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.I ~ 176 "'1"', I' ( MONTAIGNE) ( ENSAIOS - 11 ) 177 MoNTA16Ne) ~M,Jc. ~. 3n:~, .~?~: c:&vc;.Q ~ !l~l2.· I (~) /cAPÍTULO V I Da consciência , Achando-nos certa vez em viagem durante as nossas guerras civis, meu irmão, Sr. de Ia Brousse, e eu, encontramos um fidalgo de boa aparência. Era do partido contrário mas eu não o sabia, porquanto simulava ser dos nos- sos. Aí está um dos maiores percalços dessas guerras: as cartas tanto se misturaram que o inimigo não se distingue do amigo de um modo visível, nem pela língua nem pela condu- ta; condicionam-se a idênticos costumes e leis, têm igual aparência, sendo assim difícil evitar a confusão e a desordem. Isso me levava mesmo ao receio de encontrar os nossos exér- citos em um lugar em que eu não fosse conhe- cido, do que resultaria ter dificuldade em pro- var minh a identidade c expor-me assim aos piores vexames, como me aconteceu de uma feita, quando perdi homens e cavalos e um pajem, morto estupidamente, fidalgo italiano que eu vinha educando cuidadosamente e muito prometia. Nosso companheiro de jornada estava tão apavorado, eu o via tão desnorteado cada vez que deparávamos com alguns grupos de cava- leiros ou que atravessávamos cidades do parti- do do rei, que acahei por adivinhar que seus i~ .~ ~ lV ~. :: Ir li' irr,t, II1 ',!, 'I!"! i,'" 'I !: ~t !~~! i~:t ~ <~ ij l'q "I I, iP,1["1,'jj I', \,(I·, "I i,,:'Li. LI Il, I ; f 178 MONTAIGNE temores provinham de urna consciência intr an- qüila. Parecia-lhe que, em sua fisionomia e através das cruzes que trazia ao casaco, se liam seus mais íntimos pensamentos. talo efei- to maravilhoso e irresistível da consciência. Obriga-nos a nos denunciarmos, a combater- mo-nos a nós mesmos e, na ausência de outra testemunha, depõe contra nós: "servindo ela própria de carrasco e fustigando-nos com láte- go invisível'" 6. Eis uma anedota que está sempre n a boca das crianças: um Sr. Besso, da Peônia, a quem censuravam por ter destruido, sem motivo plausível, um ninho de pardais e matado os filhotes, respondeu que não o fizera sem razão, pois as avezinhas não cessavam de acusá-lo erroneamente do assassínio de seu pai, Esse parricida permanecera até então ignorado, mas as fúrias vingadoras da consciência fizeram que fosse denunciado por quem devia arcar com a punição, isto é, por ele mesmo. Diz Pla- tão que o castigo segue de perto o pecado. Hesíodo assim retifica o aforismo: nasce o cas- tigo no momento mesmo em que nasce o peca- . do. Quem quer que receie o castigo já o está I recebendo. E quem o merece o apreende. A , maldade engendra os próprios tormentos: "o. mal recai em quem o .faz " '. Assim a vespa, ao picar, perde o ferrão e com este as suas for- ças, para sempre: "deixa a vida no ferimento que provoca ". 8. As cantáridas trazem em si o contraveneno de seu veneno. É o que também ocorre com quem se compraz no vício; engen- dra um desprazer que lhe atormenta a cons- ciência, na vigília como no sono: "numerosos culpados revelam durante o sono ou o delírio da febre, crimes de há muito escondidos ».9. Apolodoro via em sonhos os citas esfolarem- no, jogarem-no dentro de uma marmita, enquanto sua alma murmurava: sou a causa desses suplícios. O mau, diz Epicuro, não tem onde se esconder, porque não tem certeza de estar escondido, pois que sua consciência o denuncia a si próprio: "o primeiro castigo do culpado está em não poder absolver-se a seus próprios olhos "50. Se a consciência nos inspira temor, dá-nos igualmente segurança e confiança. Posso afir- mar que me conduzi em várias circunstâncias difíceis com muito maior decisão em virtude da convicção íntima em que estava da. pureza de minhas intenções e de minha vontade de não desistir: "Enche-se a alma de esperança ou & 6 Juvenal. • 7 Aulo Gélio. 48 Virgílio. 49 Lucrécio. 5. Juvenal. temor segundo o testemunho que damos de nós a nós mesmm"5'. E há mil exemplos disso. Contentar-me-ei com três. Estava Cipião certa vez sob grave acusação contra ele lançada diante do povo romano. Em vez de se desculpar ou procurar enternecer os juizes, disse-lhes: "Não vos cabe, em verdade, julgar lima acusação capital contra quem vos deu o poder de julgar o mundo inteiro." Outra vez, em lugar de se defender contra as imputa- ções de que era alvo por parte de um tribuna do povo, exclamou: "Cidadãos, como respos- ta, iremos render graças aos deuses pela vitória que me deram contra os cartagineses e cujo aniversário se festeja hoje." Tendo Calão inci- tado Petílio a pedir-lhe que prestasse contas dos dinheiros postos à sua disposição para administrar a província de Antioquia, Cipiâo, no Senado, apresentou seu caderno de notas afirmando que receita e despesas aí se inscre- viam com fidelidade. E como o instassem para que o depositasse no arquivo, recusou obser- vando que não desejava impor a si mesmo semelhante humilhação; e o rasgou em peda- ços. Não penso que alguém com a consciência suja pudesse demonstrar igual 'confiança em si. Cipiâo tinha naturalmente um belo caráter e estava habituado à fortuna, escreve Tito Livio, para se rebaixar à defesa de sua inocência. A.tortura é uma invenção perigosa que pare- ce antes pôr à prova a resistência à dordo que a sinceridade. Quem a não pode suportar esconde a verdade tanto quanto quem a supor- ta; pois por que a dor o levaria a confessar o que é mais do que o que não é? E, inversa- mente, se quem não cometeu o que lhe recrimi- nam é bastante resistente para suportar a tor- tura, por que não o há de ser o culpado que em tal circunstância joga a vida? Penso que o emprego desse processo tem sua origem na ação da consciência; dir-se-ia que no culpado em a enfraquecendo ela colabora com a tortu- ra e o induz à confissão, enquanto fortalece a determinação do inocente, Em verdade, trata- se de um meio cheio de incertezas e perigos, pois que não se há de dizer e fazer a fim de ob- viar a tais suplícios? "A dor obriga o próprio inocente a mentir" 62. Daí ocorre que aquele a quem o juiz inflige a tortura para não se expor a condenar um inocente, na realidade morre inocente e torturado. Mil e muitos acusados sob os efeitos da tortura confessam o que não fizeram. Entre esses incluo Filotas, a julgar pelas circunstâncias do processo que lhe moveu Alexandre e os resultados das torturas a que foi submetido. Como quer que seja e em- e t Ovídio. 