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História Moderna - Século XV ao XVI História Moderna - Século XV ao XVI Os séculos XV e XVI inauguraram um novo período do processo his-tórico da Europa Ocidental. Possuir terras já não era mais a única fonte de riqueza e poder, as relações sociais de dominação e de exploração também não eram mais as mesmas do mundo feudal. Se, por um lado, a nobreza encontrava-se debilitada economicamente em função de inúmeros fenômenos ocorridos no decorrer do século XIV, tais com a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos, por outro assistia-se à ascensão econômica de uma nova classe social, a burguesia, que se projetara a partir do Renasci- mento Comercial e Urbano ocorridos entre os séculos XI e XIII. Mudanças qualitativas na economia européia abriam espaço para uma nova ordem política e social. Todas estas transformações foram acompanhadas por uma mudança nas mentalidades. Se até então o pensamento predominan- te fora o teocentrismo, onde tudo era apreendido e explicado através de uma visão onde o significado e o valor das ações feitas às pessoas ou ao ambiente eram atribuídos a Deus, os novos tempos serão marcados pelo ressurgimento do antropocentrismo que deslocará o homem para o centro das explicações e compreensão do mundo. É a respeito deste conjunto de mudanças que trataremos ao longo deste livro. De modo a compreendermos o início dos Tempos Modernos nos repor- tamos a crise do feudalismo europeu vivida a partir do século XIV. Marcada por uma trilogia de catástrofes, a fome, a guerra e a Peste, além de outros também importantes elementos, esta crise comprometeu significativamente o modo como a Europa encontrava-se estruturada. Assim, a nova forma de organização político-jurídica que irá emergir na Europa Ocidental a partir do século XV, os Estados Modernos Absolutistas, pode ser compreendida como o caminho encontrado pela Europa de modo a obter novamente a estabilidade política há muito perdida. Assim, a crise do modo de produ- Introdução iv Introdução ção feudal, bem como uma análise do modo como se constituíram estes novos Estados serão nosso objeto de estudo nos capítulos 1 a 5 deste livro. Como veremos, fez parte do quadro de debilidade do feudalismo tam- bém fatores econômicos. A Europa além de atravessar um momento de carência alimentar e de escassez de metais, encontrava-se nas mãos dos italianos que ao reabrirem o Mediterrâneo no século XIII passaram a mo- nopolizar este mar na busca das especiarias orientais, encarecendo assim estes produtos para o restante da Europa. Deste modo, a Expansão Marí- tima e Comercial, empreendida no contexto da lógica mercantilista serão analisados nos capítulos 6 e 7 de modo a verificarmos a estratégia en- contrada pelos europeus para dar conta de suas debilidades econômicas. Como já foi referido anteriormente, todas estas mudanças vivenciadas no continente europeu serão acompanhadas de um movimento responsável pela alteração no modo de compreensão do mundo, este movimento ficou conhecido por Renascimento Cultural. Ao longo do capítulo 8 iremos nos ater à análise deste fenômeno. Entre os principais desdobramentos temos, ainda, o surgimento das denominadas Reformas Religiosas: a Reforma Pro- testante, que pôs fim à hegemonia da Igreja Católica na Europa Ocidental, bem como a Contrarreforma, entendida aqui como o modo encontrado pela Igreja para conter o avanço do protestantismo no continente, e para além dele. Finalizaremos nosso texto dedicando os capítulos 9 e 10 a com- preensão destes fenômenos religiosos. Esperamos que o entendimento des- te quadro da realidade européia dos primeiros séculos da Idade Moderna contribua para uma compreensão maior do verdadeiro significado do iní- cio dos Tempos Modernos. Sumário 1 A crise do feudalismo europeu ..............................................6 2 A formação do estado moderno na europa .........................20 3 A formação do estado moderno: estudos de caso ................37 4 O absolutismo ....................................................................65 5 O antigo regime .................................................................81 6 A expansão marítima ..........................................................96 7 Mercantilismo ...................................................................112 8 O renascimento cultural ....................................................128 9 A reforma protestante .......................................................144 10 Contrarreforma ................................................................162 A crise do feudalismo europeu Regina Maria Gonçalves Curtis Capítulo 1 Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 7 ÂÂ Estabelecer o momento em que ocorre o fim do modo de produção feudal não é tarefa simples. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que não existiu o Feudalismo enquanto experiência única e limitada, espacial e tem- poralmente no continente europeu. Como nos aponta Perry Anderson em sua obra Linhagens do Estado Ab- solutista, se desenvolveram na Europa diferentes experi- ências de feudalismo, variando de um lugar a outro de acordo com as especificidades de cada região. Porém, independentemente das peculiaridades que marcaram as diferentes realidades feudais, é possível estabelecer- mos alguns fatores gerais que contribuíram para o fim desse sistema como um todo. No decorrer deste capítulo, pretendemos, após fa- zermos uma breve síntese do momento de emergência desse modo de produção, pontuarmos as diferentes ma- nifestações que compuseram a crise do feudalismo con- siderada por muitos historiadores como orgânica. Fare- mos isso identificando separadamente as transformações ocorridas nos diferentes aspectos que compunham a sociedade europeia, não esquecendo, entretanto, que cada uma dessas manifestações se entrecruzaram in- fluenciando-se mutuamente. 8 História Moderna - Século XV ao XVI A Europa feudal Para compreendermos o início da crise do feudalismo europeu, é preciso lembrarmos que a sociedade feudal caracterizava-se em seus aspectos econômicos por ser essencialmente rural e agrária (subsistência), deixando em um plano secundário o co- mércio, e por conseguinte as cidades. Quanto a sua realidade política, cabe destacar o importan- te papel que os senhores feudais e a Igreja católica desempe- nharam em termos de poder local e universal respectivamente. Nesse contexto, pode-se afirmar que a nobreza era, do pon- to de vista político-econômico, o segmento social dominante, deixando à margem das decisões políticas os comerciantes, bem como a maior parte da população europeia, constituída naquele contexto histórico por uma massa campesina. Finalizando essa breve radiografia do feudalismo europeu quando este era ainda um modo de produção em seu pleno vigor, é preciso destacar a importância e a extensão da menta- lidade teocêntrica predominante da época. Como decorrência desta, as relações estabelecidas dos homens com a natureza, bem como dos homens em relação à realidade na qual se encontravam inseridos, eram entendidas e explicadas em uma perspectiva eminentemente religiosa. Assim, se os infortúnios eram percebidos como ira divina, ou seja, como um castigo por algum pecado cometido, bons acontecimentos eram en- tendidos como uma verdadeira benção de Deus. Se o século IX com o Tratado de Verdun (843), que dividiu o Império Carolíngio entre os três netos de Carlos Magno pondo Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 9 fim ao que restava de centralização política, podemos falar da consolidação e início do apogeu do modo de produção feudal, o século XIII, pelo contrário, irá se caracterizar como um mo- mento de inflexão de toda a realidade acima descrita. A partir da Quarta Cruzada (1202-1204), denominada por Cruzada Comercial por ter sedesviado dos seus verda- deiros objetivos, o Mediterrâneo tornou-se o principal meio de acesso das cidades do norte da Península Itálica para che- gar ao Oriente. Monopolizando o comércio das especiarias orientais, o norte da Península, juntamente com Flandres na Europa Setentrional, passaram a ser os principais pólos de de- senvolvimento comercial da época, fenômeno conhecido por Renascimento Comercial que propiciou por sua vez o reflores- cimento das cidades. Será justamente esse fenômeno de retor- no a um comércio intraeuropeu mais ativo que irá impulsionar o continente em direção ao desenvolvimento do que a partir do século XV irá se constituir como o novo modo de produção emergente: o capitalismo. A volta do comércio, o reflorescimento das cidades, a remonetarização da economia, a ascensão de uma nova classe – a burguesia – constituir-se-ão em aspectos cruciais no sentido de colocar em xeque a sociedade feudal então existente. Como já foi dito, para melhor compreendermos as conse- quências das transformações ocorridas nesse período, iremos expô-las em seus diferentes aspectos separadamente. 