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90 MELANIE: ALGUMAS ORMAÇÕES INTRODUTÓRIAS Sobre a vida de Melanie Klein, temos atualmente duas fon- tes importantes nas quais o leitor interessado em sua extraordinária trajetória pode obter maiores e muito detalhadas informações. Aqui, daremos apenas alguns breves indicativos para, em seguida, poder situar minimamente a presença pública e profissional de Melanie Klein no contexto de sua vida. Na verdade, no caso dessa autora, a relação entre vida e obra é mais do que pitoresca, tem algo de es- sencial; mas, sobre isso, como se disse acima, há boas fontes disponíveis. Uma delas é a sua biografia, até o momento conside- rada "definitiva", escrita por Phyllis Grosskurth - Melanie Klein, her World and her Work - e publicada em 1986;' a outra é um misto de biografia e apresentação crítica da obra e de suas conexões com o freudismo, escrita pela psicanalista Julia Kristeva e publicada em 2000, um dos índices do crescente nteresse dos franceses sobre esía vertente do pensamento psicanalítico. 2 São duas mulheres es- crevendo com precisão, empenho e originalidade sobre a mulher e a autora que foi Melanie Klein. E interessante sabermos, por exem- ple, que o livro de Kristeva faz parte ce uma trilogia concebida para 1. Ph. Grosskurth. Melanie Klein, her Wtrld and her Work. London: The Harvard University Press, 1986. 2. I . Kristeva. Le génie féminin. Tome II. Aelanie Klein. Paris: Fayard. 2000. 3 0 M E L A N I I E K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO tratar do "génie féminvn\u seja, de uma peculiar qualidade femi- nina na produção e na criação intelectual, trilogia na quaD os outros dois volumes são dedicados à filósofa Hannah Arendt e à escritora Colette. Realmente, sua condição de mulher - até hoje é o nome feminino mais importante na história da psicanálise - marcou Me- lanie K l e i n para o bem e para o mal. E l a teve e tem, é claro, inúmeros grandes seguidores entre os homens, mas, como se verá, o grupo original de adeptos foi predominantemente feminino; tam- bém a grande polémica em que se viu envolvida na década de 1940 contava com a participação decisiva de muitas mulheres, tanto suas partidárias (Suzan Isaacs, Paula Heimann, Joan Rivière), como suas oponentes. Entre estas, por sinal, sobressaíram Anna Freud, filha de Sigmund, e Melitta Schmideberg, filha da própria Melanie. Mu- lheres à beira de um ataque de nervos? Melanie poderia ter sido, como milhares ou milhões de outras de sua época e situação social, uma pobre mulher judia condenada pela sua condição de filha, esposa e mãe a uma vida de profunda infelicidade, submissão, humilhação, ressentimento e fracasso. E , de fato, sua existência parecia transcorrer assim, e assim fadada a permanecer, até os seus trinta e tantos anos. A ps icanál i se , literalmente, salvou-a da depressão, da inveja, da raiva e da mediocridade, salvou-a do casamento desastrado. Essa é, aliás, uma diferença marcante entre Freud e muitos dos psicanalistas que vieram depois dele, no que concerne às suas relações com a psicanálise: Freud, apesar da importância da auto-análise como fonte de suas descobertas, parece nunca ter sido "salvo" pela psicanálise, como muitos dos outros que se aproximaram dela principalmente para tratar-se e enfrentar seus sofrimentos. Essa l igação pessoal com a psicanál ise foi muito forte no caso de Melanie: a psicanálise salvou-a como paciente deprimida, ajudou-a como mãe (pois seus filhos "pré-analíticos", ao que tudo indica, passaram maus bocados^ e abriu para ela um campo impre/isto de realizações profissionais c intelectuais que até então lhe fora vedado, e que ela almejava ardertemente. Ela não teve da psicanálise uma experiência meramente iitelectual, profissional e "de superíície"; o seu envolvimento viscera ("inspirada tripeira") com as ideia; e com o processo analítico dá c tom a toda a sua obra e, tambérr, à sua M E L A N I E . A L G U M A S INFORJMAÇÔES INTRODUTÓRIAS 31 participação polémica e combati v/a no movimento psicanalítico internacional. Melanie nasceu Reizes, nome de família de seu pai, vindo a se tomar Klein após um infeliz e mal-sucedido casamento com Arthur Klein. E la veio ao mundo em Vien;a, no dia 30 de março de 1882, em uma família de origem hebraica bastante humilde e de poucas condições financeiras, embora dotada de um certo nível cultural, sendo a quarta e última filha do casal Moriz (médico e dentista) e Libussa (dona de casa e proprietária de um pequeno comércio). A irmã mais velha, Emilie, era a preferida do pai; a terceira, Sidonie, a predileta da mãe; e Emanuel, o segundo, era o "geninho" da família, vindo a ser o preferido da irmã caçula Melanie. Dois de seus i rmãos , aos quais era especialmente ligada, morreram precocemente: sua