52 Públio Siro. ENSAIOS -lI bora se diga que é o que de menos falho encon- trou o homem.em sua fraqueza, para chegar à verdade, considero a tortura um processo ínu- mano e bem pouco útil. Muitos povos, menos bárbaros a esse res- peito do que os gregos e os romanos que assim os chamavam, achavam horrível e cruel tortu- rar alguém cuja culpabilidade não estivesse est abelecida. Que culpa terá ele de nossa igno- rância? Não somos injustos em obrigâ-lo a suportar coisa pior do que a morte, a fim de não matà-lo sem razão? E não se negará que assim seja, pois vemos muitos inocentes prefe- rirem a morte a submeter-se a tal meio de informação mais penoso do que a execução e que pela sua violência não raro acarreta de antemão a morte. Não me lembro onde deparei com este caso; mas ele mostra bem como enca- rar esse processo justiceiro: diante de um gene- ral de exército muito rigoroso, uma camponesa acusava um soldado de ter roubado a seus fi- lhos o pouco de sopa que Ihes restava. Não havia prova. O general depois de advertir a mulher acerca. do alcance do que dizia e de chamar sua atenção para a responsabilidade que assumia, mandou abrir o ventre do solda- do a fim de verificar o fundamento da acusa- ção. E aconteceu que a camponesa tinha razão. Condenação instrutiva 53. ::J 53 Que instruía ao mesmo tempo o processo. (N. doT.) . 179 ~. ~! :J' ir rI !! i- ~; í J .----J 288 ( MONTAIGNE -- \ :fn:~, -,..-- ) ( T7lt..'Il''' .•"'-MoNTA\8N6) ryru;UJ.t· G~ M1J?~; ~ ~ l1'ff2,·I (~) .---.0 ••••. "'1•..•.•..~.•...•~... --- ~Ul ",ua.l lI.I1JI~ •.•••.•1 ••.•• ~ (CAPITULO XVI Da glória Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a palavra que marca e significa a coisa; não faz parte dela, a ela não se incorpora; é um acessó- rio que se acresce, POr fora. Deus, que é, em Si, plenitude e inteira perfei- ção, não pode ampliar-se e crescer por dentro, em essência, mas Seu nome se amplia e engran- dece com QS louvores e bênçãos que damos às Suas obras manifestas. Esses louvores que não O podem penetrar e se tornar parte integrante d'Ele próprio, tanto mais, quanto nada se acrescenta ao que Ele é, nós os atribuímos a Seu nome, o qual, fora d'Ele mesmo, é o que de ',< mais perto O toca. A glória e a honra só a Deus pertencem, portanto nada será mais absurdo do que as reivindicarmos. Somos, essencialmente, tão pobres, tão necessitados, tão imperfeitos, que nossa preocupação cons- tante deve ser a de trabalhar continuadamente, pata melhorarmos. Totalmente vazios, não é de vento e de palavras que devemos encher- nos; precisamos, para fortalecer-nos, de ali- mentos mais substanciais e sólidos. Um homem esfaimado seria um simples de espírito se procurasse obter uma bela roupa em vez de uma boa refeição; cumpre correr sempre ao mais urgente: "Glória a Deus nas alturas ti paz aos homens na terra", como dizemos em nos- sas orações. Temos penúria de beleza, saúde, sabedoria, virtude e outras qualidades essen- ciais; cabe-nos alcançar essas coisas de pri- meira necessidade, antes de obter o que nos adorna exteriormente. Mas são questões essas de que a teologia trata mais aprofundadamente e com maior competência. Crisipo e Diógenes foram os primeiros a desprezar a glória, e com maior resolução. Di- ziam que, entre todas as volúpias, não há mais perigosa, nem de que mais se deva fugir do que a aprovação alheia. Abundam efetivamente os casos em que sua traição causou graves prejuí- zos. Nada envenena tanto os príncipes quanto a lisonja, e nada há que mais imponham os maus aos que os rodeiam. Cumular as mulhe- res de lisonjas, repetir-lhas sem cessar é o meio mais comum de triunfar sobre asua castidade; é o modo de sedução que empregam as sereias para enganar Ulisses: "Vem, Ulisses, vem, tu tão digno de louvores, tu de quem mais se honra a Grécia"'··. Tais filósofos afirmavam que toda a glória do mundo não justifica que um homem sensato levante um dedo para a conquistar: "que é a glória, por grande que seja, se não passa de glória?" J •• Digo con- quistar a glória pela glória, pois não raro ela acarreta vantagens que a podem tornar desejá- vel. Ela nos oferece a boa vontade alheia, e faz que estejamos menos expostos às injúrias e a outras coisas semelhantes. Era também um dos principais dogmas de Epicuro este preceito de sua escola: "esconde tua vida", o qual proíbe que se embarace alguém com cargos e gestões dos negócios pú- blicos. E pressupõe assim que forçosamente desprezemos a glória, a qual consiste na apro- vação da coletividade às nossas ações mais evidentes, Ordenar-nos que escondamos a vida, que nos ocupemos de nós mesmos e não queiramos se intrometam os outros no que fazemos, é querer ainda menos que nos hon- rem e glorifiquem. Por isso Epicuro aconselha' i I \ I i' li I 1 I 3118 Homero. 