10 História Moderna - Século XV ao XVI A crise econômico-demográfica Comecemos pela crise econômica decorrente das mudanças acima referidas. É sabido que a exploração predatória e ex- tensiva dos domínios que caracterizara a agricultura feudal fazia o aumento da produção se dar, em sua maior parte, com a anexação de novas áreas e não com a melhoria das técnicas de cultivo. Desse modo, o incremento produtivo era frágil, apresentando claros limites, uma vez que só poderia se manter com a anexação constante e indefinida de novas terras. Quando, em algumas regiões, o cultivo de cereais foi ampliado usurpando terras da pecuária, em médio prazo, a produtividade agrícola baixou devido a menor disponibilidade de esterco. Como decorrência, caiu a produção de carnes, leite e derivados. Alterações ecológicas também se fizeram sentir como consequência dessa busca desordenada de terras para a agricultura. Muito provavelmente, o desmatamento tenha sido o responsável pelas transformações no regime pluvial, fazendo as violentas e constantes chuvas atingirem a maior parte da Europa em 1314 e 1315, provocando colheitas desastrosas. Os índices de mortalidade se ampliaram con- sideravelmente como resultado da fome que abriu caminha a várias epidemias que assolaram o continente europeu. Tal declínio demográfico levou a uma diminuição do consumo de bens artesanais, levando a retração desse setor e conse- quentemente do comércio. A falta de metais também pode ser apontada como um elemento da crise feudal. Porém, cabe salientar que o proble- Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 11 ma residia não na ausência de minérios no subsolo do con- tinente europeu, e sim na incapacidade tecnológica europeia de extraí-los. A queda na produção de metais preciosos e o entesouramento de moedas devido a menor oferta de mer- cadorias levaram às constantes desvalorizações monetárias. Desse modo, os preços subiam e o setor produtivo tornava-se mais débil. A crise demográfica, já sentida desde o século XIII irá agravar-se drasticamente com a chegada da Peste Negra, também conhecida por Peste Bubônica, iniciada em meados do século XIV. Decorrente da expansão ocidental ao criar co- lônias comerciais em locais em que a peste sempre existiu de forma endêmica, a epidemia irá provocar a perda de quase um quarto da população europeia. Os locais mais atingidos foram aqueles de maior concentração humana. Entre suas víti- mas, encontravam-se indiscriminadamente pobres e ricos, ho- mens e mulheres, adultos e crianças. Portanto, a sobrevivência maior dos ricos explica-se por sua capacidade de refugiar-se em locais menos infectados. As consequências dessa epidemia não se limitaram, entre- tanto, às perdas demográficas. A mesma encontra-se direta- mente relacionada às transformações nas relações de trabalho. Por exemplo, um menor número de mão de obra disponível aos senhores força-os a utilizarem mão de obra assalariada, diminuindo a dependência dos servos sobreviventes. Por outro lado, a desorganização gerada por tal fenômeno contribuiu para facilitar e até mesmo incentivar a fuga de ser- vos, o que permitiu aos trabalhadores assalariados reivindica- rem melhores salários, uma vez que passaram a ser cada vez mais necessários. 12 História Moderna - Século XV ao XVI A crise social Outro aspecto desse declínio feudal está intimamente ligado à crise social que caracterizou a sociedade europeia daquele momento. Tal crise manifestou-se não somente nas mudanças ocorridas na composição das camadas sociais, mas também nas relações entre elas. A nobreza laica e clerical com a crise econômica passou a comutar as obrigações camponesas em produtos e servi- ços por rendas monetárias. Porém, com a desvalorização da moeda, a aristocracia perderá progressivamente seu poder aquisitivo. Tais perdas aprofundaram-se conforme os preços dos cereais foram caindo. Desse modo, as dificuldades econô- micas, a peste e uma verdadeira mudança psicológica decor- rente de todos esses fenômenos levaram à queda das taxas de natalidade desse segmento social. Como nos aponta Hilário Franco Júnior em sua obra “A crise”: muitas famílias nobres desapareceram. Nos séculos XIV-XV, a cada seis gerações, em média, extinguia-se uma linhagem. (FRANCO JÚNIOR, p. 83). Quebrou-se aos poucos a identidade clero-nobreza uma vez que o recrutamento dos membros da Igreja passou a ocorrer também em outras camadas sociais. A nobreza civil, por sua vez, também passou a renovar seus quadros com indivíduos de outras origens sociais, seja por meio de casamentos com membros da burguesia, da burocracia monárquica e até mes- mo com campesinos enriquecidos. Desse modo, a sociedade europeia que até então vivia sob uma rigidez social intensa, caracterizando-se enquanto uma so- ciedade de ordens, passará a constituir-se em uma sociedade Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 13 estamental, na qual o indivíduo está em um certo grupo social, o que pressupõe a possibilidade de mudança. Como exemplo desse fenômeno, podemos citar os inúmeros casos de burgue- ses enriquecidos que irão se aproveitar da ruína de muitos no- bres comprando destes suas terras, e até mesmo seus títulos de nobreza, levando assim para o mundo rural uma outra lógica que não aquela do tradicional mundo feudal. Quanto à realidade dos camponeses, a crise econômica e demográfica deu origem a um campesinato livre e enrique- cido. Esse fenômeno fora decorrente fundamentalmente por parte de alguns senhores feudais debilitados economicamente que passaram a substituir as obrigações feudais dos campo- neses em espécie e trabalho para pagamentos em dinheiro. Ao vender seu excedente produtivo nas feiras locais, parte do campesinato conseguiu, com o passar dos tempos, comprar sua liberdade ao senhor e, ao aproveitarem-se do surgimento de áreas despovoadas pela peste, conseguiram adquirir assim suas próprias terras. Esse fenômeno, para alguns historiadores, teria se constituído no determinante para o desencadeamento da crise do sistema feudal. Essa é a posição, por exemplo, de Giuliano Comte (IIII), o que pode ser observado nas palavras do próprio autor: a última forma sob a qual surge historica- mente a renda na sociedade feudal é a renda em dinheiro. Ela é, em primeiro lugar, a simples transformação da renda em produtos: em vez de confiar ao senhor uma parte mais ou me- nos importante do seu subproduto, agora o camponês produ- tor direto deve primeiro levar esse excedente para o mercado, transformá-lo em dinheiro e entregá-lo ao senhor na sua forma monetária. Em segundo lugar, porém, essa transformação da renda em uma pura relação monetária é, simultaneamente, 14História Moderna - Século XV ao XVI quer a forma de manifestação de transformações profundas na economia feudal, quer um poderoso acelerador dos processos de transformação e de crise do sistema feudal. Entretanto, é preciso destacar que, se por um lado, como foi exposto acima, a crise deu origem a um campesinato en- riquecido, por outro lado, em algumas regiões, verificou-se o oposto. Isto é, alguns senhores frente às dificuldades enfrenta- das acabaram por enrijecer os laços de dependência campe- sina. Tal fenômeno ficou conhecido por “reação senhorial” e refere-se à realidade histórica principalmente da Inglaterra, e não a realidade do Ocidente como um todo. Duas foram as principais formas desse revigoramento da exploração campe- sina: renunciando às taxas monetárias fixas pagas pelos tra- balhadores e reimpondo as antigas obrigações em produtos e serviços ou ainda estagnando a alta salarial. A expressão mais nítida dessa última medida se expressa na legislação surgida em meados do século XIV na Inglaterra, Portugal, Catalunha, Aragão, França e Castela cujo objetivo fora congelar os preços e salários, Como decorrência dessas medidas e da realidade econômica da época é que irão eclodir as famosas subleva- ções camponesas conhecidas popularmente por “Jacqueries”. Abaixo, segue um trecho de um documento de época extraído da Chronique dês quatre premiers Valois (1327-1393) que re- vela a imagem que as classes dominantes tiveram e construí- am sobre essas revoltas populares: (...)... E quando os Jaques se viram em grande número, perseguiam os homens nobres, mataram vários e ainda fi- zeram pior, como gente tresloucada fora de si e de baixa condição. Na realidade, mataram muitas mulheres e crian- Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 15 ças nobres, pelo que Guilherme Carlos lhes disse muitas vezes que se excediam demasiadamente, mas nem por isso deixaram de o fazer. A crise política Passemos agora à crise política que atingiu o mundo feudal. Esta se caracterizou, sobretudo, pela volta da centralização política nas mãos dos monarcas. Se no decorrer dos séculos de apogeu do feudalismo (IX-XIII) os monarcas constituíram-se muito mais em suseranos do que soberanos, conforme a no- breza ia se debilitando economicamente e seus poderes locais se perdendo, os reis foram progressivamente voltando a ser cada vez mais soberanos. Desse modo, dirigia-se cada vez mais para uma unificação jurídica centrada na figura do rei, minando, assim, as prerrogativas existentes até então das ju- risdições feudais. As estratégias desses monarcas de modo a retomar a centralização política em suas mãos vão desde o apoio que forneceram à burguesia, no sentido de conquistar a liberdade das cidades do jugo dos senhores feudais, fenôme- no conhecido por “Movimento Comunal”, até o incentivo ofe- recido à libertação de servos. Podemos ainda citar o resgate do Direito Romano na busca de legitimação e fortalecimento do poder real. O maior prestígio real fora ainda favorecido pelo desenvolvimento de um sentimento nacionalista, uma vez que o rei era percebido como o símbolo e representante da coletividade. Nesse sentido, a Guerra dos cem Anos (1337- 1453) contribuiu significativamente para a projeção política dos monarcas envolvidos nesse conflito, bem como para uma 16 História Moderna - Século XV ao XVI maior centralização política, uma vez que era preciso arregi- mentar tropas para uma área geográfica bem mais ampla que nos embates feudais. Os efeitos dessa guerra deixam claro, sobretudo, o quanto a crise fora orgânica fazendo as suas ma- nifestações em cada setor se refletirem nos demais. Assim, a guerra não apenas contribuiu para a volta da centralização do poder nas mãos do monarcas, como também acabou por pro- vocar, em função das migrações decorrentes, uma maior mo- bilidade social, o