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DOUTRINA AGOSTINIANA DA GRAÇA NA REDENÇÃO DO PECADOR – CONTRAPONTOS DO PLURALISMO RELIGIOSO
RESUMO
O artigo que se segue propõe analisar a doutrina agostiniana da graça à luz da revelação bíblica. O pensamento agostiniano procura ressaltar que o homem natural encontra-se completamente inabilitado para operar a sua salvação. A sua natureza foi corrompida pelo pecado e somente a graça pode reabilitá-lo. Agostinho é enfático em dizer que a iniciativa é de Deus. Ele é quem chama. O chamado de Deus é eficaz. A sua graça é irresistível. Em se tratando do assunto em pauta tanto os apóstolos como também os pais da Igreja contribuíram muito para que a doutrina da graça fosse anunciada por quase todo mundo de então. Agostinho, entretanto, merece especial destaque como mentor formidável e, com certeza, um apóstolo e teólogo da graça redentora de Deus. A Doutrina Agostiniana da Graça na Redenção do Pecador focalizará a graça de Deus, quer na perspectiva cristã denominada ordodoxa, e, também, sob a ótica do pluralismo religioso. Nesse caso a proposta é de que as religiões possuem uma função mediadora na salvação. O processo salvífico dá-se por intermédio da presença de misteriosa de Cristo, em todas as tradições religiosas. Tem-se ainda que o pluralismo religioso ou o diálogo inter-religioso apresenta-se como uma necessidade do mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Graça, redenção, salvação, vontade, pluralismo, diálogo.
A DOUTRINA AGOSTINIANA DA GRAÇA NA REDENÇÃO DO PECADOR – CONTRAPONTOS DO PLURALISMO RELIGIOSO
INTRODUÇÃO
Vivemos um momento histórico onde se acentua uma busca desenfreada pelo ter, e isso em detrimento do ser. Tem-se pregado muito sobre “tudo” o que Deus pode fazer pelo homem, entretanto, observa-se no meio cristão, uma perda de referencial quanto à graça salvadora. A superficialidade tem sido preponderante no meio cristão. O espírito da nossa época tende a sufocar aquilo que é essencial no Cristianismo. Cristo veio para redimir o homem. A doutrina da redenção através de Cristo ocupa lugar central na fé cristã. 
A redenção ou salvação do homem, à luz das Escrituras do Novo Testamento, é obra da livre graça de Deus. “Pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Efésios 2.10). Graça é definida como favor imerecido, ou seja, aquilo que Deus confere ao homem, sendo este desprovido de qualquer crédito. Em se tratando dessa questão relacionada à salvação ou redenção pela graça, não seria nenhum exagero evocar Agostinho, o ilustre teólogo da graça, título honorífico que justifica todo o legado por ele deixado aos cristãos, na condição de exímio defensor dessa doutrina.
 A contribuição de Agostinho para o Cristianismo e para toda a cultura cristã ocidental é incalculável. A produção literária de Agostinho, o bispo de Hipona, contempla vários temas, contudo, optamos por discorrer sobre uma matéria que lhe foi muito peculiar, a graça. Esta doutrina foi alvo de sua especial atenção, principalmente quando lhe foi necessário confrontar Pelágio e seus discípulos. Estes advogavam a vontade livre e o poder de escolha como atributo do homem. 
Para Pelágio é o homem quem toma a iniciativa no processo da salvação. A salvação lhe vem como mérito seu e não pela graça. Com certeza, a ortodoxia cristã precisava de alguém à altura de Agostinho para laborar com extrema maestria um tema que resume o todo da essência do evangelho, qual seja, a doutrina da graça na redenção do pecador.
 No artigo que se segue, em primeiro plano destacarei a vida de Agostinho, sua conversão e realizações. Certamente que é apenas de um resumo das grandes experiências que marcaram a vida de Santo Agostinho. Procurarei ainda ressaltar a eficácia da graça de Deus, porquanto o homem encontra-se completamente inabilitado para laborar a sua salvação. Isto porque a sua natureza foi corrompida pelo pecado e somente a graça eficaz pode reabilitá-lo. 
Na redenção do pecador, a graça de Deus é suficiente e irresistível, o que contraria frontalmente a doutrina pelagiana. Também focalizarei a graça preveniente que alcança o homem, ilumina-o e o faz reviver, bem como o habilita a abraçar o que gratuitamente lhe é oferecido no Evangelho. Toda ênfase em A Doutrina Agostiniana da Graça na Redenção do Pecador repousará na iniciativa de Deus que vem ao encontro do homem para salvá-lo. 
Levando-se em consideração a necessidade de contemplar o pluralismo religioso, considerarei a temática, a priori, a partir de dois grandes teólogos: Andrés Torres Queiruga e Claude Geffré, não obstante, as contribuições de teóricos, como Paul tillich, Jacques Dupuis, Faustino Teixeira, dentre outros.[1: Andrés Torres Queiruga, teólogo espanhol, em artigo publicado no missione Oggi, Edição nº 7, agosto-setembro 2013. A tradução é de Benno Dischinger.][2: Claude Geffré, teólogo dominicano, professor de teologia dogmática, de teologia fundamental, de hermenêutica e outras disciplinas, dentre elas, teologia das religiões. Geffré destaca-se, a priori, como incansável pesquisador do pluralismo religioso.]
Necessário é afirmar que a grande máxima do Cristianismo é a de que Deus, em seu amor inefável, manifesta-se para salvar, ainda que sejamos pecadores indignos. O propósito da salvação concretiza-se quando Deus se manifesta salvadoramente. Isso ele o faz, quando da criação e, também, na pessoa de Jesus Cristo, seu Filho.  Tanto na criação como na encarnação do Filho, temos a presença reveladora de Deus. 
 Procurarei enfatizar a tônica do pluralismo religioso, o qual advoga que todas as religiões se constituem em vias reais de salvação. O pluralismo atesta a validade de todas as religiões, ou seja, cada religião se apresenta como revelação de Deus. Tem-se, portanto, que todas as religiões exprimem da parte de Deus, a sua presença universal. Também afirma ainda que Deus se revela universalmente ao homem.
AGOSTINHO: SUA VIDA, CONVERSÃO E REALIZAÇÕES
 Agostinho nasceu em 13 de novembro de 354, em Tagaste, Numídia, hoje Argélia, próximo de Hipona, cidade onde exerceu o seu ministério. Sua mãe, Mônica, uma cristã fervorosa, de fé inabalável muito contribuiu para a formação de seu filho. O notável exemplo de Mônica marcou Agostinho por toda a sua vida. 
 Quando era ainda criança, Agostinho foi acometido por uma grave enfermidade, chegando às portas da morte, oportunidade em que quase foi submetido ao batismo. Repentinamente Agostinho recuperou-se da enfermidade e o batismo foi postergado. 
Ainda muito cedo, Agostinho revelou-se extremamente inteligente. Os pais tudo fizeram para que o filho de inteligência prodigiosa fosse educado nas melhores escolas. Seu idioma materno, o púnico ou cartaginês, bem como o latim, Agostinho dominou com maestria. O grego, entretanto, ainda que o tenha estudado, não alcançou êxito no domínio desta língua. Ainda muito jovem obteve sua formação em artes liberais e retórica e optou pelo ensino desta última disciplina.
 Agostinho estava sempre à frente de seus colegas. Esforçava-se por ser sempre o primeiro e conquistou vários prêmios e grandes elogios. Em Cartago onde estudou, já em sua adolescência foi dominado pelas inclinações e desejos pecaminosos.
Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável. Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurança, as situações isentas de risco (...) Eu manchava as fontes da amizade com a sordidez da concupiscência e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixões (AGOSTINHO, 1984, p. 59). 
 Agostinho encontrava-se preso às cadeias do prazer. Como fruto de suas extravagâncias, nasceu-lhe o filho, Adeodato, quando tinha apenas 18 anos. Era uma pessoa infeliz e errante, corrompido por suas impiedades. Agostinho compartilhava sua amizade com os arruaceiros e pervertidos e, quanto mais infames e sórdidasas práticas cometidas, maiores os motivos para com isso se vangloriarem. 
 Agostinho era dominado pelo fogo de suas paixões. Isso o aproximava muito de seu pai que não se preocupava em saber se o filho crescia aos olhos de Deus, se vivia castamente ou não, desde que fosse eloquente. Eloquência não lhe faltava. Ainda em Cartago, em 373, com 19 anos de idade, Agostinho matriculou-se na escola de Demócrates. Cumprindo as exigências do curso, Agostinho leu a obra Hortensius, de Cícero, o tribuno romano. Esta obra afirma que a Filosofia é superior à oratória, pois pela elevação intelectual o homem se aproxima mais de Deus. Para Cícero, a eloquência sem a sabedoria é frequentemente nociva e nunca útil. 
Chegou-me às mãos o livro de um tal Cícero, cuja linguagem, mais do que o coração, quase todos louvavam. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortêncio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti, Senhor; ele transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as minhas forças, a imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a ti. Eu contava com dezenove anos e meu pai tinha morrido havia dois anos (AGOSTINHO, 1984, p. 63). 
 A obra de Cícero influenciou profundamente a Agostinho, despertando-o do marasmo em que vivia. Doravante, passou a apaixonar-se pela filosofia, iniciando uma busca pela verdadeira sabedoria. Em sua busca pela verdade envolveu-se com o maniqueísmo, uma seita filosófico-religiosa, desejoso de que suas objeções fossem respondidas. Ao perceber as mais variadas contradições do Maniqueísmo, Agostinho desiludiu-se completamente. 
 Em meio a isso, Agostinho tomou a decisão de ir para Roma, pois que tinha ouvido dizer que os jovens nesta cidade eram mais aplicados, respeitosos, dedicados aos estudos e refreados por uma disciplina mais severa. Em Roma foi cercado de ambição e vaidade, mas ao ser atingido por uma enfermidade que muito se agravou, preocupava-lhe morrer na perdição. 
