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MARIA DA GRAÇA VIEIRA DA SILVA A UNIÃO ESTÁVEL, SUA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA E LEGISLATIVA E OS DIREITOS SUCESSÓRIOS À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL CRICIÚMA, 2003 2 MARIA DA GRAÇA VIEIRA DA SILVA A UNIÃO ESTÁVEL, SUA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA E LEGISLATIVA E OS DIREITOS SUCESSÓRIOS À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL Monografia apresentada à Diretoria de Pós- Graduação Lato Sensu da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, para a obtenção do título de especialista em Formação Para Magistério Superior. Professor orientador: Maurício Rovere do Valle Pereira. CRICIÚMA, 2003 3 “A nova família é estruturada nas relações de autenticidade, afeto, amor, diálogo e igualdade, em nada se confunde com o modelo tradicional, quase sempre próximo da hipocrisia, da falsidade institucionalizada, do fingimento (....) É o início de uma nova era, prenunciando-se a alvorada dos novos tempos, onde dominará soberano, acima das leis e das religiões, apenas o Amor” Eduardo de Oliveira Leite 4 RESUMO No presente trabalho será analisado o Instituto da União Estável e seus fundamentos mais importantes. As relações humanas, dada a subjetividade que a permeiam, sofreu significativas transformações as quais refletem no mundo jurídico, sendo o momento de se repensar num novo Direito de Família voltado para aquilo que é mais primitivo e primário, compreender as relações familiares, para então entender os nós e as dificuldades de sua aplicabilidade. Tanto é assim, que ainda hoje existe divergências na doutrina e na jurisprudência a respeito da matéria que envolve a união estável, mesmo porque o legislador ordinário, apesar das tentativas, não conseguiu tratar do tema de forma adequada. Para a compreensão do atual status da união estável na sociedade brasileira, fez-se uma breve retrospectiva do processo de seu desenvolvimento, de como era tratado no Direito Romano e sua inserção no direito de família. Constata-se que a jurisprudência teve papel importante no alcance do atual estágio da proteção da união estável. Assim como a doutrina vem contribuindo consideravelmente no sentido de encontrar soluções mais justas a questões tão complexas. As Leis nº 8.971/94 e 9.278/96, embora com algumas imprecisões técnicas, representaram o primeiro passo para a ampla reformulação do Direito de Família. Na contra mão das conquistas, até então asseguradas aqueles que optaram pela convivência sem formalidades, o novo Código Civil separa o casamento da união estável, não só naquilo que deveriam, mas restringiu os direitos consagrados pelas leis ordinárias, principalmente, a questão da sucessão entre os conviventes. 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 06 I. DA UNIÃO ESTÁVEL.............................................................................................. 11 1.1. Aspectos Históricos................................................................................................... 1.2. O Concubinato no Direito Romano e o Tratamento Jurídico no Direito Comparado................................................................................................................ 1.3. União Estável e o Direito de Família........................................................................ 1.4. A Família em Relação ao Concubinato ou União Estável ....................................... 1.5 Casamento e União Estável – Características que os diferenciam............................. 11 12 14 19 21 2. CONCUBINATO – ASPECTOS GERAIS.............................................................. 23 2.1. Conceitos................................................................................................................... 2.2. Espécies de Concubinato........................................................................................... 2.3.União Estável – Natureza Jurídica............................................................................. 2.4.Caracterização das Uniões Estáveis........................................................................... 2.4.1. Oposição de Sexos........................................................................................... 2.4.2. Conteúdo Mínimo da Relação.......................................................................... 2.4.3. Assistência Material......................................................................................... 2.4.4. A Estabilidade ou Durabilidade....................................................................... 2.4.5. Publicidade...................................................................................................... 2.5. Características Secundárias....................................................................................... 2.5.1 A Convivência more uxório............................................................................. 2.5.2. A Aparência de Casamento............................................................................. 2.5.3. Fidelidade........................................................................................................ 23 26 30 34 37 38 40 41 43 45 45 46 47 3. DIREITOS SUCESSÓRIOS NA UNIÃO ESTÁVEL............................................ 47 3.1. Considerações acerca dos institutos da meação e do direito sucessório.................. 3.1.1. Da meação ............................................................................................................. 3.2. Do direito a sucessão................................................................................................. 3.3. Regulamentação anterior a Lei 8.971/94.................................................................. 3.4. Lei 8.971/94 – Direito à Sucessão – usufruto e direito à propriedade...................... 3.5. Do Direito Real de Habitação................................................................................... 47 48 49 49 51 55 6 3.6. Lei 10.406 de 10 de Janeiro de 2002 – Sucessão em face da Nova Lei.................... 3.7. Artigo 1.790 – disciplina a sucessão entre os companheiros no Código.................. 3.7.1 Sucessão entre os companheiros – da confusão relativamente o direito à herança e à meação........................................................................................ 3.8. Direito Intertemporal e a Sucessão na União Estável............................................... 3.8.1.Do Direito Intertemporal.................................................................................. 3.8.2. Direito Intertemporal e Direito sucessório na União Estável.......................... 3.9. Direito Intermporal e Sucessão aberta a partir da promulgação da Lei 8.971/94 à vigência da Lei 10.406 – Novo Código Civil .......................................................... 3.10. Direito Intertemporal e sucessão aberta a partir da Lei 10.406 – Novo Código Civil.........................................................................................................................56 58 59 67 67 70 72 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 77 REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 81 7 INTRODUÇÃO O presente estudo versará sobre a união estável nomenclatura adotada pela Constituição de 1988, já que antes dela o termo utilizado as uniões informais eram o concubinato. Busca-se analisar o fenômeno social da união estável, normatizado pela Constituição Federal de 1988 e posteriormente regulamentada através das Leis 8.971/94 e 9.278/96, hoje, incorporado a nova legislação civil, inserida no Livro IV – Do Direito de Família. Consiste ainda o presente estudo, analisar a atual situação em que se encontram os direitos dos companheiros em face do novo código, notadamente a questão dos direitos sucessórios. A Constituição Federal atribuiu sentido de entidade familiar a união estável e ao mesmo tempo estabelece que o casamento é fonte preferencial e não exclusiva da criação família, conforme dispõe o art. 226 § 3º, posteriormente foi complementado pelas leis 8951/94 e 9278/96. A partir de sua regulamentação a união estável passou a integrar o Direito de Família, sendo atribuído aos conviventes direitos inerentes ao casamento. Tanto que o novo Código Civil inseriu no Capítulo do Direito de Família, os direitos que hoje tutelam as uniões estáveis. A regulamentação embora comprometa em certos ângulos a utilidade e autonomia do casamento, como forma legal de constituição de família, não implica na desestruturação da sociedade nem na desmoralização dos costumes. Por outro lado, será que não houve exageros do Estado regulamentando tal situação fática, se a maioria das vezes os conviventes optam por esta forma de relação como meio de fugirem das normas gerais que regram o casamento? Seria um paradoxo esta normatização? A crença generalizada de que a família moderna passa por crise acentuada guarda alguma relação com o reconhecimento do concubinato, que teria contribuído para desagregação da família legítima? Ou trata-se de uma crise aparente? Por outro lado a inexistência de norma jurídica sobre o assunto não levaria a injustiças nos casos concretos? 