enriquecimento de uns e o empobrecimento de outros, bem como o fim de muitos laços de dependência pessoal, recrudescendo desse modo a crise social e política. Da mesma forma, a guerra contribuiu para aprofundar a crise econômica ao devastar territórios, levar a perda de colheitas e rebanhos, o endividamento das monarquias decorrentes de empréstimos contraídos no decorrer do conflito, forçando, as- sim, a alta dos preços e a desvalorização monetária. Enfim, nenhum setor permaneceu imune à crise feudal. A crise militar Quanto à crise militar, também vivenciada nesse período, cabe destacar, em primeiro lugar, que não podemos desvinculá-la da política. Paralelo à volta da centralização política nas mãos dos monarcas, assistia-se também ao fenômeno da nacionali- zação da defesa, culminando, inclusive, quando da formação dos Estados Nacionais com o fim das prerrogativas da aristo- cracia de manterem seus exércitos particulares. No que se re- fere às mudanças na tecnologia bélica, o surgimento da besta no século XII é fato que chama a atenção não apenas pela Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 17 violência de seus arremessos, mas, sobretudo, pela comoção social causada, sendo considerada arma abominada por Deus e indigna de um cristão, o que culminou com a proibição de seu uso pela Igreja em 1139. Mudança significativa aconteceu nesse setor no decorrer do século XIV, quando as lutas nacionalistas e sociais passa- ram a ter como objetivo destruir o inimigo e não mais apenas aprisioná-lo como nos combates feudais. Já na Guerra dos Cem Anos, os arqueiros ingleses mostra- ram como a cavalaria feudal tinha se tornado uma arma obso- leta. Porém, será somente com o desenvolvimento da arma de fogo que a mesma irá se tornar definitivamente ultrapassada, levando a artilharia a assumir um papel central nos combates. Como resultado de todas essas mudanças, assistimos a perda da função militar dos cavaleiros, e como decorrência de seu prestígio e de seu poder. A crise clerical e espiritual Ao referirmo-nos à crise clerical, temos que pensar nas duas forças que, no contexto da Europa feudal, se pretendiam uni- versalistas: a Igreja católica representada na figura do Papa e o Imperador. Essa tensão terá um dos seus momentos mais mar- cantes no decorrer do século XI quando irá eclodir a “Ques- tão das Investiduras”. Tal contenda consistiu no conflito entre Igreja e Estado na Europa Medieval. No transcurso dos séculos XI e XIII, uma série de papas lutaram contra a intromissão das 18 História Moderna - Século XV ao XVI monarquias europeias nas nomeações de bispos, abades e dos próprios papas. Após muitas desavenças, o conflito foi re- solvido com a assinatura da Concordata de Worms em 1122. Entretanto, o desgaste de ambas as forças acabou por abrir vazios de poder que foram preenchidos pelos nascentes na- cionalismos. Exemplo mais contundente da perda de parte do poder da Igreja Católica irá ocorrer na França. As divergências entre o rei da França Filipe II, o Belo, e a Igreja irão intensi- ficar-se quando àquele em decorrência de uma crise econô- mica decidiu forçar o clero a pagar impostos sobre os bens da Igreja em território francês. Cabe lembrar que até então a Igreja gozava de inúmeras prerrogativas, entre elas a isenção de tais cobranças. Afrontando os privilégios da Igreja Católica Filipe IV irá enfrentar forte oposição do Papa Bonifácio VIII, o qual ameaçou até mesmo excomungá-lo. Os conflitos com a Igreja irão se acirrar culminando com a morte do Papa em 1303. Com o apoio da sociedade, o rei irá interferir na esco- lha do substituto de Bonifácio VIII, sendo eleito como papa o francês Clemente V. Pressionado pelo rei Clemente V, irá trans- ferir a sede do papado de Roma para a cidade de Avignon, no sul da França. No decorrer de um período de setenta anos (1303-1373), conhecido como “Cativeiro da Babilônia”, vá- rios papas permaneceram sob a tutela dos reis franceses. A transferênciado papado para Avignon não teve aceitação de boa parte do clero romano, culminando na eleição de outro papa em Roma, seguido mais tarde da escolha de um terceiro de pouca duração, na cidade de Piza. Essa divisão da cristan- dade ficou conhecida por “Cisma do Ocidente”. A solução para o conflito veio em 1417, quando foi eleito um único Papa Martim V, voltando Roma a abrigar a sede do papado. Entre- Capítulo 1 A crise do feudalismo europeu 19 tanto, o desgaste da Igreja Católica foi inevitável, levando o clero e muitos fiéis a pensarem em termos de igrejas nacionais. Não é a toa que na Inglaterra, no decorrer do século XIV e na França a partir do século XV, o espaço de atração do papado fora, por determinação real, bastante limitado. Cabe lembrar ainda as heresias surgidas a partir do século XIII em uma clara demonstração de que a insatisfação com a Igreja Católica se refletia em todos os escalões, não somente no topo da hierarquia eclesiástica. Passemos à crise espiritual. Esta irá se manifestar por parte dos fiéis desiludidos com a Igreja, seja na busca da salvação em uma relação direta com Deus, seja na angústia coletiva gerada pelos fenômenos que tanto atormentaram os homens dos séculos XIV e XV: a guerra, a fome e a peste. Cabe lembrar que, nessa época, toda e qualquer desgraça era entendida pela sociedade europeia como um verdadeiro castigo divino. Assim, aos olhos daquela população amedrontada, a Igreja Católica não lhes parecia mais capaz de salvar suas almas. Para encerrarmos nosso capítulo cujo objetivo fora a compreensão da crise do modo de produção feudal, cabe destacar que, se o final da Idade Média fora marcado por um quadro de depressão europeia, o início dos Tempos Mo- dernos irá se apresentar justamente como o momento de so- lução dessas encruzilhadas. Nesse sentido, no próximo capítulo, apresentarmos o caminho encontrado pelos europeus para a volta de uma estabilidade política há muito perdida: a formação dos Es- tados Modernos. A Formação do Estado Moderno na Europa Victor Lourenço dos Santos Júnior Capítulo 2 Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 21 Para compreender a formação do Estado Absolutista na Euro- pa, sobretudo os mecanismos de legitimação, é preciso con- siderar o contexto do momento, o processo de transição do feudalismo para o capitalismo e mudanças associadas aos movimentos do Renascimento Cultural, Reforma e Contra Re- forma religiosas, as mutações no mundo da economia e da política, no cotidiano e na cultura. Uma visão geral do quadro da época, coloca o século XV no início de um novo período histórico para a Europa Ocidental, quando possuir terras já não era sinônimo de po- der. As relações sociais de dominação e exploração já não eram as mesmas do mundo feudal, e mudanças qualitativas na economia abriam espaço para um nova ordem política e social. O mundo Moderno tem suas origens no feudalismo e se desenvolveu na direção oposta, o capitalismo. "Foi um período de consolidação dos ideais de progresso e desen- volvimento, que reforçou o pensamento racionalista e indi- vidualista, valores burgueses que iriam demolir o universo ideológico católico feudal". O capitalismo comercial estruturou-se a partir do século XV como a nova ordem socioeconômica. A partir daí, a nobreza, cuja posição social era ainda garantida por suas propriedades rurais e títulos, passou a buscar meios para se impor segundo os novos padrões econômicos. A burguesia nascente começa- va a prosperar nos negócios, mas ainda estava longe de ser a classe dominante. Somente no final da Idade Moderna é que a burguesia reuniria forças para edificar uma nova ordem social. Nesse período, de transição, do Séc. XV a XVIII, reforçou-se a importância do comércio e da capitalização, as bases do 22 História Moderna - Século XV ao XVI sistema capitalista. Como decorrência, um novo estado, novas normas e novos valores foram gerados segundo as novas exi- gências do homem ocidental. Os principais aspectos da constituição do estado moderno podem ser colocados e compreendidos, em termos teóricos, a partir do trabalho do historiador marxista Perry Anderson. Con- forme Anderson, a longa crise da economia e da sociedade durante os séculos XIV e XV marcou as dificuldades e limites do modo de produção feudal na Europa, mas foi somente no cur- so do século XVI que o estado absolutista começou a emergir. "As monarquias centralizadas da França, Inglaterra e Espanha representavam uma ruptura decisiva com a soberania pirami- dal e parcelada das formações sociais medievais, com o seu sistema de propriedade e de vassalagem". (Conf. P. Anderson, 1985, p. 15) Historiadores ainda discutem sobre o problema da natureza social do absolutismo para a explicação da passa- gem do feudalismo ao capitalismo na Europa, e dos sistemas políticos. "As monarquias absolutas introduziram os exércitos regulares, uma burocracia permanente, o sistema tributá- rio nacional, a codificação do direito e os primórdios de um mercado unificado", características que o autor aponta como eminentemente capitalistas, "uma vez que coincidem com o desaparecimento da servidão – instituição nuclear do primitivo modo de produção feudal na Europa". No entanto, ele lembra que o fim da servidão não significou o desaparecimento das relações feudais no campo. As relações de produção no meio rural eram ainda feudais. Durante toda a fase inicial da época moderna, a classe do- minante era a mesma da época medieval, a aristocracia feu- Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 23 dal, os senhores que permaneceram proprietários dos meios de produção fundamentais para uma sociedade pré-industrial. Essa nobreza passou por profundas mudanças ao longo do tempo, mas, desde o princípio até o final do Absolutismo, nun- ca