Incessantes eram as orações de sua mãe Mônica pela salvação do seu filho. Ela conservava em seu coração a visão que tivera nove anos antes, quando Deus lhe fez saber que tiraria o seu filho do mais profundo abismo. 
Do alto estendeste a tua mão e arrancaste a minha alma de um abismo de trevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava por mim, mais do que as mães choravam pela morte física dos filhos. É que ela, com o espírito de fé com que a dotaste, via a morte de minha alma, e tu lhe ouviste os pedidos. Ouviste-a, e não lhe desprezastes as lágrimas que, brotando-lhe dos olhos, regavam a terra por toda parte em que orava. Sim, tu a ouviste (AGOSTINHO, 1984, p. 75). 
 Depois de permanecer dois anos Roma, onde se dedicou ao ensino da retórica, Agostinho conquistou a cátedra da Casa Imperial, e foi para a cidade de Milão com emprego garantido. Nesta cidade, as inquietações de Agostinho levaram-no a dar ouvidos ao bispo Ambrósio, cujas pregações tocou-lhe o coração. A graça de Deus bateu-lhe a porta. Uma verdadeira comoção apoderou-se de Agostinho. Ele queria tornar-se cristão, mas ainda resistia a isso, porquanto sabia do preço da renúncia que certamente teria que pagar. 
Sendo assim, cresceu nele a batalha entre o querer e o não querer. Agostinho queria tornar-se cristão. Mas ainda não. Sabia que não podia mais interpor dificuldades de ordem intelectual, o que fazia a luta consigo mesmo ser ainda intensa. De todos os lados vinham notícias de outras pessoas que haviam feito o que ele não arriscava fazer, e sentia inveja. Certo dia, em agosto de 386, Agostinho sentou-se no jardim de uma casa que alugava com alguns amigos. Ele lia, com um amigo chamado Alípio, o texto da epístola de Paulo aos Romanos, e conversava sobre o evangelho pregado e ensinado pelo apóstolo. (FERREIRA, 2006, p. 19).
 Severas reflexões fizeram emergir do coração de Agostinho, desencadeando-lhe dos olhos copiosas torrentes de lágrimas. A solidão lhe perecia mais apropriada e por isso afastou-se um pouco de Alípio, deixando-se cair debaixo de uma figueira no jardim de sua casa, deu livre curso às lágrimas que jorravam torrencialmente dos seus olhos. De imediato ele ouviu o cântico de uma criança. O estribilho, muitas vezes repetido dizia: “Toma e lê, toma e lê” (AGOSTINHO, 1984, p. 214). A isto abriu a Bíblia em Romanos 13. 13 ss., e todas as trevas de dúvidas se dissiparam. A graça de Deus o atingiu e mudou por completo o rumo de sua vida. 
 Tinha Agostinho 32 anos quando se converteu ao cristianismo. Na noite pascal de 387, o bispo Ambrósio o batizou, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio. Após o batismo Agostinho permaneceu em Milão por um ano. Nesta oportunidade escreveu o tratado De immortalitate animae (387). O sonho de Agostinho era dedicar-se apenas ao trabalho literário. Entretanto, de comum acordo com alguns amigos resolveram formar uma comunidade onde pudessem consagrar suas vidas a Deus. Escolheram Tagaste, terra natal da maioria deles para a concretização do projeto. A caminho de Tagaste, na África, Mônica, mãe de Agostinho ficou gravemente enferma, e veio a falecer em outubro de 387. 
 A morte de Mônica causou profunda dor em Agostinho. Isto se explica pelo fato de que grande foi o preço pago por Mônica com lágrimas, jejuns e orações pela conversão de seu filho. Depois da morte de Mônica, Agostinho e seus amigos voltaram para Roma. Além da oportunidade de se encontrar com o papa, foi-lhe também possibilitado conhecer e travar amizade com Jerônimo, o tradutor da Vulgata Latina.
 Agostinho permaneceu em Roma por um ano e retomou sua viagem rumo a Tagaste. Depois de vender os bens herdado do pai, distribuiu-os aos pobres e, juntamente com os amigos dedicou-se ao estudo, reflexão e oração, optando pela pobreza e obediência a Deus, como tantas vezes sonhara. Um ano depois que se estabeleceu em Tagaste, seu filho Adeodato faleceu com apenas 17 anos. Pouco depois desse infortúnio mudou para Hipona e conservou consigo o desejo de continuar apenas dedicado à vida comunitária. Deus, entretanto, o conduziu ao sacerdócio em 391, quando tinha 37 anos de idade.
 Sua fama logo se estendeu e, em menos de dois anos já se tornara conhecido pelas suas atuações em debates, conferências, sínodos e concílios. Tal era o seu prestígio que o bispo Valério temendo fosse Agostinho convidado e feito bispo de outra diocese, chegou a escondê-lo e tudo fez para que o ordenasse como seu bispo auxiliar. Em 395, foi sagrado bispo coadjutor de Hipona, mediante aclamação e grande regozijo de uma multidão de fiéis.
Em 396 Agostinho assume a função de bispo titular de Hipona, onde permaneceu até à sua morte, em 28 de agosto de 430. Por 36 anos Agostinho fez ressoar a sua voz profética e tal era o seu prestígio, que até mesmo os vândalos ficaram mudos por ocasião de sua morte, numa expressão do grande respeito conquistado pelo “Bispo de Hipona”.
A notícia da morte de Agostinho se espalhou pela cidade como um relâmpago. Naquele dia, os vândalos ficaram mudos, como monges, no seu acampamento ao redor de Hipona. As espadas de aço não ressoaram umas com as outras [...]; não se ouviu rumor algum de voz humana, nos campos, ao redor de Hipona. Somente o zumbido dos insetos recortava o silêncio do luto. Tal era o prestígio de Agostinho, que até mesmo os vândalos o respeitavam. Hipona resistiu por mais quatorze meses, quando, finalmente, foi invadida, saqueada e destruída. Os vândalos atearam fogo na cidade, deixando intactos apenas a catedral, a casa de Agostinho, com sua biblioteca, e seu mosteiro (COSTA, 1999, p. 159).
 Todos os dias do episcopado de Agostinho foram de intensa agitação como pregador e gerenciador das questões eclesiásticas e dos bens de sua diocese. Acresce-se a isso, sua dedicação às obras caritativas, pastoreio do rebanho, administração do mosteiro, conferências,participações em Sínodos e tantas outras atividades. Tudo isso ele o fez, não obstante suas constantes crises de bronquite, asmas, cruéis insônias, hemorróidas e outras complicações físicas. Agostinho optou pela vida monástica, mas com zelo peculiar dedicou-se ao ministério da pregação, socorro aos necessitados, combate às heresias pelagianas e cismas donatistas. “Agostinho reservou, no entanto, boa parte de suas energias aos trabalhos literários, concentrando-se, em primeira linha, nas questões do momento e nas controvérsias da Igreja” (ALTANER, 1988, p. 414). [3: A controvérsia donatista remonta-se aos tempos das perseguições do Imperador Diocleciano, em 269, quando os bispos foram duramente perseguidos e obrigados a entregarem os seus livros sagrados. Uns retrocederam diante das perseguições, outros não. Estes se levantaram em protestos, posicionando-se contra a sagração de Ceciliano, por ter entregado os livros sagrados ao Imperador. Em seu lugar foi eleito Donato, um “rigorista” que liderou um movimento de condenação daqueles que cederam às pressões do Império. O rigorismo passou a ser denominado “donatismo” e por mais de um século, até os dias de Agostinho, a controvérsia prevaleceu e gerou um grande cisma na igreja. Os donatistas pregavam uma igreja de “santos e puros”, chegando a promover grandes disputas doutrinárias, vandalismos e até mesmo guerras sangrentas no norte da África. Em uma Conferência convocada para resolver a questão, em 01 de junho de 411, com a presença de 279 bispos donatista e 286 bispos católicos, Agostinho enfatizou a caridade e posicionou-se com uma competência tal que o dogma donatista foi derrotado.]
 Certamente que Agostinho merece destaque entre os maiores gênios literários de todos os tempos. Ele é o arquiteto de obras monumentais, dentre elas, As Confissões, obra-prima em que registra suas experiências, suas mazelas, sua trajetória de vida, e, com sinceridade confessa suas fraquezas. Entretanto, a priori exalta, engrandece e tributa louvor à graça e à sabedoria de Deus que o redimiu do estado de pecado e miséria. Trata-se de uma obra jamais igualada no gênero. Mais do que uma autobiografia, As Confissões são uma declaração de amor a Deus. 
 Enquanto a maioria das autobiografias tem a pretensão da vanglória ou autodefesa, o mestre Agostinho em As Confissões confessa suas inquietudes, angustias, conflitos interiores e fraquezas de uma alma resgatada, que exalta tão somente a Deus. Quando lemos Confissões, forçosamente olhamos para dentro de nós mesmos, pois que a fala de Agostinho traduz e retrata as lutas internas, os dissabores, os dilemas e as fraquezas da alma humana, bem como apresenta a eficaz solução, a graça, somente a graça, a única que socorre o homem e o habilita a achegar-se a Deus.
 Também de extrema importância é a sua primorosa obra A Cidade de Deus, um livro extraordinário, um manual de consolação para um mundo em decadência. É possível constatar nesta obra, uma Filosofia da história, uma teoria do Estado e da vida social, relações entre o espiritual e o temporal, refutação ao paganismo e uma síntese magistral de fenômenos terrestres e vontade divina. A Cidade de Deus é uma das obras mais significativas da literatura cristã e universal. 
 Igualmente incomensurável é a A Trindade, uma obra de teologia especulativa e defesa bíblica da trindade. É a principal obra dogmática de Agostinho escrita para dar resposta às heresias como o Monarquismo, o Sabelianismo e o Adocionismo. Agostinho apresenta a fórmula trinitária: Uma só natureza subsistindo em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, simultaneamente, distintas e coessenciais.
 Agostinho escreveu muitas outras obras. 
