diferenciação do ego situa-se a relação primária da pessoa com seus pais. No caso desta família, Pedro tem uma história de fusão emocional com sua mãe, que não pôde ser elaborada. Posteriormente seus relacionamentos sempre se caracterizaram por ser diádicos – com o pai, com os irmãos, com a mãe de Vera, e com a filha. Há uma dificuldade de Pedro de se relacionar em uma tríade, compondo um triângulo no qual a autoridade possa ser exercida adequadamente. O relacionamento aberto entre ele e seu par conjugal não pode ocorrer, o que faz com que sua filha fique triangulada, “no meio” do casal, intermediando o comportamento de ambos. Por conta deste esforço, fica mais difícil seu desenvolvimento e diferenciação – a aquisição de conhecimento é uma forma de diferenciação – o que faz com que surja sua dificuldade de aprendizagem na escola. Pode-se dizer que esta dificuldade de formar o par conjugal é do casal, pois além deles não terem conseguido constituir nenhuma relação estável em suas vidas anteriormente, também a filha menor, de ambos, está Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 96 mostrando resistência em ir para a escola, pois precisa “cuidar da casa” (SIC). As meninas e a família ficam como depositárias das dificuldades dos pais. A intimidade assusta Pedro, pois ameaça a sobrevivência de sua narrativa do mundo. Do ponto de vista da abordagem fenomenológica existencial, pode-se observar uma ansiedade em formar o casal, por prováveis fantasias antecipatórias de ameaça aos próprios valores. Faz sentido falar do casal nesta abordagem porque esta relação dá forma, contorno e aparência e, portanto, também sustenta o fenômeno da paternidade, apesar de não se constituir em sua essência. Pode-se observar que, para Pedro, o vínculo com sua filha é muito forte, porque parece que através dela ele conseguiu uma identidade na família. Ele conseguiu aplicar suas habilidades “femininas”, aprendidas com a mãe, e demonstrar para a família que ele era capaz de criar a filha. Para ele esta era uma questão de sobrevivência de seu ser: ele precisava encontrar um lugar, uma aceitação e um respeito nesta família, na qual ele sempre se sentiu só e inadequado. No seu discurso, ele atribui à filha o fato de voltar a ter família, de estar vivo: “... foi a continuidade da minha vida. Acho que se não tivesse esse ocorrido, eu podia não estar mais aqui hoje” (SIC). Desta forma, também, ele não assume responsabilidade por suas escolhas, o que faz com que sua vida seja vivida de forma inautêntica. No momento do atendimento, a ansiedade de Pedro está elevada também pela aproximação de sua filha da adolescência. Possivelmente, suas fantasias sobre a sexualidade, e sobre o fantasma da mãe cigana, estão presentes na relação e ele se sente incompetente para lidar com esta demanda, solicitando que sua parceira seja a mãe que ele idealizou para sua filha, o que está fora do alcance dela. Desta forma o conflito se acentua. Como o conflito não pode aparecer no casal, pois eles não têm uma história de aprendizado de negociações em suas famílias de origem, a filha Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 97 assume a responsabilidade do conflito com a madrasta. Neste momento volta o temor do pai de ser incompetente, de mostrar sua fragilidade, deser abandonado. Este temor o remete ao passado, à sua condição de sobrevivência e à sua angústia perante a morte. Experiência esta que ele vivenciou concretamente com a filha nos seus primeiros meses de vida, e que molda sua relação com ela como dois sobreviventes de uma catástrofe: o abandono da mãe viciada em drogas, as doenças que ela teve, a rejeição das famílias, as tentativas de seus irmãos de tirarem a menina dele, suas dificuldades financeiras, seu modo de vida nômade. É um temor que não permite que ele perceba os recursos que tem, quanto conseguiu realizar. Ele não pode se perceber a si mesmo. As meninas e a família funcionam como um espelho às avessas, onde ele se esconde, se camufla: ele se pulveriza no outro. Ao não poder olhar para suas deficiências, ele também não pode olhar para suas vitórias, seus sucessos, seus recursos, o que o deixa paralisado e impotente, à mercê das circunstâncias de sua vida. Ele se angustia e se conforma com uma existência inautêntica. Parece, então, que do ponto de vista da abordagem fenomenológica existencial, a essência do Ser pai, para este indivíduo ainda não está totalmente definida, mas pode-se dizer que há indícios para supor que ele se perde no labirinto de sua ansiedade, na confusão de seu casamento, na sua angústia de como prover a família, ou seja, ele se perde em uma paternidade inautêntica. Do ponto de vista da abordagem relacional sistêmica, este pai está emaranhado com sua filha, não conseguindo se diferenciar dela, nem de sua família de origem, dificultando seu relacionamento conjugal e o desenvolvimento tanto desta sua filha como o da caçula. A família fica então paralisada, com dificuldade de crescimento para todos os seus membros. Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 98 Considerações Finais Através do estudo deste caso, foi possível observar alguns aspectos que se aproximam, entre as abordagens Relacional Sistêmica e Fenomenológica Existencial. Ambas abordam questões voltadas para a formação dos vínculos entre os indivíduos; a influência mútua entre as pessoas, e a importância de se considerar o indivíduo dentro de uma relação e não como isolado no mundo. O sentido e a importância de se olhar para o indivíduo dentro de seu contexto, como ser particular e único, e respeitá-lo desta forma. Outro aspecto bastante presente nas duas abordagens é a questão da linguagem. A linguagem não é vista como mera representação de um mundo externo ao indivíduo, mas como um elemento constitutivo deste mundo. A linguagem cria, gera, estrutura o mundo. É através da compreensão da linguagem de cada indivíduo, que se pode ter acesso ao seu ser, e ajudá-lo a construir uma narrativa que seja mais funcional para sua vida. A postura tanto do terapeuta fenomenológico quanto do sistêmico é de ter uma abertura para aceitar o ponto de vista do paciente como válido e verdadeiro, procurando compreendê-lo sem julgamentos prévios e a partir da sua lógica. A idéia não é propor uma “verdade” para o paciente, mas construir com ele uma nova possibilidade que seja funcional para sua própria vida. Existem também inúmeras diferenças em cada abordagem, que não foram objeto deste estudo. Entretanto, o que se pode observar é que, respeitando-se as características e limitações de cada teoria, pode-se concluir que as aproximações que foram possíveis entre as duas fizeram com que a compreensão do caso fosse enriquecida. Portanto não se faz uma proposta de unificar as duas teorias, mas de se usufruir daquilo que cada uma oferece para o aprofundamento do trabalho do terapeuta. Um estudo da paternidade Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 99 Pode-se sugerir uma continuidade deste estudo, de forma a englobar as diferenças existentes em cada teoria, visando aprofundar o conhecimento e as habilidades do terapeuta ao estabelecer o vínculo com o paciente. Também pode-se sugerir um estudo mais aprofundado sobre a interação da subjetividade do pesquisador, ou do terapeuta, na construção de temas que envolvem a paternidade. O que se pode apreender de fundamental no exercer do trabalho terapêutico, nestas duas abordagens, é uma postura de reflexão e autoconhecimento do terapeuta, que permita a ele se abrir para o outro, de forma autêntica, encarando e aceitando os próprios limites e contradições. É abrir espaço para o domínio da presença, que fundamenta o mundo da relação. Ou, segundo Humberto Maturana (apud Bebchuk, 1994), é um exercício de escutar o outro, apenas escutando, sem planejar o próximo passo, sem formular hipóteses ou interpretações; é estar presente no diálogo. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. (2000): Heidegger, in História da Filosofia, vol. XIV, cap. 843 e 844 (p. 136 a 144). Portugal: Presença. AUGRAS, M. (1997): O ser da compreensão: Fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. 7ª ed. Petrópolis. Vozes. BEBCHUK, J. (1994): La Conversación Terapéutica: Emociones y significados. Fronteras del pensamiento sistémico. Buenos Aires, Argentina. Planeta Nueva Conciencia. FORGHIERI, Y.C. (1993): A fenomenologia e suas relações com a psicologia, cap.2. São Paulo: Pioneira. JOLIVET, R. (1961): As doutrinas existencialistas. Cap. 4. Porto: Tavares Martins. MINUCHIN, S. (1990) Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre. Artes Médicas. Marcia Zalcman Setton, Patrícia Pazinato Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2002, 3(1): 74-100 100 PAPERO, D. V. (1998): A Teoria sobre os Sistemas Familiares de Bowen, in Elkaim, M. (org.) Panorama das Terapias Familiares, vol. 1 (p. 71 –100). São Paulo. Summus. Contatos: Marcia Zalcman Setton Patrícia Pazinato E-mail: pazinato@ifxbrasil.com.br Trâmite: Recebido: dezembro/2002 Aceito: abril/2003
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