foi desalojada de seu domínio do poder político. As alterações nas formas de exploração do trabalho, leia- -se extração de excedente, sobrevindas no fim da idade média, conduziram a mudanças na configuração do estado. Confor- me Anderson, o absolutismo era, naquele momento, um apa- relho de dominação feudal recolocado e reforçado, destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição social tradicio- nal. O Estado absolutista era a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada. O feudalismo, como modo de produção, definia-se com uma unidade orgânica de economia e dominação política, distribuída em uma cadeia de soberanias parcelares por toda a formação social. A instituição do trabalho servil, como me- canismo de extração de excedente, unia a exploração eco- nômica e a coerção político legal. O senhor, por sua vez, tinha o dever de vassalagem e de serviço militar para com o seu suserano senhorial, que reclamava a terra como seu domínio supremo. Segundo o historiador, as obrigações se transformaram em rendas monetárias e, com isso, a unidade celular de opressão política e econômica do campesinato foi gravemente debilitada e ameaçada de dissolução. O final desse processo foi a instituição do trabalho livre e o contrato salarial. Como resultado, o poder da classe dos senhores feudais estava em risco com o gradual desaparecimento da servidão. Ocorreu um deslocamento da coerção político le- 24 História Moderna - Século XV ao XVI gal no sentido ascendente, em direção a uma cúpula cen- tralizada e militarizada, configurando o estado absolutista. O poder que estava diluído no nível da aldeia passa a ser concentrado no nível nacional. Emergiu um aparelho refor- çado de poder real, cuja função política permanente era a repressão das massas camponesas e plebeias. No entanto, essa nova máquina política estava dotada de uma força de coerção capaz de vergar ou disciplinar indivíduos ou grupos dentro da própria nobreza, ou seja, o absolutismo nãofoi um suave processo de evolução. Ao contrário, foi marcado por rupturas e conflitos agudos no seio da aristocracia. "O complemento objetivo da concentração política de po- der no topo da ordem social, em uma monarquia centralizada, foi a consolidação econômica das unidades de propriedade feudal. Com a expansão das relações mercantis, a dissolução do nexo primário de exploração econômica (servidão) e de coerção político legal conduziu a um fortalecimento compen- satório dos títulos de propriedade. Em outras palavras, com a reorganização de todo sistema político feudal e com a diluição do primitivo sistema do feudo, a propriedade, a terra, tendia a tornar-se menos condicional conforme a soberania se tornava mais absoluta. O enfraquecimento das concepções de vassa- lagem atuava nesse sentido: conferia novos e extraordinários poderes à monarquia e emancipava os domínios da nobreza das restrições tradicionais". Nesse processo, os membros da aristocracia, ao mesmo tempo em que perderam direitos políticos de representação, registraram ganhos econômicos. Para Anderson, os efeitos dessa redisposição geral do poder social da nobreza foi a Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 25 criação dessa máquina de estado e a ordem jurídica do Abso- lutismo, cuja coordenação iria aumentar a eficácia da domi- nação, sujeitando o campesinato não servil a novas formas de dependência e de exploração. Em resumo, os estados monár- quicos do período foram os instrumentos modernizados para a manutenção do domínio da nobreza sobre as massas rurais. Contudo, a aristocracia teria que se adaptar a um novo anta- gonista de classe – a burguesia mercantil, que se desenvolveu nas cidades medievais. A existência dessa terceira classe, de certa forma, impediu a nobreza ocidental de ajustar suas con- tas com o campesinato à maneira oriental, ou seja esmagando a sua resistência. A cidade medieval conseguiu desenvolver-se porque a dis- persão hierárquica de soberanias no modo de produção feu- dal libertou as economias urbanas da dominação direta de um classe dirigente rural. A existência das cidades afetava a ordem política e econômica do feudalismo. Indústrias urbanas importantes como a do ferro, papel e têxteis cresceram durante toda a depressão feudal. O período entre 1450 e 1500 foi marcado pelo surgimento das monarquias absolutistas e nele foi superada a longa crise da economia feudal, por meio da recombinação de fatores de produção, quando, pela primeira vez, os avanços técnicos especialmente urbanos desempenha- ram o papel principal. Uma série de invenções coincide com a passagem da era medieval à moderna. A descoberta de um novo processo de separação da prata do minério bruto reabriu as minas da Eu- ropa central e restabeleceu o fluxo de metais para a economia. O desenvolvimento do canhão fundido em bronze se tornou 26 História Moderna - Século XV ao XVI na arma decisiva na arte da guerra, tornando obsoletas as defesas dos castelos medievais. A invenção dos tipos móveis possibilitou o advento da imprensa e também a construção de galeão de três mastros tornou os oceanos navegáveis. Todas essas rupturas técnicas, que assentaram os alicerces da Renas- cença europeia, ocorreram na segunda metade do século XV, e só então a depressão agrária foi finalmente superada. Nesse período, ocorreu uma restauração da autoridade e da unidade política, em um país após o outro. "Do abismo de agudo caos e turbulência medievais das Guerras das Duas Rosas, da Guerra dos Cem anos e da segunda guerra civil de Castela, as primeiras novas monarquias ergueram-se pra- ticamente ao mesmo tempo, durante os reinados de Luís XI, na França; Fernando e Isabel, na Espanha; Henrique VII, na Inglaterra; e Maximiliano, na Áustria". Segundo o autor, quan- do os Estados absolutistas se constituíram, sua estrutura foi fundamentalmente determinada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato, após a dissolução da servidão, mas ela foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão da bur- guesia urbana que, depois de uma série de avanços técnicos e comerciais, evoluía agora em direção às manufaturas pré- -industriais em uma escala considerável. Em outras palavras, a grande ameaça para a aristocracia era, em primeiro lugar, o campesinato, ainda que a ascensão econômica da burguesia também representasse um perigo a sua dominação política. Perry Anderson cita Karl Marx que, ao discutir as novas descobertas marítimas e as indústrias manufatureiras da Re- nascença, escreveu assim: "Esta poderosa revolução nas con- dições da vida econômica da sociedade não foi seguida, en- Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 27 tretanto, por qualquer mudança imediata correspondente em sua estrutura política. A ordem política permaneceu feudal, ao passo que a sociedade tornava-se cada vez mais burguesa." (idem, p. 23). Conforme explica, a ameaça camponesa, incontestavel- mente constitutiva do Estado absolutista, sempre se conju- gou com a pressão do capital mercantil ou manufatureiro no seio das economias ocidentais em seu conjunto, moldando os contornos do poder de classe aristocrático na nova era. A forma peculiar do estado absolutista no ocidente deriva des- sa dupla determinação, segundo Anderson. Essas duas forças encontraram uma condensação jurídica única ao promover o reflorescimento do Direito Romano. Considerado um dos grandes movimentos culturais daquela época, correspondeu de modo ambíguo às necessidade de ambas as classes so- ciais, cuja posição e poder desiguais moldaram as estruturas do estado absolutista. As razões históricas do profundo impacto que o Direito Ro- mano exercia foram de duas ordens e refletiram a natureza contraditória do próprio legado romano original. Do ponto de vista econômico, a recuperação e a introdução do direito civil clássico foram propícias às expansão do livre capital na cida- de e no campo, pois a grande marca distintiva do direito civil romano era a sua concepção de propriedade privada absoluta e incondicional. Esse ressurgimento era resultado de esforços jurídicos realizados para endurecer e delimitar as noções de propriedade. A noção de propriedade privada absoluta da ter- ra foi um produto do início da época Moderna. 28 História Moderna - Século XV ao XVI De acordo com o historiador, o ressurgimento do Direi- to Romano se deu por uma série de razões, a saber: a su- perioridade do direito para a prática mercantil nas cidades se assentava não somente na noção de propriedade como também na tradição de equidade, nos critérios racionais de prova e na ênfase dada a uma magistratura profissional. Do ponto de vista político, afirma Anderson, o Direito Romano respondia às exigências constitucionais dos estados feudais que se reorganizavam naquela época. "A famosa máxima de Ulpiano – a vontade do príncipe tem força de lei – tornou-se o ideal constitucional das monarquias do Renascimento. A noção complementar de que os reis e os príncipes eram eles próprios isentos de restrições legais anteriores proporciona- va os protocolos jurídicos para a supressão dos privilégios medievais, ignorando os direitos tradicionais e subordinando as imunidades privadas". A transformação do direito refletia inevitavelmente a distribuição de poder entre as classes pro- prietárias da época. O absolutismo, enquanto aparelho de estado reorganizado, foi o principal arquiteto da assimilação do Direito Romano na Europa. Anderson afirma que o efeito supremo da modernização jurídica foi o reforçamento da do- minação da classe feudal tradicional. A aparente modernidade escondia, no entanto, um arcaís- mo subterrâneo. Esse traço aparece quando são analisadas as inovações institucionais do absolutismo: o exército, a burocra- cia, a