Buscar

Prioridade na primeira infância

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 5 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

���
	��
	 
	27/01/2004 - 03h20 
Menor é melhor
ANTÔNIO GOIS
da Folha de S.Paulo, no Rio
Melhor prevenir que remediar. Como qualquer boa mãe sabe, e a ciência não cansa de demonstrar, a formação da pessoa começa a ser desenhada nas suas primeiras experiências de vida.
Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Bruno Guidio Perri, de oito meses
Depois de anos de descaso, comprovados por indicadores sociais, e de muito trabalho e dinheiro gastos em operações do tipo "remediar", uma mobilização que envolve vários setores da sociedade tenta fazer com que a primeira infância seja, de verdade, uma prioridade no Brasil.
Já que a ONU escolheu 2004 para ser dedicado à família, representantes de ONGs, da Justiça e dos governos federal, estaduais e municipais montam uma rede de proteção à criança brasileira de zero a seis anos. O primeiro objetivo dessa rede é capacitar neste ano 10 milhões de famílias para que aprendam a cuidar melhor de seus filhos.
O esforço para colocar essa faixa etária no foco das políticas públicas está referendado em pesquisas científicas. Estudos mostram que a atenção dada à criança nesse começo da vida é muito mais importante para seu desenvolvimento do que se imaginava até a década de 80.
Essa nova rede de proteção também se espelha em iniciativas adotadas em Cuba, no México, nos Estados Unidos e no Canadá. "O programa se inspirou nesses países para focalizar a família. A forma de atuação, no entanto, foi idealizada a partir de experiências já existentes no Brasil, como os programas de saúde da família e o trabalho da Pastoral da Criança", afirma Halim Girade, oficial de projetos do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), instituição que lidera o trabalho, apoiado pelo MEC (Ministério da Educação), a Fundação Orsa, a Unesco e a Sociedade Brasileira de Pediatria.
As famílias e os agentes que irão treiná-las receberão calendários e cartilhas com informações sobre como tratar crianças de até seis anos. A distribuição do material e a disseminação de seu conteúdo terão o apoio de agentes comunitários de saúde, médicos e enfermeiros de programas de saúde da família e possivelmente de voluntários da Pastoral da Criança. 
"Estamos construindo esse material para que os pais saibam como interagir com as crianças. Uma criança que percebe que é desejada tem melhores condições de reagir bem às adversidades e de ser um cidadão mais integrado à sociedade, com mais possibilidade de sucesso", diz Girade, que atua na área de saúde e desenvolvimento infantil no Brasil.
A necessidade de políticas públicas que priorizem a população até seis anos fica evidente quando se analisam alguns indicadores sociais.
Na área de educação, o país tem uma estrutura de creches e pré-escolas que, na maioria dos municípios, não responde à demanda. Quando responde em quantidade de vagas, tem sua qualidade discutida —há especialistas que classificam as creches como "depósitos" de crianças.
Na visão de Maria Malta Campos, 63, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e professora de pós-graduação em educação na PUC-SP, há no Brasil um descompasso entre as conquistas na legislação e a política de financiamento à educação. "Enquanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a própria Constituição consagram todo o ensino básico como prioritário, a prioridade, em verbas, vem sendo dada apenas ao ensino fundamental, e aqui se trata de uma prioridade entendida como exclusividade", critica. 
Na fase conhecida como "janela de oportunidades", as competências se organizam
De acordo com essa educadora, que participa do Movimento Interfóruns de Educação Infantil, há uma grande demanda reprimida por creches e pré-escolas. "As crianças mais pobres são justamente as mais mal atendidas: em vez de compensar as desigualdades sociais, creches e escolas reforçam essas diferenças, o que é muito triste, especialmente nessa faixa de idade decisiva, quando a criança é uma 'esponja' capaz de absorver tudo. Aí, o sistema público só vai pegá-la na primeira série, quando já estará marcada por tantas oportunidades perdidas de aprendizado."
Segundo o Censo 2000 do IBGE, apenas 10,6% das crianças de zero a três anos estavam na escola em 2000. O Plano Nacional de Educação, aprovado pelo Congresso em 2001, estabelece como meta chegar a 2011 com 50% dessa população atendida em creches.