Poucos teólogos cristãos são tão relevantes para a nossa época como Agostinho. Por seu embate em questões como: Como podemos aprender a amar o bem? Como o pecado tem afetado nossa vontade e personalidade? Se Deus é infinitamente poderoso e amoroso, por que o mundo está cheio de tanto mal e sofrimento? Quem é Deus? Como podemos chegar à salvação? Pela profundidade e abrangência das respostas que ofereceu a elas, Agostinho se tornou o maior teólogo cristão desde o apóstolo Paulo, dirigindo a mente e os ensinamentos da igreja por mais de mil anos após a sua morte (FERREIRA, 2006, p. 16). 
 
 Agostinho é considerado como um dos maiores pensadores da Igreja e, sem dúvida alguma, um grande gênio intelectual a serviço da fé. Sua fecunda produção literária influenciou grandes nomes como Gregório I , Lutero, Calvino, os jansenistas e tantos outros que acolheram os seus ensinamentos sobre a doutrina da graça, compreendendo-a como fiel interpretação do ensino bíblico sobre o assunto em questão. [4: Gregório I, eleito papa em 590 é considerado o primeiro papa universal que trouxe grandes inovações à liturgia (canto gregoriano), tendo sido também um grande intérprete de Agostinho por um longo período da Idade Média]
A EFICÁCIA DA GRAÇA E A INABILIDADE DO HOMEM PECADOR
 Tomando por base o ensino registrado nas Sagradas Escrituras, Agostinho parte da premissa de que o homem alienado de Deus é incapaz de arbitrar a sua salvação. Sua vontade é corrompida. Todas as suas faculdades foram comprometidas pelo pecado original. A fundamentação para a tese agostiniana encontra-se principalmente nas epístolas paulinas. “Não há quem faça o bem. Não há quem busque a Deus...” (Rm 3.10). Segundo a tradição agostiniana, o homem é, por natureza, inabilitado para responder por si mesmo ao apelo divino. Isto se explica pelo fato de que o pecado original comprometeu o homem em seu todo. Por isso o homem jamais pode dar o primeiro passo em direção a Deus. 
A condição dos seres humanos naturais é descrita com palavras devastadoras em Ef 2.1-2: “Ele vos deu vida, estando vós mortos em vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência”. Nossa condição natural não é somente de enfermidade espiritual – Uma doença que pode, talvez, ser curada com algum esforço da nossa parte. Não, nossa condição é uma de morte espiritual. E como pode alguém espiritualmente morto responder favoravelmente ao convite do Evangelho? (HOEKEMA, 1997, p. 87).
 Para Agostinho, só a graça de Deus pode levantar e reabilitar o homem pecador. Por graça entende-se o fato de Deus dar ao homem o que ele não merece. A menos que Deus tome a iniciativa, o homem continuará irremediavelmente perdido. É Deus, pois, que vem ao encontro do homem, e não o contrário. Quem está morto não pode arbitrar. 
Com efeito, desde o tempo em que por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5.12). Toda a massa de perdição tornou-se possessão do corruptor. Assim, ninguém, absolutamente ninguém desde então, se isentou ou se isentará do pecado, a não ser pela graça do Redentor (AGOSTINHO, 1999, p. 300)
 O homem é primeiramente vivificado por Deus para depois responder afirmativamente às sinfonias da graça, dando ouvido à vocação que é eficaz. Deus opera uma mudança radical no coração do homem. É Deus quem entra em sua vida e derruba a parede de resistência à pregação do evangelho. Este princípio encontra-se bastante claro na vida de Lídia, a vendedora de púrpura, da cidade de Filipos. “O Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia” (At 16.14). Deus opera na natureza ao implantar um princípio de vida no coração do homem.
 Mediante a intervenção de Deus, o homem é liberto do domínio das trevas. É Deus que por sua graça destrói o poder das trevas que atua no coração do homem. A luta não é contra o homem, mas a favor do homem criado à imagem e semelhança de Deus. “Que fará este homem de miséria? Quem o libertará deste corpo de morte, senão a tua graça, por meio de Jesus Cristo, Senhor nosso?...”(AGOSTINHO, 1984, p. 186). 
 “Como alcançar a salvação senão por tuas mãos, que renovam a obra que criaste?” (AGOSTINHO, 1984, p. 116). O pecado terrivelmente escraviza e controla o homem com o seu poder destrutivo. Deus, então, pela sua graça aniquila o poder das trevas e realiza a obra imediata da regeneração, capacitando o homem a crer e abraçar tudo o que gratuitamente lhe é oferecido no evangelho. 
 Por si só o homem não pode se libertar do cativeiro do pecado. A salvação é pela graça de Deus, somente. O agir é de Deus. As trevas são dissipadas somente quando Deus por sua graça intervém no homem pecador. O domínio é da graça. É Deus quem regera o homem e o conduz à salvação.
 Enquanto espiritualmente o homem estiver morto, obviamente não poderá dar ouvido à voz de Deus. O quadro, entretanto, muda totalmente quando nele opera a maravilhosa graça de Deus. Segundo Agostinho, todo o processo soteriológico aponta para o que Deus faz. [5: Por processo soteriológico entende-se como sendo o todo do processo de salvação, ou seja, a libertação do homem, a sua regeneração e transformação, realizada pela graça de Deus.]
Encontra-se bastante claro nas Escrituras, que não é mediante o mérito do homem que a salvação é alcançada. “Assim, pois, não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16). Segundo Agostinho, é Deus quem infunde no homem o desejo de querer o que a graça lhe oferece. 
Portanto, para que corra para o Senhor, deseje ser dirigido por Ele, submeta à dEle sua vontade e se torne com ele um só espírito [(...)], Deus infunde piedade em quem ele quer, e somente o homem piedoso é capaz de realizar toda essa obra. Pelo qual se pode perguntar: se não procede de Deus a força para realizá-la, de quem procede? (AGOSTINHO, 1998, p. 261).
 Os que são feitos filhos de Deus, nascem não do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus (Jo 1.12,13). Os que são feitos filhos de Deus, o são, não por natureza, mas por sua graça. “O único Filho de Deus pela natureza, fez-se, por nossa causa, por misericórdia, Filho do homem, para que nós, filhos do homem por natureza, por Ele nos tornemos filhos de Deus, pela graça” (AGOSTINHO, 2000, p. 2179). O homem decaído não tem em si mesmo, o poder ou a prerrogativa de retornar a Deus. Somente Deus, pela sua Palavra, é quem o conduz a Jesus. “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer” (Jo 6.44).
 O homem natural encontra-se inabilitado para querer o bem. Suas escolhas fazem jus à sua própria natureza. A natureza do homem foi corrompida pelo pecado original. “Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá a vida” (Rm 5.17,18). “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). 
 A situação do homem natural está claramente definida na Palavra de Deus. “Todos se extraviaram, e a uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há um sequer” (Rm 3.12). Esta é a realidade inerente à natureza humana. A teologia agostiniana afirma que a raça foi comprometida pelo pecado de Adão. 
O pecado corrompeu toda a natureza humana. O que dele é gerado já se encontra contaminado pelo pecado. O que dele é nascido não está imune. Segundo Agostinho, ninguém pode dar o que não tem. Ao homem foi dado pureza, santidade e livre-arbítrio, mas o pecado arruinou tudo. Tudo e todos ficaram comprometidos. O princípio estabelecido não foi obedecido. 
Juntamente com Adão toda a sua posteridade caiu com ele na sua primeira transgressão. “Eu nasci em iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51.5). Todos estão debaixo do pecado. Exclui-se a possibilidade de haver, sequer um justo. Todos se extraviaram. Todos pecaram e a única solução é a graça de Deus. 
 Não se pode atribuir predicados tão nobres a uma natureza maculada pelo pecado. Vontade livre, poder de decisão, – como pode ser isto atribuído a alguém, cuja natureza já nasce viciada pelo pecado? Seria mesmo espetacular se o contrário pudesse ser proclamado, contudo, as Sagradas Escrituras afirmam com toda clareza: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8,9). 
“Se é pela graça, já não é por obras; do contrário, a graça não é graça” (Rm 11.6). “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar” (Fl 2.13). Segundo o apóstolo Paulo “Deus nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça...” (1 Tm 1.8,9). Agostinho ensinou enfaticamente o que séculos antes foi divinamente inspirado e registrado nas Escrituras. 
 Tudo Deus o faz em Cristo, “no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” (Ef 1.7). “Não por obras, mas por aquele que chama” (Rm 9.11). Todo o ensinamento das Escrituras quanto à criação e redenção do homem, indiscutivelmente aponta para o agir de Deus. É ele quem conjuga o verbo. É ele que em sua economia tudo estabelece. É Deus quem toma as providências e tudo administra com vistas à concretização dos seus planos. “Os planos de Deus não podem ser frustrados” (Jó 42.2).
 No dizer de Calvino, “toda jactância e confiança própria caem por terra, uma vez que a miseranda condição em que nos achamos após a queda de Adão nos esmaga de vergonha e verdadeiramente nos humilha” (CALVINO, 1985, V. II, p. 1). O desejo de querer para si algo mais do que o estipulado constitui-se na causa do fracasso a que o homem foi reduzido. “Não improcedente da verdade, [pronuncia-se] Agostinho quando diz que o orgulho foi o princípio de todos os males, pois que não houvesse a ambição impelido o homem acima do que era próprio e justo, poderia [ele] permanecer em sua condição [original]” (CALVINO, 1985, V. II, p. 5). 
 Ao ser procurado por Nicodemos, alguém que tinha qualificação honrosa, porquanto era mestre em Israel, Jesus deixou claro o que o fariseu demonstrou ignorar: “Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, o que é nascido do Espírito é espírito” (Jo 3.5,6). O que é nascido da carne procede do que é natural. O que é nascido do Espírito certamente que tem sua gênese tão somente no sobrenatural. Jesus está falando do novo nascimento. Este não procede do homem, mas de Deus. É de Deus, é do alto, é de cima e é por graça e não por obras. 