tributação, o comércio e a diplomacia. Tem-seapontado que o estado absolutista foi o pioneiro em constituir um exército profissional a partir da revolução mi- litar introduzida em fins do século XVI. Contudo, adverte An- Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 29 derson, tanto a forma como a função dessas tropas divergiam imensamente daquelas que depois se tornariam características do estado burguês moderno. Não se apresentavam como uma força nacional formada de recrutas, mas uma massa hetero- gênea na qual os mercenários estrangeiros desempenhavam um papel constante e central. Vinham de áreas externas ao perímetro das novas monarquias centralizadas. Conforme re- latou, os exércitos francês, holandês, espanhol, austríaco ou inglês contaram com mercenários albaneses, suíços, irlande- ses, turcos, húngaros ou italianos. A razão óbvia para isso foi a natural recusa da nobreza em armar os seus próprios campo- neses em larga escala. A importância dos mercenários, cada vez mais visível com o passar do tempo, não foi um expediente temporário do absolutismo, mas o marcaria até a sua extinção no ocidente. No final do século XVIII, um terço dos soldados era contratado no estrangeiro. A principal função social da guerra, nesse período, era a expansão dos rendimentos ao alcance da classe dominante. A produtividade agrícola não foi estagnada durante a idade média, nem se reduziu o volume de comércio. Ao contrário, ambos cresceram, mas em ritmo vagaroso se comparados com os súbitos e maciços ganhos propiciados pelas conquis- tas territoriais. Portanto, a definição social da classe dominante feudal era, sobretudo, militar. A guerra desempenhava uma função estratégica na racionalidade econômica então, era a maximização da riqueza e a nobreza era a classe de proprie- tários de terra cuja profissão era a guerra. O objetivo explícito da dominação da nobreza era o território, independentemente da população. Era a terra que definia o perímetro natural do seu poder. Maquiavel já dizia que a guerra é a única arte pró- 30 História Moderna - Século XV ao XVI pria dos governantes, e os estados absolutistas refletiram essa racionalidade arcaica na sua mais íntima estrutura. Perry Anderson assinala que é significativo o fato de que o primeiro imposto nacional e regular a ser instituído na França tenha sido criado para financiar as primeiras unidades milita- res regulares da Europa. O impulso em direção ao tipo mo- derno de monarquia administrativa teve início com as grandes operações navais de Carlos V contra os turcos no Mediterrâ- neo ocidental a partir de 1535. Calcula-se que, ao longo do século XVI, houve apenas 25 anos sem operações militares em larga escala na Europa. No século seguinte, passaram-se apenas sete anos sem guerras importantes entre os estados. O sistema fiscal e burocrático característico do estado ab- solutista se apresentava paradoxal, parecia representar uma transição ao modelo legal racional de Max Weber, mas a bu- rocracia da Renascença era tratada como propriedade vendá- vel a indivíduos privados. Assim, conforme Anderson, o modo predominante de integração da nobreza feudal ao Estado as- sumiu a forma da aquisição de cargos. Aqueles que adqui- riam, por via privada, uma posição no aparelho de Estado poderiam, depois, se ressarcir do gasto por meio do abuso dos privilégios e da corrupção. A expansão da venda de cargos foi um dos subprodutos mais surpreendentes da crescente mone- tarização das primeiras economias modernas e da ascensão da burguesia. Além da venda de cargos, que era um meio indireto de aumentar os rendimentos vindos da nobreza e burguesia mer- cantil, o Estado Absolutista também tributava os pobres. As- Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 31 sim, a transição econômica das obrigações em trabalho para as rendas em dinheiro, no Ocidente, foi acompanhada pelo surgimento dos impostos régios lançados para as guerras, os quais, na longa crise do fim da Idade Média, tinham sido um dos principais motivos dos desesperados levantes campone- ses. Uma cadeia de revoltas camponesas voltadas claramente contra a cobrança de impostos explodiu em toda a Europa. Não existia a concepção jurídica de cidadão sujeito ao fisco pelo fato de pertencer a uma nação. Na prática, a classe se- nhorial estava isenta de impostos diretos. As funções econômicas do Absolutismo não se esgota- vam no seu sistema tributário. O Mercantilismo foi a doutrina dominante na época e apresenta a mesma ambiguidade da burocracia destinada a impô-lo. Anderson afirma que o Mer- cantilismo requeria a supressão de barreiras particularistas no interior da monarquia nacional e empenhava-se em criar um mercado interno unificado para a produção de mercadorias. E mais, com o objetivo de aumentar o poder do Estado diante dos outros Estados, encorajava a exportação de mercadorias, ao mesmo tempo que proibia exportações de ouro e prata e de moeda, na crença de que existia uma quantidade fixa de comércio e de riqueza no mundo. "O Estado era o sujeito e o objeto da política econômica mercantilista". O Mercanti- lismo, portanto, representava as concepções de uma classe dominante feudal que se adaptara a um mercado integrado e preservara ainda a sua perspectiva. O mercantilismo era precisamente uma teoria da intervenção coerente do Estado político no funcionamento da economia, no interesse comum da prosperidade de uma e do poder do outro. A teoria mer- 32 História Moderna - Século XV ao XVI cantilista era fortemente belicista e enfatizava a necessidade e a rentabilidade da guerra. O comércio e a guerra, conforme se lê na obra consultada, não eram as únicas atividades externas do Estado Absolutista no Ocidente. O seu outro esforço era investir na diplomacia, uma das grandes invenções institucionais da época moder- na. No século XVI, a diplomacia foi a marca de nascença do Estado Renascentista. Com o seu surgimento, nasceu na Eu- ropa um sistema de política internacional, no qual havia uma perpétua sondagem dos pontos fracos do meio ambiente de um Estado ou dos perigos provenientes de outros Estados. Até então, como a Europa medieval nunca teve um conjunto cla- ramente demarcado de unidades políticas, não havia possi- bilidade de surgir um sistema diplomático formal, pois não havia uniformidade ou equivalência dos parceiros. O conceito de cristandade latina, a qual pertenceriam todos os homens, fornecia uma matriz ideológica universalista para os conflitos e decisões, sendo o reverso da extrema heterogeneidade par- ticularista vigente até então. A contração da pirâmide feudal nas novas monarquias centralizadas da Europa produziu, segundo Anderson, um sis- tema formalizado de pressão e intercâmbio entre Estados, com o estabelecimento das novas instituições – as embaixadas fixas no exterior. O primeiro dever do embaixador, dizia-se, é exa- tamente o mesmo de qualquer outro servidor de um governo, isto é, fazer, dizer, aconselhar e pensar aquilo que possa me- lhor servir à preservação e ao engrandecimento do seu próprio Estado. (Idem. p. 38) Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 33 A concepção ideológica do nacionalismo, tal como veio a se constituir, eram estranhas à natureza íntima do absolutis- mo. Ele afirma que os estados monárquicos da nova era não desdenhavam a mobilização dos sentimentos patrióticos em seus súditos, mas que a existência difusa de um protonaciona- lismo popular já começava a surgir, sendo indício da presença burguesa no seio do sistema político. A última instância de legitimidade, a origem da ordem dominante na época, estava na dinastia, não no território, e o Estado era concebido como patrimônio do monarca e, por extensão, os títulos de proprie- dade dele poderiam ser obtidos pela união das pessoas, daí que o supremo estratagema da diplomacia da época erao casamento – espelho pacífico da guerra. Considerando todos esses aspectos em seu conjunto, po- demos entender o estado absolutista que emergiu do feuda- lismo imensamente ampliado e reorganizado. Aquele tipo de estado era sobredeterminado pela expansão do capitalismo no seio das formações sociais em composição no período moderno inicial. Conforme afirma Anderson, tais formações sociais eram, naturalmente, uma combinação de diferentes modos de produção sob a dominância, em declínio, de um deles: o feudalismo. "Todas as estruturas do Estado absolutista revelam, portanto, a influência à distância da nova economia, em ação no quadro de um sistema mais antigo”. Proliferavam as capitalizações híbridas de formas feudais, cuja própria per- versão das instituições futuras (exército, burocracia, diploma- cia e comércio) constituía uma apropriação de objetos sociais passados para reproduzi-los. 34 História Moderna - Século XV ao XVI Uma nova ordem social estava sendo constituída. A burgue- sia no ocidente, já era forte o bastante para deixar sua marca na formação do Estado absolutista. O historiador aponta, no entanto, a presença do paradoxo do absolutismo na Europa: representava fundamentalmente um aparelho para a proteção da propriedade e dos privilégios aristocráticos, embora, ao mesmo tempo, os meios através dos quais tal proteção era promovida pudessem assegurar os interesses básicos das clas- ses mercantis e manufatureiras emergentes. O estado absolu- tista centralizou crescentemente o poder político e esforçou-se por criar sistemas jurídicos mais uniformes. Também aboliu grande número de barreiras internas ao comércio e patrocinou tarifas externas contra concorrentes estrangeiros, entre outras políticas. Em outras palavras, cumpriu certas funções parciais na acumulação primitiva necessária ao triunfo ulterior do pró- prio modo capitalista de produção. Exército, burocracia, diplomacia e dinastia continuaram a ser um complexo feudal fortalecido que governava o conjun- to da máquina de estado e guiava os destinos. O domínio do Estado Absolutista era o da nobreza feudal na época de transição para o capitalismo. O seu fim assinalaria a crise do poder de sua classe: o advento das revoluções burguesas e a emergência do estado capitalista. Capítulo 2 A Formação do Estado Moderno na Europa 35 Atividades 1 – Do ponto de vista conceitual, qual a principal mudança verificada na formação dos novos Estados monárquicos? (A) – A aproximação dos governantes civis e membros da igreja. (B) – A centralização administrativa das estruturas de go- verno. (C) – A abolição das diferenças sociais. (D) – A criação de novos ministérios para atender deman- das antigas. (E) – O recrutamento de novos líderes entre os camponeses. 