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11 montaigne ensaios

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/cAPÍTULO V
I Da consciência
, Achando-nos certa vez em viagem durante
as nossas guerras civis, meu irmão, Sr. de Ia
Brousse, e eu, encontramos um fidalgo de boa
aparência. Era do partido contrário mas eu
não o sabia, porquanto simulava ser dos nos-
sos. Aí está um dos maiores percalços dessas
guerras: as cartas tanto se misturaram que o
inimigo não se distingue do amigo de um
modo visível, nem pela língua nem pela condu-
ta; condicionam-se a idênticos costumes e leis,
têm igual aparência, sendo assim difícil evitar
a confusão e a desordem. Isso me levava
mesmo ao receio de encontrar os nossos exér-
citos em um lugar em que eu não fosse conhe-
cido, do que resultaria ter dificuldade em pro-
var minh a identidade c expor-me assim aos
piores vexames, como me aconteceu de uma
feita, quando perdi homens e cavalos e um
pajem, morto estupidamente, fidalgo italiano
que eu vinha educando cuidadosamente e
muito prometia.
Nosso companheiro de jornada estava tão
apavorado, eu o via tão desnorteado cada vez
que deparávamos com alguns grupos de cava-
leiros ou que atravessávamos cidades do parti-
do do rei, que acahei por adivinhar que seus
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178 MONTAIGNE
temores provinham de urna consciência intr an-
qüila. Parecia-lhe que, em sua fisionomia e
através das cruzes que trazia ao casaco, se
liam seus mais íntimos pensamentos. talo efei-
to maravilhoso e irresistível da consciência.
Obriga-nos a nos denunciarmos, a combater-
mo-nos a nós mesmos e, na ausência de outra
testemunha, depõe contra nós: "servindo ela
própria de carrasco e fustigando-nos com láte-
go invisível'" 6.
Eis uma anedota que está sempre n a boca
das crianças: um Sr. Besso, da Peônia, a quem
censuravam por ter destruido, sem motivo
plausível, um ninho de pardais e matado os
filhotes, respondeu que não o fizera sem razão,
pois as avezinhas não cessavam de acusá-lo
erroneamente do assassínio de seu pai, Esse
parricida permanecera até então ignorado, mas
as fúrias vingadoras da consciência fizeram
que fosse denunciado por quem devia arcar
com a punição, isto é, por ele mesmo. Diz Pla-
tão que o castigo segue de perto o pecado.
Hesíodo assim retifica o aforismo: nasce o cas-
tigo no momento mesmo em que nasce o peca-
. do. Quem quer que receie o castigo já o está
I recebendo. E quem o merece o apreende. A
, maldade engendra os próprios tormentos: "o.
mal recai em quem o .faz " '. Assim a vespa,
ao picar, perde o ferrão e com este as suas for-
ças, para sempre: "deixa a vida no ferimento
que provoca ". 8. As cantáridas trazem em si o
contraveneno de seu veneno. É o que também
ocorre com quem se compraz no vício; engen-
dra um desprazer que lhe atormenta a cons-
ciência, na vigília como no sono: "numerosos
culpados revelam durante o sono ou o delírio
da febre, crimes de há muito escondidos ».9.
Apolodoro via em sonhos os citas esfolarem-
no, jogarem-no dentro de uma marmita,
enquanto sua alma murmurava: sou a causa
desses suplícios. O mau, diz Epicuro, não tem
onde se esconder, porque não tem certeza de
estar escondido, pois que sua consciência o
denuncia a si próprio: "o primeiro castigo do
culpado está em não poder absolver-se a seus
próprios olhos "50.
Se a consciência nos inspira temor, dá-nos
igualmente segurança e confiança. Posso afir-
mar que me conduzi em várias circunstâncias
difíceis com muito maior decisão em virtude
da convicção íntima em que estava da. pureza
de minhas intenções e de minha vontade de
não desistir: "Enche-se a alma de esperança ou
& 6 Juvenal.
• 7 Aulo Gélio.
48 Virgílio.
49 Lucrécio.
5. Juvenal.
temor segundo o testemunho que damos de nós
a nós mesmm"5'. E há mil exemplos disso.
Contentar-me-ei com três.
Estava Cipião certa vez sob grave acusação
contra ele lançada diante do povo romano. Em
vez de se desculpar ou procurar enternecer os
juizes, disse-lhes: "Não vos cabe, em verdade,
julgar lima acusação capital contra quem vos
deu o poder de julgar o mundo inteiro." Outra
vez, em lugar de se defender contra as imputa-
ções de que era alvo por parte de um tribuna
do povo, exclamou: "Cidadãos, como respos-
ta, iremos render graças aos deuses pela vitória
que me deram contra os cartagineses e cujo
aniversário se festeja hoje." Tendo Calão inci-
tado Petílio a pedir-lhe que prestasse contas
dos dinheiros postos à sua disposição para
administrar a província de Antioquia, Cipiâo,
no Senado, apresentou seu caderno de notas
afirmando que receita e despesas aí se inscre-
viam com fidelidade. E como o instassem para
que o depositasse no arquivo, recusou obser-
vando que não desejava impor a si mesmo
semelhante humilhação; e o rasgou em peda-
ços. Não penso que alguém com a consciência
suja pudesse demonstrar igual 'confiança em si.
Cipiâo tinha naturalmente um belo caráter e
estava habituado à fortuna, escreve Tito Livio,
para se rebaixar à defesa de sua inocência.
A.tortura é uma invenção perigosa que pare-
ce antes pôr à prova a resistência à dordo que
a sinceridade. Quem a não pode suportar
esconde a verdade tanto quanto quem a supor-
ta; pois por que a dor o levaria a confessar o
que é mais do que o que não é? E, inversa-
mente, se quem não cometeu o que lhe recrimi-
nam é bastante resistente para suportar a tor-
tura, por que não o há de ser o culpado que em
tal circunstância joga a vida? Penso que o
emprego desse processo tem sua origem na
ação da consciência; dir-se-ia que no culpado
em a enfraquecendo ela colabora com a tortu-
ra e o induz à confissão, enquanto fortalece a
determinação do inocente, Em verdade, trata-
se de um meio cheio de incertezas e perigos,
pois que não se há de dizer e fazer a fim de ob-
viar a tais suplícios? "A dor obriga o próprio
inocente a mentir" 62. Daí ocorre que aquele a
quem o juiz inflige a tortura para não se expor
a condenar um inocente, na realidade morre
inocente e torturado. Mil e muitos acusados
sob os efeitos da tortura confessam o que não
fizeram. Entre esses incluo Filotas, a julgar
pelas circunstâncias do processo que lhe
moveu Alexandre e os resultados das torturas
a que foi submetido. Como quer que seja e em-
e t Ovídio.