Um estudo feito pelo MEC mostrou que, para atingir essa meta com qualidade, o gasto público em creches teria de aumentar 1.088% até 2011, passando do patamar atual de R$ 898 milhões para R$ 10,7 bilhões.
Mas o aumento da oferta não pode ser dissociado das discussões sobre qualidade. O Censo Escolar do MEC de 2003 mostra que a maior parte dos professores (69%) sem nível superior trabalha em pré-escolas, com alunos entre quatro e seis anos.
"O professor com melhor qualificação deve ser aquele que trabalha com a criança menor. Quanto menor, mais vulnerável é essa criança e mais sofrerá o impacto negativo ou positivo dos adultos que se relacionam com ela", afirma o consultor em educação infantil Vital Didonet, ex-presidente da Omep (Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar).
Regina de Assis, doutora em educação infantil pela Universidade de Columbia e ex-secretária municipal de Educação do Rio, concorda: "Não adianta colocar senhoras de boa vontade e mocinhas voluntárias nas creches se elas não têm conhecimento das pesquisas que mostram a complexidade dos processos cognitivos, lingüísticos e emocionais nessa etapa da vida. Ou o Brasil toma vergonha e assume que é preciso ter profissionais qualificados atendendo essas crianças, ou vamos ter de fazer programas como o Fome Zero e o Bolsa-Escola durante décadas".
A educação não é a única área em que ainda há muito a ser feito. O Censo 2000 do IBGE mostra que, apesar das melhorias, o país ainda apresenta uma elevada taxa de mortalidade infantil (29,7 por 1.000 nascidos vivos) para padrões de países em desenvolvimento. Quase a metade (48,6%) das crianças de zero a seis anos vive em famílias nas quais o responsável pelo domicílio ganha menos de dois salários mínimos por mês. Em 36,7% dos casos, o responsável é também analfabeto.
Outro problema: 54,4% das crianças nessa faixa etária moram em lares sem saneamento básico adequado —uma das principais causas de doenças.
A necessidade de melhorar as políticas de atendimento à infância em tantas áreas indica que os trabalhos devem ser integrados. "A criança é um todo indistinto. As políticas públicas para elas não podem estar compartimentadas. Cuidar e educar são ações intrínsecas e de responsabilidade da família, dos professores e dos médicos. Todos têm de saber que só se cuida educando e que só se educa cuidando", afirma Didonet.
O caminho até que o Brasil tenha uma política afinada com as necessidades das crianças menores exigirá mais empenho e recursos do que os empregados até agora. Nossa realidade de cuidado com a infância é ainda mais dramática, se confrontada com o atual conhecimento científico sobre o funcionamento do cérebro nos primeiros anos de vida.
Foi só na década passada que os neurocientistas descobriram que há muito de extraordinário no que se passa no cérebro do bebê quando ele recebe um estímulo tão simples quanto um carinho da mãe. Como resposta ao gesto, em segundos, milhares de neurônios se conectam.
Essas conexões, as sinapses, podem durar para sempre ou desaparecer. Se muitas forem criadas e fortalecidas no início da vida, a criança terá mais chances de ser um adulto saudável, com bom desempenho na escola, no trabalho e na vida afetiva.
As sinapses funcionam como pontes entre neurônios, permitem a troca de sinais entre eles. Quanto mais sinapses, e mais resistentes, menor o esforço exigido do cérebro para processar informações e aprender novas funções. 
Há uma oportunidade preciosa para o desenvolvimento das sinapses na infância. Se não houver carinho, afeto e atenção da mãe —ou de quem cuida da criança nessa fase de vida— será muito mais difícil criaressas sinapses no cérebro depois, na adolescência ou na fase adulta. 
Brincadeiras desenvolvem as sinapses
Pode parecer estranho que cientistas, há tempos debruçados sobre estudos do cérebro, tenham desvendado apenas na década passada algo que qualquer mãe carinhosa já sabia. No entanto, o conhecimento que atingiu seu ápice nos anos 90 —graças a técnicas como a tomografia com emissão de pósitrons e a ressonância magnética funcional— trouxe uma revolução no modo de pensar o cérebro infantil.