2 – Na dimensão social, uma grande transformação foi a criação dos exércitos regulares. Qual foi a grande trans- formação nas relações de trabalho? (A ) – Incorporação de vantagens hereditárias. (B ) – Abolição do tráfico de escravos. (C ) – Redução nos privilégios dos senhores feudais. (D ) – Fim da servidão e começo do trabalho assalariado. (E ) – A introdução das técnicas orientais. 36 História Moderna - Século XV ao XVI 3 -Sobre a Transição do modo de produção feudal ao pré- -capitalista, como podemos definir este momento? (A ) – De grande esperança com as novas condições de trabalho. (B ) – De desespero e tirania entre os diferentes povoados. (C ) – De coexistência de características do antigo e de novo modo de produção. (D ) – De extrema turbulência e agitação entre as camadas médias da população. (E ) – De aparente revolta em meio a incertezas decorrentes da crise. A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso Victor Lourenço dos Santos Júnior Capítulo 3 38 História Moderna - Século XV ao XVI Caso da Espanha Espanha, França e Inglaterra tomaram a liderança no processo de formação do Estado na Idade Moderna, cada um a seu tempo e, pela ordem, cada um cumpriu uma função para a constituição das bases do Capitalismo no Ocidente. Após a leitura dos aspectos teóricos do Absolutismo, em tese, comuns a todos os estados, é preciso analisar os estados que vieram a se constituir nos diferentes países europeus, os quais não podem ser assimilados, isto é, reduzidos a um tipo puro único. Segundo Perry Anderson, os estados Renascentistas apresen- tavam amplas diferenças, com consequências cruciais para a história desses países, que ainda hoje se fazem sentir. O exa- me dessas variações é o complemento necessário a qualquer abordagem da estrutura geral, isto é, teórica, do Absolutismo do Ocidente. A Espanha, primeira grande potência da Europa Moderna, será o ponto de partida lógico. De acordo com o historiador, a ascensão da Espanha sob a dinastia dos Habsburgos não foi um mero episódio na cons- trução do aparelho estatal na Europa. Constitui-se em uma tendência determinante, que vem a ser o processo geral de absolutização do poder no Estado. Por isso, a Espanha ocupa uma posição qualitativamente distinta. O alcance e o impac- to do absolutismo espanhol foi mais influente que as demais monarquias. A pressão internacional exercida pela Espanha atuou como uma sobredeterminação dos padrões nacionais nos outros pontos do continente, devido à desproporção de riqueza e poder de que dispunha. Assim, todo o sistema estatal Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 39 que surgiu na Idade Moderna foi afetado pela concentração de recursos na Espanha. A monarquia espanhola devia a sua supremacia a uma combinação de aspectos: a casa dos Habsburgos beneficiou- -se dos pactos da política dinástica de casamentos. Conforme Perry Anderson, as relações de parentesco da família Habsbur- go renderam ao Estado uma escala de territórios e influência que nenhuma outra monarquia igualaria. O outro aspecto re- sidiu na conquista colonial no Novo Mundo, que proporcio- nou abundância de metais preciosos. Segundo Anderson, con- duzida e organizada no interior de estruturas ainda senhoriais, isto é, feudais, a pilhagem das Américas foi um dos atos mais espetaculares da acumulação primitiva do capital europeu du- rante a Renascença. O absolutismo espanhol buscou forças tanto no legado interno como no saque ultramarino, assumin- do um caráter aristocrático e indiferente ao desenvolvimento burguês. O seu precoce controle das minas na América, com sua economia de extração tosca, mas lucrativa, desmotivou o estado de promover o crescimento das manufaturas ou de fo- mentar a difusão da empresa mercantil no seio de seu império europeu. Os domínios da Espanha aumentaram e seu poder sufocou a vitalidade urbana do norte da Itália e esmagou as florescentes cidades dos Países Baixos – as duas regiões mais avançadas da economia na virada do século XVI. O absolutismo espanhol nasceu da união de Castela e Aragão, efetivada pelo casamento de Isabel I e Fernando II, em 1469. Começou com uma base econômica firme e, no período de escassez de mão de obra, áreas crescentes de Cas- tela foram convertidas em lucrativa economia lanífera. Aragão 40 História Moderna - Século XV ao XVI já era há muito tempo uma potência territorial e comercial no Mediterrâneo, com o controle da Sicília e da Sardenha. O dinamismo desse novo estado logo iria se revelar por meio de extensas conquistas externas. Quando Granada foi destruí- da, completou-se a Reconquista dos territórios ocupados pelos Mouros. E mais, Nápoles foi anexada e Navarra, absorvida. Acima de tudo, a conquista da América. Segundo Anderson, essa avalanche de sucessos fez da Espanha a primeira potên- cia da Europa por todo o Século XVI. Contudo, o Estado que presidia esse vasto império era uma armação em ruínas, unida apenas pela pessoa do monarca. "O absolutismoespanhol, tão terrível para o protestantismo, foi notavelmente modesto e limitado em seu desenvolvimento interno”. As razões desse paradoxo devem ser procuradas na curiosa relação triangular estabelecida entre o império americano, o império europeu e as pátrias ibéricas. Em uma visão resumida desse processo, os reinos de Cas- tela e Aragão representavam uma base extremamente diversa para a construção da nova monarquia espanhola no final do Século XV, conforme afirma P. Anderson. Castela era, naquela época, uma aristocracia de enormes propriedades e podero- sas ordens militares. A nobreza castelhana se apoderara de vastas extensões de terras agrícolas, concentrando 97% das propriedades em mãos de 2% da população. As cidades de Castela e sua frota de navios se beneficiaram da prosperidade da economia pastoril na última fase da Espanha medieval. O reino de Aragão apresentava agudo contraste com a situação de Castela, no plano econômico e no político. Era constituído por três principados: Aragão, Catalunha e Valência. O interior montanhoso de Aragão abrigava o mais repressivo sistema se- Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 41 nhorial da península. A aristocracia local estava investida em uma série de poderes feudais nas zonas rurais, onde ainda sobrevivia a servidão e um campesinato mourisco cativo. A cidade de Barcelona, na Catalunha, foi o centro comercial do Mediterrâneo. As epidemias do século XIV castigaram a re- gião, retornando repetidas vezes, depois da Peste Negra, para devastar a população. Estima-se que entre 1365 e 1497 mais de um terço da população morreu vítima da peste. As características medievais desses dois reinos se mostra- vam refratárias à construção de um absolutismo centralizado. A assimetria das ordens institucionais de Castela e Aragão iria traçar toda a trajetória da monarquia espanhola. Os dois mo- narcas puseram em marcha um programa metódico de reor- ganização administrativa. As ordens militares foram decapi- tadas, e anexados os seus territórios e rendimentos. Castelos foram demolidos, expulsos os senhores das zonas de fronteira e proibidas guerras privadas. A autonomia municipal das cida- des foi quebrada com a instalação de corregedorias para ad- ministrá-las, e a justiça real foi fortalecida e ampliada. Impor- tante foi o Estado ter tomado para si o controle dos benefícios eclesiásticos, separando o aparelho local da igreja da alçada do papado. Os rendimentos fiscais elevaram-se e a máquina de Estado foi sendo racionalizada e modernizada sem que a nova monarquia confrontasse à classe aristocrática. Já nas ci- dades, foi imposto à indústria urbana um sistema constritivo de corporações e a perseguição dos conversos levou ao êxodo de capitais dos judeus. Em Aragão, no entanto, nunca se tentou aplicar um pro- grama político desse mesmo alcance. Ao contrário, o máximo 42 História Moderna - Século XV ao XVI que se conseguiu foi a pacificação social e a restauração da constituição medieval da última fase. Longe de criarem um reino unificado, as duas majestades católicas fracassaram em estabelecer uma moeda única, sem falar do sistema fiscal e jurídico em comum. A Inquisição foi a única instituição unitária espanhola na época, entendida como “um elaborado apare- lho ideológico que compensava a divisão e a dispersão admi- nistrativa do Estado.” A ascensão de Carlos V deu início a uma nova fase. O re- sultado do advento de um soberano Habsburgo foi uma nova corte, formada por exilados flamengos, borgonheses e italia- nos. Logo as extorsões financeiras do novo regime geraram uma onda de intensa xenofobia em Castela. Ocorreu uma re- belião urbana contra o que chamavam de saque estrangeiro dos recursos e das posições de Castela. Uma revolta em 1520, dos comuneros, teve apoio de muitos nobres, mas a força mo- triz foram as massas populares de artesãos urbanos, sob a orientação dominante da burguesia, e