3 •• Juvenal. li! !i' 290 MONTAIGNE a Idomeneu a não orientar seus atos em aten- ção à opinião comum, a menos que ° seja necessário a fim de evitar outros inconve- nientes por vezes resultantes do desprezo que os homens venham a demonstrar. Essas recomendações são, a meu ver, perfei- tamente certas e razoáveis; mas somos, não sei como, dois seres em um SÓ, o que faz que, em uma mesma coisa, acreditemos e não acredite- mos, não podendo desfazer-nos do que conde- namos. Reportemo-nos, com efeito, às últimas palavras de Epicuro, ao morrer. São grandes e dignas de um filósofo como ele; revelam con- tudo vestígios de sua preocupaç ão com a repu- tação ligada a seu nome e com essa disposição de espírito que censurava em seus preceitos. Eis a carta que ditou pouco antes de exalar o derradeiro suspiro: "Epicuro a Herrnaco, salve! - Escrevi o que segue neste último dia de minha vida, dia feliz embora sofra incrivel- mente da bexiga e dos intestinos; mas meu sofrimento é compensado pelo prazer que traz à minha alma a recordação das idéias que ino- vei e da defesa delas. Tu, toma sob tua prote- ção os filhos de Metrodoro; conto, a esse res- peito, com a afeição que desde a infância tiveste por mim e pela filosofia." Eis a carta. O que me leva a pensar que esse prazer, que diz sentir em sua alma por causa das idéias inovadas, se liga à reputação que esperava adquirir depois de morto, são os dispositivos testamentários pelos quais deter- mina que Aminômaco e Timócrates, seus her- deiros, fornecessem anualmente, no mês de janeiro, para a comemoração de seu aniversá- rio, a soma a ser fixada por Hermaco; bem como a necessária às despesas com a recepção de seus amigos filósofos, os quais se reuniriam no vigésimo dia de cada lua para honrar sua memória e a de Metrodoro. C arnéades foi o chefe da seita de opinião contrária. Afirma que a glória é desejável em si, como natural é a afeição que dedicamos aos filhos a nascerem depois de nossa morte, em- bora não os devamos conhecer. Esta opinião foi naturalmente a mais comumente seguida, como ocorre com aquelas que correspondem às nossas preferências. Aristóteles coloca a glória em primeiro lugar entre os bens que nos vêm de fora de nós mesmos, e considera igual- mente criticâvel buscá-Ia exageradamente ou dela fugir. Creio que se possuíssemos o que Cí- cero escreveu a propósito, veríamos opiniões espantosas, pois ele foi obcecado por essa pai- xão, a ponto de, se ousasse, cair no absurdo em que outros caíram de considerar a própria virtude válida tão-somente, e desejável, na me- dida em que acarreta honrarias. "A virtude escondida não difere muito da obscura ocicsi- dade "! 90. Uma tal maneira de pensar é tão falsa, a meu ver, que não posso acreditar tenha jamais entrado na cabeça de um homem que teve a honra de figurar entre os filósofos. Se assim fosse, não se deveria praticar a virtude senão em público; e não nos adiantaria manter no bom caminho a nossa alma, verdadeira sede da virtude, desde que seus movimentos não chegassem ao conhecimento de outrem. Bastaria então fazer o mal com suficiente habi- lidade para que ficasse ignorado. "Se perce- bes" diz Carnéades "que urna serpente se esconde no lugar em que, sem o saber, vai sen- tar-se alguém cuja morte te beneficia, comete- rás uma má ação em não o avisar, principal- mente se o que fazes só de ti é conhecido." Se não buscamos em nós mesmos a obrigação 'de fazer o bem, se a impunidade é considerada justiça, quantas maldades não seríamos indu- zidos a praticar diariamente! Devolvendo fielmente a Plótio os valores que este lhe confiara sem que ninguém o sou- besse, e agindo como eu mesmo o fiz não raro, Sexto Peduceu cumpriu menos uma ação propriamente meritória do que deixou de mal agir em não o fazendo. É útil lembrar, em nos- sos tempos, que Cícero censurava a Sextílio Rufo por ter aceito uma herança que sua cons- ciência condenava, não porque fosse a coisa contrária à lei, mas apesar de não a contrariar. Não se mostra menos severo com relação a Crasso e Hortênsio que, com sua autoridade e influência, haviam sido incluídos em uma herança, obtida por um estrangeiro mediante testamento falso. Contentando-se ambos com não ter participado da falsificação, não ha- viam recusado os benefícios dela, pois legal- mente se encontravam a coberto contra quais- quer acusações ou testemunhos. "Deviam lembrar-se de que havia o testemunho de Deus, isto é, da própria consciência'?" 9 '. Seria a virtude coisa vã e frívola, se à glória pedisse recompensa; nãovaleria a pena, nesse caso, atribuir-lhe um lugar especial e estabe- lecer uma distinção entre ela e a sorte, pois que haveria de mais fortuito do que a reputação? "A sorte estende seu domínio sobre todas as coisas; eleva uns, abaixa outros, menos em conseqüência do mérito do que segundo o pró- prio capricho" ",2. Cabe à sorte fazer com que nossas ações sejam vistas e conhecidas; a sorte é que distribui a glória, ao sabor de sua fanta- sia. Vi-a por vezes preceder o mérito e de ou- tras feitas ultrapassá-lo. Quem primeiro teve a 3 9 o Horácío, 391 Cícero. 392 Salústio. ENSAIOS -11 idéia de comparar a glória a uma sombra foi mais feliz do que pensava: são duas coisas vãs. A sombra também nos precede por vezes e não raro excede, de muito, o comprimento de nosso corpo. Os que ensinam à nobreza a não buscar a glória senão através da valentia, "como se urna ação só se tornasse virtuosa com a celebridade'têê ê, que lhe inculcam, senão o cuidado de nunca se expor sem ser vista? Que lhe sugerem; senão que arranje testemunhas capazes de contar suas proezas? Senão a evitar de agir sem ser observada, embora não lhe fal- tem oportunidades de bem fazer? Quantas belas ações ocorrem em uma bata- lha! Quem se preocupasse com atentar para os gestos alheios, na confusão, nada produziria e forneceria contra si mesmo os testemunhos que colhesse acerca da conduta de seus companheiros de armas: "Uma alma real- mente grande coloca o bem, principal objetivo de nossa natureza, nas ações virtuosas e não na glória"? 