52 Públio Siro.
ENSAIOS -lI
bora se diga que é o que de menos falho encon-
trou o homem.em sua fraqueza, para chegar à
verdade, considero a tortura um processo ínu-
mano e bem pouco útil.
Muitos povos, menos bárbaros a esse res-
peito do que os gregos e os romanos que assim
os chamavam, achavam horrível e cruel tortu-
rar alguém cuja culpabilidade não estivesse
est abelecida. Que culpa terá ele de nossa igno-
rância? Não somos injustos em obrigâ-lo a
suportar coisa pior do que a morte, a fim de
não matà-lo sem razão? E não se negará que
assim seja, pois vemos muitos inocentes prefe-
rirem a morte a submeter-se a tal meio de
informação mais penoso do que a execução e
que pela sua violência não raro acarreta de
antemão a morte. Não me lembro onde deparei
com este caso; mas ele mostra bem como enca-
rar esse processo justiceiro: diante de um gene-
ral de exército muito rigoroso, uma camponesa
acusava um soldado de ter roubado a seus fi-
lhos o pouco de sopa que Ihes restava. Não
havia prova. O general depois de advertir a
mulher acerca. do alcance do que dizia e de
chamar sua atenção para a responsabilidade
que assumia, mandou abrir o ventre do solda-
do a fim de verificar o fundamento da acusa-
ção. E aconteceu que a camponesa tinha
razão. Condenação instrutiva 53. ::J
53 Que instruía ao mesmo tempo o processo. (N.
doT.) .
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(CAPITULO XVI
Da glória
Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a
palavra que marca e significa a coisa; não faz
parte dela, a ela não se incorpora; é um acessó-
rio que se acresce, POr fora.
Deus, que é, em Si, plenitude e inteira perfei-
ção, não pode ampliar-se e crescer por dentro,
em essência, mas Seu nome se amplia e engran-
dece com QS louvores e bênçãos que damos às
Suas obras manifestas. Esses louvores que não
O podem penetrar e se tornar parte integrante
d'Ele próprio, tanto mais, quanto nada se
acrescenta ao que Ele é, nós os atribuímos a
Seu nome, o qual, fora d'Ele mesmo, é o que de
',< mais perto O toca. A glória e a honra só a
Deus pertencem, portanto nada será mais
absurdo do que as reivindicarmos. Somos,
essencialmente, tão pobres, tão necessitados,
tão imperfeitos, que nossa preocupação cons-
tante deve ser a de trabalhar continuadamente,
pata melhorarmos. Totalmente vazios, não é
de vento e de palavras que devemos encher-
nos; precisamos, para fortalecer-nos, de ali-
mentos mais substanciais e sólidos. Um
homem esfaimado seria um simples de espírito
se procurasse obter uma bela roupa em vez de
uma boa refeição; cumpre correr sempre ao
mais urgente: "Glória a Deus nas alturas ti paz
aos homens na terra", como dizemos em nos-
sas orações. Temos penúria de beleza, saúde,
sabedoria, virtude e outras qualidades essen-
ciais; cabe-nos alcançar essas coisas de pri-
meira necessidade, antes de obter o que nos
adorna exteriormente. Mas são questões essas
de que a teologia trata mais aprofundadamente
e com maior competência.
Crisipo e Diógenes foram os primeiros a
desprezar a glória, e com maior resolução. Di-
ziam que, entre todas as volúpias, não há mais
perigosa, nem de que mais se deva fugir do que
a aprovação alheia. Abundam efetivamente os
casos em que sua traição causou graves prejuí-
zos. Nada envenena tanto os príncipes quanto
a lisonja, e nada há que mais imponham os
maus aos que os rodeiam. Cumular as mulhe-
res de lisonjas, repetir-lhas sem cessar é o meio
mais comum de triunfar sobre asua castidade;
é o modo de sedução que empregam as sereias
para enganar Ulisses: "Vem, Ulisses, vem, tu
tão digno de louvores, tu de quem mais se
honra a Grécia"'··. Tais filósofos afirmavam
que toda a glória do mundo não justifica que
um homem sensato levante um dedo para a
conquistar: "que é a glória, por grande que
seja, se não passa de glória?" J •• Digo con-
quistar a glória pela glória, pois não raro ela
acarreta vantagens que a podem tornar desejá-
vel. Ela nos oferece a boa vontade alheia, e faz
que estejamos menos expostos às injúrias e a
outras coisas semelhantes.
Era também um dos principais dogmas de
Epicuro este preceito de sua escola: "esconde
tua vida", o qual proíbe que se embarace
alguém com cargos e gestões dos negócios pú-
blicos. E pressupõe assim que forçosamente
desprezemos a glória, a qual consiste na apro-
vação da coletividade às nossas ações mais
evidentes, Ordenar-nos que escondamos a
vida, que nos ocupemos de nós mesmos e não
queiramos se intrometam os outros no que
fazemos, é querer ainda menos que nos hon-
rem e glorifiquem. Por isso Epicuro aconselha'
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3118 Homero.
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290 MONTAIGNE
a Idomeneu a não orientar seus atos em aten-
ção à opinião comum, a menos que ° seja
necessário a fim de evitar outros inconve-
nientes por vezes resultantes do desprezo que
os homens venham a demonstrar.
Essas recomendações são, a meu ver, perfei-
tamente certas e razoáveis; mas somos, não sei
como, dois seres em um SÓ, o que faz que, em
uma mesma coisa, acreditemos e não acredite-
mos, não podendo desfazer-nos do que conde-
namos. Reportemo-nos, com efeito, às últimas
palavras de Epicuro, ao morrer. São grandes e
dignas de um filósofo como ele; revelam con-
tudo vestígios de sua preocupaç ão com a repu-
tação ligada a seu nome e com essa disposição
de espírito que censurava em seus preceitos.