Pois a fé não a tem todos (2 Ts 3.2) os que, pelas Escrituras, ouvem o Senhor prometer o reino dos céus, nem se convence a todos aos quais se aconselha a virem àquele que diz: ‘Vinde a mim todos os que estais cansados’ (Mt 11.28). Os que têm fé e os que se convencem a vir até ele, ele mesmo o revelou, quando disse: ‘Ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai’ (Jo 6.44-46). (AGOSTINHO, 1999, p. 225). 
 Todos os que são gerados de Adão, inevitavelmente trazem consigo a contaminação, a corrupção e a podridão. “Daí, como diz Agostinho: ‘Quer um infiel culposo, quer um infiel inculpável, um e outro não gera inculpáveis, mas culposos, pois que [os] gera de natureza corrupta’” (CALVINO, 1985, V. II, p. 9). O único “ente santo” que aqui nasceu foi Jesus (Lc 1.35). “Este sim, nasceu santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito acima do que os céus” (Hb 7.26). Isto se explica porque a concepção de Jesus foi sobrenatural. Tinha que ser assim para que sobrenaturalmente, pela graça pudesse buscar e salvar o homem perdido (Lc 19.10). 
Não é o homem quem acha Deus e a salvação. É Deus quem o busca e o acha. Não é a ovelha perdida quem acha o seu pastor. É o pastor quem vaiem busca da que se perdeu, até encontrá-la. “Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo” (Lc 15.4,5). É o pastor quem chama e as ovelhas ouvem a sua voz (Jo 10.16). Toda conjugação do verbo é feita pelo Verbo de Deus. “Ele se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade” (Jo 1.14). 
 Jesus se fez carne para salvar ao que é nascido da carne. Pela graça de Deus o homem é alcançado, transformado e liberto. Como já acima foi proferido, o que nasce da carne é carne. Não há isenção de corrupção (1 Co 15.42). Corrupto, portanto, por natureza não pode o homem nascer sem o germe da corrupção. “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?”(Jr 17.9). Por corrupto entende-se podre, depravado, pervertido. “A própria criação será redimida do cativeiro da corrupção” (Rm 8.21).
 Será que o homem está isento desta corrupção? Não é em consequência do seu próprio pecado que a corrupção passou a reinar? Os que nascem dentro deste contexto, podem porventura estar imune à corrupção? “Bons homens, e acima dos demais, Agostinho, nisto laboraram afincadamente: mostrar que somos corrompidos mediante adquirida impiedade [(...)]. Ingênita depravação trazemos [nós] desde o ventre materno” (CALVINO, 1985, V. II, p. 7). 
 À luz de Rm 5.12, cuja afirmação clara alude à propagação da morte a todos os homens, Calvino afirma o seguinte: “Deste modo, deve-se, por certo, sustentar que Adão não foi apenas o progenitor, mais ainda como que a raiz da natureza humana e, daí, na corrupção daquele em quem foi, com razão, corrompido todo o gênero humano (CALVINO, 1985, V. II, p. 7). Sendo esta a condição do homem, ou seja, a sua natureza manchada pelo pecado, porquanto corrompida no genitor, segue-se que a culpa o acompanha desde a concepção, não podendo nada fazer, uma vez que o contágio procede por derivação. A contaminação é inevitável.
Nossa solidariedade universal com Adão é da mesma espécie que aquela mantida por Cristo com os seus remidos, isto é, liderança representativa, ou federal. [(...)] Na teologia, o termo deriva da aliança feita com Deus com a raça humana em Adão (lat. Foedus = aliança). Esta aliança (frequentemente chamada de ‘aliança das obras’) foi quebrada por Adão com o seu pecado, com terríveis consequências para aqueles que representava (MILNE, 1987, p. 109). 
 Adão é o representante capital da raça humana decaída. Não fosse Deus ter vindo ao encontro do homem, conscientizando-o do seu pecado e, por conseguinte, apontando a solução do seu problema, jamais haveria redenção. A solução única reside na semente da mulher, anunciada no Éden, precisamente quando o homem pecou (Gn 3.15). Jesus Cristo, a semente gerada incorruptivelmente pelo poder do Espírito Santo (Mt 1.20; Lc 1.35), o representante da raça redimida, nele, sim, no Redentor, exclusivamente, reside a salvação. “Em Cristo a aliança foi renovada e através dela, a perfeita retidão de Cristo se torna o meio de bênção e salvação para todos os que ele representa (Gn 2.15-17; Jr 31.31 ss; Rm 3.21-31; 5.12-21; 1 Co 11.25). O princípio é idêntico em ambos os casos” (MILNE, 1987, p. 109). Somente pela graça de Deus e não por méritos do homem é que se apropria da vida eterna, todos aqueles que são eficazmente chamados. Sobre a natureza da graça na concepção agostiniana, McGrath, em sua Teologia sistemática, histórica e filosófica diz o seguinte:
Um dos textos bíblicos favoritos de Agostinho é João 15.5: “Pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma”. De acordo com o seu ponto de vista, somos totalmente dependentes de Deus para a nossa salvação, desde o começo até o fim de nossas vidas. [(...)] A natureza humana necessita ser transformada pela graça de Deus, tão generosamente concedida (McGRATH, 2005, p. 510).
 A natureza enferma do homem precisa de restauração. Toda e qualquer habilitação, iluminação e capacitação da mente e dos sentidos do homem para crer em Jesus, provém de Deus. É Deus quem chama. O seu chamado é eficaz. Quando chamado das trevas para a sua maravilhosa luz (1 Pe 2.9); quando transportados do reino das trevas, para o reino do filho do seu amor (Cl 1.13), é Deus que em sua graça infunde no homem a vida, quebra as cadeias e o liberta do jugo do pecado. Tudo o que o homem faz é responder ao que Deus já fez. De si mesmo o homem nada pode fazer. Ele é também indigno diante de Deus. O pecado o incapacitou a fazer a vontade de Deus. O fracasso tomou conta. O pecado trouxe separação entre o homem e Deus (Is 59.2; Rm 3.23). Só o milagre da graça pode trazer solução ao homem pecador, colocando-o numa posição correta diante de Deus, por meio do Redentor.
 A iniciativa não é do homem. A vontade do homem é totalmente viciada pelo pecado. Somente o segundo Adão (Rm 5.12-21; 1 Co 15.21,22,45-49), plenamente Deus e plenamente homem pôde satisfazer a justiça divina, oferecendo em medida exata o sacrifício único através do qual é gratuitamente proporcionada a salvação ao miserável pecador. Jesus é o único perfeitamente qualificado. Como único redentor dos escolhidos de Deus, numa expressão da sua multiforme graça salvadora, golpeou fatalmente o pecado na cruz, de sorte que tem autoridade para conferir vida eterna a todos os que crêem em seu nome. Face a tudo isso, “onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída” (Rm 3.27). Jesus fez tudo na cruz. O Espírito Santo é o único que convence o homem do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8). O que se vê, portanto, é a graça de Deus em ação.
 Os reformadores Lutero e Calvino tanto enfatizaram a doutrina da graça, tomando por base as Sagradas Escrituras, mas também, com certeza, influenciados por Agostinho, o teólogo da graça. O cristianismo reformado assimilou a doutrina da graça pregada por Agostinho. Mesmo dentro do catolicismo houve também os que abraçaram a doutrina agostiniana da graça. Exemplo disso, os jansenistas, nos séculos XVII e XVIII, fiéis discípulos de Agostinho, tudo fizeram para avivar sua doutrina na Igreja de Roma.
Desenvolvimentos posteriores dentro da Igreja Católica Romana no final do século 16 prepararam o caminho para a controvérsia jansenista do século 17. Michael Baius, um professor de Louvain, afirmava decididamente as doutrinas agostinianas da graça. Ele argumentava que o homem é completamente depravado pelo pecado: “O livre-arbítrio sem a assistência de Deus para nada serve a não ser para o pecado”. A justificação é obtida apenas depois da vontade do pecador ter sido transformada por Deus. Setenta e nove teses de Baius foram condenadas numa bula editada pelo papa Pio V. Entre as teses condenadas estavam as idéias de Agostinho como: (l) a vontade sem a graça, só pode pecar; (2) mesmo a concupiscência contrária à vontade é pecado; e (3) o pecador é movido e avivado apenas por Deus (SPROUL, 2001, p. 84). 
 Os jansenistas proclamavam que a salvação depende só da predestinação e vontade divina e não da vontade humana, porquanto depois da queda, o homem só tem o poder de pecar. Dentre os jansenistas destacou-se Blaise Pascal, o filósofo francês que escreveu as Epístolas Provinciais, contra o probabilismo dos jesuítas. Como não poderia ser diferente, tendo já a Igreja Católica definido que em matéria de salvação, a graça vem em auxílio àquele que primeiramente deu o passo em direção a Deus (Semi-pelagianismo), em 1713, os jansenistas foram condenados pelo papa Clemente XI.
 Segundo a doutrina agostiniana, “a eficácia da graça divina na redenção não depende nem de sua congruidade, nem da cooperação ativa, nem da não-resistência passiva de seu sujeito, mas de sua natureza e do propósito de Deus. É o exercício do grande poder de Deus que ordena e é feito” (HODGE, 2001, p. 990). Para a mente de Agostinho, portanto, não é o homem que opera. Face à sua inabilidade, somente a graça eficiente de Deus pode salvá-lo.
A SUFICIÊNCIA E IRRESISTIBILIDADE DA GRAÇA – CONTRA OS PELAGIANOS
 Toda operaçãoé da graça, exclusivamente. Até mesmo a prontidão em aceitar e obedecer de “boa vontade”, tudo isso lhe é conferido pela graça de Deus. A vontade não é removida pela graça, mas trabalhada. É a graça que muda a disposição do coração e leva o homem à obediência. “E isto ensina Agostinho não obscuramente, se bem que sucintamente, quando fala assim: ‘A boa vontade do homem precede a muitos dons, não, porém, a todos’. Ora, a própria [boa vontade] que [os] precede, também [ela] mesma está entre eles” (CALVINO, 1985, V. II, p. 64). Tudo o que concerne à salvação provém da graça de Deus, é dom de Deus, inclusive a “disposição” do pecador que se rende ao Salvador. 