8 A pesquisa tem o objetivo de responder a essas indagações com fundamento no Direito Civil, no âmbito do direito de família, notadamente com base no entendimento firmado na Doutrina e Jurisprudência; a definição conceitual de União Estável e o reconhecimento como fato juridicamente relevante. No Brasil a passos lentos a jurisprudência foi se consolidando atribuiu direito previdenciário e acidentário a companheira, possibilitando ainda o acréscimo do patronímico do companheiro e no campo do direito patrimonial, a partilha de bens e indenização por serviços prestados. As relações informais, mais ou menos estáveis deixaram de ser combatidas para serem aceitas, na ótica jurídica, e até mesmo produzirem determinados efeitos. Por outro lado, provocou reações contrárias de juristas ligados a concepções mais conservadoras da família, que anteviu na disposição constitucional a desagregação da família legítima. Teve a jurisprudência nacional papel relevante para o alcance do atual estágio de proteção às uniões estáveis, sendo que a Constituição Federal de 1988 nada mais fez do que consolidar no seu texto a única via de direção, aberta primeiro pela jurisprudência e, depois, por leis esparsas. Ao elevar a união estável a categoria de entidade familiar, o constituinte buscou evitar o dogma da legitimidade da família, rompendo com os preconceitos morais já de larga data suplantados no seio da sociedade, erigiu como postulado a igualdade de tratamento entre casamento e o concubinato. Embora existam diferenças quanto a forma de sua constituição o legislador ao regulamentar a união estável aplicou analogicamente os princípios do casamento, e não poderia ser diferente, simplesmente porque seria de duvidosa equidade normatizar de forma completamente diferente relações familiares que são intrinsecamente iguais em aspectos afetivos e psicológicos. A Constituição agiu acertadamente, pois, a rejeição no mundo jurídico e sem forças para evitar a expansão destas relações no universo fático, estaria de fato, a comprometer a própria estabilidade do casamento, se continuasse havendo uma sociedade informal de afeição totalmente descompromissada de direitos e deveres básicos. Criou-se então uma nova concepção de família – as informais – que aos poucos foi produzindo diversos reflexos jurídicos, migrando para o âmbito do Direito de Família, pois como ente natural e sociológico, cuja função na estrutura social é suficiente para que lhe seja deferida a proteção do Estado, e para que seja aceito como entidade fundamental na organização da sociedade, independente da forma que se originou. 9 Desde então, agregados ao ideal constitucional, por meio das leis ordinárias (8.971/94 e 9278/96) e posterior ratificação na lei civil atual, diversas conquistas trouxeram aos companheiros, atribuindo-lhe direitos como alimentos, direito à propriedade, usufruto vidual e direito real de habitação. Embora existiam discussões e divergências a respeito, as leis como normas regulamentadoras vieram para consolidar o caráter das uniões estáveis como verdadeiro instituto jurídico integrante do direito de família ao lado do casamento. Nesse passo, a pesquisa visa demonstrar que a união estável é um instituto se suma importância para grande parcela da sociedade, pois, sabe-se que é expressivo o número de uniões livres no Brasil. Trata-se, pois, de um fenômeno social e humano, fenômeno, aliás, relevante para ao direito, tanto que a Doutrina e a Jurisprudência já reconheciam direitos aos convivente, mesmo antes que a Constituição o dissesse. Portanto, um dos aspectos abordados na pesquisa e sua contribuição teórica, será a reflexão sobre os pontos positivos e negativos das legislações que regulamentaram tais uniões, inclusive com relação a nova lei civil. Com a Constituição Federal de 1988 o tema, que antes não era dada a devida atenção pelo legislador, passa a ser discutido pela sociedade brasileira, gerando ainda hoje, controvérsias entre a doutrina, jurisprudência e aplicadores do Direito. A Lei 10.406 de 10.01.2002 (Código Civil que vigorou a partir de 11.01.2003), traz no corpo da legislação civil – Livro IV – Do Direito de Família – Título III – Da União Estável, ratificando o que havia previsto a Constituição Federal e lei ordinária. Ainda com relação ao direito sucessório, os conviventes em situação de união estável tiveram regulamentado a forma de participação em face do companheiro sobrevivente. A inserção da união estável no Código Civil atribuiu-lhe status civil, uma vez que, antes, somente o casamento recebia tal amparo legal. Apesar da aparente valorização havida com a inclusão da união estável na nova legislação civil, pode-se perceber que houve um reprovável retrocesso nos direitos até então conquistados pelos conviventes, quando o tema é direito sucessório. Diante disto, serão abordadas algumas questões atinentes ao contexto, procurando da melhor forma esclarecer as obscuridades que estão passando despercebidos pela sociedade brasileira. Não se pretende exaurir as discussões, nem tampouco saná-las. No entanto, pretende-se fazer uma abordagem generalizada procurando condensar as idéias à luz do direito, colacionando assim as informações necessárias para dirimir dúvidas existentes. 10 No primeiro capítulo, serãodefinidos os conceitos, previsão legal e o entendimento da Doutrina sobre a união estável, e a partir de que momento ela opera seus efeitos. Os aspectos históricos e culturais que influenciaram no surgimento desta relação; a solução dada pela jurisprudência a situações fáticas anteriormente a regulamentação da união estável. Examina-se também, a natureza jurídica da união estável, qual seja, a institucional, embora se admita também, a forma contratual sobre determinados aspectos. Antes da Lei Maior, foram expedidas as Súmulas 370 e 382 regulando a partilha de bens entre companheiros, sendo que referidas Súmulas foram editadas quando o concubinato era visto como relacionamento regulado pelo direito obrigacional, sendo na época, repelida a idéia da união estável ser regulada pelo direito de família. O segundo capítulo versará sobre os pressupostos à caracterização da união estável, tais como, a dualidade de sexos, a estabilidade e a publicidade; os efeitos pessoais da união estável, tais como, a obrigatoriedade, o dever de fidelidade, que, se transgredidos será causa suficiente para a dissolução da sociedade. A assistência material e moral abrangendo o direito a alimentos, desde que provada a dependência econômica. Análise dos critérios utilizados pela jurisprudência quanto ao tempo de convivência suficiente para a constituição ou não da união estável, sendo necessário ainda, levar em consideração as circunstâncias que envolvem a relação, uma vez que tanto a Constituição como as legislações não mais impõem um prazo temporal rígido. No terceiro capítulo, enfim, tratar-se-á das leis 8951/94 e 9278/96 que regulamentaram o art. 226 § 3º da Constituição Federal, estabelecendo-se uma análise crítica sobre os aspectos negativos e os positivos. Ou seja, positivos porque procurou expurgar excessos protetivos e formalistas, representou o primeiro passo para a ampla reformulação de todo o Direito de Família, afastando as incertezas plantadas por segmentos renitentes que negavam pretensões formuladas neste âmbito. Os aspectos negativos: é o fato de coexistirem duas leis sobre o mesmo tema, visto que a lei de 96 não revogou totalmente a anterior. Que subsistem nas referidas normas vestígios paternalistas e intervencionistas na intenção do legislador. Deve-se ter em mente que as leis são moldadas sempre pelas condutas e relações sociais que se impõem ao Direito, nunca o contrário. Será examinado ainda, o direito sucessório na união estável, desde os direitos agregados em cada legislação, considerando o posicionamento doutrinário e jurisprudencial até a atual legislação que acabou por restringir tais direitos. Será abordado acerca do direito intertemporal em face da sucessão na união estável; sua importância no sentido de buscar uma 11 alternativa no caso in concreto, para a solução de aplicabilidade da lei, face as omissões ou aparente divergência na legislação vigente. 12 1. DA UNIÃO ESTÁVEL 1.1. Aspectos Históricos Para uma melhor compreensão do contexto que ora será tratado neste trabalho, é necessário fazermos um breve estudo sobre o surgimento da família e o reconhecimento como entidade familiar, na ótica jurídica. No Direito Romano, a família tinha origem na união entre homem, mulher e filhos, e na submissão de um determinado grupo ao poder supremo de que era investido o pater famílias. Para o Direito Canônico a família iniciava-se com o matrimônio, elevado à condição de sacramento e traduzido em união aprovada por Deus, insuscetível de rompimento. As pessoas ficavam vinculadas por atributos de descendência submetiam-se a rigoroso regime patriarcal, isto não pode ser entendido como inovação, até porque já na Bíblia consagrava-se essa modalidade de coordenação e convivência social. Mais modernamente, a organização familiar continua a ser considerada pelos juristas como sendo aquela que se convencionou denominar “a célula mater da sociedade”. O ordenamento jurídico leva em conta, fundamentalmente, a importância da família como núcleo básico e central de toda a estrutura social, e é a partir dela que o indivíduo recebe sua educação, se insere na sociedade e passa a adquirir seu primeiro status e as condições necessárias para viver em sociedade. O Estado presta assistência e proteção a família, porque se a sociedade é o organismo e a família o gérmen, com os mesmos elementos estruturais da sociedade é importante que se busque o equilíbrio e a estabilidade social, proporcionando também a prosperidade das famílias, pois dela depende a ordem social e o desenvolvimento. Nas últimas décadas houve uma modificação vertiginosa nos padrões de conduta; os meios de comunicação cada vez mais sofisticados aceleraram a evolução dos costumes; a equiparação do homem e da mulher; os anticoncepcionais; a desvinculação dos filhos do poder paterno; o divórcio; o predomínio do individualismo nas relações familiares e o retorno da afetividade como valor preponderante neste patamar, entre muitos outros fenômenos, significaram uma verdadeira revolução no âmbito do Direito de Família, obrigando a uma verdadeira reestruturação de valores e conceitos, principalmente do casamento. 