nenhum eco no campo, seja no campesinato ou na aristocracia rural. O triunfo sobre as comunas castelhanas viria a separar o curso da monarquia espanhola daquele das suas parceiras ocidentais. O acontecimento espetacular do reinado de Carlos V foi a ampliação do império. Na Europa, os Países Baixos, o Franche- -Comté e Milão estavam anexados à Espanha. Nas Américas, o México e o Peru eram conquistados. Esta súbita expansão territorial reforçaria a tendência inicial do jovem estado abso- lutista espanhol à delegação de poderes, a partir da criação de Conselhos e vice-reis. Inspirados pelos ideais universalistas de Erasmo, os governantes esforçaram-se por dotar a massa Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 43 indomável do império Habsburgo de um poder executivo mais compacto e eficaz. É importante reter que as Américas estavam juridicamente vinculadas ao reino de Castela, enquanto o sul da Itália ao reino de Aragão. Assim, as economias atlântica e mediterrânea nunca se reuniram em um sistema comercial único. A divisão entre os dois reinos originais, constituintes do novo estado, era reforçada pelas possessões ultramarinas. Como consequência, a própria dispersão do Império Habsbur- go superou a sua capacidade de integração e ajudou a deter o processo de centralização administrativa dentro da Espanha. Uma sequência de guerras no continente europeu, promo- vida por Carlos V, teria um alto preço ao Estado Espanhol. Durante essas campanhas, a Itália foi dominada e a França empurrada de volta ao seu território, enquanto o Papado era isolado e a ameaça turca colocada à distância. Assim, a socie- dade urbana na Europa tornou-se uma vasta plataforma mili- tar para o absolutismo Espanhol. Apesar dessa expansão, Ale- manha e França ainda resistiam. Mais importante, os encargos financeiros de uma guerra constante afetaram gravemente a lealdade tradicional dos Países Baixos. O volume e o custo dos exércitos de Habsburgo sofreram rápida e regular escalada durante o governo de Carlos V. Antes de 1529, as tropas espa- nholas na Itália nunca passaram de 30 mil homens; em 1536 havia 60 mil soldados envolvidos na guerra com a França e, em 1552, já eram mais de 150 mil. Em 1556 as receitas de Carlos V tinham triplicado, mas os débitos eram tão elevados que o seu herdeiro teve que declarar a bancarrota do estado. Assim, dividido no aspeto administrativo, o império espa- nhol herdado por Filipe II no Velho Mundo começava a tornar- 44 História Moderna - Século XV ao XVI -se economicamente insustentável, cabendo então ao Novo Mundo reabastecer o tesouro e prolongar a sua desunião. A partir de 1560, os efeitos do império americano sobre o abso- lutismo espanhol passaram a ser cada vez mais determinantes. A descoberta das minas de Potosí aumentara muito o fluxo do tesouro colonial e o suprimento de imensas quantidades de prata tornou-se uma facilidade decisiva para o estado es- panhol: provia o Estado com um rendimento extraordinário e abundante, ou seja, o Absolutismo poderia continuar, ainda por muito tempo, a prescindir da unificação fiscal e adminis- trativa, que era a condição prévia para os outros estados em formação na mesma época. A contribuição total das rendas americanas ao orçamento espanhol foi, no entanto, muito menor do que se pensava. No auge dos carregamentos, os metais preciosos respondiam por até 25% de suas receitas, sendo que a maior parte da renda era fornecida pelos encar- gos domésticos de Castela. As enormes operações militares e navais somente foram possíveis em razão da grande flexibili- dade financeira (crédito) proporcionada pelo excedente vindo da América. Na primeira metade do século XVI, o modesto nível dos carregamentos vindos das colônias forneceu um es- tímulo às exportações de Castela, que logo respondeu com a inflação de preços que se seguiu ao descobrimento do tesourocolonial. Desenvolveu-se um próspero comércio, sobretudo de produtos têxteis, azeite e vinho. Nesse processo, duas distorções foram fatais para o con- junto da economia castelhana. A crescente demanda colonial levou a conversão de terras antes cultivadas com trigo e cere- ais para a cultura da vinha e da oliveira. Como resultado, a Espanha se tornou um grande importador de cereais em 1570. Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 45 Havia ainda o desemprego nas aldeias e pesadas rendas feu- dais nas terras senhoriais. O dano maior, causado pelo vínculo colonial, não se limitou à agricultura. Segundo Anderson, o fluxo de metais preciosos do Novo Mundo produziu um parasi- tismo que progressivamente minou e paralisou as manufaturas do país. A inflação acelerada elevou os custos de produção da indústria têxtil, a tal ponto que os tecidos locais passaram a ter preços proibitivos. Então, atravessadores holandeses e ingle- ses passaram a suprir a melhor fatia da demanda americana, enquanto manufaturados estrangeiros mais baratos invadiam a própria Castela. A Espanha transformara-se na América da Europa, um escoadouro para mercadorias estrangeiras. De tal modo, não apenas a economia agrária, mas também a urbana foi atingida pelo esplendor da riqueza americana. O potencial produtivo de Castela estava sendo sabotado pelo mesmo império que injetava recursos no aparato militar do Estado para aventuras sem precedentes no exterior. Em meados do século XVII, o declínio da Espanha era visí- vel enquanto as potências protestantes da Inglaterra e da Ho- landa começavam a crescer. Esses dois inimigos marítimos da Espanha haviam se tornado poderosos ao mesmo tempo em que a religião reformada tomava conta da Europa Central. Se no século anterior a Espanha tinha se beneficiado da fraqueza do estado Francês, agora a situação se invertia. Conforme o historiador, o absolutismo francês estava maduro e em condi- ções de explorar a sedição aristocrática e o separatismo re- gional ibérico para invadir a Espanha. Na década de 1640, tropas e navios franceses lutavam ao lado de rebeldes anti-Ha- bsburgos na Catalunha, em Portugal e em Nápoles: o império espanhol estava em apuros. A longa série de conflitos interna- 46 História Moderna - Século XV ao XVI cionais apresentava sua conta: em 1627, o estado havia de- clarado bancarrota mais uma vez, e o comércio transatlântico declinando até que em 1640 os galeões de prata deixaram de chegar. As enormes despesas de guerra levaram a criação de novos impostos e a outras medidas extremas, mas esses expedientes mostraram-se inadequados para custear o prosse- guimento das lutas. “O preço histórico do fracasso do estado Habsburgo em harmonizar seus reinos já aparecia na Guerra dos Trinta Anos e, conforme os conflitos se desenrolavam, a posição da Espanha ia piorando”. No final do século XVII, no reinado de Carlos II, a Espanha presenciou a retomada do poder político central pela classe dos grandes nobres. Esse período ficou marcado pela mais severa depressão econômi- ca, com a paralisação das indústrias, o colapso da moeda, o retorno à troca direta, à escassez de alimentos e motins. Entre 1600 e 1700, a população da Espanha caiu de 8,5 milhões para 7 milhões de habitantes – o maior recuo demográfico do Ocidente. O antigo regime preservou suas raízes feudais na Espanha até o dia de sua morte. Caso da França Tendo em mente os caracteres formadores do Estado abso- lutista, compreende-se que a França apresente uma evolução muito diferente do padrão ibérico. Não dispôs de vantagens semelhantes às da Espanha, especialmente o lucrativo impé- rio ultramarino. Ao mesmo tempo, no entanto, não enfrentou os permanentes problemas estruturais da fusão de dois reinos distintos no interior de um mesmo país, portadores que eram Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 47 de legados políticos e culturais radicalmente contrastantes. A monarquia Capeto estendeu os seus direitos de suserania para fora de sua base original, em um movimento gradual de unifi- cação a partir do centro, durante a Idade Média, até dominar toda a região de Flandres ao Mediterrâneo. Essa dinastia nun- ca teve que enfrentar outro reino territorial de idêntica catego- ria feudal dentro da França. Mesmo os mais distantes ducados e condados rendiam vassalagem nominal à dinastia central, o que permitiu uma hierarquia jurídica propícia à posterior inte- gração política. Além disso, as diferenças sociais e linguísticas que separavam o sul do norte, embora persistentes, jamais foram tão amplas como as que distinguiam o leste do oeste da Espanha. De acordo com o historiador Perry Anderson, a principal divisão no plano militar e diplomático na França, ao final da Idade Média, opunha a casa de Borgonha, um duca- do setentrional, à dinastia Capeto. Um ponto crucial para a compreensão do processo de for- mação dos Estados Absolutistas foi a persistência de traços particulares do feudalismo, que permaneceram com uma for- ça constante e latente, no início da Idade Moderna, assumin- do formas camufladas e aparências renovadas nas sucessivas crises. Outra característica é que o controle político efetivo da monarquia nunca foi territorialmente uniforme, declinando as regiões extremas do país, nas províncias recém-conquistadas e nos lugares mais distantes de Paris. Outro obstáculo à unifica- ção administrativa estava no volume demográfico: 20 milhões de habitantes. A França tinha o dobro da população da Espa- nha no século XVI. Beneficiada por espessa e variada vida co- munitária existente no seio da organização política francesa, a dinastia Capeto obteve um avanço na constituição do Estado. 