Eis a carta que ditou pouco antes de exalar o
derradeiro suspiro: "Epicuro a Herrnaco,
salve! - Escrevi o que segue neste último dia
de minha vida, dia feliz embora sofra incrivel-
mente da bexiga e dos intestinos; mas meu
sofrimento é compensado pelo prazer que traz
à minha alma a recordação das idéias que ino-
vei e da defesa delas. Tu, toma sob tua prote-
ção os filhos de Metrodoro; conto, a esse res-
peito, com a afeição que desde a infância
tiveste por mim e pela filosofia."
Eis a carta. O que me leva a pensar que esse
prazer, que diz sentir em sua alma por causa
das idéias inovadas, se liga à reputação que
esperava adquirir depois de morto, são os
dispositivos testamentários pelos quais deter-
mina que Aminômaco e Timócrates, seus her-
deiros, fornecessem anualmente, no mês de
janeiro, para a comemoração de seu aniversá-
rio, a soma a ser fixada por Hermaco; bem
como a necessária às despesas com a recepção
de seus amigos filósofos, os quais se reuniriam
no vigésimo dia de cada lua para honrar sua
memória e a de Metrodoro.
C arnéades foi o chefe da seita de opinião
contrária. Afirma que a glória é desejável em
si, como natural é a afeição que dedicamos aos
filhos a nascerem depois de nossa morte, em-
bora não os devamos conhecer. Esta opinião
foi naturalmente a mais comumente seguida,
como ocorre com aquelas que correspondem
às nossas preferências. Aristóteles coloca a
glória em primeiro lugar entre os bens que nos
vêm de fora de nós mesmos, e considera igual-
mente criticâvel buscá-Ia exageradamente ou
dela fugir. Creio que se possuíssemos o que Cí-
cero escreveu a propósito, veríamos opiniões
espantosas, pois ele foi obcecado por essa pai-
xão, a ponto de, se ousasse, cair no absurdo
em que outros caíram de considerar a própria
virtude válida tão-somente, e desejável, na me-
dida em que acarreta honrarias. "A virtude
escondida não difere muito da obscura ocicsi-
dade "! 90. Uma tal maneira de pensar é tão
falsa, a meu ver, que não posso acreditar tenha
jamais entrado na cabeça de um homem que
teve a honra de figurar entre os filósofos. Se
assim fosse, não se deveria praticar a virtude
senão em público; e não nos adiantaria manter
no bom caminho a nossa alma, verdadeira
sede da virtude, desde que seus movimentos
não chegassem ao conhecimento de outrem.
Bastaria então fazer o mal com suficiente habi-
lidade para que ficasse ignorado. "Se perce-
bes" diz Carnéades "que urna serpente se
esconde no lugar em que, sem o saber, vai sen-
tar-se alguém cuja morte te beneficia, comete-
rás uma má ação em não o avisar, principal-
mente se o que fazes só de ti é conhecido." Se
não buscamos em nós mesmos a obrigação 'de
fazer o bem, se a impunidade é considerada
justiça, quantas maldades não seríamos indu-
zidos a praticar diariamente!
Devolvendo fielmente a Plótio os valores
que este lhe confiara sem que ninguém o sou-
besse, e agindo como eu mesmo o fiz não raro,
Sexto Peduceu cumpriu menos uma ação
propriamente meritória do que deixou de mal
agir em não o fazendo. É útil lembrar, em nos-
sos tempos, que Cícero censurava a Sextílio
Rufo por ter aceito uma herança que sua cons-
ciência condenava, não porque fosse a coisa
contrária à lei, mas apesar de não a contrariar.
Não se mostra menos severo com relação a
Crasso e Hortênsio que, com sua autoridade e
influência, haviam sido incluídos em uma
herança, obtida por um estrangeiro mediante
testamento falso. Contentando-se ambos com
não ter participado da falsificação, não ha-
viam recusado os benefícios dela, pois legal-
mente se encontravam a coberto contra quais-
quer acusações ou testemunhos. "Deviam
lembrar-se de que havia o testemunho de Deus,
isto é, da própria consciência'?" 9 '.
Seria a virtude coisa vã e frívola, se à glória
pedisse recompensa; nãovaleria a pena, nesse
caso, atribuir-lhe um lugar especial e estabe-
lecer uma distinção entre ela e a sorte, pois que
haveria de mais fortuito do que a reputação?
"A sorte estende seu domínio sobre todas as
coisas; eleva uns, abaixa outros, menos em
conseqüência do mérito do que segundo o pró-
prio capricho" ",2. Cabe à sorte fazer com que
nossas ações sejam vistas e conhecidas; a sorte
é que distribui a glória, ao sabor de sua fanta-
sia. Vi-a por vezes preceder o mérito e de ou-
tras feitas ultrapassá-lo. Quem primeiro teve a
3 9 o Horácío,
391 Cícero.
392 Salústio.
ENSAIOS -11
idéia de comparar a glória a uma sombra foi
mais feliz do que pensava: são duas coisas vãs.
A sombra também nos precede por vezes e não
raro excede, de muito, o comprimento de nosso
corpo. Os que ensinam à nobreza a não buscar
a glória senão através da valentia, "como se
urna ação só se tornasse virtuosa com a
celebridade'têê ê, que lhe inculcam, senão o
cuidado de nunca se expor sem ser vista? Que
lhe sugerem; senão que arranje testemunhas
capazes de contar suas proezas? Senão a evitar
de agir sem ser observada, embora não lhe fal-
tem oportunidades de bem fazer?
Quantas belas ações ocorrem em uma bata-
lha! Quem se preocupasse com atentar para os
gestos alheios, na confusão, nada produziria e
forneceria contra si mesmo os testemunhos
que colhesse acerca da conduta de seus
companheiros de armas: "Uma alma real-
mente grande coloca o bem, principal objetivo
de nossa natureza, nas ações virtuosas e não
na glória"? 9 4.