13 1.2. O Concubinato no Direito Romano e o tratamento jurídico no Direito comparado. A origem da palavra concubinato veio do latim concubinatu que designava estado de amaziamento, de mancebia entre um homem e uma mulher e que pressupõe o relacionamento sexual entre eles: concubitu - ajuntamento carnal, cópula. Para o Direito Romano, este amaziamento entre homem e mulher, inexistindo impedimentos, poderia vir a caracterizar uma modalidade sui generis de casamento, o usus que, despido de quaisquer formalidades, configurava-se pela simples convivência do homem e da mulher, durante um ano. Segundo EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE: O uso, pois, contrariamente à confarreatio e à coemptio, é um modo não-solene de aquisição de manus, dependente exclusivamente da coabitação contínua do homem e da mulher durante um ano. Como a coabitação não admitia interrupções, o manus desaparecia, se a mulher se ausentasse por três noites consecutivas – usupatio trinoctti - do domicílio conjugal1 Isto não quer dizer que a toda e qualquer relação concubinária era dado o status de casamento; apenas em certas situações valorizava-se a tal ponto um relacionamento puramente informal até transformá-lo numa espécie de casamento. Ao lado do usus, todavia, a civilização romana conheceu também, no âmbito das suas relações sociais, a existência de simples relações concubinárias, como uniões mais ou menos estáveis. Nunca se chegou ao extremo de equiparar tais uniões ao matrimônio, mas, na ótica jurídica deixaram de ser combatidas para serem aceitas e, até mesmo, produzirem determinados efeitos. Na lição de EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE: [....] Jamais se confundindo com um simples encontro passageiro, o concubinato romano, união de fato, quase sempre duradoura, passou por diversas fazes. Ignorado pelo direito e não produzindo nenhum efeito jurídico (na República), UGUSTO teria reconhecido licitude na união livre prolongada de homem e mulher de categorias sociais diferentes, no início do império. No Baixo Império, sob a influência do 1 LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de Direito de Família – Origem e Evolução do Casamento, v. I, 1ª Edição. Curitiba: Juruá, 1991, p. 77. 14 Cristianismo, hostil as relações extramatrimoniais, incitam-se os concubinos a regularizar sua união.O concubinato passa a ser admitido como uma forma inferior de casamento, que, submetido a certas condições produz efeitos jurídicos. Proibido entre pessoas casadas e parentes próximos, o que traduz o horror do incesto, o concubinato garante direitos sucessórios à concubina e seus filhos, dependendo da presença ou não de filhos legítimos e conforme as épocas. (....) O concubinato era freqüentíssimo entre todos os estratos sociais e, segundo nos informam os estudos sociológicos e históricos sobre a sociedade romana, manifestava-se como uma reação à concepção do casamento, legítimo, não repelida pela moral. “Mesmo quando não eram depravados”, afirma CARCOPINO, “os ricos romanos que temiam a perspectiva de uma existência onde teriam de lutar ou enfrentar dia a dia a vontade de uma mulher legítima, preferiam o leve concubinato às justas núpcias, (concubinato) que AUGUSTO havia transformado em união inferior mas lícita ao qual a opinião (pública) não manifestava o menor desfavor.”2 Durante toda a Idade Média, a influência cada vez maior da Igreja católica no âmbito das relações familiares e a sacramentalização do casamento, aliado à sua reconhecida posição contra quaisquer relacionamentos extramatrimoniais, exerceu grave repressão as uniões concubinárias, jogando-as na vala comum do incesto, do adultério e do homossexualismo, para a todos condenar indistintamente. Não que a Igreja católica fizesse, necessariamente, confusão de conceitos entre estas figuras. O que acontece, até nossos dias, é que ela, em princípio, tem muita dificuldade de tratar sobre a sexualidade humana e suas conseqüências.3 Em Países da América Latina, o concubinato há muito tempo está consagrado, face as circunstâncias sociais e culturais de seus povos, incluíram em suas Constituições e Códigos Civis, através de estatutos próprios, dispositivos que assemelham os efeitos jurídicos do casamento aos da união livre estável. A Lei equatoriana, por exemplo, permite que a união de fato, após 10 anos de duração seja convertida em casamento. Países como Cuba (Constituição 2 Ibidem, p. 78. 3 Na expressão de EDUARDO DE OLIVEIRA: “Na salvação da alma humana, a igreja jamais vacilou em empregar todos os meios para desviar o homem de sua perda: o sexo”. Por isso que em suas origens, até mesmo o casamento (como sacramento) foi considerado como condição inferior à virgindade, à castidade, à continência, virtudes maiores pregadas pelos ascetismo cristão. Precisamente porque o casamento trazia a lume a indesejada questão da satisfação carnal, (e esta por sua vez estava sempre vinculada à noção de pecado) até neste âmbito as práticas sexuais passaram a ter imposições éticas e restrições religiosas. Fora do casamento então, qualquer manifestação da sexualidade humana havia de ser rigorosamente condenada.” In, EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE. Tratado de Direito de Família. “Origem e Evolução do Casamento”, apud CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre à luz das leis 8.971/94 e 9.278/96. 2ª ed. p. 56. 15 de 1976), Guatemala (Constituição de 1957) reconheceram a união de fato após certo tempo de convivência, aplicando-se-lhe as leis ordinárias do casamento. A legislação mexicana (constituição de 1928) concede direito de herança à mulher após cinco anos de união concubinária, não tendo o companheiro herdeiro necessário. Algumas legislações de países da América Latina reconheceram até a presunção de paternidade aos filhos de concubinos e outros admitem a dissolução judicial da sociedade concubinária. 1.3 União estável e o Direito de Família O Direito de Família tem por objetivo fundamental o tratamento e a regulamentação das relações familiares. Para VIRGÍLIO SÁ PEREIRA tal assertiva não é uma definição e sim apenas a constatação de uma evidência. Esta simplicidade, porém, não tem conseguido superar - pelo menos modernamente – a polêmica instaurada sobre a verdadeira dimensão conceitual do Direito de Família, e em que medida nele se compreende o fenômeno sociológico “família”. É pacífico num primeiro momento a explicação da família como um fenômeno social, que surge espontaneamente em função da própria natureza humana, antes mesmo de entrar para o mundo jurídico, com pressões ou interferências do Estado ou da Igreja4. A complexidade e a diversidade das organizações familiares nas diferentes sociedades humanas no transcorrer da história foi motivo de muita celeuma e alta indagação no âmbito da sociologia e da antropologia , porque sempre funcionou como pressuposto de afirmação sociológica em cima do qual, em face do ordenamento, dos costumes e da ética, vigentes em determinado momento histórico, foram erguidos os princípios e os institutos do direito de família. Devido ao quadro de intensas e contínuas mudanças sociais, diante de dados estatísticos divulgados na imprensa a respeito da relevância estatística das uniões livres e a queda no número de casamentos, bem como, o volume notório de demandas levadas ao Poder Judiciário, foi que a Constituição Federal de 88 versando sobre a matéria, deu legitimidade 4 “A família é um fato natural, não a cria o homem, mas a natureza. Fenômeno natural, ela antecede necessariamente ao casamento, que é um fenômeno legal, e também por ser um fenômeno natural é que ela excede à moldura em que o legislador a enquadra. Agora dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o Juiz, com sua lei, ou o padre, com seu sacramento? Que importa isso? O acidente convencional não tem força par apagar o fato natural. E por causa dessa impotência, é que o legislador teve de transigir com ele, de considera-lo, e de prover às conseqüências que dele resultam. Ao lado da família legítima, temos de prestar atenção à ilegítima, que também se diz natural, como se toda família o não fora.” (PEREIRA, Vigílio Sá. Direito de Família, 2 ed. Rui de Janeiro, 1959, p. 89/91. 