 A disposição, o querer, o aceitar, toda a persuasão provém do Espírito Santo de Deus. Nenhum passo é dado em direção a Deus se o dom da fé não for primeiramente conferido ao homem. 
Temos, agora, pela boca de Agostinho, o testemunho que desejamos especialmente obter, [isto é,] que não é apenas pelo Senhor oferecida a graça, que dá livre escolha de cada um ou se aceite ou se rejeite, mas ainda que é [ela] própria [a graça] que forma no coração não somente a escolha como também a vontade, de sorte que o que quer que daí se segue de boa obra seja fruto e efeito da própria [graça], nem tenha ela outra vontade a obedecer-lhe senão aquela que [ela própria] há formado. Pois, são também palavras de [(Agostinho)], de outro lugar: “Só a graça opera em nós toda boa obra” (CALVINO, 1985, V. II, p. 66). 
 O ensino agostiniano proclama uma redenção eminentemente monergista, ou seja, é Deus quem faz a obra. No que diz respeito à salvação do pecador, a graça é o princípio dominante. Esta é a doutrina dos apóstolos, por certo aprendida do Senhor Jesus. A tese de Agostinho sobre a doutrina da graça encontrou eco em Calvino e tantos outros que laboraram o assunto em questão e assim o fizeram com profundidade, zelo e competência. Também isso é produto da graça de Deus. 
Agostinho (354-430) e aqueles que seguiram a tradição agostiniana, afirmam que a razão pela qual as pessoas aceitam o convite do evangelho deve ser buscada, em última instância, não na vontade humana (ainda que admitam que a vontade humana é ativa nessa aceitação), mas na graça soberana de Deus. A tradição agostiniana tem sido mantida por teólogos calvinistas ou reformados (HOEKEMA, 1997, p. 87). 
	Enquanto de um lado Agostinho sempre enfatizou a soberania de Deus, que no exercício de sua graça redime o homem pecador, Pelágio, por outro lado, assumiu uma postura totalmente contrária. Toda ênfase do monge irlandês recaiu sobre o livre-arbítrio. O ensino pelagiano anula por completo o conceito de soberania e graça de Deus, porquanto assinala o exercício da vontade do homem, sendo este o protagonista que arbitra a sua própria salvação. Se é Deus quem efetua, se o realizar é de Deus, como pode Pelágio afirmar com tanta ênfase que a vontade e ação não necessitam de nenhuma ajuda de Deus?[6: Pelágio, um monge natural da Grã-Bretanha, provavelmente de origem irlandesa, famoso por sua disciplina moral e vida ascética, chegou a Roma por volta do ano 400 e ficou chocado com a pobreza moral reinante na Itália. Entendendo a necessidade de enfatizar a questão moral, como homem vigoroso e sutil sentiu-se chocado ao deparar-se com uma oração de Agostinho: “Concede-me, Senhor, o que tu exiges, e manda o que for do teu agrado”. Mercê disso começou a pregar contra os ensinamentos de Agostinho, e principalmente contra a Doutrina da graça, na concepção agostiniana. A princípio Agostinho como homem polido tratou muito bem a Pelágio e tudo fez no sentido de convencê-lo. Como não logrou êxito, dedicou-se com ardor no combate aos ensinamentos de Pelágio e seus discípulos.]
 O que Pelágio e seus discípulos ensinaram a respeito da vontade livre ou livre-arbítrio, advogando que o poder da escolha é atributo do homem, com certeza exclui o que a Bíblia afirma sobre o Deus que busca, atrai e usa de misericórdia para com o pecador, totalmente desprovido de qualquer mérito.
 Pelágio e seus seguidores afirmam que a humanidade não está sujeito às consequências do pecado cometido pelo primeiro homem. Propugnam ainda que “Adão foi a única vítima de seu pecado; e que as crianças quando nascem estão no mesmo estado que Adão antes da desobediência” (AGOSTINHO, 1999, p. 267). 
Contrário ao ensino da Palavra de Deus, a doutrina pelagiana nega que a humanidade nasceu em pecado. O germe do pecado original inexiste para Pelágio. A partir dessa premissa, Pelágio e seus seguidores negaram a necessidade da redenção em Cristo, negava a cruz e a eficácia da graça. Para Pelágio, a graça em relação à pessoa de Cristo, constituía apenas em uma ajuda para o seu exemplo imitar. 
Pelágio ensinava ainda que a graça é outorgada aos cristãos conforme os seus méritos. “Pois ao dizer que hão de ser recompensados os que fazem bom uso da liberdade e, por isso, merecem a graça do Senhor, confessa ser ela pagamento de dívida” (AGOSTINHO, 1998, p. 247). Nos termos pelagianos, graça é uma recompensa, e não um dom gratuito. Olhando por este prisma, obviamente que não é graça. 
Na perspectiva pelagiana, a graça sobrenatural é desnecessária. O papel da graça é apenas coadjuvante. Pelágio afirma que a graça apenas auxilia quem arbitrariamente tomou uma decisão. Mérito da graça, recompensa, ajuda da graça, bom uso da liberdade, tudo não passa de falácias e sofismas utilizadas por Pelágio e seus discípulos, e que certamente ludibriam os desavisados e principalmente aqueles que facilmente abraçam o ensino de que o livre-arbítrio é inerente à natureza do homem, mesmo depois do pecado. 
Segundo o pensamento agostiniano, quem enfatiza o livre-arbítrio e salvação mediante boas obras, sem dúvida alguma nega a suficiência e eficácia da graça. “Pelágio passou para a história como ‘inimigo da graça’, defensor da liberdade, [e também] de uma natureza cheia de forças e potencialidades capaz por si só de cumprir os mandamentos e atingir a perfeição” (AGOSTINHO, 1998, p. 109).
 Enquanto para Pelágio o homem tem a sua própria constituinte para cumprir os mandamentos do Senhor, para agostinho, o homem não pode nem mesmo querer o bem, quanto mais realizá-lo. O homem corrupto por natureza não pode arbitrar, não pode escolher e nem mesmo operar a sua própria salvação. Vários sínodos regionais, bem como o Concílio de Éfeso (431), condenaram Pelágio e seus ensinos, reputando-os como heresias. 
 Pelágio começou a pregar sobre a capacidade do homem para escolher entre o bem e o mal. A liberdade de escolha e a participação efetiva do homem no processo da salvação eram já ensinadas por alguns dos pais da Igreja, quer no ocidente e principalmente no oriente, entretanto, não de maneira tão extremada como Pelágio o fez. Este, juntamente com os seus discípulos, dentre eles Celéstio e João de Eclano tornaram-se grandes defensores do livre-arbítrio. “Na teologia de Pelágio, o livre-arbítrio recebeu significado bem maior que na tradição anterior” (HÄGGLUNG, 1986, p. 111). 
 Para Pelágio, sem a liberdade ou livre-arbítrio, o homem não poderia ser responsabilizado pelos seus atos. Pelágio catalogava o pecado como atos isolados da vontade, não admitindo jamais o conceito de pecado original. Ele entendia que o homem é livre para pecar ou não, valendo-se de seu livre-arbítrio. O pecado, portanto, na concepção pelagiana, não é algo inato relacionado à natureza do homem. Este não tem o seu caráter maculado pelo pecado original. Pelágio ensinou que Deus conferiu a Adão uma condição natural neutra e uma vontade livre para escolher o bem e o mal. Isto não lhe foi tirado, ou seja, a vontade livre para fazer suas escolhas. Também dizia Pelágio que a mortalidade não é consequência do pecado, pois quando criado, à semelhança dos outros seres já existentes, também o homem ficou sujeito à morte. 
 Quanto ao pecado de Adão, inexiste para Pelágio qualquer transmissão hereditária, quer sejada natureza pecaminosa ou da culpa. À semelhança de Adão, o homem nasce isento de qualquer mancha, com capacidade de escolha voluntária. Não podendo descartar a universalidade do pecado, Pelágio o atribui ao mau exemplo deixado por Adão e, deste estado, o homem, mesmo sem o auxílio da graça pode voltar-se para Deus. Pelágio afirmava que a graça sobrenatural é desnecessária. Ele e seus seguidores entendiam que a graça é incompatível com o livre-arbítrio. Pelágio tinha a sua própria definição de graça. Para ele a graça consiste tão somente na faculdade e a possibilidade da natureza. Trata-se de uma ajuda para bem agir acrescida à natureza e à doutrina, lei ou mandamentos. 
 Em sua doutrina Pelágio considerava três fatores essenciais: a possibilidade, a vontade e a ação. Para ele apenas a possibilidade recebe auxílio divino. A vontade e a ação dispensam qualquer ajuda de Deus. A ajuda ou auxílio a que se refere quanto à possibilidade, consiste na lei e na doutrina revelados pelo Espírito Santo. A graça consiste nos dons da natureza recebidos na criação, bem como no exemplo de Cristo. Vemos em Pelágio um antropocentrismo sem precedentes. Para ele é o homem que se une a Deus e assim o faz firmado em sua própria liberdade de vontade.
Pelágio ensinou que o homem é absolutamente livre, e que os seus pecados não tem nada a ver com o pecado da raça. Não há nada no homem que o leve a pecar. Ele peca simplesmente porque resolve imitar Adão, mas não porque é levado por sua natureza pecaminosa. Portanto, sendo livre para fazer o que quer fazer, o homem abraça ou recusa o evangelho como lhe convém. Ele é quem decide ser salvo ou não. Nada é feito em favor do homem, mas este é que tem as coisas sob o seu controle. O lema pelagiano é: “Se eu quero, eu posso” (CAMPOS, 1999, p.36). 
 Para Pelágio, toda iniciativa parte do homem sem a ajuda de Deus. A ajuda vem sim, mas como recompensa, como mérito a posteriori, ou seja, uma paga recebida pelo bom uso da liberdade na observância dos mandamentos. Uma graça devida não é gratuita, portanto, não é graça. A ortodoxia e o conceito presente nas Escrituras dizem totalmente o contrário.