9 4. A glória a que aspiro é a de ter vivido tran- qüilo, não como o entendem Metrodoro, Arce- silau ou Aristipo e sim a meu modo. Em sendo a filosofia incapaz de mostrar o caminho que conduz ao repouso da alma e a todos convêm, que cada qual por seu lado o procure. A que devem César e Alexandre seu imenso renome, senão à sorte? Em torno de quantos homens estabeleceu ela o silêncio, no momento em que principiavam a aparecer? Quantos, cuja existência ignoramos, tiveram coragem idêntica à desses heróis mas se viram desde o início esmagados pelo azar? Não recordo ter lido que, através dos numerosos e grandes perigos que enfrentou, César tivesse sido feri- do; no entanto milhares morreram em circuns- tãncias muito menos perigosas. Por uma bela ação de que se beneficia o autor, inúmeras ou- tras passam despercebidas, porquanto nin- guém houve para testemunhá-Ias. Nem sempre nos achamos na brecha ou à frente do exército, sob os olhos do general, como em um estrado. Podemos ser surpreendidos entre a cerca e o fosso. E, segundo as exigências do momento, obrigados a destruir um galinheiro ou a desa- lojar de uma barracão quatro pobres arcabu- zeiros. Ou ainda, destacados do resto da tropa, ser forçados a agir isoladamente. E não custa verificar que, em verdade, as ações que menos nos colocam em evidência são as que apresen- tam maior perigo. E nas guerras de nossa época perderam-se mais bravos guerreiros em escaramuças de somenos, ou no assalto a algu- ma choupana, do que nas batalhas memorá- 393 Id. 394 Cícero. veis e suscetíveis de tornar famosos os seus participantes. Quem considera mal empregada a morte que não traz celebridade, acaba obscurecendo a vida e deixa fugir-lhe numerosas e justas oportunidades de se aventurar. Ora, tudo o que é justo comporta sempre ilustração suficiente, otestemunho da consciência já constituindo por si' glória bastante: "nossa glória está no testemunho de nossa conscíêncía'?" 5. Quem sôé homem de bem sob à condição de que o saibam, quem só quer fazer o bem para que sua virtude alcance a celebridade, não presta por certo grandes serviços. "Creio que o resto do invêrrio Rolando fez coisas dignas de regis- tro; mas permaneceram tão secretas até agora, que não cabe culpa se não as conto, pois Rolando sempre se mostrou mais disposto a fazer do que a publicar e seus feitos só se divulgaram quando tiveram testemunhas'" 9 6. É preciso ir para a guerra por dever e não espe- rar senão a recompensa que não falta nunca, mesmo para as ações mais discretas, mesmo para os pensamentos virtuosos, e que consiste )1.a satisfação de uma boa consciência. É preci- so servalente .para si mesmo, e pela vantagem de réi- a coragem bem alojada e segura, e firme contra os embates da sorte: "a virtude brilha com luz sem mistura; ela ignora a recusa vergonhosa, não se apropria das rochas consu- lares, nem as abandona ao sabor de um povo volúvel'P " 7. Não é para se exibir que nossa alma deve desempenhar seu papel; é para nós e em nós, onde ninguém a vê senão nós mesmos, onde nos resguarda do temor à morte, da dor e da vergonha, onde nos dá ânimo se perdemos filhos, amigos e bens, e, quando necessário, nos impele a enfrentar os azares da guerra: "não em vista de alguma recompensa mas pela satisfação da virtude"39B. É esse um proveito bem maior, bem mais digno de nossa ambição que a honra e a glória, as quais não passam de uma apreciação favorável a nosso respeito. Para julgar o direito de propriedade de um lote de terra, selecionamos em toda uma nação, uma dúzia de homens; ao passo que para julgar nossas intenções e ações, coisa mais difícil, e importante, reportamo-nos à opinião pública, à apreciação da massa igno- rante, injusta e inconstante. Será razoável entregar ao juizo dos loucos a vida de um sábio? Que haverá de mais insensato do que estimar em conjunto o que se despreza parcela- 39' São Paulo. 3 9 9 Ariosto. 39 7 Horâcio. 398 Cícero. 291 ! ~:, ii ! 11',ti: â: I:,1 Ih I,!t 11:' .1, H II r1 jõ '11 ~i I: .."..-' 292 MONTAIGNE damenteê " "?" Quem procura agradar à multi- dão não o consegue jamais; ela oferece apenas um alvo mal definido e inatingível: "nada é menos honroso do que o julgamento da massa '00". Demêtrío, referindo-se à voz do povo, dizia, zombeteiro, que apreciava tão pouco o ruído que vinha de cima quanto o que lhe saía de baixo. Cícero é mais sarcástico ainda: "digo que uma coisa, embora não o seja, parece vergonhosa se louvada pela multi- dão". Nenhum talento, nenhuma sutileza con- seguem dirigir nossos passos com um guia tão errado e desregrado. Em meio a essa confusão tumultuosa e sem consistência de ruídos, de intrigas, de opiniões vulgares d as multidões que nos cercam, nenhum caminho se abre que possamos trilhar. Não nos proponhamos, pois, um objetivo tão flutuante e indeciso e marche- mos com a razão, Que a aprovação pública nos siga se quiser, e, como depende unica- mente do acaso, não há motivo para esperar- mos que torne este ou aquele rumo. Se eu não seguisse o caminho reto, pela sua retidão, ainda o seguiria por ter verificado, pela expe- riência, que, afinal de contas, é o que de costu- me nos torna mais felizes e nos é mais útil: "É obra valiosa da Providência ter feito com que as coisas honestas sejam igualmente as mais úteis,ol," Durante violenta tempestade um nauta dos tempos antigos assim falava a Netu- no: "6 Deus, tu me salvarás se quiseres, tu me condenarás se preferires, mas eu manterei reta, assim mesmo, a