48 História Moderna - Século XV ao XVI Três foram as grandes rupturas da ordem política na Eu- ropa: a guerra dos Cem anos, no século XV; as guerras reli- giosas, no século XVI; e a Fronda, no século XVII. Segundo P. Anderson, a transição da monarquia medieval à Absoluta foi primeiro detida e depois acelerada por tais crises, cujo resul- tado seria a criação de um culto da autoridade real da época de Luís XIV. A lenta centralização dos reis Capeto chegou a um final abrupto com a extinção da linhagem em meados do séc. XIV, que foi sinal para a eclosão da guerra dos cem anos. Ao final desse período, a contribuição dessa guerra foi a emanci- pação fiscal e militar da monarquia em relação aos limites da primitiva organização política medieval. A guerra foi vencida, e foi abandonado o sistema senhorial de convocação militar, passando a ter um exército remunerado e regular. Para isso, a aristocracia francesa consentiu com a criação do primeiro imposto nacional, em 1439. Enquanto os governantes Capetos haviam obtido a exten- são de seu controle monárquico às custas de concessões aos príncipes, os primeiros reis Valois associaram a reafirmação da unidade monárquica com a devolução de províncias aos aristocratas. Segundo o historiador, em ambos os casos, a ra- zão era a mesma: a evidente dificuldade em administrar um país do tamanho da França com os instrumentos de governo disponíveis então. O aparato repressivo e tributário do Estado central era ainda muito limitado (idem, p. 86). Na passagem do ano 1477, o estado borgonhês entrou em colapso e Luís XI anexou o ducado e, nas duas décadas seguintes, Carlos VIII e Luís XII incorporaram a Bretanha. O reino da França reunia, pela primeira vez, todas as províncias vassalas da épo- ca medieval sob um único soberano. Na realidade, porém, a Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 49 nova monarquia inaugurada por Luís XI estava longe de ser um Estado centralizado ou integrado. A razão para essas li- mitações do Estado Central, segundo Anderson, continuava a ser os problemas organizacionais de imposiçãodo aparelho de governo monárquico sobre todo o país, em meio a uma economia carente de mercado unificado e de um sistema de transportes adequado. A convocação dos Estados Gerais esteve em decadência por anos, foi criada para ser o fórum nacional mínimo no qual o rei pudesse persuadir os vários estados provinciais e cidades a aceitar suas propostas. Na França, como em ou- tros países, o impulso inicial para a convocação era dado pela necessidade dinástica de apoio fiscal ou na política ex- terna. Contudo, a consolidação dos Estados Gerais como instituição nacional permanente seria bloqueada pela mesma diversidade que obrigou a monarquia a aceitar uma ampla delegação de poderes. Como consequência do esvaziamento dos Estados Gerais, que não conseguia aprovar novos impostos levando ao en- trincheiramento regional do poder mais que a uma tendência centralista da monarquia, o que frustrou o surgimento de um parlamento nacional na França. E mais, se isso contribuiu, no curto prazo, para a quebra de autoridade real, no longo pra- zo viria a facilitar a tarefa do Absolutismo. A derrota francesa para a Espanha na disputa pelo norte da Itália serviu para assegurar fundamentos mais firmes e sólidos para o absolu- tismo francês, forçado a um recuo em seu próprio território. As guerras civis que se propagaram foram desencadeadas por conflitos religiosos resultantes da Reforma Protestante no final 50 História Moderna - Século XV ao XVI do século XVI, expondo as múltiplas tensões e contradições da formação social francesa. Conforme Anderson, a luta en- tre huguenotes (protestantes) e a Santa Liga pelo controle da monarquia serviu como arena para a aglutinação de todos os tipos de conflitos políticos típicos da transição. O impacto ge- ral do conflito religioso simplesmente rompeu a tênue tessitura da unidade francesa, que já se mostrava frágil. O absolutismo francês, que estava em vias de consolida- ção, ainda enfrentaria contratempos antes que estivesse de- finitivamente estabelecido. Os três grandes artífices da estru- turação administrativa na França no século XVII foram Sully, Richelieu e Colbert, mas o tamanho e a diversidade do país ainda permaneciam inconquistados. A formação de parlamen- tos locais, compostos da pequena burguesia rural e de ba- charéis, representava a resistência do particularismo medieval, enquanto em Paris e em outras cidades crescia a influência da burguesia comercial. O caráter específico do Estado Absolu- tista que surgia estava destinado a ajustar-se a dirigir tal com- plexo de forças sociais. Foi Henrique IV quem estabeleceu pela primeira vez o poder real e a presença do governo em Paris, reconstruindo a cidade e transformando-a em capital perma- nente do reino. Seguiu-se um período de pacificação social, que levou a retomada da produção agrícola e o incentivo ao comércio externo, o que fez aumentar o prestígio popular da dinastia Bourbon (idem, p. 93). Um notável avanço na construção da máquina adminis- trativa foi dado pelo cardeal Richelieu e seus sucessores, efe- tivando o controle e a intervenção nos diretos da monarquia em toda a França, liquidando fortalezas huguenotes, esma- Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 51 gando conspirações aristocráticas e abolindo títulos militares medievais, entre outras medidas. Sua maior criação foi o sis- tema dos intendentes, que eram funcionários enviados a todas as províncias com amplos poderes, inicialmente com missões temporárias e, depois, se tornando permanentes – eles repre- sentavam o novo poder do Estado absolutista nas regiões mais afastadas. Richelieu, afirma Anderson, rompeu com o caráter hereditário dos antigos senhores feudais. A forma composta da monarquia francesa viria a adquirir uma extrema e pompo- sa complexidade, reflexo da sociedade diversificada de então. Seria essa complexa arquitetura do Estado, comparada a uma igreja barroca, que permitiria uma lenta, embora inexorável, unificação da classe dos nobres, que logo se adaptou ao novo molde centralizado. Outra consequência desse processo foi a assimilação da burguesia à classe aristocrática, a partir da obtenção de isenções fiscais e outros privilégios. O peso da reorganização do Estado recaía sobre os pobres, segundo o historiador. O Estado feudal reorganizado passou a fustigar sem piedade as massas rurais e urbanas. Por volta do ano 1644, a cobrança de impostos havia triplicado e, ao final da década, o total de impostos era quatro vezes maior. A razão desse crescimento dos encargos fiscais foi obra da intervenção militar na diplomática de Richelieu na Guerra dos Trinta Anos. As novas estruturas do absolutismo francês foram batizadas no fogo das guerras e o êxito na luta contra a Espanha coincidiu com a consolidação interna do complexo burocrático, mas os custos reais da guerra foram sofridos pelos pobres. A pressão para aumentar a arrecadação gerou uma série de revoltas no meio rural e urbano. Levantes regionais alternavam-se com 52 História Moderna - Século XV ao XVI constantes irrupções menores de rebeldia contra os coletores de impostos. A Fronda pode ser considerada com o ponto alto dessas revoltas populares, quando setores da alta nobreza, da magis- tratura e da burguesia municipal lançaram mão do desconten- tamento das massas para seus próprios fins, contra o Estado absolutista. Mazarino, que sucedeu a Richelieu, provocou a crise da Fronda ao estender a guerra contra a Espanha até o Mediterrâneo. O esforço de guerra, via extorsão fiscal e ma- nipulação financeira, coincidiram com quebras nas colheitas entre os anos de 1647 e 1651, o que aumentou a fome e a fúria da população. Somente em 1653 é que Mazarino iria eliminar os últimos redutos da revolta. O progresso da cen- tralização administrativa e da reorganização da classe levado a cabo no seio das estruturas mistas da monarquia francesa afinal revelava a sua eficácia. Após a guerra com a Espanha, com o Tratado dos Pirineus, o território da França havia aumentado e formada uma elite burocrática, treinada e pronta para impor a ordem administra- tiva no reinado seguinte. Conforme Anderson, a aristocracia iria encontrar sossego sob o absolutismo de Luís XIV, a partir de 1661. Uma vez reunidas em um único governante, a auto- ridade real e a capacidade executiva, todo o potencial político do Estado francês realizou-se rapidamente. Os parlamentos foram silenciados, cortes soberanas foram levadas à obediên- cia e restringidas à autonomia municipal, entre outras medidas contra os particularismos medievais. Embora tenham gerado ressentimentos na corte, tais intervenções não alteraram o vín- culo objetivo entre a aristocracia e o Estado, a partir daí mais Capítulo 3 A Formação do Estado Moderno: Estudos de Caso 53 eficaz do que nunca na proteção dos interesses básicos da classe nobiliária. O grau de exploração econômica garantido pelo absolutismo francês chegou ao ponto de a nobreza se apropriar de até 30% de toda a riqueza do país, apesar de ser apenas 2% da população durante o século XVII. Em resu- mo, o mecanismo central do poder monárquico estava agora, portanto, concentrado, racionalizado e ampliado, sem maior resistência da aristocracia. (idem, p. 100) Outra importante contribuição para a formação dos esta- dos absolutistas, presente em todos os casos, é a ampliação dos exércitos. Enquanto o número de funcionários do setor civil no aparelho político central, no reinado de Luís XIV, era mo- desto, eles estavam amparados por uma máquina repressiva maciçamente aumentada. Uma força de polícia permanente fora criada em Paris (1667) para manter a ordem e reprimir os motins. O volume do exército passou de 50 mil para 300 mil no final do período. Segundo o historiador, o crescimen- to desse aparato militar significava o desarmamento
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