 O homem não merece a salvação. Tudo o que ele fizer, não o será arbitrariamente; não o será por si mesmo, e nem mesmo se contabilizará como méritos adquiridos diante de Deus. O que é dom de Deus, em hipótese alguma pode estar relacionado ao mérito do homem. A vida eterna, a salvação, é dom gratuito de Deus (Ef 2.8). Como relacionar dom gratuito de Deus com merecimentos a que o homem tem direito, tendo em vista suas realizações? Isto é insustentável, mesmo porque escrito está: “Não de obras para que ninguém se glorie” (Ef 2.9). A salvação é pela graça de Deus. A graça de Deus prescinde qualquer partipação das obras no processo de salvação. 
 A controvérsia entre Agostinho e Pelágio girava em torno da doutrina da salvação. “Agostinho afirmou, em oposição a Pelágio, que a salvação é obra do próprio Deus; não é de origem humana” (HÄGGLUNG, 1986, p. 111). Agostinho tinha por certo que tão somente a graça é que opera a salvação dos homens. Para Agostinho o homem possuía livre-arbítrio antes da queda. Somente nesse estado é que ele possuía liberdade para escolher o bem e o mal. A queda afastou o homem de Deus, impedindo-o de poder escolher o que é bom. Por si mesmo o homem é incapaz de livrar-se da concupiscência e servidão do pecado.
 Agostinho enfatiza que o homem antes de pecar podia evitar o pecado – posso non peccare (posso não pecar). Depois da queda, entretanto, o pecado era inevitável – non posso non peccare (não posso não pecar). De acordo com o campeão da ortodoxia, o livre-arbítrio em seu verdadeiro sentido não mais foi facultado ao homem depois da queda. “A tendência do homem de escolher o mal, determina o curso de sua conduta e o impede de fazer o bem. [(...)] As mais tendências volitivas do homem se expressam como concupiscência ou desejo” (HÄGGLUNG, 1986, p. 114). 
 Agostinho apresenta uma concepção totalmente contrária de Pelágio quanto ao pecado de Adão e suas consequências, e também, quanto à graça de Deus que opera no homem para a sua salvação. Agostinho entende que o pecado original trouxe consigo desastrosas consequ mências como a morte, a deserção do homem, a sua total depravação e incapacidade de querer qualquer bem espiritual. Agostinho, à semelhança de Paulo em sua Epístola aos Romanos, vê o homem mergulhado em seu estado de pecado e miséria, alienado de Deus, sob o domínio do que é mau. 
 O homem adquiriu para si a condição de escravo do pecado, “escravo de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja...” (Tt 3.3). “As idéias de Agostinho sobre o pecado e a graça foram moldadas, em certa medida, por suas profundas experiências religiosas, durante as quais passou por grandes conflitos espirituais, até emergir finalmente na plena luz do evangelho” (BERKHOF, 1992, p. 119). Seja isso a razão ou não, o que importa saber é que Agostinho procurou ser coerente com o que está registrado nas Sagradas Escrituras. 
Pelágio era um monge britânico, de vida austera, de caráter impoluto, de temperamento equilibrado; e talvez por essas exatas razões fosse desconhecedor daqueles conflitos da alma, daquelas lutas contra o pecado, daquelas profundas experiências com uma graça todo-renovadora, que tiveram profunda influência no moldar do pensamento de Agostinho (BERKHOF, 1992, p. 120). 
 Agostinho e Pelágio apresentavam uma fisionomia espiritual diametralmente oposta. O confronto entre os dois, fê-los aprofundar ainda naquilo em que acreditavam. O ponto de vista de cada um já se tinha estabelecido mesmo antes de mutuamente se conhecerem através de seus escritos. Não se pode negar, entretanto, que os combates teológicos incrementaram significativamente o posicionamento doutrinário por eles assumido. Se para Pelágio e seus seguidores, a graça desempenha apenas um papel coadjuvante, para Agostinho, o teólogo da graça, nenhum passo se pode dar em direção a Deus e nada se pode conquistar, sem primeiramente ser alcançado, conquistado e vivificado pela graça. Para Agostinho, a verdadeira graça é obtida pelos méritos de Cristo. Não é a graça que coopera. Pelo contrário, a graça opera e habilita o homem a abraçar os méritos da cruz. O domínio é da graça. Agostinho preconiza que a irresistibilidade da graça divina é o princípio dominante em todo o processo da redenção do pecador. 
“Agostinho é reconhecido como o “doutor da graça” por ter sido o primeiro a levar até às últimas consequências a defesa da necessidade e realidade da graça divina. O problema e o cenário em torno do qual o assunto emergira era tão polêmico quanto a própria “doutrina da graça” que o hiponense formulou e procurou justificar. O embate era principalmente com Pelágio, [...] o defensor incondicional da liberdade de escolha do homem” (FERNANDES, 2007, p. 30).
A GRAÇA PREVENIENTE – O PRINCÍPIO VIVIFICANTE DO IMPOTENTE 
PECADOR
 O homem já nasce debilitado, na verdade, morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1,5). Nesta condição o homem nada pode fazer. É a graça que lhe vem ao encontro. É a graça que o socorre. Em hipótese alguma a graça se apresenta coadjuvante nas decisões do livre-arbítrio. Uma natureza enferma e maculada pelo pecado não pode arbitrar a sua salvação. A graça, sim, contra os vícios e efeitos da natureza, eficazmente aplica os méritos da cruz e redime o homem do seu estado de pecado e miséria. Tudo é pela graça. A morte de Cristo, o seu sangue derramado, a satisfação da justiça divina, tudo isso claramente aponta para a eficácia da graça. Tudo ficará anulado “se alguém afirmar que se pode alcançar a justiça e a vida eterna, prescindindo de algum modo do mistério da cruz” (AGOSTINHO, 1998, p. 117). É somente pela graça que o homem é salvo (Ef 2.5,8). 
 O homem é justificado pela graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus (Rm 3.24). “Como o pecado reinou pela morte,assim também reinou a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo nosso Senhor. Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5.20,21). A raça toda dos filhos de Adão foi contaminada. Quando Paulo fala da depravação do homem, não aponta apenas para alguns cujos costumes são mais hediondos. Não, Paulo refere-se à corrupção da natureza do homem. Tal é o estado de depravação que “nenhuma salvação há para o homem, senão pela misericórdia do Senhor, porquanto em si, está [ele, o homem] inexoravelmente perdido” (CALVINO, 1985, V. II, p. 49). 
Como o pecado aparece armado de poder destrutivo, infligindo a morte, assim a graça aparece armada de invencível poder, amorosamente determinada a salvar. E onde abundou o pecado, a graça o superou em tudo. Assim, o controle é da graça [(...)]. Na verdade, é só com o indigno que a graça preocupa. Isso é assombroso! Isso é maravilhoso! Há esperança de salvação para o pior indivíduo, se é que ela é assegurada pela riqueza da graça que reina (BOOTH, 1986, p. 15). 
 Somente o remédio da graça divina é suficiente para corrigir e curar a depravação da natureza. É Deus quem começa a boa obra e também completa (Fl 1.6). É ele quem remove o coração de pedra e dá o coração sensível. É Deus quem dá o seu espírito (Ez 36. 26,27). Um coração de pedra é completamente insensível. Somente a graça de Deus pode mudar o quadro. Quando da conversão, a vontade, a disposição do coração do homem é completamente mudada. Segundo Calvino, qualquer disposição para desvencilhar-se da escravidão do pecado, caracteriza-se como obra exclusiva da graça. Trata-se dos primórdios da conversão do pecador. O querer o mal pertence à natureza corrompida do homem, enquanto que o querer o bem pertence à graça. 
 Não é o caso da vontade enfraquecida ser fortalecida. O que acontece é mudança completa e isto pela graça. “A vontade do homem precisa ser renovada, e isto é obra exclusiva de Deus, do começo ao fim – uma operação da graça divina” (AGOSTINHO, 1998, p. 123). O processo de renovação do homem pecador inicia-se com o que por Agostinho foi denominado graça preveniente.
 Deus opera de maneira muito especial no homem pecador. É Deus quem lhe renova a vontade e o capacita a abraçar o que a graça oferece. “A graça precede a todos os méritos. A vontade humana nada pode se Deus não lhe vem em auxílio, a fim de que possa fazer o bem. [(...)] Agostinho professa uma vontade salvífica restrita em Deus” (ALTANER, 1988, P. 438). Agostinho não nega que a vontade continua dotada de certa liberdade natural. 
 Em se tratando da liberdade que é essencial e tem relação direta com a ética. Esta sim, o homem não a perdeu. Trata-se da liberdade que qualquer ser humano tem para fazer qualquer coisa em consonância com as disposições dominantes de sua alma. Ela é a base para a responsabilidade humana em qualquer ato. Liberdade aqui não é sinônimo de autonomia. Agostinho não nega que a vontade seja capaz de atos que são civilmente bons, e até dignos de louvor. Ao mesmo tempo ele mantém que o homem, separado de Deus, sobrecarregado como está de pecado, não justificado, sob o domínio do mal, não pode querer aquilo que é bom aos olhos de Deus; não pode aspirar e desejar por si mesmo a salvação. 
A vontade do homem é produto de seu caráter e desde a queda esse caráter é pecaminoso. [(...)] Escolhendo o método de Satanás de conhecer o bem e o mal, o homem decidiu qual seria a inclinação do seu caráter, que desde então se tornou pecaminoso, isto é, contrário a Deus e a todo bem [(...)]. Antes da Queda o homem era, por assim dizer, neutro. Tendo escolhido o mal, deu certa direção ou tendência à sua natureza e, portanto, à sua vontade. Ora, pela regeneração, Deus imprime nova tendência à natureza do homem (FALCÃO, 1981, pp. 174, 176).