barra do leme." Tenho visto muitas pessoas hábeis, espertas, ambíguas, indubitavelmente mais prudentes do que eu nos negócios deste-mundo, perderem-se em circunstâncias em que me salvei: "ri-me de ver que a esperteza pode malogrnr-se+v"." Paulo Emílio, de partida para sua gloriosa expedição na Macedônía recomendava acima de tudo ao povo de Roma que não desse com a língua nos dentes acerca de suas operações. Quão nociva, com efeito, aos negócios impor- tantes, é a licença com que os julgam, sem con- tar que nem todos têm, em relação aos movi- mentos populares, às injúrias e à oposição, a firmeza de ânimo de Fábio, o qual preferiu ser despojado de sua autoridade a prejudicar o que lhe parecia certo, embora com isso granjeasse reputação e popularidade. Há não sei que doçura natural em.sentir que nos louvam. Mas damos demasiadaimpor- tância a isso: "não odeio o aplauso, porque tenho sensibilidade; mas nunca os 'muito bem, 1u. 3'. '00 '01 •02 Cícero Tito Lívio. Quintiliano. Ovídio . ------------_._-_ ..__ .. bravo' me hão de parecer o objetivo que se deva propor à virtude 403". Preocupo-me bem menos com o que posso' ser aos olhos de ou- trem do que com o que sou a meus próprios olhos; quero ser rico por mim mesmo e não mediante empréstimos. Os estranhos não vêem no que nos concerne senão as aparências exte- riores, mas todos podem mostrar-se satisfeitos por fora e ser devorados in ternamente pela febre e o medo. Nosso coração não se vê, e sim nossa atitude, É justo que condenemos a hipo- crisia na guerra, pois nada é mais fácil a um homem experiente do que se furtar ao perigo e fingir de valente, com um coração de covarde. Há tantos meios de evitar as oportunidades de se expor seriamente, que é possível enganar mil vezes os outros antes de se encontrar em situa- ção de não poder evitar um risco; e ainda que o risco se verifique, ocasionalmente, é possível, uma vez ao menos, fazer das tripas coração e embora com pavor na alma mostrar alguma segurança. Quantos, se possuíssem o anel de Giges, referido por Platâo, que tornava invisí- vel quem o trouxesse ao dedo, virado para a palma da mão, quantos não o utilizariam a fim de se esconder nos momentos em que mais deveriam mostrar-se? E não se arrependeriam de se achar, em vista de sua situação honrosa, na obrigação de assumir atitude resoluta! "Quem pode ser sensível à lisonja e temer a calúnia, senão o desonesto ou o mentiro- so 4 o 4?" Eis por que todos os juizos que assen- tam nas 'aparências exteriores são eminente- mente incertos e duvidosos, e ninguém tem mais fiel testemunha de si do que a própria consciência. Quanto malandro temos por companheiro de glória! E quem fica brava- mente na trincheira fará mais e melhor do que os cinqüenta infantes que, por cinco soldos diários, vão à frente, abrindo passagem e cobrindo-lhe o corpo? "Quando a tumultuosa Roma deprecia alguma coisa, tu não aprovas o julgamento nem tentas reequilibrar os pratos da balança; não procures, portanto, o que és fora de ti mesmo v? s." Achamos que tornar um nome ilustre é colo- câ-Io em bocas numerosas; esforçamo-nos por que seja considerado e que o lustre adquirido nos traga proveito - e é a melhor desculpa que possamos dar de nossa conduta. Mas a doença leva-nos tão longe que muitos tentam fazer com que falem deles de qualquer manei- ra. Trago Pompeu e Tito Lívio diziam de Heróstrato e de Mânlio Capitolino que prefe- riam uma grande a uma boa reputação, O mal é freqüente, Preocupamo-nos mais com que .• OJ Pêrsio. .•o.. Horâcio. 405 Pêrsio. ENSAIOS - 11 falem de nós do que com o modo por que falam. Basta-nos que o nosso nome ande de boca em boca. Dir-se-ia que ser conhecido consiste em outorgar a outrem o cuidado de nossa vida e sua duração. Quanto a mim, considero que sou somente eu "mesmo. Essa outra vida, feita com o que meus amigos sabem de mim, a encará-Ia como é, despojada de qualquer artifício, bem sei que o que dela tiro e o gozo que me dá não passam de vaidade produzida pela imaginação. Quan- do morrer, sentirei ainda menos esse efeito; perderei então, totalmente, o uso das coisas realmente úteis que por vezes devemos à vida. Não poderei mais usufruir de minha reputação nem ela poderá tocar-me, atingir-me. Não posso, efetivamente, confiar em que ela se ligue a meu nome, e antes de mais nada porque não sou o único a usá-Io; sobre os dois que tenho, um é comum a todos os membros de minha família, e de outras. Uma destas existe em Paris e Montpellier a que chamam Montaigne; outra na Bretanh a e Saintange, a qual se inti- tula "de ta Montaigne". Essa interposição de uma sílaba não basta para que nossos feitos e gestos não se confundam a ponto de não poder eu participar de sua glória e não poderem eles. ser respingados pela minha indignidade; e isso embora os meus se tenham chamado outrora Eyquem, sobrenome aplicável igualmente a uma família conhecida na Inglaterra. Quanto a meu outro nome, é prenome que pertence a quem o queira usar e a honra que lhe couber poderá caber também a um carregador. Por outro lado, ainda que me tornasse um persona- gem marcante, que significará a marca? Pode- rá designar algo inexistente e dar-lhe brilho? "Que a posteridade me aplauda, ser-me-à mais leve a pedra que cobrir meus ossos? Meus manes, meu túmulo, minhas cinzas afortuna- das, se cobrirão com isso de violetas 40 6'!" Mas desse assunto já tratei alhures. Numa batalha em que dez mil homens são mortos ou feridos, falar-se-à de uma quinzena apenas. É preciso que a sorte nos gratifique com um feito de armas realmente importante para que se evidencie alguma ação particular, perpetrada já não digo por um arcabuzeiro mas por um capitão; pois, embora matar um homem, dois ou dez, e enfrentar corajosamente a morte sejam de fato alguma coisa para qual- quer um de nós, que tudo jogamos na parada, para o mundo nada têm de extraordinário. Vêem-se tantas coisas semelhantes diaria- mente, e são necessárias tantas para que se obtenha um resultado sensível, que não pode- mos esperar venham a chamar a atenção de 40 G Pêrsio. 