16 familiar a um modo de vida que por muito tempo recebeu tratamento dispersivo e incerto: as uniões livres, ou uniões concubinárias, a partir das quais se constituem família sem casamento. Surge então a família dita informal. O objetivo fundamental do Direito de Família, mesmo quando trata de distantes relações de parentesco ou de afinidade, continua sendo, como visto, viabilizar e instrumentalizar a função vital do Estado de proteger e amparar as famílias, como estruturas básicas que são na organização da sociedade. Este amparo às famílias na órbita jurídica, se dá por meios de normas protetivas, no sentido de proporcionar algumas garantias econômicas (criar mecanismos para assegurar a assistência entre eles; que facilite a educação dos filhos pelos pais) no âmbito das relações familiares (na limitada extensão que a lei nisso possa intervir). Nas sociedades mais antigas, também, de forma muito mais flagrante do que nas atuais, o incentivo e o apoio às famílias decorriam ainda da necessidade de procriação, para garantir a subsistência da coletividade e a defesa contra agressores. A expressão numérica era de vital importância, notadamente do contingente masculino, donde também uma das explicações históricas para o surgimento das sociedades patriarcais. Por um longo período na história, a organização das sociedades em famílias foi realizada pela implantação e utilização de um instituto aperfeiçoado chamado casamento. Tal instituto surge, primeiro aliado a religião, como sacramento, depois ao Estado, passou a significar uma verdadeira instituição que garantia a existência, o progresso a segurança das relações familiares. Todo o conjunto de direitos e deveres conjugais, os graves efeitospatrimoniais, a certeza do vínculo de parentesco, notadamente a filiação, cristalizavam-se como conteúdo do Direito de Família, a partir do casamento. O conjunto desta legislação que, embora em princípio pressuponha como objeto a família surgida a partir do casamento, não pode mais ser compreendida com tal restrição. Contudo, é equivoco entender-se como norma de Direito de Família somente aquela de direito matrimonial, excluindo-se de antemão aquelas entidades familiares não provenientes do casamento. Em face dessa pluralidade de organismos familiares, na acepção sociológica e ampla do termo, o Direito de família jamais pretendeu referir-se a todos eles; por conseqüência, muito menos os princípios e características próprias desta disciplina são aplicáveis a todo e qualquer tipo de organismo familiar, assim como, por óbvio, tais princípios e características não são rígidos e imutáveis no curso do tempo e da evolução das relações sociais. 17 Mesmo após o advento da Constituição de 88, houve quem defendesse que as uniões estáveis geravam tão-só efeitos previdenciários e obrigacionais, mas não familiares. A tese é insustentável: se as entidades familiares ditas irregulares não estão submetidas às leis que regulam (e, portanto, protegem) a existência das famílias, as ditas famílias informais não podem ser consideradas, a rigor, como organizações familiares. Portanto, desapercebidos estão de que não é a lei que define uma entidade familiar, mas sim a íntima e duradoura vinculação física, afetiva e material entre seus integrantes. Corrente doutrinária perfilhada pela Desembargadora ÁUREA PIMENTEL PEREIRA tece séria crítica aos §§ 3º e 4º do art. 266 da Constituição Federal de 88, lamentando a elevação da união livre estável a um status de matrimônio, ao considerar tal união entidade familiar, mesmo sem a existência de prole, “investindo contra todos os princípios éticos e jurídicos do Direito de Família”. Citando SÁ PEREIRA, afirma a autora que “só será possível falar em família, quer no campo jurídico, quer na ciência, quando se estiver diante de coisas, pessoas ou idéias ligadas pelo parentesco”. Acrescenta ainda, por exemplo, a renomada jurista que: [.....] ao reconhecer a união estável do homem e da mulher (concubinato) como entidade familiar, é tanto mais atentatório aos princípios éticos do Direito de Família, quando é sabido na conceituação dos doutos, (Pontes de Miranda) união estável não constitui, no Direito brasileiro, instituição de direito de família.5 Concluindo, argumenta: “Imperioso é reconhecer-se, portanto, que com a redação dada pelo legislador constituinte aos § 3º do art. 266 da Constituição Federal, a família legítima – que segundo a expressa norma do art. 229 do Código Civil nasce com o casamento -, restou afinal enfraquecida, e o concubinato engrandecido, o que é de se lamentar”. Ainda, numa postura frontalmente contrária às inovações, notadamente em relação ao § 3º do art. 226 da Constituição Federal, diz que a família a família legítima – que segundo a expressa norma do art. 229 do Código Civil nasce com o casamento -, restou afinal enfraquecida, e o concubinato engrandecido, o que é de se lamentar, asseverando: Não se pode alcançar como pode o legislador constituinte reconhecer na simples união, posto que estável do homem e da mulher sem a presença de filhos, - ausente, portanto, qualquer idéia de parentesco, - a existência de uma entidade familiar, e o que é mais grave, declarar que a tal união o Estado deva outorgar a mesma proteção a que está a merecer a família legítima, olvidando que o 5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito de Família, v. I, p. 55. Apud AURÉA PIMENTEL PEREIRA) 18 concubinato, por constituir fato fora da lei, não pode interessar à ordem jurídica.6 Todavia, entendemos injustificáveis os argumentos ao inovador postulado constitucional, posto que, se a união estável não constituía no Direito brasileiro, instituição de Direito de Família, e se a lei não conferia ao concubinato estável os mesmos efeitos do casamento, tais fatos são debitados a uma postura intransigente e conservadora de juristas que de maneira preconceituosa, encarava a união livre até mesmo como ligações pecaminosas, derivado tal preconceito, talvez do fato social de que a maioria dessas uniões conjugais é integrada pelas classes sociais mais desfavorecidas. Ademais, o novo Código Civil – Lei 10.406 de 10-01-2002, suprimiu a expressão “família legítima”, conforme se observa do que dispõe o art. 1.511, nas disposições gerais sobre o casamento, face a vedação constitucional às designações discriminatórias na família (CRFB/88, art. 226 “caput”, §§ 1º, 3º e 4º e art. 227, § 6º) .7 Rainer Czajkowski, a respeito da crise na família, enfatiza que nas últimas décadas houve uma modificação significativa nas relações humanas e padrões de conduta, e que o predomínio do individualismo nas relações familiares e o retorno da afetividade como valor preponderante (ao invés da autoridade), entre outros fenômenos, significaram uma verdadeira revolução no Direito de Família, obrigando a uma reestruturação de valores e conceitos, principalmente do casamento, do qual se tornou comum diagnosticar a crise ou até a sua extinção, e até mesmo diagnosticar uma crise existencial da própria família.8 É neste quadro de intensas e contínuas mudanças sociais que a Constituição de 88, diante do que se pode deduzir das estatísticas (estatísticas específicas e atuais no Brasil não estão disponíveis), divulgadas pela imprensa e o volume notório de demandas levadas ao Poder Judiciário, deu legitimidade familiar a um modo de vida que por muito tempo recebeu tratamento dispersivo e incerto, de acordo com o § 3º, bem como, “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” segundo o § 4º do art. 266. Por certo o constituinte não pretendeu a equiparação do casamento à União estável entre homem e mulher, pois são estados diversos, e o que ficou patente foi o anseio do 6 PEREIRA, Áurea Pimentel. A Nova Constituição e o Direito de Família, 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. P. 31. 7 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p. 102. 8 “Há que se distinguir se a crise é da concepção que se tem da família ou se há mesmo uma periclitação do próprio organismo na estrutura social. Na verdade, a crise é teórica, conceitual. Embora tenha havido tentativas – mediante experiências anômalas e mal-sucedidas de convivência grupal – nem a sociologia, nem a psicologia, e tampouco o Direito acharam até hoje uma estrutura substitutiva eficaz do ente familiar para o ser humano.” CZAJKOSKI, Rainer. União Livre: à luz das leis 8.871/94 e 9.278/96. 2ª ed., Curitiba: Juruá, 1999, p. 39. 