A glória a que aspiro é a de ter vivido tran-
qüilo, não como o entendem Metrodoro, Arce-
silau ou Aristipo e sim a meu modo. Em sendo
a filosofia incapaz de mostrar o caminho que
conduz ao repouso da alma e a todos convêm,
que cada qual por seu lado o procure.
A que devem César e Alexandre seu imenso
renome, senão à sorte? Em torno de quantos
homens estabeleceu ela o silêncio, no momento
em que principiavam a aparecer? Quantos,
cuja existência ignoramos, tiveram coragem
idêntica à desses heróis mas se viram desde o
início esmagados pelo azar? Não recordo ter
lido que, através dos numerosos e grandes
perigos que enfrentou, César tivesse sido feri-
do; no entanto milhares morreram em circuns-
tãncias muito menos perigosas. Por uma bela
ação de que se beneficia o autor, inúmeras ou-
tras passam despercebidas, porquanto nin-
guém houve para testemunhá-Ias. Nem sempre
nos achamos na brecha ou à frente do exército,
sob os olhos do general, como em um estrado.
Podemos ser surpreendidos entre a cerca e o
fosso. E, segundo as exigências do momento,
obrigados a destruir um galinheiro ou a desa-
lojar de uma barracão quatro pobres arcabu-
zeiros. Ou ainda, destacados do resto da tropa,
ser forçados a agir isoladamente. E não custa
verificar que, em verdade, as ações que menos
nos colocam em evidência são as que apresen-
tam maior perigo. E nas guerras de nossa
época perderam-se mais bravos guerreiros em
escaramuças de somenos, ou no assalto a algu-
ma choupana, do que nas batalhas memorá-
393 Id.
394 Cícero.
veis e suscetíveis de tornar famosos os seus
participantes.
Quem considera mal empregada a morte
que não traz celebridade, acaba obscurecendo
a vida e deixa fugir-lhe numerosas e justas
oportunidades de se aventurar. Ora, tudo o que
é justo comporta sempre ilustração suficiente,
otestemunho da consciência já constituindo
por si' glória bastante: "nossa glória está no
testemunho de nossa conscíêncía'?" 5. Quem
sôé homem de bem sob à condição de que o
saibam, quem só quer fazer o bem para que
sua virtude alcance a celebridade, não presta
por certo grandes serviços. "Creio que o resto
do invêrrio Rolando fez coisas dignas de regis-
tro; mas permaneceram tão secretas até agora,
que não cabe culpa se não as conto, pois
Rolando sempre se mostrou mais disposto a
fazer do que a publicar e seus feitos só se
divulgaram quando tiveram testemunhas'" 9 6.
É preciso ir para a guerra por dever e não espe-
rar senão a recompensa que não falta nunca,
mesmo para as ações mais discretas, mesmo
para os pensamentos virtuosos, e que consiste
)1.a satisfação de uma boa consciência. É preci-
so servalente .para si mesmo, e pela vantagem
de réi- a coragem bem alojada e segura, e firme
contra os embates da sorte: "a virtude brilha
com luz sem mistura; ela ignora a recusa
vergonhosa, não se apropria das rochas consu-
lares, nem as abandona ao sabor de um povo
volúvel'P " 7.
Não é para se exibir que nossa alma deve
desempenhar seu papel; é para nós e em nós,
onde ninguém a vê senão nós mesmos, onde
nos resguarda do temor à morte, da dor e da
vergonha, onde nos dá ânimo se perdemos
filhos, amigos e bens, e, quando necessário,
nos impele a enfrentar os azares da guerra:
"não em vista de alguma recompensa mas pela
satisfação da virtude"39B. É esse um proveito
bem maior, bem mais digno de nossa ambição
que a honra e a glória, as quais não passam de
uma apreciação favorável a nosso respeito.
Para julgar o direito de propriedade de um
lote de terra, selecionamos em toda uma
nação, uma dúzia de homens; ao passo que
para julgar nossas intenções e ações, coisa
mais difícil, e importante, reportamo-nos à
opinião pública, à apreciação da massa igno-
rante, injusta e inconstante. Será razoável
entregar ao juizo dos loucos a vida de um
sábio? Que haverá de mais insensato do que
estimar em conjunto o que se despreza parcela-
39' São Paulo.
3 9 9 Ariosto.
39 7 Horâcio.
398 Cícero.
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292 MONTAIGNE
damenteê " "?" Quem procura agradar à multi-
dão não o consegue jamais; ela oferece apenas
um alvo mal definido e inatingível: "nada é
menos honroso do que o julgamento da
massa '00". Demêtrío, referindo-se à voz do
povo, dizia, zombeteiro, que apreciava tão
pouco o ruído que vinha de cima quanto o que
lhe saía de baixo. Cícero é mais sarcástico
ainda: "digo que uma coisa, embora não o
seja, parece vergonhosa se louvada pela multi-
dão". Nenhum talento, nenhuma sutileza con-
seguem dirigir nossos passos com um guia tão
errado e desregrado. Em meio a essa confusão
tumultuosa e sem consistência de ruídos, de
intrigas, de opiniões vulgares d as multidões
que nos cercam, nenhum caminho se abre que
possamos trilhar. Não nos proponhamos, pois,
um objetivo tão flutuante e indeciso e marche-
mos com a razão, Que a aprovação pública
nos siga se quiser, e, como depende unica-
mente do acaso, não há motivo para esperar-
mos que torne este ou aquele rumo. Se eu não
seguisse o caminho reto, pela sua retidão,
ainda o seguiria por ter verificado, pela expe-
riência, que, afinal de contas, é o que de costu-
me nos torna mais felizes e nos é mais útil: "É
obra valiosa da Providência ter feito com que
as coisas honestas sejam igualmente as mais
úteis,ol," Durante violenta tempestade um
nauta dos tempos antigos assim falava a Netu-
no: "6 Deus, tu me salvarás se quiseres, tu me
condenarás se preferires, mas eu manterei reta,
assim mesmo, a barra do leme." Tenho visto
muitas pessoas hábeis, espertas, ambíguas,
indubitavelmente mais prudentes do que eu
nos negócios deste-mundo, perderem-se em
circunstâncias em que me salvei: "ri-me de ver
que a esperteza pode malogrnr-se+v"."
Paulo Emílio, de partida para sua gloriosa
expedição na Macedônía recomendava acima
de tudo ao povo de Roma que não desse com a
língua nos dentes acerca de suas operações.