293 um modo especial: "São acidentes comuns, ocorridos com muitos outros e que figuram entre os inúmeros azares do destino 40 "." Entre os milhares de valentes soldados que morreram em França, de armas nas mãos, não há cem cuja memória nos tenha alcançado. A recordação, não somente dos chefes mas igual- mente dos próprios exércitos, extinguiu-se. Os acontecimentos marcantes de mais de metade do mundo, por não se haverem registrado, não os conheceu ninguém fora do lugar onde ocor- reram, Caíram no esquecimento. Se possuísse os relatos das ocorrências ignoradas, acharia neles, creio, exemplos de toda espécie mais importantes do que nos fornecem os fatos conhecidos. Temos a prova na história da Grê- cia e de Roma, tão rica de feitos nobres e raros. Embora com fartos testemunhos e tan- tos escritores para os registrar, bem poucos chegaram até nós. "Com dificuldade, um vento brando trouxe-nos a sua fama 408." E dentro de cem anos, talvez nem se lembrem de que em nossa época houve guerras civis em França. Os lacedemônios, ao entrar em guerra, ofere- ciam sacrifícios às musas, a filo de que seus feitos fossem bem e dignamente transmitidos à posteridade, pois consideravam que é por favor divino, raramente concedido, que as belas ações encontram testemunhas que as sai- bam contar e rememorar, Suponhamos que todas as vezes que nos expomos ao fogo dos arcabuzes, ou corremos um risco, um escrivão se encontre no local para registrâ-lo. Que outros cem escrivães o reproduzam, falar-se-à, ainda assim, da coisa durante três dias, se tanto, e ninguém mais dela se ocupará em seguida. Não possuímos a milê- sima parte dos escritos antigos; a sorte é que lhes dá uma vida mais ou menos longa; e os que nos sobram podem ser os piores ou os melhores. Cabe-nos duvidar, porquanto não conhecemos os restantes. Não se faz história com tão pouco; é preciso ter conquistado impérios e ganho cinqüenta batalhas, como Cêsar, Dez mil bons companheiros morreram com ele, corajosamente, "sepultes na glória de um momento+"!". Mesmo a memória daque- les de que vimos pessoalmente a obra, não- dura mais do que dois ou três anos; esquecem- se, depois, e são como se nunca houvessem existido. Quem quer que atente para a glória que alcançaram as pessoas e os feitos cuja recordação se perpetua nos livros, há de con- cluir que, guardadas as proporções, bem pou- cos terão direito a igual destino. Quantos ho- mens virtuosos conhecemos que, sobrevivendo 40' Juvenal ..0. Virgílio ..0. Id. 11. j,~- i~ i~!~; :t, :i: ~. I fi'~.~. 1; ~I ~ ffi i1, ~ !; 1~ ij:I: li il 294 MONTAIGNE I: :l" à sua reputação,tiveram a desgraça de ver, ainda em vida, apagarem-se a honra e a glória, justamente conquistadas em sua mocidade! Nesse ponto, tão importante, propõem os sá- bios um fim mais belo e justo: 'l!:~.Ç9..J.TlI~.I:~?a a uma nobre ação está em a ter realizado; ofruío-do·-servlç-ô· prestadii' ..e··o'··prõprio fruto 41 0". Será possivelmente muito· com: \ preensível que um pintor ou qualquer artista, . , ou um retórico, ou um gramâtico, se esforce li' ;para ganhar renome com sua obra; mas os i :atos que nos inspira a virtude são demasiado ( : nobres em si para que busquemos uma recorn- ; pensa fora deles, principalmente na inanidade : dos juizos humanos. Se, entretanto, essa idéia falsa contribui para manter os homens no caminho do dever, e os predispõe à virtude; se os príncipes são sen- siveis ao fato de se honrar a memória de Traja- no e se execrar a de Nero; se os comove ver o nome deste grande malfeitor, outrora objeto de terror, hoje maldito e insultado livremente por qualquer estudante; deixemo-Ia desenvolver-se à vontade e cuidemos dela com carinho. Platão que atentava para tudo o que pudesse impelir seus concídadãos à virtude, aconse- lha-os, entre outras coisas, a não desprezarem a consideração e a estima do povo, e diz que, por uma espécie de inspiração divina, até os maus sabem distinguir, em seus juízos, o mal do bem. Esse filósofo e Sócrates, seu mestre, entendem-se perfeitamente e não hesitam em fazer intervirem as revelações divinas sempre que a força humana se revela impotente, "a exemplo dos poetas trágicos que recorrem aos deuses quando não sabem encontrar um desen- lace para sua peça 41 "", Eis talvez por que Tímon, invectivando-o, o tachava de grande fabricante de milagres. Se os homens são incapazes de apreciar a moeda verdadeira, usa-se a falsa. Todos os legisladores assim o fizeram; não há legislação em que não se depare com alguma mistura de cerimônias fúteis ou de lendas fantasistas que servem para manter o povo no caminho do dever. É por isso que em sua maioria têm elas origem na fábula e se enriquecem de mistérios sobrenaturais, o que deu crédito a essas reli- giões nascidas do erro e fez que pessoas sensa- tas as aceitassem. É também por isso, para levar mais seguramente os homens a acredi- -.~ :~. il 11 \: 410 Sêneca. 