19 legislador em ver transformada a situação marginal da União Estável, substituindo-a, através de facilidades administrativas, em matrimônio. Muito antes das construções jurídicas, porém, casos havia em que homem e mulher viviam durante longo período em comum, montando com sacrifício um acervo patrimonial que normalmente figurava em nome do homem, especialmente pela tradição patriarcal dos imigrantes. Estes, que chegavam ao Brasil e iniciavam vida nova, ao desfazerem o liame afetivo com a parceira davam vazão a enormes injustiças, pois seu casamento aqui não tinha validade, nem o regime. O homem, titular nominativo do acervo patrimonial, abandonava a mulher sem qualquer fonte de rendimento para sobreviver, porque legalmente os bens lhe pertenciam e nada devia à parceira. Isso, somados aos casos semelhantes verificados entre brasileiros natos, levou à elaboração da teoria da sociedade de fato. 1.4 A Famíliaem relação ao concubinato ou União Estável É inocultável que o direito de família vive em constante evolução cultural, gerada pelas rápidas transformações dos costumes sociais, surgidas tanto da incorporação da mulher no mercado de trabalho, como pelos resultados colhidos pelo empenho da emancipação feminina para conquista da igualdade jurídica e paridade conjugal. Diante destas mutações sociais, as quais a norma jurídica procura se amoldar, não há como sustentar, na atualidade, um argumento sequer que pudesse demonstrar-se indiferente à figura da família natural no cenário jurídico vigente. Caracterizar uniões livres estáveis como entidades familiares não é revolucionário. Se a Constituição Federal de 1988 o fez, foi para atribuir legalidade a um fenômeno social e humano, consignando em seu texto a única via de direção, aberta, primeiro, pela jurisprudência, e depois, por diversas leis esparsas que passaram a proteger as relações livres; principalmente no Brasil onde por razões econômicas e culturais peculiares, pode-se constatar a existência de um certo informalismo na base da organização familiar. Não há dados oficiais confiáveis sobre as uniões livres no Brasil, mas há indícios suficientes de sua relevância. Curiosamente, os últimos Anuários estatísticos do IBGE, na parte que tratam das famílias e de suas condições, desprezam a distinção entre o juridicamente casado e a convivência em “estado de casado”, o que impossibilita fixar, com precisão, a relevância numérica e social das uniões livres estáveis. 20 De efeito, tendo como novo fundamento o sentimento humano, a família prescindiu do contrato solene denominado “casamento” para a sua constituição, pois deste não nasce, por óbvio, aquela. Nisto reside, na opinião de Ranato Franco de Almeida, a natureza sócio-jurídica da união estável. Diverge do entendimento de autores que entendem que existem vários tipos de família reconhecida pela constituição: uma fulcrada no casamento e a outra a família natural à margem deste contrato. Posiciona-se no sentido de que se trata de uma relação de causa e efeito, porquanto, do casamento, assim como da união estável, surge a família e não diversos tipos de família; porém partindo-se de fatos geradores distintos. A natureza sócio jurídica da união estável, portanto, reside no fato gerador alternativo e natural da família. 9 É visível a aproximação jurídica da união livre com o casamento, embora subsistam diferenças de ordem formal. As leis 8971/94 e 9278/96 que regulamentaram a união estável, seguindo orientação legislativa de países da América Latina, incluíram dispositivos que assemelham os efeitos jurídicos do casamento aos da união estável. Contudo, na prática, casamento e concubinato não se confundem. Mesmo diante de uma legislação própria e autônoma regulando as uniões livres, a aplicação analógica dos princípios do casamento é preponderante. Isto ocorre porque seria um contra censo normatizar de forma diferente relações familiar que, como foi exposto, são intrinsicamente iguais em aspectos afetivos e psicológicos. É a evidência definitiva de que as uniões livres passaram a fazer parte do direito de família. 1.5 Casamento e União Estável – características que os diferenciam O Estado ao regulamentar o casamento o faz por meio de normas de ordem pública, segundo as quais a vontade das partes sucumbe aos interesses públicos envolvidos, tendo por presunção que daí surgirá uma relação de fato, respeito, consideração e assistência, de ordem material e moral, por imposição estatal. Por conseqüência, em razão do disposto no art. 226 § 3º (in fine) não se pode igualar institutos que se distinguem. Tais deveres na união estável existem, não em razão da vontade do Estado, mas por estarem ínsitos na espécie humana o dever geral de solidariedade. 9 União Estável – qual a estabilidade desta união? Renato Franco de Almeida. Promotor de Justiça em Governador Valadares-MG. Disponível em http://www.jus.com.br.doutrina. Acesso em 20 mai. 2003. 21 Tendo-se em mente que tais valores são a base que deverá ser construída uma relação sólida entre homem e mulher, pode-se dizer que o casamento é o ponto de partida, por imposição legal desta construção, pois se presume que os cônjuges lá chegarão. E de outro lado, a união estável é o ponto de chegada para um relacionamento maduro. Logrando alcançar aqueles objetivos é que surge então efeitos jurídicos a união estável. O casamento, no âmbito pessoal (extrapatrimonial) os efeitos produzem-se com o ato formal válido, e dizem respeito, principalmente, à fidelidade, à vida em comum (abrangendo a moradia comum e o débito conjugal), à assistência moral (abrangendo respeito e consideração mútuos) e a guarda e educação dos filhos. Na união livre ocorre de forma diferente: há em princípio, o fenômeno da união, que pode ou não produzir reflexos jurídicos. É a manifestação contínua e recíproca de manter vínculo que surge a convivência, e daí a entidade familiar informal. As uniões livres por si e a priori não podem ser consideradas instituições, porque ela surge sem conteúdo pré-determinado. O casamento, modo formal de constituir família, provoca a priori todos os efeitos jurídicos previstos em lei. A união livre só assume relevância jurídica como família a partir do reconhecimento de seus elementos essenciais, os quais serão estudados no capítulo seguinte. Em outras palavras, é sempre uma constatação a posteriori de uma realidade presente ou já vivida que vai definir se determinada união livre existe, existiu ou não como entidade familiar. Por isso da importância neste aspecto. A natureza jurídica do casamento tem sido alvo de grandes discussões na doutrina. Três correntes se formaram, ou seja, a contratualista, a institucionalista e a corrente mista ou eclética. Para a concepção clássica - contratualista, o casamento não passa de um contrato civil, regido pelas normas comuns de todos os contratos, ultimando-se e aperfeiçoando-se apenas pelo simples consentimento dos nubentes, que deve ser recíproco e manifestado de forma expressa ou através de sinais exteriores que demonstrem a vontade de contrair matrimônio. De outro lado, para os institucionalistas, o matrimônio é um estado em que os nubentes ingressam. O casamento seria, para esta corrente, uma grande instituição social, refletindo uma situação jurídica que surge da vontade dos contraentes, mas que, da imutável vontade da lei, recebe sua forma, suas normas e seus efeitos. As partes são livres para optarem pelo casamento, mas uma vez acertada a realização do matrimônio, não lhes é permitido discutir o conteúdo dos seus direitos e deveres, pois, esses direitos e deveres são automáticos e disciplinados por normas de ordem pública. 22 A corrente mista ou eclética sustenta que o casamento é um contrato na sua formação e uma instituição no seu conteúdo. Esta corrente entende que o casamento é um ato complexo, sendo mais do que um contrato, embora não deixe também de ser um contrato. Segundo o magistério de Washington de Barros Monteiro, Maria Helena Diniz, Orlando Gomes, entre outros, sustentam que o casamento é uma instituição social. Atualmente, o entendimento da doutrina é que, embora sem excluir o interesse público e a imperatividade de certas regras, notadamente no que diz respeito aos efeitos pessoais, a regra geral é a da indisponibilidade, principalmente no que diz respeito aos aspectos essenciais do casamento. Quanto a outros aspectos do conteúdo da relação matrimonial, a tendência das mais recentes reformas de Direito de Família, é de que o casamento guarda de forma preponderante o caráter privado.10 2. UNIÃO ESTÁVEL – ASPECTOS GERAIS 2.1 Conceitos O conceito de uniãoestável não é de fácil determinação, pois varia em face dos elementos que o meio, as condições, o nível educacional social e econômico das pessoas apresenta, além de outros fatores sociais, culturais, econômicos e psicológicos. A falta de compreensão e a indisposição para distinguir as relações oriundas do concubinato honesto tem levado, não raro, a soluções injustas. Ressalta-se que anteriormente a vigência do Novo Código Civil a doutrina de um modo geral utilizou os termos união estável e concubinato como sinônimos. Por isto a utilização do primeiro (concubinato) na conceituação, que na verdade quer se referir à união estável amparada pelo direito. Até a promulgação da Constituição de 1988, todo o tipo de união entre homem e mulher, cuja constituição não fosse consolidada através do matrimônio civil, era considerada relação de concubinato. Nesta esteira, desde aqueles que haviam contraído núpcias através do casamento religioso, até os que conviviam sob o manto do adultério, eram igualmente considerados pela lei civil concubinos. 