Quão nociva, com efeito, aos negócios impor-
tantes, é a licença com que os julgam, sem con-
tar que nem todos têm, em relação aos movi-
mentos populares, às injúrias e à oposição, a
firmeza de ânimo de Fábio, o qual preferiu ser
despojado de sua autoridade a prejudicar o que
lhe parecia certo, embora com isso granjeasse
reputação e popularidade.
Há não sei que doçura natural em.sentir que
nos louvam. Mas damos demasiadaimpor-
tância a isso: "não odeio o aplauso, porque
tenho sensibilidade; mas nunca os 'muito bem,
1u.
3'.
'00
'01
•02
Cícero
Tito Lívio.
Quintiliano.
Ovídio .
------------_._-_ ..__ ..
bravo' me hão de parecer o objetivo que se
deva propor à virtude 403". Preocupo-me bem
menos com o que posso' ser aos olhos de ou-
trem do que com o que sou a meus próprios
olhos; quero ser rico por mim mesmo e não
mediante empréstimos. Os estranhos não vêem
no que nos concerne senão as aparências exte-
riores, mas todos podem mostrar-se satisfeitos
por fora e ser devorados in ternamente pela
febre e o medo. Nosso coração não se vê, e sim
nossa atitude, É justo que condenemos a hipo-
crisia na guerra, pois nada é mais fácil a um
homem experiente do que se furtar ao perigo e
fingir de valente, com um coração de covarde.
Há tantos meios de evitar as oportunidades de
se expor seriamente, que é possível enganar mil
vezes os outros antes de se encontrar em situa-
ção de não poder evitar um risco; e ainda que
o risco se verifique, ocasionalmente, é possível,
uma vez ao menos, fazer das tripas coração e
embora com pavor na alma mostrar alguma
segurança. Quantos, se possuíssem o anel de
Giges, referido por Platâo, que tornava invisí-
vel quem o trouxesse ao dedo, virado para a
palma da mão, quantos não o utilizariam a fim
de se esconder nos momentos em que mais
deveriam mostrar-se? E não se arrependeriam
de se achar, em vista de sua situação honrosa,
na obrigação de assumir atitude resoluta!
"Quem pode ser sensível à lisonja e temer a
calúnia, senão o desonesto ou o mentiro-
so 4 o 4?" Eis por que todos os juizos que assen-
tam nas 'aparências exteriores são eminente-
mente incertos e duvidosos, e ninguém tem
mais fiel testemunha de si do que a própria
consciência. Quanto malandro temos por
companheiro de glória! E quem fica brava-
mente na trincheira fará mais e melhor do que
os cinqüenta infantes que, por cinco soldos
diários, vão à frente, abrindo passagem e
cobrindo-lhe o corpo? "Quando a tumultuosa
Roma deprecia alguma coisa, tu não aprovas o
julgamento nem tentas reequilibrar os pratos
da balança; não procures, portanto, o que és
fora de ti mesmo v? s."
Achamos que tornar um nome ilustre é colo-
câ-Io em bocas numerosas; esforçamo-nos por
que seja considerado e que o lustre adquirido
nos traga proveito - e é a melhor desculpa
que possamos dar de nossa conduta. Mas a
doença leva-nos tão longe que muitos tentam
fazer com que falem deles de qualquer manei-
ra. Trago Pompeu e Tito Lívio diziam de
Heróstrato e de Mânlio Capitolino que prefe-
riam uma grande a uma boa reputação, O mal
é freqüente, Preocupamo-nos mais com que
.• OJ Pêrsio.
.•o.. Horâcio.
405 Pêrsio.
ENSAIOS - 11
falem de nós do que com o modo por que
falam. Basta-nos que o nosso nome ande de
boca em boca. Dir-se-ia que ser conhecido
consiste em outorgar a outrem o cuidado de
nossa vida e sua duração.
Quanto a mim, considero que sou somente
eu "mesmo. Essa outra vida, feita com o que
meus amigos sabem de mim, a encará-Ia como
é, despojada de qualquer artifício, bem sei que
o que dela tiro e o gozo que me dá não passam
de vaidade produzida pela imaginação. Quan-
do morrer, sentirei ainda menos esse efeito;
perderei então, totalmente, o uso das coisas
realmente úteis que por vezes devemos à vida.
Não poderei mais usufruir de minha reputação
nem ela poderá tocar-me, atingir-me. Não
posso, efetivamente, confiar em que ela se ligue
a meu nome, e antes de mais nada porque não
sou o único a usá-Io; sobre os dois que tenho,
um é comum a todos os membros de minha
família, e de outras. Uma destas existe em
Paris e Montpellier a que chamam Montaigne;
outra na Bretanh a e Saintange, a qual se inti-
tula "de ta Montaigne". Essa interposição de
uma sílaba não basta para que nossos feitos e
gestos não se confundam a ponto de não poder
eu participar de sua glória e não poderem eles.
ser respingados pela minha indignidade; e isso
embora os meus se tenham chamado outrora
Eyquem, sobrenome aplicável igualmente a
uma família conhecida na Inglaterra. Quanto a
meu outro nome, é prenome que pertence a
quem o queira usar e a honra que lhe couber
poderá caber também a um carregador. Por
outro lado, ainda que me tornasse um persona-
gem marcante, que significará a marca? Pode-
rá designar algo inexistente e dar-lhe brilho?
"Que a posteridade me aplauda, ser-me-à mais
leve a pedra que cobrir meus ossos? Meus
manes, meu túmulo, minhas cinzas afortuna-
das, se cobrirão com isso de violetas 40 6'!"
Mas desse assunto já tratei alhures.
Numa batalha em que dez mil homens são
mortos ou feridos, falar-se-à de uma quinzena
apenas. É preciso que a sorte nos gratifique
com um feito de armas realmente importante
para que se evidencie alguma ação particular,
perpetrada já não digo por um arcabuzeiro
mas por um capitão; pois, embora matar um
homem, dois ou dez, e enfrentar corajosamente
a morte sejam de fato alguma coisa para qual-
quer um de nós, que tudo jogamos na parada,
para o mundo nada têm de extraordinário.