 É Deus quem restaura a visão daquele que teve o entendimento cegado pelo pecado. É Deus quem faz reviver aquele que antes se encontrava morto espiritualmente. É Deus quem ilumina a mente do homem. É Deus quem envia o seu Espírito e lança um novo princípio de vida na alma do homem, tornando-o nova criatura. Agostinho, em sua tese fundamental diz o seguinte: “Se a graça não se colocar no interior do homem, ela não basta. [(...)] A graça é em princípio o agir interno de Deus que revira a vontade do homem, fazendo-o passar do pecado para Deus” (EICHER, 1993, p. 330). 
 É preciso que se diga que não se trata de uma imposição à vontade do homem, mas da operação da graça divina que renova o homem e o dispõe a querer a salvação que Deus lhe oferece. Para Agostinho a graça preveniente, mediante a operação do Espírito Santo persuade o homem e o leva à compreensão do seu estado de culpa, pecado e miséria. A graça preveniente trabalha a vontade do homem, fazendo-lhe saber que Jesus é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14. 6). 
Em um segundo estágio, a palavra do evangelho produz fé que habilita o homem a crer em Cristo para a sua salvação. Há ainda um terceiro estágio que compreende a renovação da vontade que possibilita ao homem cooperar no processo da restauração da imagem de Deus, outrora maculada pelo pecado. No cômputo geral, no que se refere à salvação do homem, para agostinho, tudo é derivado da graça divina. 
 A concepção agostiniana da graça preveniente é algo totalmente inadmissível para a mente pelagiana. Os pelagianos negam que a vontade do homem seja cativa do pecado. Crêem, portanto, que não é a graça que a tudo precede. O que ocorre, segundo Pelágio, é uma disposição do pecador em se achegar a Deus. Por este prisma, é o homem quem decide; quem toma a iniciativa e quem abraça a salvação. A graça participa, mas o todo voluntarioso é o homem, porquanto tudo só se determina por sua vontade. Afirmar isso é verdadeiro contrassenso. Tributar ao homem toda voluntariosidade, com certeza é incorrer no erro e desrespeitar a boa hermenêutica bíblica: “Salva-me, e serei salvo” (Jr 17. 14). “Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10). “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2.8). O homem em sua condição natural é inteiramente destituído de poder, porquanto está morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1-5). 
 Na condição de servo do pecado, ou seja, escravo do pecado, como afirma o Senhor Jesus (Jo 8. 34), não pode o homem servir a dois senhores. Uma vontade viciada pelo pecado, não pode servir a Deus e guardar os seus mandamentos. Também está claro que o escravo não tem vontade própria e não pode arbitrar. O escravo não é senhor de sua vida e nem mesmo do seu destino. Somente alguém potente é que pode libertar o homem pecador. O potente é Jesus. Ele sim, liberta e muda completamente aquele que por sua graça é alcançado. 
Agostinho compara a vontade humana a um corcel a aguardar o nuto do cavaleiro; a Deus e ao diabo [compara-os] aos que [o] cavalgam. Se Deus o monta, diz [ele], tal qual moderado e perito ginete, com arte o dirige, a lerdeza acicata, a excessiva rapidez contém, o ardor e a fogosidade refreia, a obstinação reprime, pelo reto caminho conduz. Se, porém, dele se apossou o diabo, como cavaleiro estólido e petulante, por extensões não trilhados [o] arrebata, a valados impele, por despenhadeiros precipita, à insujeição e à altivez agrilhoa (CALVINO, 1985, V. II, p. 68).
 À luz, pois, da situação do homem, claro está que lhe é impossível arbitrar a sua própria salvação. Somente arbitra quem se encontra numa posição de comando. A escolha para fazer isto ou aquilo pertence àquele que é livre. Não é o caso do homem alienado de Deus, espiritualmente morto e escravo do pecado. Aquele que não está em Cristo, encontra-se escravizado. Ele é escravo do pecado (Jo 8. 34; Rm 6. 17, 20). 
Pois nós, também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros. Quando, porém, se manifestou a benignidade deDeus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens, não por obras da justiça praticada por nós, mas segundo a sua misericórdia, ele nos salvou mediante levar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que justificado por graça, nos tornemos herdeiros, segundo a esperança da vida eterna (Tt 3. 3-7).
 Na condição de escravo do pecado, como pode o homem ter em si vontade livre? Como pode Pelágio dizer que é o homem quem toma a iniciativa, se a Bíblia diz justamente o contrário? O texto acima define a condição do homem e também diz que a manifestação da benignidade de Deus não é pela prática de obras da justiça, mas segundo a sua misericórdia. Misericórdia pode ser definida como sendo o fato de Deus não dar ao homem o que ele realmente merece. Ele merece a punição. O homem merece a morte. Deus, entretanto, por sua graça outorga-lhe a vida eterna em Cristo Jesus. Toda e qualquer aspiração para o bem, sem dúvida alguma provém da graça preveniente de Deus. O homem somente pode aspirar a salvação, quando o que lhe é próprio, é abolido. É uma questão de mudança na natureza.
Agostinho ensina que a vontade não é destruída pela graça, pelo contrário, é antes reparada, assim que se possa dizer que a vontade do homem é restaurada, enquanto, corrigida a viciosidade e depravação, ´[ela] dirigida à verdadeira norma de justiça e, ao mesmo tempo se possa dizer que é criada no homem uma vontade nova, porquanto está [ela] viciada e corrompida a tal ponto que tenha [ele] por necessário induzir[-lhe] no íntimo uma nova natureza (CALVINO, 1985, V. II, p. 95). 
 Agostinho também afirma que nenhuma boa vontade o homem pode ter, a menos que lhe seja dado pelo Senhor. A lei de Deus aponta para a deplorável condição do homem pecador, fazendo-lhe saber, também, que a única solução é recorrer à graça. É a graça de Cristo o único remédio para todos os males causados pelo pecado. 
Para Agostinho não basta o conhecimento da lei sem o auxílio da graça. [(...)] Sua utilidade principal é dar a conhecer a própria impotência e miséria, [oportunidade em que a graça] sugere o recurso médico e o remédio. Se a vontade de crer procedesse da natureza humana, deveria existir para todos, pois é o mesmo, o criador de todos (AGOSTINHO, 1998, p. 14, 15). 
 É Deus que age mediante meios suasórios que suficientemente leva o homem a querer o que Deus lhe oferece, entregando-se a Cristo pela fé, o que também é dom de Deus. Somente depois que a graça opera e que se pode dizer “que efetuamos o que o Espírito de Deus [nos direciona a fazer], ainda que nossa vontade de si própria nada contribua, que seja desvinculado de sua graça” (CALVINO, 1985, V II, p. 95). No que se refere à salvação do homem, para Agostinho tudo se inicia mediante a operação da graça preveniente.
 Homens influentes como Leão e Gregório, ambos papas da Igreja Católica, abraçaram a doutrina agostiniana da graça. Não obstante terem sido mais flexíveis, afirmaram sempre que sem a graça não pode haver salvação. Prevaleceu, entretanto, no seio da Igreja Católica a teoria do sinergismo na regeneração, ou seja, a graça opera, mas a vontade do homem, é, também, preponderante. Com a Reforma Protestante do século XVI, verificou-se o ressurgimento do pensamento agostiniano. Isso se pode dizer sobre Lutero e principalmente em relação ao calvinismo, onde a doutrina agostiniana da graça foi acolhida em sua íntegra.
PLURALISMO RELIGIOSO – UM CONTRAPONTO À DOUTRINA AGOSTINIANA DA GRAÇA REDENTORA
Em se tratando da graça redentora, há que se considerar o pluralismo religioso, um novo conceito que implica na mudança de paradigmas quanto à doutrina da salvação. Considerarei a temática sob a ótica e premissas de dois grandes teólogos: Andrés Torres Queiruga e Claude Geffré, acrescido das contribuições de teóricos também importantes, como Paul tillich, Jacques Dupuis, Faustino Teixeira, dentre outros.[7: Andrés Torres Queiruga, teólogo espanhol, em artigo publicado no missione Oggi, Edição nº 7, agosto-setembro 2013. A tradução é de Benno Dischinger.][8: Claude Geffré, teólogo dominicano, professor de teologia dogmática, de teologia fundamental, de hermenêutica e outras disciplinas, dentre elas, teologia das religiões. Geffré destaca-se, a priori, como incansável pesquisador do pluralismo religioso.]
A grande máxima do Cristianismo é a de que Deus, em seu grande amor, manifesta-se para salvar, ainda que sejamos pecadores indignos. O propósito da salvação concretiza-se quando Deus se manifesta salvadoramente. Isso ele o faz, quando da criação e, também, na pessoa de Jesus Cristo, seu Filho.  Tanto na criação como na encarnação do Filho, temos a presença reveladora de Deus. 
Segundo Queiruga, as religiões são unânimes em apontar para o esforço da percepção do homem quanto à revelação de Deus. Cada religião se apresenta como revelação de Deus. Segue-se, portanto, de acordo com Queiruga, em seu artigo publicado em Missione Oggi, que todas as religiões se constituem em vias reais de salvação, porquanto exprimem da parte de Deus, a sua presença universal. Também afirma o teólogo o teólogo espanhol ser impossível ignorar as diferenças reais entre as religiões.
Nessa perspectiva é que Geffré assevera que as religiões possuem uma função mediadora na salvação. Essa mediação se evidencia na medida em que são portadoras da “presença oculta do mistério de Cristo” (Geffré), ainda que não possuidoras dos valores do cristianismo histórico. A salvação, portanto, dá-se por intermédio da presença de misteriosa de Cristo, em todas as tradições religiosas. 
