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Crônica do brincar
Crônica do brincar
Dalva Rigon leonhardt
Existem, em realidade, dois brincares: o brincar que se vê e o brincar que não se vê.
O brincar que se vê é aquele brincar comum a todas as crianças: construir com materiais, andar pelas calçadas, correr contra e a favor do vento. Jogar sozinho e acompanhado, molhar-se em qualquer porção de água. Fazer dormir a boneca, vestir e desvestir. Pintar-se e pintar tudo que vê. Quebrar, desmanchar e refazer. Ou simplesmente, olhar pela janela, como que imerso num mundo de silêncio.
Tudo isso é visível, tudo é palpável. Pode ser contado e fotografado, pode ser classificado e talvez até dimensionado, assim: "Crianças de tal idade costumam interessar-se por..."
Mas acontece que este brinquedo concreto é apenas uma parte do brincar, a que fica do lado de fora. Existe uma outra parte, ou um outro infinito sequenciar de momentos, que ficam do lado de dentro. E é nessa dimensão interna do brinquedo que se realiza a aprendizagem.
Aí, onde as lentes não chegam, nem os observatórios alcançam. Aí, onde os pensamentos andam livres e o mundo chega e acomoda como pode, entre as ideias que resolvem ficar e aquelas que passam, decididas a mudar. Ele chega e tudo recomeça, sempre, numa ciranda que não aparece e em praças que não se vêem.
Aí, se dá aprendizagem. No pega-pega dos pensamentos pelos corredores de dentro, no esconde-esconde das ideias que se buscam e não se acham e que, repentinamente, surpreendem-nos e correm na nossa frente, ou são detidas por outra ideia melhor, que surge de uma outra esquina, às vezes até desconhecida.
Nesse mundo, externamente invisível, é que se dá o significado das experiências que se vive. O remontar, constante, dos dados que se extrai do quebra-cabeças do ambiente.
E é exatamente por isso que o brinquedo é tão importante para a aprendizagem, pois se constitui no alimento real do sonho e na elaboração fantasiosa da realidade.
Sem realidade, não há sonho possível de se tornar numa outra realidade transformada. Os corredores ficam vazios, as ideias se isolam e se encolhem de frio, buscando sobrevivência na irrealidade. Não é que a aprendizagem não aconteça. Ela ocorre sempre e de algum modo. Mesmo que seja a aprendizagem da solidão que não aponta para o futuro.
Sem fantasia, a realidade pode se tornar excessivamente imediata, para que se preveja o amanhã. Sem sonho, pode ser impossível suportar a realidade.
Já o calor do alimento, o que o torna substancioso para a significação do brinquedo, é dado pelo calor do adulto que acompanha a criança em seu brincar. Não é só brincando junto, mas até em silêncio, acolhendo, percebendo e se importando com as manifestações externas do jogo infantil.
O rosto do brinquedo, assim composto por essas duas faces que o tornam expressivo, possui uma interpretação sutíl, uma medida delicada, impossível de padronizar e que não se traduz em unidades conhecidas, ou em relações diretas, como por exemplo, "tantos metros de brinquedo correspondem a tanto de aprendizagem" ou "brincar dez minutos é aprender meio quilo de noções". Isso não existe, pois são tantas as combinações possíveis que não podemos mensurá-las, ao menos convencionalmente.
Talvez se pudesse arriscar uma nova unidade de medida. Talvez se pudesse criar um padrão com o que se comparasse a aprendizagem.
Talvez se pudesse dizer que a medida do aprender é o afetograma, unidade absolutamente variável e individual de dimensionar as experiências, as trocas com alguém ou com alguma coisa.
Talvez até, se ousasse dizer que mesmo não podendo se concretizar ou esteriotipar, o afetograma seja a unidade sensível do aprender humano.

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