Vêem-se tantas coisas semelhantes diaria-
mente, e são necessárias tantas para que se
obtenha um resultado sensível, que não pode-
mos esperar venham a chamar a atenção de
40 G Pêrsio.
293
um modo especial: "São acidentes comuns,
ocorridos com muitos outros e que figuram
entre os inúmeros azares do destino 40 "."
Entre os milhares de valentes soldados que
morreram em França, de armas nas mãos, não
há cem cuja memória nos tenha alcançado. A
recordação, não somente dos chefes mas igual-
mente dos próprios exércitos, extinguiu-se. Os
acontecimentos marcantes de mais de metade
do mundo, por não se haverem registrado, não
os conheceu ninguém fora do lugar onde ocor-
reram, Caíram no esquecimento. Se possuísse
os relatos das ocorrências ignoradas, acharia
neles, creio, exemplos de toda espécie mais
importantes do que nos fornecem os fatos
conhecidos. Temos a prova na história da Grê-
cia e de Roma, tão rica de feitos nobres e
raros. Embora com fartos testemunhos e tan-
tos escritores para os registrar, bem poucos
chegaram até nós. "Com dificuldade, um vento
brando trouxe-nos a sua fama 408." E dentro
de cem anos, talvez nem se lembrem de que em
nossa época houve guerras civis em França.
Os lacedemônios, ao entrar em guerra, ofere-
ciam sacrifícios às musas, a filo de que seus
feitos fossem bem e dignamente transmitidos à
posteridade, pois consideravam que é por
favor divino, raramente concedido, que as
belas ações encontram testemunhas que as sai-
bam contar e rememorar,
Suponhamos que todas as vezes que nos
expomos ao fogo dos arcabuzes, ou corremos
um risco, um escrivão se encontre no local
para registrâ-lo. Que outros cem escrivães o
reproduzam, falar-se-à, ainda assim, da coisa
durante três dias, se tanto, e ninguém mais dela
se ocupará em seguida. Não possuímos a milê-
sima parte dos escritos antigos; a sorte é que
lhes dá uma vida mais ou menos longa; e os
que nos sobram podem ser os piores ou os
melhores. Cabe-nos duvidar, porquanto não
conhecemos os restantes. Não se faz história
com tão pouco; é preciso ter conquistado
impérios e ganho cinqüenta batalhas, como
Cêsar, Dez mil bons companheiros morreram
com ele, corajosamente, "sepultes na glória de
um momento+"!". Mesmo a memória daque-
les de que vimos pessoalmente a obra, não-
dura mais do que dois ou três anos; esquecem-
se, depois, e são como se nunca houvessem
existido. Quem quer que atente para a glória
que alcançaram as pessoas e os feitos cuja
recordação se perpetua nos livros, há de con-
cluir que, guardadas as proporções, bem pou-
cos terão direito a igual destino. Quantos ho-
mens virtuosos conhecemos que, sobrevivendo
40' Juvenal ..0. Virgílio ..0. Id.
11.
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294 MONTAIGNE
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à sua reputação,tiveram a desgraça de ver,
ainda em vida, apagarem-se a honra e a glória,
justamente conquistadas em sua mocidade!
Nesse ponto, tão importante, propõem os sá-
bios um fim mais belo e justo: 'l!:~.Ç9..J.TlI~.I:~?a
a uma nobre ação está em a ter realizado; ofruío-do·-servlç-ô· prestadii' ..e··o'··prõprio
fruto 41 0". Será possivelmente muito· com:
\ preensível que um pintor ou qualquer artista,
. , ou um retórico, ou um gramâtico, se esforce
li' ;para ganhar renome com sua obra; mas os
i :atos que nos inspira a virtude são demasiado
( : nobres em si para que busquemos uma recorn-
; pensa fora deles, principalmente na inanidade
: dos juizos humanos.
Se, entretanto, essa idéia falsa contribui
para manter os homens no caminho do dever, e
os predispõe à virtude; se os príncipes são sen-
siveis ao fato de se honrar a memória de Traja-
no e se execrar a de Nero; se os comove ver o
nome deste grande malfeitor, outrora objeto de
terror, hoje maldito e insultado livremente por
qualquer estudante; deixemo-Ia desenvolver-se
à vontade e cuidemos dela com carinho.
Platão que atentava para tudo o que pudesse
impelir seus concídadãos à virtude, aconse-
lha-os, entre outras coisas, a não desprezarem
a consideração e a estima do povo, e diz que,
por uma espécie de inspiração divina, até os
maus sabem distinguir, em seus juízos, o mal
do bem. Esse filósofo e Sócrates, seu mestre,
entendem-se perfeitamente e não hesitam em
fazer intervirem as revelações divinas sempre
que a força humana se revela impotente, "a
exemplo dos poetas trágicos que recorrem aos
deuses quando não sabem encontrar um desen-
lace para sua peça 41 "", Eis talvez por que
Tímon, invectivando-o, o tachava de grande
fabricante de milagres.
Se os homens são incapazes de apreciar a
moeda verdadeira, usa-se a falsa. Todos os
legisladores assim o fizeram; não há legislação
em que não se depare com alguma mistura de
cerimônias fúteis ou de lendas fantasistas que
servem para manter o povo no caminho do
dever. É por isso que em sua maioria têm elas
origem na fábula e se enriquecem de mistérios
sobrenaturais, o que deu crédito a essas reli-
giões nascidas do erro e fez que pessoas sensa-
tas as aceitassem. É também por isso, para
levar mais seguramente os homens a acredi-
-.~
:~.
il
11
\:
410 Sêneca.
411 Cícero.
tarem neles, que Numa e Sertório os alimen-
tavam com tolices. E dizia um de sua ninfa
Egêria e outro de sua corça branca que Ihes
comunicavam as opiniões dos deuses. Essa
mesma autoridade que Numa emprestava às
suas leis mediante intervenções divinas dava
Zoroastro às suas, servindo-se de Oromasdes;
e T rismegisto, através de Mercúrio, assim se
conduziu com os egípcios. Zâmolxis valeu-se
de Vesta junto aos citas; Carondas, de Satur-
no, na Calcedônia; Minos, de Júpiter, em Cân-
dia; Licurgo, de Apolo, na Lacedemônia;
Draco e Sólon, de Minerva, em Atenas. Toda
legislação traz um deus à frente. Em todas tra-
ta-se de um falso deus; somente emana do ver-
dadeiro Deus a que Moisês deu ao povo da
Judéia à saída do Egito. A religião dos beduí-
nos, diz Joinville, declara, entre outras coisas,
que a alma de quem morre por seu príncipe
passa para um corpo mais feliz, mais belo,
mais forte do que o primeiro, o que os induz a
se exporem de bom grado ao perigo:
"desafiavam o ferro, abraçavam a morte,
I I
considerando covardia poupar uma. vida que
devia renascer" 2". Eis uma crença salutar,
embora falsa. E cada nação possui certo núme-
ro de crenças semelhantes. Mas o assunto me-
rece comentário especial.