irmã Sidonie, aos sete anos, quando Melanie contava apenas quatro; e seu querido irmão Emanuel, quando ela chegava aos vinte. Os temas das perdas e da melancolia insinuaram- se bem cedo em sua existência, e marcaram profundamente seu pensamento teórico, como veremos mais adiante. Melanie parece ter sofrido tremendamente com as mortes de seus i rmãos, mas um pouco menos com a morte de seu pai, ocorrida quando ela tinha 18 anos. A morte de Emanuel, em particular, afetou-a bastante, e logo em seguida, aos 21 anos, casou-se ela com um dos amigos do irmão, o engenheiro químico Arthur Kle in , de quem estava noiva desde os 17. Ao lado de Emanuel, ou por seu intermédio, Melanie entrara em contato com o inundo cultural, artístico e filosófico de Viena, e desde os 14 anos acalentara o sonho de uma carreira profissional como médica. Tudo isso foi bloqueado com o casamento precipitado e o nascimento dos três filhos: Melitta em 1904, Hans em 1907 (os dois filhos "pré- analíticos" que Melanie Klein teve com pouco mais de 20 anos e muito mal preparada para a maternicade) e, finalmente, Erich em 1914, quando o casamento j á ia de mal a pior, mas Melanie começava a abrir novos horizontes. Na verdade, logo após o casanento, o casal Klein deixara Viena e começara a residir, em funçãc das necessidades de trabalho do marido, em diversas pequenas (idades do Império Austro- Húigaro , até chegar a Budapeste, em 1910. Durante todo esse 3 2 M E I L A N I E K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO temfDo, Melanie sofre e deprime-se. revolla-se e entra em profundos episc5dios de desespero e desânimo, que em muito prejjudicavam sua capacidade de cuid;ar dos filhos mais velhos, Melitta e Hans. Passa, por exemplo, várias temporadas longe da família, em repouso, deixando para a mãe Libussa o cuidado com as crianças. 0 ano de 1914 é de graves consequências. No âmbito mundial, estoura a Primeira Grande Guerra, que, entre outras coisas, afasta Arthur Klein da convivência com a família. No plano privado, morre Libussa, a mãe de Melanie, muito amada e muito invejada, extremamente idealizada - e, provavelmente, odiada no plano inconsciente - pela sua força, fosse na sua capacidade de apoio e orientação (quando, por exemplo, tomava conta dos netos durante os afastamentos de Melanie por razões de saúde), fosse também na sua tendência à intrusão na vida das filhas, tanto solteiras quanto casadas. Por fim, em 1914, já com 32 anos, dá-se o encontro de Melanie com a psicanálise: ela lê um texto de Freud sobre os sonhos e, ao que parece, começa sua aná l i se com Ferenczi , com a finalidade de livrar-se de sua grave depressão. 3 Logo em seguida, à medida que o filho caçula Erich, a quem sempre esteve muito ligada, começava a apresentar alguns sinais de inibição intelectual e bloqueios de curiosidade, ela dá início, com o beneplácito de seu analista, a uma intervenção domés t i ca guiada pelas teorias psicanalíticas. Erich é o filho que vem ao mundo no mesmo ano em que nasce a psicanálise na vida de Melanie. Em 1918, Melanie participou do 5U CongressoInternacional de Psicanálise, sediado em Budapeste, e ouviu Freud lenço um texto sobre os avanços da terapia psicanalítica. Já no ano seguinte, ela escreveu e apresentoi seu primeiro texto, baseado no "tratamento" de Erich, cuja identidade, aliás, não é exposta. É aí, então, que Melanie ingressa como membro da Sociedade de Budapeste. O texto foi publicado no ano íeguinte, ao mesmo tempo em que prosseguia sua participação em congressos. Em 1 921, Melane mudou-se para Berlim, já sem a companhia do marido (que partiia para um trabalho na Suécia) e sem levar 3. Em algumas fontes, o nício da análise com Ferenczi é datado le 1913. M E L A N I E . A L G U M A S INFO>RMAÇÔES INTRODUTÓRIAS 3 3 consigo também, inicialmente, os dois filhos maiores, Melitta e Hans. O casamento com Arthur ainda passará por uma pequena tentativa de reconciliação, mas terminará definitivamente em 1924, advindo o divórcio em 1927. A ida para a Alemanha é a primeira mudança realizada por iniciativa própria e de acordo comi os interesses de Melanie, pois a cidade já disputava com Viena a condição de grande centro de difusão da psicanálise e formação de psicanalistas. Karl Abraham é o mentor desses desenvolvimentos; é por isso, e atrás disso, que ela se desloca. Vai de início acompanhada apenas do filho Erich. Na Alemanha, em 1922 - com 40 anos, portanto - , Melanie ingressou como membro-associado da Sociedade Psicanalítica de Berlim, o que, a rigor, marcava sua entrada oficial e mais legítima no grande mundo da psicanálise mundial. Em 1924, começou uma segunda análise, com Abraham, e leu seu primeiro trabalho em um Congresso Internacional, além de apresentar outro texto sobre psicanálise de crianças para os