10 Sobre o caráter institucional CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA refere-se “ao conjunto de normas imperativas cujo objetivo consiste em dar à família uma organização social e moral correspondente às aspirações atuais e as aspirações do homem”. Porém, na esfera do direito privado, referido autor ressalta a natureza contratual do casamento “tendo em vista a indispensável declaração convergente de vontades livremente 23 São vários os conceitos dados, haja vista a amplitude de seu significado. Segundo Washington de Barros Monteiro “O concubinato é a união entre o homem e a mulher, sem casamento. Por outras palavras, é a ausência de matrimônio para o casal que viva como marido e mulher”. No entanto, é no clássico EDGARD DE MOURA BITTENCOURT onde encontramos o conceito mais preciso e jurídico, que considera o concubinato em dois sentidos: um amplo ou lato e o outro estrito. No primeiro configura-se como a “união estável no mesmo ou em teto diferente, do homem com a mulher, que não são ligados entre si pelo matrimônio...” No segundo, “é a convivência more uxório, ou seja, o convívio como se fossem marido e mulher....., a união de fato implicando não somente relações sexuais, mas também prolongada comunhão de vida”.11 A Constituição Federal de 1988 alçou a união livre estável entre homem e a mulher um status de matrimônio, atribuindo igualdade de tratamento entre o casamento e o concubinato, ao estipular nos §§ do art. 226 que: § 3º -Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. § 4º “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Portanto, para fins de proteção do Estado, segundo a norma constitucional, somente o concubinato estável é contemplado. E por ser duradoura e sólida, configura um fato social e jurídico, a família natural, merecedora da tutela jurídica. Por sua vez, o art. 1723 do novo Código Civil complementa: “É reconhecida como entidade familiar à união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência, pública, notória, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Comparando-se ambos os dispositivos extraem-se os seguintes elementos essenciais: a dualidade de sexo, o conteúdo mínimo da relação, a estabilidade e a publicidade. Além desses elementos, podem estar presentes outras características que, em função de sua variabilidade ou sua prescindibilidade, devem ser consideradas secundárias. manifestadas e tendentes à obtenção de finalidades jurídicas”. PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de DireitoCivil, v. V, Direito de Família, 7 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 34 e 35. 24 João Batista Arruda Giordano pondera: A missão de definir a união estável é dos Tribunais e não do legislador. Na investigação do conceito, o julgador deverá valer-se dos seguintes subsídios: elementos indicados pela doutrina pátria, ostensividade ou notoriedade das relações, comunidade de vida, fidelidade e dependência econômica que estarão todos reunidos ou alguns deles; e elementos apontados pelo direito alienígena, como a existência de contrato informal, ou de filhos, ou ainda o decurso de um certo tempo desde o início da união.12. A expressão “união estável” substitui com vantagens o “concubinato” no sentido de afastar a carga histórica negativa que este envolve. Ou seja, é comum ainda a utilização do termo “concubinato”, em razão de sua tradição histórica, ser associado a uma situação de adultério ou de ilícito. A união estável e o concubinato, hoje, pelo estabelecido no novo Código Civil art. 1727, encontram-se apartados. Anteriormente à promulgação da Constituição de 1988, o que na atualidade se conceitua por união estável estava inserida entre as muitas formas nas quais se poderia conviver na situação de concubinato. Significa dizer, que de uma das formas de concubinato existentes, brotou a união estável. No Brasil, a jurisprudência consagrou – em face desta circunstância – uma distinção entre a noção de concubina (o) e companheira (o), com o objetivo de juridicamente, afastar a incidência negativa de artigos do Código Civil, referentes a relações tipicamente adulterinas daquelas uniões estáveis que se formam entre parceiros, quando um deles está separado de fato do antigo cônjuge. A distinção é basicamente a seguinte: concubina é a amante, mantida clandestinamente pelo homem casado, o qual continua freqüentando a família formalmente constituída. Companheira, ao contrário, é a parceira com quem o homem casado entabula uma relação estável, depois de separado de fato da esposa. Esta construção jurisprudencial é o primeiro passo para a alteração do conceito técnico de adulterinidade. Não se deve confundir a concubina com a cortesã, nem mesmo com aquela que se designa ordinariamente por amante, porque quem diz amante diz capricho, paixão, amor de prazer em mais freqüentemente, amor próprio, vaidade. A companheira é a esposa sem título, é a idéia de matrimônio sem a sanção da lei. 11 BITTENCOURT, Edgard de Moura. O Concubinato no Direito, Rio de Janeiro: Jurídica e Universitária, p. 391. 12 ARRUDA, João Batista. União Estável. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS, vol. 45, Porto Alegre, p. 253, 1997. 25 Em sentido lato concubinato é a união mais ou menos duradoura, sob o mesmo teto ou não, do homem com a mulher que não estão ligados entre si por matrimônio. Em sentido estrito, é a convivência more uxório, isto é, sob o mesmo teto, com a aparência de casamento e como se fossem marido e mulher. O que se pôde depreender da pesquisa realizada é que o Novo Código Civil no artigo 1.723 reproduziu quase que completamente o art. 1º da lei 9.278/96, conceituando a união estável assim enunciando: Art. 1.723 É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521, não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente; § 2º As Causas suspensivasdo art.1.523 não impedirão à caracterização da união estável. 2.2 Espécies de Concubinato A classificação do concubinato em espécies encontrada no meio social brasileiro não será tratada de forma exaustiva, pois dada as particularidades de cada caso, não serão incluídas, aqui, formas importantes e, portanto, merecedora de destaque. Este estudo visa buscar antes uma forma didática de agrupar situações semelhantes, sem esquecer que cada uma delas traz circunstâncias específicas que podem exigir reparos quanto à solução dos conflitos oriundos da dissolução da sociedade concubinária. ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO13 apresentou uma classificação que é adotada e referenciada por expressiva parte da doutrina. Conceitua e divide o concubinato em duas modalidades: o concubinato puro, que se vincula ao conceito da união estável preceituado no art. 1º da Lei 9.278/96, isto é, quando se constitui a família de fato (também rotulado como concubinato leal), e o concubinato impuro, que está vinculado aquele cujos parceiros convivam sob o manto do adultério, do incesto ou da deslealdade. O concubinato puro, portanto a união entre um homem e uma mulher, não impossibilitados por lei de casarem-se, revestida de índices de moralidade, permanência e notoriedade, apresenta-se menos complexo para a solução dos conflitos. Nesse passo, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, § 3º, estabelece: “a família, base da sociedade, 13 AZEVEDO, Álvaro Villaça. União Estável: Antiga forma do casamento de fato, P. 8. 26 tem especial proteção do Estado (...) para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a União Estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, enfatizando, portanto, a estabilidade da união. Por seu turno, o concubinato impuro, dada a complexidade das relações enseja estudo mais aprofundado, o aprimoramento dos conceitos e a avaliação das conseqüências de cada forma com a qual se apresenta. O concubinato impuro tem sido descrito pela doutrina em duas formas: a) adulterino b) incestuoso. (Porém a jurisprudência acrescenta a situação dirimente ou impeditiva, que não encerra uma oposição à forma, mas uma situação especial que carece de uma solução de continuidade, diferentemente do que ocorre com o concubinato puro. a) o concubinato será adulterino, quando concorrer com o casamento legal ainda não resolvido por separação judicial ou divórcio, ou quando não estiverem um dos conviventes ou ambos, separado de fato do antigo cônjuge. Também será admitido nesta classificação a possibilidade de ocorrer a existência de um concubinato revestido das condições que lhe assegure os direitos inerentes à União estável, apresentando-se em nível superior a outro ou a outros concubinatos concorrentes. O pluriconcubinato não será motivo de desamparo ao concubinato de boa-fé, porém requer solução de continuidade através dos critérios utilizados para a dissolução do concubinato adulterino. b) o concubinato incestuoso ocorre sempre que o grau de parentesco, entre os companheiros é tão próximo que a lei, apegada a aspectos morais e biológicos, veda-lhes a união. c) denomina-se dirimente ou impeditivo o concubinato resultante da união que se encontre numa das situações dispostas no art. 1.521 do Novo Código Civil ,e seus incisos14, merecendo atenção especial por tratarem-se de situações de impedimento que a partir da resolução da restrição sofrerão as conseqüências mais diversas. Ainda que se revista de honestidade e estabilidade, não é possível, segundo a classificação adotada, considerar esta espécie de concubinato tal como o concubinato puro (hoje, união estável). 