Uma palavra ainda. Não aconselho tam-
pouco às senhoras denominarem honra o que
constitui seu dever, "assim como na linguagem
comum só se chama bem ao que parece glo-
rioso ao povo" 3". O dever é o fruto, a honra,
a casca, e as mulheres se prejudicam a si mes-
mas invocando tal desculpa quando se recu-
sam a entregar-se, pois sua intenção, seu dese-
jo, sua vontade nada têm a ver com a honra, e
devem ser mais considerados, no caso, do que
o fato em si: "já sucumbiu aquela que recusa
porque não lhe é permitido sucumbir" 4". A'
ofensa a Deus e à consciência é tão gríMÍdê
q!iiiÚlQresülta~.do.desiijo:.~êõ.iíiõ:quaiid~~o-
yél1l_.<!º.JaJ9, .S;9lJ~J,lJ11.aQ.o.Adem ais, são fatos
que ocorrem em lugares geralmente ocultos, e .'<
ser-lhes-ia muito fácil escondê-tos dos outros, _
que outorgam a honra, se .lJiiQ.praticassem a·
·~:~~~e~;i..s!.hb;~~~i~:-~~~!!;~~~~~~·_I
conscrencia...'-"~'~"""'" ....•
412 Lucano, ~
413 Cícero.
" 4 Ovídio.
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------------------------------------------------------------1
lilil'i --r-
310 ( MONTAIGNE)
MoNTAI8Ne) ~U,h· G~· 3n: ~.
,&;3:;?~; C&vvJ ~ l1~l?"·
I
(~)
C CAPÍTULO XIX
. Da liberdade de consciência
.é.f[eqüente vermos as boas intenções, quan-
do' mal orientadas, provocarem os piores rêsul"
iãdõ~:Nessecoriflito que leva a França à guer-rac'ivil, o melhor partido, o mais justo, é sem
dúvida o que tem corno objetivo a manutenção
da religião e do governo que existiam antes da
perturbação da ordem. No entanto, entre os
homens de bem que o seguem (não falo dos
que vêem nisso unicamente a oportunidade de
realizar suas vinganças pessoais, ou um pre-
texto para satisfazer sua avareza, ou ainda
para conciliar a boa vontade dos príncipes, e
sim dos que são movidos pelo amor à religião
e ° desejo respeitável de manter em sua pátria
a paz e o estado de coisas existentes), entre
esses homens, digo, alguns há cuja paixão im-
pele a ultrapassar os limites da razão e a tomar
resoluções injustas, violentas e mesmo temerá-
rias.
É certo que nos primeiros tempos, quando
nossa religião principiou a ser admitida pelas
leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição
de livros pagãos e a excessos que acarretaram
mais prejuízos do que os incêndios perpretado s
pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácito um
exemplo típico do que afirmo, pois embora o
imperador, seu parente, houvesse, mediante
decretos especiais, espalhado sua obra pelas
bibliotecas do mundo inteiro, nem um só
exemplar completo escapou à sanha dos que,
(ENSAIOS - 11 )
por causa de cinco ou seis trechos contrários a
nossas crenças, o destruíram.
Naquela época exaltaram-se também exces-
sivamente os imperadores favoráveis ao cris-
tianismo e condenaram-se de caso pensado
todos os atos dos que lhe eram hostis, como se
pode ver no que concerne ao Imperador Julia-
no, o Apóstata, Este príncipe foi, em verdade,
'um grande homem, excepcional, profunda-
mente cioso dos princípios de sua filosofia
pelos quais orientava suas atitudes. E por certo
não há virtude de que não tenha dado exemplo.
Quanto à castidade, nunca deixou de observá-
Ia de maneira irrefutável, e conta-se dele um
caso semelhante aos atribuídos a Alexandre e
a Cipião: quando lhe trouxeram numerosas
belas escravas, não quis saber de nenhuma, e
no entanto estava então na flor da idade, pois
quando foi morto pelos partos tinha apenas
trinta e um anos. Quanto à justiça, cuidava de
ouvir pessoalmente as partes c, embora por
curiosidade indagasse da religião que professa-
vam, nunca a inimizade que dedicava à nossa
fez pender a balança contra os cristãos. Ele
próprio redigiu boas leis e reduziu considera-
velmente os impostos e taxas de seus predeces-
sores.
Dois historiadores foram testemunhas ocu-
lares de seus atos. Um deles, Amiano Marceli-
no, critica severamente em diversos trechos de
sua obra o edito daquele príncipe que proibia a
prática do ensino aos retóricos e gramáticas
cristãos. E Marcelino acrescenta que tal deter-
minação deveria ser estigmatizada. É provável,
portanto, que se alguma medida grave tivesse
sido tomada contra nós, não teria esquecido de
mencioná-Ia esse historiador tão afeiçoado a
nosso partido. Na realidade, ele foi duro mas
não cruel; e são os nossos que contam dele o
fato seguinte: passeando certa vez pelos arra-
baldes de Calcedônia, Maris, bispo da cidade,
ousouchamá-Ia de "malvado traidor de Cris-
to". Juliano contentou-se com responder:
"Vai-te, infeliz, chorar a perda de teus olhos."