As novas pesquisas derrubaram gradualmente o antigo pensamento segundo o qual o desenvolvimento do cérebro é linear, e sua estrutura, geneticamente determinada. De acordo com essa linha, as experiências nos primeiros anos de vida tinham influência limitada na formação do ser humano. Acreditava-se que o cérebro se desenvolveria à medida que a criança fosse crescendo.
As descobertas não negaram a influência da herança genética, mas passaram a dar mais importância às vivências nos primeiros anos. Sabe-se agora que as experiências na infância ajudam a formar a arquitetura cerebral, com reflexos na vida adulta.
No livro "Repensando o Cérebro" (Mercado Aberto), a neurocientista Rima Shore conta que as bases para essa evolução surgiram na década de 70, quando o neurocientista Peter Huttenlcher, da Universidade de Chicago, pesquisou as sinapses do cérebro.
Huttenlcher observou que o cérebro infantil tem muito mais sinapses que o do adulto. Na barriga da mãe, o cérebro de um bebê produz o dobro de neurônios do que vai precisar: é como uma margem de segurança para seu perfeito desenvolvimento. Ao nascer, a criança tem cerca de 100 bilhões de células cerebrais. Mas a maioria dessas células tem poucas ligações feitas pelas sinapses.
Uma produção maior dessas "pontes" dependerá dos estímulos externos. Assim como acontece com os neurônios do feto, o cérebro da criança, nos primeiros anos de vida, também produz o dobro das sinapses que necessita. Aos dois anos, a quantidade dessas células nervosas é a mesma de um cérebro adulto. Aos três anos, a produção aumenta, e esse número chega a 1 quatrilhão, o dobro do encontrado, em média, em um adulto. Essa quantidade permanece estável até a puberdade. "Para ser mais eficaz, o cérebro apaga as conexões que não são muito usadas. Até os três anos, essa rede neuronial é muito densa. Ela começa então a diminuir e, na puberdade, cai dramaticamente", explica o médico e secretário estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, Osmar Terra.
E é aí que entra o papel dos pais e dos educadores. Os estímulos recebidos na primeira infância pelos órgãos sensoriais são fundamentais.
Isso explica por que os neurocientistas tentam tanto chamar a atenção das famílias para a interação com a criança nos primeiros anos de vida: é a chamada "janela de oportunidades", período em que cada tipo de percepção e de competência se organiza. Gestos como fazer um carinho, falar com o bebê ou mostrar um brinquedo são o ponto de partida para uma intensa reação no cérebro. 
A negligência tem muitas consequências. Um estudo publicado em 1999 na revista norte-americana da Sociedade para a Pesquisa em Desenvolvimento Infantil e coordenado pela psicóloga Geraldine Dawson, da Universidade de Washington, concluiu que filhos de mães deprimidas tendem a ser mais retraídos, menos ativos e mais propensos a ter elevados índices de cortisol, hormônio que, em altas doses, atrapalha a capacidade de adaptação do indivíduo e aumenta a ansiedade.
Dawson estudou, por meio de eletroencefalogramas, a função cerebral de 60 crianças, sendo que 30 eram filhos de mães deprimidas. Ao expor as crianças a situações como a entrega de um brinquedo ou a separação da mãe, ela constatou que 75% dos filhos de deprimidas apresentaram baixos níveis de atividade na região frontal esquerda do cérebro, associada à expressão e ao controle das emoções. Entre os filhos de não deprimidas, essa porcentagem foi de 10%. Segundo o estudo, "pais depressivos, muitas vezes, não respondem sensivelmente aos choros e proclamas de seus filhos por atenção".
A pesquisa de Dawson mostra que a depressão materna, principalmente se for crônica até os dois anos do filho, pode inibir o seu desenvolvimento.
Em 1994, os norte-americanos Felton Earls e Maya Carlson foram à Romênia para pesquisar órfãos daquele país. A Romênia virou um laboratório de pesquisa para estudiosos do tema por ter implementado, nos anos 70 e 80, uma política de atendimento a órfãos em grandes instituições, onde as crianças recebiam atendimento médico, mas tinham pouco contato com adultos que pudessem exercer a função de "cuidadores".