O pluralismo religioso ou o diálogo inter-religioso apresenta-se como uma necessidade do mundo contemporâneo. Ainda que mais evidente nas últimas décadas, o marco referencial do diálogo tem sua gênese na Concílio Vaticano II. Seu objetivo é contemplar as outras denominações e orientações religiosas.[9: O Concílio Vaticano II (1962-1965), Convocado e presidido pelo Papa João XXII, é tido como um dos eventos contemporâneos mais importante da Igreja Católica. O mesmo procurou estabelecer uma clima de abertura e diálogo, quer na perspectiva ecumênica, e, também, com as outras religiões. ]
Visto sob esta óptica, as religiões, em suas verdades se completam, razão porque deve o diálogo religioso caracterizar-se pela reciprocidade, ou seja, pela disposição de dar e receber. A palavra de ordem é a abertura, a alteridade e a humildade.
A Bíblia, mesmo em sua relevância, é impensável tê-la como um livro absolutamente único. Queiruga a situa junto aos diversos livros e as muitas sagradas tradições da humanidade, entretanto, tem a grande vantagem de tornar possível o diálogo crítico real como todas as diversas religiões.
Afirma ainda Queiruga: “nós cristãos cremos que na Bíblia se tenha conectado uma revelação que em seu todo – não em todos os detalhes! – resulta ser a mais completa e reveste precisamente um caráter último e definitivo, significado da revelação em Cristo” (QUEIRUGA, 2013). No pensamento de Queiruga, entretanto, isso não justifica uma dialética intransigente do tudo ou nada. 
Na perspectiva de Queiruga, deve-se dizer não ao dogmatismo, isso é, ao exclusivismo. As diferenças não devem ser vistas como uma ameaça, mas como uma promessa de progresso e complementação. O espírito da época é o do inclusivismo, o que para Queiruga constituiu um grande progresso. Ainda é da lavra desse autor, o conceito de que, a “graça cristã” opera em todas as religiões. Daí afirmar que todas as religiões são verdadeiras e conduzem a Deus. Este, conforme as circunstâncias e as possibilidades, seguiu e segue vias específicas com cada uma.
A alternativa do inclusivismo é representada pelo pluralismo ou universalismo, defendido principalmente por John Hick e, depois, por muitos outros. Também esta categoria reconhece algo fundamental e indiscutível: o fato de que a resposta a Deus sempre é dada na própria época e naprópria cultura. Por isso, o dito de que todas as religiões são verdadeiras.[10: Um pluralista, segundo o qual o cristianismo não é absoluto, nem mesmo o único caminho para se chegar a Deus. O pensamento inclusivista ou pluralista advoga que Deus está presente em todas as religiões e que a graça de Deus, em Cristo, não é exclusividade do Cristianismo.]
A partir da reflexão de Claude Geffré, teólogo católico e padre da Ordem dos Dominicanos, é do interior do inclusivismo aberto que desenvolve sua reflexão buscando demarcar a identidade cristã numa perspectiva de abertura ao diálogo com outras tradições religiosas. Pensar no pluralismo religioso como pluralismo de princípio é fazer uma opção teológica no sentido de valorizar todas as tradições religiosas como estando no desígnio misterioso de Deus. 
Para Geffré, o pluralismo de princípio não diminui Deus e nem o Cristianismo. O mistério de Cristo continua como o centro da história e como o lugar de encontro, por excelência, do eterno e do histórico. O Ser absoluto que fez irrupção em Jesus Cristo deve ser confessado, mas o Cristianismo, como religião histórica, não deve ser absolutizado. Daí sua tese de que não é o cristianismo, enquanto religião histórica, que é absoluto e universal, mas sim o Verbo encarnado de Deus e entronizado como Filho em Jesus Cristo. [11: Jesus é o verbo eterno de Deus. O verbo não teve início. Ele é antes do início. Em Jo 1.1-14, Jesus é o verbo encarnado. O verbo, portanto, aponta para a preexistência de Jesus, a sua eternidade.]
O Cristianismo deve ser compreendido como religião dialogal, convidado a dar testemunho de Cristo. O evento de Jesus Cristo através do verbo encarnado propõe uma nova maneira de se relacionar com Deus, com as outras pessoas e com o universo. Portanto, o Cristianismo como religião da encarnação, sem deixar de ser fiel à originalidade de sua existência, a partir do princípio da alteridade deve buscar maneiras novas e criativas de se relacionar com as mais diversas tradições religiosas.
O princípio da alteridade vivido por Jesus Cristo, na encarnação, tem alcance universal. Na percepção cristã, Deus escolheu revelar-se na particularidade de Jesus Cristo e, nele, a humanidade tem acesso ao absoluto de Deus. Segundo Geffré, o princípio encarnacional, concepção de um Deus que se fez homem, como manifestação do absoluto em, e, por uma particularidade histórica, é que nos convida a não absolutizar o cristianismo. (PANASIEWICZ, PUC-MG, 2007)[12: Roberlei Panasiewicz é Doutor em Ciência da Religião pela UFJF, professor e membro do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas e professor e membro da Comissão de Ética na Pesquisa da Fumec. Pesquisa o pluralismo e o diálogo inter-religioso.]
Segundo Geffré, “a cruz tem um valor simbólico universal: ela é o símbolo de uma universalidade sempre ligada ao sacrifício de uma particularidade. Jesus morre à sua particularidade, enquanto Jesus de Nazaré, para renascer em figura de universalidade, em figura de Cristo” (Geffré, 2006). Ao ressuscitar, Cristo liberta Jesus da limitação e do particularismo históricos. 
A cruz e a ressurreição seguem como mola propulsora para tudo o que é proclamado no Cristianismo. A universalidade da mensagem cristã não compromete os feitos do Calvário. Para Geffré, 
Se quisermos manter no diálogo inter-religioso uma identidade cristã, não podemos definir esta singularidade cristã fora da cruz de Cristo como figura do amor absoluto de Deus. Para a perspectiva cristã é a particularidade de Jesus Cristo que revela o absoluto e a universalidade de Deus. (PANASIEWICZ, PUC-MG, 2007)[13: Panasiewicz, PUC-MG, In Identidade Cristã e Pluralismo Religioso contemporâneo: Uma Reflexão a Partir da Abordagem Teológica de Claude Geffré. ]
Na encarnação do Verbo, vê-se aquinhoado o princípio da alteridade e do amor. O todo do projeto do Reino segue a mesma trilha. O amor é o caminho sobremodo excelente (1 Co 13.1). Também está escrito na Bíblia: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor” (Rm 13.8). “Aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4.8). Geffré advoga que o amor “favorece, estimula e edifica o diálogo entre as tradições religiosas” (PANASIEWICZ, PUC-MG, 2007) 
A proposta do diálogo inter-religioso é a de reconhecer os valores presente em todas as tradições religiosas, os quais devem ser compartilhados, com vistas a uma compreensão mais ampla do mistério de Deus. Conclui, também, Geffré, que “a via final para se chegar a Deus é através da mediação misteriosa de Cristo”. (PANASIEWICZ, PUC-MG, 2007) Em cada tradição religiosa, em todos os tempos, a mediação de Cristo se faz presente através da prática de valores que caracterizam o ser humano, resgatado pelo sacrifício da cruz.
Jacques Dupuis, em sua obra clássica Rumo a uma teologia do pluralismo religioso (1999) advoga que, o ato salvífico de Deus ou o mistério da salvaçao contempla todas as tradições religiosas. Em seu entendimento, a igreja não é uma mediadora universal, e sim, um instrumento do Reino de Deus, um sacramento e sinal, cuja missão é promovê-lo e torná-lo visível. Lembra-nos ainda que a atividade precípua de Jesus voltou-se para a divulgação do reino. 
Há que se dizer ainda que o reino de Deus assinala o seu domínio sobre a história e, também, a nova perspectiva de acolhida à todas as nações. Toda a mensagem de Jesus foi teocêntrica. De igual modo, essa é a missão da igreja. A igreja não é o Reino. Ela está a serviço do Reino, sendo este muito mais amplo. A igreja promove o Reino, mas não se equipara a ele. 
Um passo importante na busca de superação do eclesiocentrismo na teologia cristã das religiões foi dado com a afirmação do reinocentrismo. Com esta nova perspectiva busca-se mostrar “como o cristianismo e as outras tradições religiosas são co-participantes da realidade universal do reino de Deus para cuja construção são chamados a colaborar até a sua plenitude escatológica” (PANASIEWICZ, PUC-MG, 2007).
Segundo Dupuis, onde quer que ocorra “uma resposta à chamada de Deus”, ali também faz-se presente o mistério da salvação (DUPUIS, 1999). A graça de Deus é operante em outras tradições religiosas. Ainda que partilhando outros caminhos, “os participantes de outras tradições religiosas são, efetivamente, membros ativos do Reino” (TEIXEIRA, 2010)[14: Faustino Teixeira, professor de pós-graduação em Ciências da Religião, na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Na Gregoriana, em Roma fez doutorado e pós-doutorado em Teologia.]
“A apreciação de outras religiões como elementos significativos e positivos na economia do desejo de Deus por salvação, introduziu um novo paradigma que é Reino-centrado, orientado para o futuro, e trinitário” (TEIXEIRA, 2010).
Sobre o pluralismo religioso, verifica-se uma gama imensa de pesquisas realizadas, principalmente por uma ala progressista do catolicismo romano. Há que se dizer, entretanto, que não obstante o clima de abertura e diálogo que marcou o Concílio vaticano II (1962-1965), existe ainda um embaraço eclesiológico que dificulta um avanço mais expressivo no campo do dialogal com outras religiões.
No entendimento dos defensores do pluralismo religioso, as religiões não são apenas diferentes, mas cada uma, individualmente, tem valores preciosos. Segundo Faustino Teixeira,
Há que honrar esta alteridade e esta irrevogabilidade das tradições religiosas. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer o valor e a plausibilidade de um pluralismo religioso de princípio. A diversidade religiosa deve ser reconhecida não como expressão da limitação humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como traço de valor e riqueza (TEIXEIRA, 2010)
Outro referencial teórico, este da ala protestante, Paul Tillich, também contribuiu para o diálogo e desenvolvimento do pluralismo religioso. Ainda que em sua Teologia Sistemática não se possa visualizar ampla defesa ao pluralismo religioso, alguns dos posicionamentos de Paul Tillich oferecem-nos

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