411 Cícero. tarem neles, que Numa e Sertório os alimen- tavam com tolices. E dizia um de sua ninfa Egêria e outro de sua corça branca que Ihes comunicavam as opiniões dos deuses. Essa mesma autoridade que Numa emprestava às suas leis mediante intervenções divinas dava Zoroastro às suas, servindo-se de Oromasdes; e T rismegisto, através de Mercúrio, assim se conduziu com os egípcios. Zâmolxis valeu-se de Vesta junto aos citas; Carondas, de Satur- no, na Calcedônia; Minos, de Júpiter, em Cân- dia; Licurgo, de Apolo, na Lacedemônia; Draco e Sólon, de Minerva, em Atenas. Toda legislação traz um deus à frente. Em todas tra- ta-se de um falso deus; somente emana do ver- dadeiro Deus a que Moisês deu ao povo da Judéia à saída do Egito. A religião dos beduí- nos, diz Joinville, declara, entre outras coisas, que a alma de quem morre por seu príncipe passa para um corpo mais feliz, mais belo, mais forte do que o primeiro, o que os induz a se exporem de bom grado ao perigo: "desafiavam o ferro, abraçavam a morte, I I considerando covardia poupar uma. vida que devia renascer" 2". Eis uma crença salutar, embora falsa. E cada nação possui certo núme- ro de crenças semelhantes. Mas o assunto me- rece comentário especial. Uma palavra ainda. Não aconselho tam- pouco às senhoras denominarem honra o que constitui seu dever, "assim como na linguagem comum só se chama bem ao que parece glo- rioso ao povo" 3". O dever é o fruto, a honra, a casca, e as mulheres se prejudicam a si mes- mas invocando tal desculpa quando se recu- sam a entregar-se, pois sua intenção, seu dese- jo, sua vontade nada têm a ver com a honra, e devem ser mais considerados, no caso, do que o fato em si: "já sucumbiu aquela que recusa porque não lhe é permitido sucumbir" 4". A' ofensa a Deus e à consciência é tão gríMÍdê q!iiiÚlQresülta~.do.desiijo:.~êõ.iíiõ:quaiid~~o- yél1l_.<!º.JaJ9, .S;9lJ~J,lJ11.aQ.o.Adem ais, são fatos que ocorrem em lugares geralmente ocultos, e .'< ser-lhes-ia muito fácil escondê-tos dos outros, _ que outorgam a honra, se .lJiiQ.praticassem a· ·~:~~~e~;i..s!.hb;~~~i~:-~~~!!;~~~~~~·_I conscrencia...'-"~'~"""'" ....• 412 Lucano, ~ 413 Cícero. " 4 Ovídio. ~ fi ------------------------------------------------------------1 lilil'i --r- 310 ( MONTAIGNE) MoNTAI8Ne) ~U,h· G~· 3n: ~. ,&;3:;?~; C&vvJ ~ l1~l?"· I (~) C CAPÍTULO XIX . Da liberdade de consciência .é.f[eqüente vermos as boas intenções, quan- do' mal orientadas, provocarem os piores rêsul" iãdõ~:Nessecoriflito que leva a França à guer-rac'ivil, o melhor partido, o mais justo, é sem dúvida o que tem corno objetivo a manutenção da religião e do governo que existiam antes da perturbação da ordem. No entanto, entre os homens de bem que o seguem (não falo dos que vêem nisso unicamente a oportunidade de realizar suas vinganças pessoais, ou um pre- texto para satisfazer sua avareza, ou ainda para conciliar a boa vontade dos príncipes, e sim dos que são movidos pelo amor à religião e ° desejo respeitável de manter em sua pátria a paz e o estado de coisas existentes), entre esses homens, digo, alguns há cuja paixão im- pele a ultrapassar os limites da razão e a tomar resoluções injustas, violentas e mesmo temerá- rias. É certo que nos primeiros tempos, quando nossa religião principiou a ser admitida pelas leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição de livros pagãos e a excessos que acarretaram mais prejuízos do que os incêndios perpretado s pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácito um exemplo típico do que afirmo, pois embora o imperador, seu parente, houvesse, mediante decretos especiais, espalhado sua obra pelas bibliotecas do mundo inteiro, nem um só exemplar completo escapou à sanha dos que, (ENSAIOS - 11 ) por causa de cinco ou seis trechos contrários a nossas crenças, o destruíram. Naquela época exaltaram-se também exces- sivamente os imperadores favoráveis ao cris- tianismo e condenaram-se de caso pensado todos os atos dos que lhe eram hostis, como se pode ver no que concerne ao Imperador Julia- no, o Apóstata, Este príncipe foi, em verdade, 'um grande homem, excepcional, profunda- mente cioso dos princípios de sua filosofia pelos quais orientava suas atitudes. E por certo não há virtude de que não tenha dado exemplo. Quanto à castidade, nunca deixou de observá- Ia de maneira irrefutável, e conta-se dele um caso semelhante aos atribuídos a Alexandre e a Cipião: quando lhe trouxeram numerosas belas escravas, não quis saber de nenhuma, e no entanto estava então na flor da idade, pois quando foi morto pelos partos tinha apenas trinta e um anos. Quanto à justiça, cuidava de ouvir pessoalmente as partes c, embora por curiosidade indagasse da religião que professa- vam, nunca a inimizade que dedicava à nossa fez pender a balança contra os cristãos. Ele próprio redigiu boas leis e reduziu considera- velmente os impostos e taxas de seus predeces- sores. Dois historiadores foram testemunhas ocu- lares de seus atos. Um deles, Amiano Marceli- no, critica severamente em diversos trechos de sua obra o edito daquele príncipe que proibia a prática do ensino aos retóricos e gramáticas cristãos. E Marcelino acrescenta que tal deter- minação deveria ser estigmatizada. É provável, portanto, que se alguma medida grave tivesse sido tomada contra nós, não teria esquecido de mencioná-Ia esse historiador tão afeiçoado a nosso partido. Na realidade, ele foi duro mas não cruel; e são os nossos que contam dele o fato seguinte: passeando certa vez pelos arra- baldes de Calcedônia, Maris, bispo da cidade, ousouchamá-Ia de "malvado traidor de Cris- to". Juliano contentou-se com responder: "Vai-te, infeliz, chorar a perda de teus olhos." Ao que o bispo atalhou: "Rendo graças a Jesus Cristo por me ter tirado a vista, o que me permite não ver teu rosto impudente." O impe- rador nessa ocasião deu prova de uma paciên- cia bem filosófica, ao que dizem os que rela- tam o caso. O fato é que isso não se acomoda às crueldades que alegam ter ele cometido con- tra nós. Eutrópio, o segundo historiador, afir- ma