14 O art. 1.521, do Código Civil, tratando dos impedimentos para o casamento, dispõe: “não podem casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II – Os afins em linha reta; III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – As pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte; 27 Trata ainda, do concubinato direto, gerado pelo assentimento mútuo e recíproco, tácito ou verbal dos concubinos, de viverem unidos porque hajam pactuado ou não, por escrito, as condições de vida em comum e a possível prestação de alimentos em caso de dissolução; e do concubinato indireto, decorrente da mutação de um casamento ineficaz; um estado civil que por defeitos de forma ou de fundo não produz seus efeitos normais e, por isso, degenera em outro estado diverso, a exemplo da empregada doméstica que se torna companheira, ou empregador, ou ainda, dos sócios que durante a existência da sociedade constituída, formam uma união, transformando-a em sociedade de fato. A modalidade impura pode gerar direitos e obrigações, mas deve estar acompanhada de circunstâncias especiais reconhecidas em Juízo. O casamento religioso, por exemplo, dependendo de suas características ou circunstâncias, poderá ser reconhecido como união estável ou relação impura, pois, embora possa produzir efeitos civis, desde que obedeça às exigências na Lei 6.015/73, nos arts. 71 a 75, estes dispositivos são de pouca utilização, pois é acentuado o grau de desconhecimento acerca dessa faculdade conferida pelo legislador. O simples fato do casamento perante a igreja (seja de qualquer religião), está despido de eficácia civil imediato, servindo no máximo como início de prova da existência da união estável, que será analisada com os demais requisitos exigidos para a sua caracterização. Ademais, famílias oriundas de uniões estáveis nada têm de “ilegítimas”, porque a valoração jurídica a elas reconhecida independe de qualquer regulamentação. A parte final do § 3º do art. 226 da Constituição Federal dispõe que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento. O art. 1726 do Código Civil assim prescreve que: “A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao Juiz e assento no Registro Civil”. Diante disto o verbo “facilitar” reflete uma faculdade, e não uma imposição. Nisto reside a intenção do legislador constituinte em estabelecer diferenças que devem subsistir entre casamento e união estável. Subordinou a conversão ao acordo de vontades dos companheiros nesse sentido. Este é o requisito subjetivo: a concordância de ambas as partes, e não se trata de direito que um deles possa exercer judicialmente contra o outro. O requisito objetivo consiste em que as partes estejam em condições de casarem entre si. Seguindo orientação da doutrina e da jurisprudência o novo Código Civil, no artigo 1.723 § 1º, possibilitou o reconhecimento da união estável entre pessoas separadas de fato. Há ainda hoje certa resistência por parte da doutrina com relação as uniões formadas por pessoas separadas de fato, ao argumento de que o casamento pela lei civil, subsiste até a 28 declaração judicial de sua dissolução e, portanto, trata-se de união adulterina, não merecendo proteção jurídica. Ricardo Fiusa, seguindo este entendimento, enfatiza para a complexidade que a situação poderá causar, principalmente no que pertine a questão patrimonial15. Rainer Czajkowski por outro lado, entende que o fato de um dos companheiros estar separado de fato de seu antigo cônjuge, não é motivo para inviabilizar o início de uma relação estável ou reconhecimento de efeitos a essa relação, mas sim a conversão em casamento. Para o autor, não se pode conceber o entendimento de alguns doutrinadoresde que a relação concubinária entre pessoas consolidamente separadas de fato de antigos cônjuges, ou mesmo aquelas separadas judicialmente, não podem ser reconhecidas como entidade familiar, atribuindo a tais situações a condição de concubinato impuro.16 O impedimento reside, apenas, em tais situações, na impossibilidade de conversão em casamento. O que interessa nessa averiguação, é ter uma visão lúcida e moderna sobre o que seja relação adulterina. Adultério é traição contra a comunhão de vidas; não é atentado contra o estado meramente formal. Não é a condição formal de casado com terceiro, que um dos companheiros ostenta, que inviabiliza a união estável como entidade familiar, é a existência prática e efetiva daquele casamento. O que interessa nessa averiguação, é ter uma visão lúcida e moderna sobre o que seja relação adulterina. Adultério é traição contra a comunhão de vidas; não é atentado contra o estado meramente formal. Analisando, então, o impedimento do inciso VII do art. 1521 do Novo Código Civil, há um obstáculo ético ao casamento do cônjuge sobrevivente, com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o outro consorte. Não se pode facilmente, transportar o impedimento para as uniões estáveis. O início da convivência, neste caso, será moralmente irrelevante, porque ainda não há família. Se a união, mesmo assim, se prolonga por anos a fio, às vezes por décadas, é inviável o Estado negar proteção a uma família existente baseado só naquela antiga objeção moral quando, muitas vezes, sequer algum efeito criminal daquela condenação subsiste. 15 (.....) “Como já nos manifestamos em estudos anteriores, essa disposição do texto atual não se coaduna com o princípio constitucional de proteção à família., já que a convivência de uma pessoa casada com terceira pessoa, que apenas deixe de coabitar com o cônjuge e não regularize seu estado civil, não deve gerar efeitos de união estável, sob pena de haver turbação familiar e patrimonial, sem que se possa concluir qual é a relação que deve gerar efeitos e delimitar qual é o patrimônio pertencente ao cônjuge ou ao convivente.” BRASIL, Novo Código Civil Comentado. Coordenação Ricardo Fiusa, 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002., pág. 1534. 16 SZAJKOWSKI, Rainer, União Livre à Luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Curitibra;Juruá, 1999. P. 26. 29 Assim, o reconhecimento da união estável como entidade familiar terá lugar, sempre, anos após em que a relação perdurar e, então, tais impedimentos, no mais das vezes, terão perdido a significação jurídica que originalmente tinham. 2.3 União Estável natureza jurídica. Com o advento da República e a conseqüente separação entre Estado e Igreja, o casamento passou a ser um ato de natureza civil, deixando de ser um ato meramente religioso. Constatou-se, no entanto, com o passar dos anos, por força da tradição ou por ignorância, que muitos casais realizavam o casamento apenas na Igreja, mediante cerimônia religiosa, sem regularizar o matrimônio no registro civil. E assim passavam grande parte de suas vidas, acreditando-se casadas. Constituíam famílias e as vezes amealhavam significativo patrimônio, que, via de regra, só ficava em nome do varão. O mesmo acontecia, antes do advento da Lei do Divórcio, com casais em que um deles, ou ambos era “desquitado”, face a impossibilidade de casar novamente, iniciava uma nova e duradoura convivência e o patrimônio constituído com o esforço comum ficava só no nome do companheiro. Daí surgia um grande problema: rompida a união, por desentendimento ou pela morte do varão, a mulher ficava em situação extremamente difícil. O patrimônio que tinha ajudado a formar permanecia só com seu ex-companheiro, ou com os herdeiros dele. Herdeiros estes, nem sempre filhos comuns, e nem sempre compreensivos com a companheira sobrevivente. De alguns anos para cá o concubinato vem aumentado consideravelmente, supõe- se que seja para acabar com a burocracia dos papéis. Além do mais, com os problemas econômicos, emancipação da mulher ao se lançar no mercado de trabalho, as mudanças nos costumes, entre outros fatores, vem auxiliando no rompimento da relação com mais facilidade. As pessoas acabam optando por um modo mais simples de união, inclusive por viverem em casas separadas. Mesmo porque, atualmente, a tendência é de que os casamentos não durem por muito tempo, levando as pessoas a escolheres uma forma mais simples de se unirem, evitando os processos contenciosos infindáveis. Assim as antigas doutrinas e jurisprudências, em face da ausência de leis aliada aos ataques da moral vigente, foram o berço da solução de conflitos através do critério sociedade. Com o intuito de evitar ou contornar enriquecimento sem causa, em detrimento da mulher, a jurisprudência, ao longo de décadas, desenvolveu o instituto da sociedade de fato 30 entre concubinos, consagrado na Súmula 380 do STF “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Segundo Washington de Barros Monteiro, o concubinato constitui outrora, instituição legal, um quase-casamento, ao qual faltava o affectio maritalis e a finalidade de constituição de família inerente ao matrimônio, tais como a criação, a educação e o amparo dos filhos. No direito Romano, teve o valor de casamento de segunda classe, pela imperfeita comunhão de vida, bem como pelos efeitos que dele surgiam, acrescenta referido autor.17 A expressão “sociedade de fato”, em si, tem significação mais abrangente do que aquela união de esforços nas uniões concubinárias. Genericamente, “sociedade de fato” ou “irregular” é aquela não constituída juridicamente, mas que, no mundo dos fatos, se amolda ao conceito do art. 1.363 do Código Civil “celebram contrato de sociedade as pessoas, que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns”. Assim, em princípio, sociedade de fato não pressupõe relacionamento prolongado e estável; pode existir entre parceiros antes de se falar em entidade familiar e independentemente dela. Sem família, a sociedade de fato se resolve no âmbito do direito obrigacional. Duas pessoas quaisquer podem constituir sociedade de fato, sem ajustarem entre si uma comunhão de vida estável. Diante disto, o cônjuge adultero pode formar com a amante uma sociedade de fato – independentemente da família legítima – uma vez comprovada a contribuição de ambos os adúlteros na formação de um patrimônio comum. Da mesma forma, pessoas homossexuais entre si. Entretanto, óbvio que o cônjuge adultero e sua (seu) amante nem os homossexuais não formarão uma entidade familiar.18 Por outro lado, quando se está diante de uma união estável, uma entidade familiar, a constatação de uma sociedade de fato é sempre da comunhão de vida afetiva e material a 17 MONTEIRO, Whashington de Barros, Curso de Direito Civil. Direito de Família, 31ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, p. 16. 