Carlson e Earls constataram que essas crianças possuíam níveis anormais de cortisol, semelhantes aos de outras que passaram por eventos traumáticos nos primeiros anos de vida.
As seqüelas nos órfãos romenos foram analisadas também em 1997, em um estudo coordenado pela canadense Elinor Ames, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Simon Fraser, no Canadá. Ames analisou crianças romenas adotadas por famílias canadenses e concluiu que os problemas podem ser evitados, caso as crianças sejam retiradas cedo de um ambiente de pouca atenção.
Ames comparou três grupos de crianças: as que nunca estiveram em orfanatos, as adotadas antes dos quatro meses por famílias canadenses e as adotadas entre 8 e 53 meses.
As que nunca foram órfãs e as romenas adotadas antes dos quatro meses apresentaram uma porcentagem baixa (entre 20% e 22%) de problemas graves de comportamento, Q.I. abaixo de 85 ou padrões atípicos de insegurança afetiva. Já entre as adotadas após oito meses, foi percebida a existência de pelo menos um desses problemas em 65% dos casos.
Num relatório ao governo canadense em 1999 (Estudo dos Primeiros Anos de Vida), os pesquisadores Margaret Norrie e Fraser Mustard afirmam, ao comentar o estudo de Ames, que "é aceitável concluir que a maioria dessas crianças adotadas após anos de negligência passou parte do período crítico do desenvolvimento sem uma estimulação de qualidade para criar estruturas e funções otimizadas do cérebro".
Em casos extremos, a omissão dos adultos responsáveis pela criança também ajuda a explicar a violência. No livro de 1997 "Ghosts from the Nursery" ("Fantasmas do Berçário", sem tradução no Brasil), as autoras Robin Karr-Morse e Meredith Wiley entrevistaram adolescentes norte-americanos condenados por homicídios. Em todas as histórias levantadas foram identificadas situações de negligência, abuso ou falta total de cuidado nos dois primeiros anos de vida.
Mas é preciso tomar cuidado para não achar que todas as vítimas de negligência na infância serão necessariamente adultos fracassados, violentos ou emocionalmente instáveis.
Uma extensa pesquisa iniciada em 1955 e coordenada por Emmy Werner, professora de psicologia infantil da Universidade de Nebraska (EUA), mostrou que nem todas as crianças em situação de risco apresentam problemas na vida adulta. Mesmo entre as que apresentaram dificuldades foi possível reverter esse quadro em alguns casos.
O estudo foi feito na ilha de Kauai, no Estado do Havaí (EUA). Por mais de 30 anos, os pesquisadores analisaram a trajetória de cerca de 2.000 crianças, inicialmente classificadas em grupos de "grande risco" e "baixo risco". Um terço do grupo de alto risco não apresentou dificuldades de aprendizado aos dez anos. O estudo mostrou que a maioria dos adultos que foram crianças com problemas de delinqüência e falhas de aprendizado conseguiu superar ou minimizar os efeitos da infância traumática.
Os pesquisadores constataram que muitos desses adultos haviam recebido apoio, quando jovens, de um amigo ou de um adulto. Outros desenvolveram valores positivos buscando suporte religioso ou psicológico. Alguns também estudaram em bons colégios ou conseguiram empregos que, de alguma forma, deram a eles uma segunda chance.
Essa conclusão não contradiz a mais recente linha de estudo dedicada à infância. O que as pesquisas mostramé que, para reverter uma vida mal começada, a criança terá de fazer, no futuro, um trabalho muito maior. Sem uma estrutura de política pública que garanta a ela uma ajuda mínima, suas chances de sucesso são menores do que as de alguém que cresceu em um ambiente favorável. Mas essa criança não pode ser considerada um "caso perdido".
A ciência, com toda a produção de conhecimento sobre o desenvolvimento do cérebro, já deu o alarme. O custo da omissão hoje será muito maior do que qualquer aumento no investimento que se venha a fazer para proteger a primeira infância.
Agradecimentos (fotos): Berçário Mágico de Oz, Escola Aprendendo a Aprender, GAP Academia, Escola Lumiar e Escola Viva.

Outros materiais

Outros materiais