colegas de Viena - trabalho para o qual os Freuds já torcem o nariz... No plano pessoal, além da confirmação de sua separação, a* quarentona Melanie Klein aproveita para "pôr as manguinhas de fora". E um período em que se veste de forma atraente e mesmo extravagante (abusa dos decotes, por exemplo, e dos chapéus escandalosos), entra em uma escola de dança de salão, frequenta bailes e inicia um romance - que nunca pôde ser plenamente realizado - com um homem casadc e dez anos mais moço que ela. Em 1925, foi convidada a dar algumas palestras em Londres, o que será o prenúncio do passo irais decisivo de sua trajetória - c ida definitiva para a Inglaterra, em 1926. Essa mudança tanto respondia aos convites dos analistas ingleses - muito impressionados pelo pensamento ousado e pela singularidade da jovem senhora Klein — como. certamente, foi movida pelo estado ce orfandade em que Melanie ficou após a morte de Karl Abraham, ro final do ano anterior. Sem seu analista e protetor, ela ficava exposta às críticas de membros mas conservadores da Sociedade local e de Viena às suas ideias atrevilas no atendimento de crianças. Ela era acusada de violentar a inocêicia das crianças e perturbar as relações destas com seus pais, terra a que retornaremos adjante. 34 M E L A N I E K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO D e s s a maneira, o convite dos ingleses veio a calhair, e na hora ce r t a . No ano seguiinte, ingressou como membro da Sociedade Britânica. A partir daí, sua ascensão no cenário inglês foi fiulminante e, de início, sem maiores empecilhos. No entanto, no âmbito familiar, o início da década de 1930 lhe trouxe dois grandes dissabores. Em primeiro lugar, o filho Hans morre em 1934, ao escalar uma montanha. Esse filho "pré-analítico" lhe dera muitas preocupações, e fora até mesmo, ao que parece, também submetido a uma análise pe la mãe , quando j á adolescente; tendia à depressão e lhe suspeitavam algumas tendências homossexuais. Melanie claramente sentia-se em falta com o rapaz. Sua morte acidental poderia, eventualmente, ser interpretada como suic ídio , embora não houvesse evidência nesse sentido. A mãe ficou paralisada pela no t íc ia , e sequer quis comparecer ao enterro. Contudo, na elaboração dessa perda, Melanie Klein escreveu o seu primeiro texto realmente ousado e inovador, "Uma contribuição para a psicogênese dos estados maníaco-depressivos", em que o tema da perda e da melancolia, um velho conhecido seu, ingressava no campo de sua teorização psicanalítica. De outro lado, após um reencontro feliz com Melitta - que, já casada com um outro psicanalista supervisando de Freud, Walter Schmideberg, viera morar em Londres em 1928, e em 1933 ingressara na Sociedade Britânica - , as relações da filha (que se formara em medicina, velho sonho materno) com a mãe começaram a azedar. Melitta tornou-se, nos anos segu.ntes, uma das mais agressivas opositoras de Melanie Klein , exibindo um comportamento que chamava a atenção pelo destempero c pela falta de pudor. Melanie Klein nunca revidou publicamente ess^s ataques escandalosos, que a visavam como psicanalista e, mais anda, como mãe. Melitta, mais tarce, foi viver nos E U A e nunca se reconciliou coma mã e . Foram, enfim, dois filhos perdidos para essa psicanalista que se notabilizava pelo trabalho com criançis - e, em especial, crianças pequenas - , mas que, conforme se pod; deduzir, foi muito pouco adequada com seus próprios filhos peqjenos, ao menos no que concerre aos filhos anteriores ao enconto com a psicanálise. A ligação <om Erich, o terceiro filho, e depôs com os M E L A N I E . A L G U M A S INFORMAÇÕES INTRODUTÓRIAS 35 dois netos que ele lhe deu, em coimpensação, sempre foi mantida em muito bom estado. De qualquer forma, os anos imiciais em Londres foram de uma certa lua-de-mel com a comunidade analítica local. Mais tarde, como veremos adiante, Melanie rmeteu-se em grandes confusões e esteve a ponto de ser excluída.. No entanto, recuperou-se e consolidou seu grupo de adeptos, vindo a gozar, no final da década de 1940 e durante os anos de 1950, de uma posição estável e prestigiada no seio da Sociedade Britânica, que abrira para ela e seus seguidores uma espécie de nicho muito sólido e bem protegido. Ao longo dos anos, sua situação financeira melhorou continuamente, e ela pôde residir em condições cada vez mais confortáveis, e mesmo luxuosas. Melanie Klein veio a morrer em 1960, aos 78 anos de idade, com sua fama consolidada na Sociedade Britânica e em algumas das sociedades mais jovens da América do Sul, como as da Argentina e do Brasil. O reconhecimento nos E U A e na França demorou mais um pouco, e em vida ela nunca esteve no topo da Associação Psicanalítica Internacional.
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