18 Em sentido favorável existem várias julgados, dentre eles: “Temos precedente, em acórdão com essa ementa: “Sociedade de fato entre concubinos. Homem casado. Dissolução judicial. Admissibilidade. É admissível a pretensão de dissolver a sociedade de fato, embora um dos concubinos seja casado. Tal situação não impede a aplicação do princípio inscrito na Súmula 380/STF. Recurso especial conhecido e provido”. (Rec. Esp. 5.537, DJ. De 09.09.91. A mim me parece que o preceito sumulado não é incompatível com a situação de casado de um dos sócios, em princípio. Em se tratando como nele se trata, da dissolução da sociedade de fato, não vejo, exatamente por se cuidar de sociedade efato, e não de direito, como deixar de reconhecê-la dela participando pessoa casada. Espécie dessa natureza acha-se regida pelo direito das obrigações e não pelo direito de família. Impõe-se, portanto, uma vez reconhecida, dela retirar, se dissolvida, consequências próprias, e uma delas, de acordo com a Súmula 380, é a “partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Quanto a “dupla meação” (....) é de se notar que o direito do outro cônjuge restringe-se ao patrimônio resultante da dissolução. Volto a insistir, na regência pelo direito das obrigações de situações análogas a destes autos. É como se dissolvesse uma sociedade comercial...” BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 6.080. Revista dos Tribunais. Relator: Ministro Nilson Naves. Acórdão de 03.12.91. 31 que os parceiros se propuseram. O reconhecimento de sociedade de fato entre parceiros de união estável, foi importantíssima construção jurisprudencial para evitar o enriquecimento sem causa (juridicamente plausível) oriundo de uma contingência familiar informal. Foi por analogia as sociedades de direito, que se concebeu a sociedade de fato e, por essa via, a possibilidade de divisão do patrimônio adquirido pelo esforço comum, como a partilha de bens. Da mesma maneira a que alude a partilha na dissolução das sociedades mercantis (art. 345, do Código Comercial) ou das sociedades civis ou simples (art. 1.107 do Novo Código Civil), passou-se a cogitar de partilha patrimonial ao final da união estável. A analogia, no entanto, passa a ser complexa. Ao fim das sociedades de direito, partilha existe porque tais entidades têm personalidade própria e, por conseqüência, são titulares de patrimônio (universalidade de bens). Por outro lado, família, ao contrário, quer originada do casamento, quer da união estável, não é pessoa jurídica, não tem personalidade distinta da dos membros que a compõe. No sentido de dar uma solução mais adequada a situação econômica nas uniões estáveis, foi preciso também imaginar uma comunhão de bens em co-titularidade, para que logicamente se justificasse a partilha. Neste sentido, as aludidas partilhas ao final das uniões estáveis assumiram feições e contornos semelhantes à partilha de bens no casamento, porque em ambas se discutiam contingências familiares. Além de outros argumentos, o que mais afasta a sociedade de fato, eventualmente encontrada entre os casais não casados, das demais espécies de sociedades de direito, civis ou comerciais, além do defeito de forma, que exige contrato escrito, são: a ausência da affectio societatis assim considerada a intenção de estabelecer a comunhão de interesses, a satisfação de um interesse comum, e o intuito de lucro, isto é, a participação dos benefícios, resultante da atividade produtora da especulação realizada. Na união estável a intenção dos parceiros é, principalmente, de viveram juntos, como marido e mulher, affectio maritalis, ou seja, a intenção de constituir família. Entendia-se, originariamente, que só o companheiro que prestasse auxílio econômico, que contribuísse com dinheiro para a formação ou o aumento do patrimônio do outro, faria jus à partilha destes bens. Em decisões mais recentes, e de forma mais acertada, passou-se a considerar que também o trabalho, mesmo o doméstico, podia ser contribuição relevante para este acréscimo econômico. Assim, por exemplo, a mulher que trabalhava na empresa ou no comércio do companheiro, ou que cuidava do lar comum, zelando por sua manutenção e pela educação dos filhos advindos da união, podia, conforme as circunstâncias, 32 desempenhar importante papel econômico, possibilitando ao companheiro melhores condições para formar e aumentar o patrimônio. São formas de colaboração indireta. Este alargamento mais ainda se justificava nos casos de concubinatos de pessoas pobres. Quanto menor o poder aquisitivo dos parceiros, mais relevante se tornava a contribuição de ambos na formação de algum patrimônio. Notadamente a mulher, nestas classes economicamente desfavorecidas mesmo sem exercer trabalho remunerado, tinha papel decisivo neste âmbito, a ponto de, já na época, considerar-se presumida a sociedade de fato em tais uniões. Antes do advento das leis ordinárias que instituíram o direito a alimentos entre os companheiros, entendia-se que, não havendo aquisição de patrimônio passível de partilha, possuía a mulher direito de ser indenizada pelos serviços domésticos que prestou ao companheiro, como forma de impedir que o mesmo fosse beneficiado gratuitamente pelo trabalho da companheira. Era, na verdade, uma forma de concessão de alimentos por vias transversas, servindo como alento para a companheira repentinamente abandonada após anos de convivência conjunta. De todo o exposto, é certo dizer que haverá esforço comum sempre que os conviventes empenharem-se material ou moralmente na aquisição e na preservação do patrimônio, tanto direta como indiretamente. Essa dedicação evita-se reconhecer sociedade de fato naquelas uniões em que um dos parceiros só se beneficiava da boa condição financeira do outro; ou também, nas uniões em que a independência econômica de ambos implicava na formação de patrimônios perfeitamente distintos entre si. Percebe-se, portanto, que a prova da existência da sociedade normalmente leva à conclusão de que os parceiros atuaram em regime de colaboração exatamente igual, regra que admite exceção. Com a promulgação da Constituição de 1988, em face do disposto no § 3º do art. 226, houve significativa modificação na maneira em que o ordenamento jurídico enfocava a união estável, elevando-a à categoria de entidade familiar, como já visto. Como no casamento, o Estado, no seu poder imperativo, estabeleceu as normas regulamentadoras quanto aos bens, obrigação alimentar, enfim, direitos patrimoniais e não patrimoniais em geral. Renata Raupp Gomes, acerca da união estável, anota: Afigura-nos como tendência crescente do direito pátrio, a institucionalização da união estável ou da convivência, quer por sua inserção em nível constitucional como entidade familiar, quer pelo próprio status jurídico por esta alcançada, com a promulgação da lei 33 em questão, sendo, conseqüentemente, matéria de ordem pública, tanto quanto o casamento.19 2.4 Caracterização das uniões estáveis A adequada compreensão das Uniões Estáveis como entidades familiares exige o exame atento de suas características. Indispensáveis assim, para esta análise, partir do conceito legal contido na Constituição Federal e no art. 1723 do novo Código Civil. O art. 226 § 3º, da Carta assim dispõe: Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. O art. 1.723 “caput”, por sua vez, complementa: “É reconhecida como entidade familiar a convivência, pública, notória, contínua e duradoura, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família. Da análise de ambos os dispositivos extraem-se os seguintes elementos essenciais para que se caracterize determinada união como união estável: a dualidade de sexos, o conteúdo mínimo da relação, a estabilidade e a publicidade. Além destes, podem estar presentes outras características que, em função de sua variabilidade ou sua prescindibilidade, dever ser consideradas secundárias. Ou seja, para os doutrinadores, os caracteres secundários continuam sendo importantes como elementos de convicção e informação para o julgador, que só a ele caberá aquilatar, dependendo de cada caso concreto.20 No entanto, antes de apreciar cada um dos elementos essenciais, faz-se necessário definir certos pressupostos da existência destas entidades familiares, tendo em mente, quando da sua investigação, determinadas premissas e
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