que ele foi inimigo do cristianismo, mas não sanguinário. Para voltar a seu sentimento de justiça, nada se lhe pode censurar além de seu rigor, no início de seu reinado, contra os que haviam adotado o partido de Constâncio, seu prede- cessor. Quanto à sobriedade, alimentava-se 311 como um soldado, e em plena paz vivia como quem se prepara para a austeridade da guerra. Era a tal ponto previdente, que dividia a noite em três ou quatro partes: dormia um período e empregava os outros em fiscalizar o exército e estudar, pois entre as qualidades que o distin- guiam dos outros sobressaía em todos os gêne- ros literários. Dizem de Alexandre, o Grande, que, receoso de ser dominado pelo sono e impedido assim de meditar, mandava colocar ao lado do Icito uma bacia com água e com uma das mãos, que deixava estendida para fora, segurava uma pequena bola de cobre, de modo que se o sono o vencesse, ao se descer- rarem os dedos, caísse ela na água e o ruído o despertasse. Juliano concentrava-se tanto no que queria e tinha o espírito tão lúcido, por causa de sua abstinência, que não precisava recorrer a tal expediente. No que concerne às qualidades militares, foi admirável em tudo o que é da alçada de um grande chefe; aliás passou quase toda a vida guerreando, em particular contra nós, na Gâlia, e contra os alemães e os francos na Francônia. E não há memória de homem que tenha corrido maiores riscos e se esforçado mais, pessoalmente. Sua morte assemelha-se até certo ponto à de Epaminondas. Como este, foi ferido por um dardo que tentou arrancar das carnes e o hou- vera feito se não cortasse a mão na afiada ares- ta. Nesse estado, contudo, não cessou de pedir que o levassem de volta à batalha, a fim de ani- mar os soldados, os quais, de resto, embora sem sua presença, se bateram obstinadamente pela vitória, tendo a noite separado os dois exércitos. Devia à prática da filosofia seu sin- gular desprezo pela vida e pelas coisas huma- nas, e acreditava firmemente na imortalidade da alma. Foi por certo um desviado em matéria de religião; apelidaram-no Apóstata por haver abandonado o cristianismo. Acho mais prová- vel que nunca tenha sido um verdadeiro crente. Mas precisava dissimular seu pensamento para obedecer às leis, o que fez até subir ao trono. Era tão supersticioso que dele zombavam até seus próprios partidários, observando que, vitorioso dos partos, houvera multiplicado os sacrifícios a ponto de acabar com todos os bois da terra. Tinha absoluta confiança na ciência dos adivinhos e acreditava em toda espécie de prognósticos. Entre outras coisas disse, ao morrer, ser grato aos deuses por o não haverem abatido subitamente, de surpresa, pois o tinham avisado com antecedência da hora e do lugar; e também por não lhe terem infligido uma morte mole ou covarde, como sói reservarem aos ociosos e requintados, ou ~ ,111 I l'~, ~I',: I'r,' ~ 312 MONTAIGNE uma morte lenta e dolorosa. Rendia-lhes gra- ' ças por o terem julgado digno de morrer honrosamente no desenrolar de uma vitória e no fastígio da glória. Por duas vezes tivera uma visão análoga à de Marco Bruto. Uma primeira vez na Gália, pela qual fora advertido de um perigo que o ameaçava; a segunda vez na Pêrsia, pouco antes de sua morte. Quanto às palavras que lhe atribuem ao sentir-se feri- do, "venceste, nazareno", os relatos de meus dois historiadores, que não esqueceram as mais insignificantes minúcias desse fim, não as omitiriam sem dúvida, como não omitiram os milagres porventura ocorridos, por pouco que houvessem acreditado nessas histórias. Mas voltemos ao assunto. Segundo Amiano Marcelino, o Imperador Juliano pensava desde muito, em seu íntimo, restaurar o paganismo. Mas seu exército era inteiramente formado por cristãos, e ele só ousou revelar seu, projeto quando se achou bastante forte para tornar pú- blica sua vontade, Mandou então reabrir os templos dos deuses e tentou por todos os meios restaurar a idolatria. Para consegui-lo, cha- mou a palácio os prelados da Igreja Cristã, divididos como o povo em suas opiniões, e convidou-os a aplacarem suas dissençôes de modo que lodos pudessem, sem obstáculo nem receio, praticar a religião como a entendessem. l~i "1",,· :,1,', i< ,11 'I' ,l"',' . 1.].1i I', I':, " i,li'":J: !:;j: :;,1,,: i,: i: 'I: l /, :" , I ';[tl I ! ,:,'i , . r f '1,' ,1,1" : r I L'~,: : Esforçou-se grandernente por convencê-Ios, na esperança de que uma tal liberdade aumen- tasse o mundo de facções e cabalas, impedindo o povo de se unir contra ele, imperador, com a força que teria auferido de urn entendimento unânime, Verificara, pelas crueldades cometi- das por alguns cristãos, que "não há animal mais feroz no mundo e mais temível para o homem do que o próprio homem". Essa tática do Imperador Juliano é digna de nota, porquanto a fim de atiçar as agitações provocadas pela discórdia, pôs em jogo esse mesmo instrumento da liberdade de cons- ciência de que se valem nossos reis para apazi- .guá-las. O que nos leva a dizer que, se, de um lado, dar inteira liberdade de opinião aos parti- dos redunda em semear e desenvolver dissen- ções, auxiliar a ampliá-Ias destruindo quais- quer barreiras e restrições das leis que as coíbem, por outro lado, !JII'gar as rédeas e per- mitir, a todos os partidos que manifestem suas ~~~i6~s ê ta~bém enfraquecê-los pela fa~ili- dade .e latitude, que.,s!:..Inell outorgam; é embo- tar o dardo que os,estimuíã,êq~e a;arid'ad";;, a noxidade.e ..a,dit1culc.l!lde,afí:üjj; Para llõiirade nossos reis, prefiro acreditar que não tendo conseguido o que desejariam, fingiram desejar oque podiam. ~ i::3 -I !\ "',...
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