Ao que o bispo atalhou: "Rendo graças a
Jesus Cristo por me ter tirado a vista, o que me
permite não ver teu rosto impudente." O impe-
rador nessa ocasião deu prova de uma paciên-
cia bem filosófica, ao que dizem os que rela-
tam o caso. O fato é que isso não se acomoda
às crueldades que alegam ter ele cometido con-
tra nós. Eutrópio, o segundo historiador, afir-
ma que ele foi inimigo do cristianismo, mas
não sanguinário.
Para voltar a seu sentimento de justiça,
nada se lhe pode censurar além de seu rigor, no
início de seu reinado, contra os que haviam
adotado o partido de Constâncio, seu prede-
cessor. Quanto à sobriedade, alimentava-se
311
como um soldado, e em plena paz vivia como
quem se prepara para a austeridade da guerra.
Era a tal ponto previdente, que dividia a noite
em três ou quatro partes: dormia um período e
empregava os outros em fiscalizar o exército e
estudar, pois entre as qualidades que o distin-
guiam dos outros sobressaía em todos os gêne-
ros literários. Dizem de Alexandre, o Grande,
que, receoso de ser dominado pelo sono e
impedido assim de meditar, mandava colocar
ao lado do Icito uma bacia com água e com
uma das mãos, que deixava estendida para
fora, segurava uma pequena bola de cobre, de
modo que se o sono o vencesse, ao se descer-
rarem os dedos, caísse ela na água e o ruído o
despertasse. Juliano concentrava-se tanto no
que queria e tinha o espírito tão lúcido, por
causa de sua abstinência, que não precisava
recorrer a tal expediente.
No que concerne às qualidades militares, foi
admirável em tudo o que é da alçada de um
grande chefe; aliás passou quase toda a vida
guerreando, em particular contra nós, na
Gâlia, e contra os alemães e os francos na
Francônia. E não há memória de homem que
tenha corrido maiores riscos e se esforçado
mais, pessoalmente.
Sua morte assemelha-se até certo ponto à de
Epaminondas. Como este, foi ferido por um
dardo que tentou arrancar das carnes e o hou-
vera feito se não cortasse a mão na afiada ares-
ta. Nesse estado, contudo, não cessou de pedir
que o levassem de volta à batalha, a fim de ani-
mar os soldados, os quais, de resto, embora
sem sua presença, se bateram obstinadamente
pela vitória, tendo a noite separado os dois
exércitos. Devia à prática da filosofia seu sin-
gular desprezo pela vida e pelas coisas huma-
nas, e acreditava firmemente na imortalidade
da alma.
Foi por certo um desviado em matéria de
religião; apelidaram-no Apóstata por haver
abandonado o cristianismo. Acho mais prová-
vel que nunca tenha sido um verdadeiro crente.
Mas precisava dissimular seu pensamento para
obedecer às leis, o que fez até subir ao trono.
Era tão supersticioso que dele zombavam até
seus próprios partidários, observando que,
vitorioso dos partos, houvera multiplicado os
sacrifícios a ponto de acabar com todos os
bois da terra. Tinha absoluta confiança na
ciência dos adivinhos e acreditava em toda
espécie de prognósticos. Entre outras coisas
disse, ao morrer, ser grato aos deuses por o
não haverem abatido subitamente, de surpresa,
pois o tinham avisado com antecedência da
hora e do lugar; e também por não lhe terem
infligido uma morte mole ou covarde, como
sói reservarem aos ociosos e requintados, ou
~
,111
I
l'~,
~I',: I'r,' ~
312 MONTAIGNE
uma morte lenta e dolorosa. Rendia-lhes gra- '
ças por o terem julgado digno de morrer
honrosamente no desenrolar de uma vitória e
no fastígio da glória. Por duas vezes tivera
uma visão análoga à de Marco Bruto. Uma
primeira vez na Gália, pela qual fora advertido
de um perigo que o ameaçava; a segunda vez
na Pêrsia, pouco antes de sua morte. Quanto
às palavras que lhe atribuem ao sentir-se feri-
do, "venceste, nazareno", os relatos de meus
dois historiadores, que não esqueceram as
mais insignificantes minúcias desse fim, não as
omitiriam sem dúvida, como não omitiram os
milagres porventura ocorridos, por pouco que
houvessem acreditado nessas histórias.
Mas voltemos ao assunto. Segundo Amiano
Marcelino, o Imperador Juliano pensava desde
muito, em seu íntimo, restaurar o paganismo.
Mas seu exército era inteiramente formado por
cristãos, e ele só ousou revelar seu, projeto
quando se achou bastante forte para tornar pú-
blica sua vontade, Mandou então reabrir os
templos dos deuses e tentou por todos os meios
restaurar a idolatria. Para consegui-lo, cha-
mou a palácio os prelados da Igreja Cristã,
divididos como o povo em suas opiniões, e
convidou-os a aplacarem suas dissençôes de
modo que lodos pudessem, sem obstáculo nem
receio, praticar a religião como a entendessem.
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Esforçou-se grandernente por convencê-Ios, na
esperança de que uma tal liberdade aumen-
tasse o mundo de facções e cabalas, impedindo
o povo de se unir contra ele, imperador, com a
força que teria auferido de urn entendimento
unânime, Verificara, pelas crueldades cometi-
das por alguns cristãos, que "não há animal
mais feroz no mundo e mais temível para o
homem do que o próprio homem".
Essa tática do Imperador Juliano é digna de
nota, porquanto a fim de atiçar as agitações
provocadas pela discórdia, pôs em jogo esse
mesmo instrumento da liberdade de cons-
ciência de que se valem nossos reis para apazi-
.guá-las. O que nos leva a dizer que, se, de um
lado, dar inteira liberdade de opinião aos parti-
dos redunda em semear e desenvolver dissen-
ções, auxiliar a ampliá-Ias destruindo quais-
quer barreiras e restrições das leis que as
coíbem, por outro lado, !JII'gar as rédeas e per-
mitir, a todos os partidos que manifestem suas
~~~i6~s ê ta~bém enfraquecê-los pela fa~ili-
dade .e latitude, que.,s!:..Inell outorgam; é embo-
tar o dardo que os,estimuíã,êq~e a;arid'ad";;, a
noxidade.e ..a,dit1culc.l!lde,afí:üjj; Para llõiirade
nossos reis, prefiro acreditar que não tendo
conseguido o que desejariam, fingiram desejar
oque podiam.
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