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A pedagogia da exclusão tópico a visão da sociedade violência policial e racial mídia resenha e artigo

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Violência policial e racial*
A visão da sociedade
	A perpetuação da situação do negro no Brasil deve-se à visão preconceituosa de se associar a baixa renda com baixa capacitação. Joaquim Nabuco já percebera que no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, a escravidão contaminara toda a constituição social. Por exemplo, há uma tendência generalizada de se tratar os empregados domésticos como escravos, além da convicção generalizada de considerar-se os negros menos capazes.
Preconceito racial, racismo e discriminação racial
	O preconceito é sempre uma atitude antecipada e desfavorável com relação a alguém ou algo. Por exemplo, uma pessoa pode ter preconceito contra favelados. E às vezes pessoas do próprio grupo têm preconceito contra essa condição que também o afeta. O preconceito racial ocorre quando uma pessoa ou grupo sofre uma atitude negativa por parte de alguém que tem como padrão de referência o próprio grupo racial. Não há lógica na atitude de arianos ostentarem preconceito em relação aos judeus e negros.
O racismo não é equivalente ao preconceito. Este ocorre quando se atribui a um grupo determinados aspectos negativos em razão de suas características físicas ou culturais. É racismo considerar desfavoravelmente os indígenas por serem o que são: seu físico característico, andarem nus, terem rituais seculares, crenças, seu modo de produzir, etc. O racismo enaltece características do grupo racial considerado superior e rebaixa ou reduz a importância do outro a fim de se “justificar”.
Há diversas classificações de racismo. O racismo individual ou pessoal é muito próximo do preconceito racial e ocorre quando uma pessoa se crê superior a outra em função de sua raça. O racismo institucional diz respeito às instituições, Estados e/ou governos que entendem que um determinado grupo racial deve ter primazia em relação a outros grupos. Por exemplo, quando uma empresa de capital japonês só admite brasileiros descendentes de japoneses. Por último, o racismo cultural, que é quando um determinado grupo racial entende que sua herança cultural se sobrepõe em importância à de outros povos. Exemplo disso é como a cultura negra foi considerada primitiva e inferior pelos colonizadores.
O preconceito e o racismo são atitudes, já a discriminação consiste numa ação, manifestação ou comportamento que prejudica alguém, de modo a externalizar sua atitude racista ou preconceituosa. Por exemplo uma adolescente negra foi perseguida por um segurança num supermercado de Salvador, ofendendo-a com palavras e por fim detendo-a por indiscriminadamente crer que ela estava ali não como os demais clientes, mas para roubar.
Outros conceitos importantes: a) o de etnocentrismo que é uma ideia que coloca determina grupo étnico como parâmetro para os demais, como um verdadeiro centro de referência - um exemplo é o etnocentrismo europeu que é ainda hoje uma atitude muito presente no mundo; b) a segregação racial que é a separação física dos grupos raciais, hoje em desuso, como o apartheid; c) assim como a ideia de raça perde mais força no campo das ciências pois no ponto de vista biológico não existem raças na espécie humana; d) a ideia que deverá ser privilegiada no futuro é a de etnia, que é o que define um grupo étnico: um conjunto humano com sólido sentido de união, partilhando a mesma cultura, história, idioma, tradição, valores. 
O racismo às avessas no Brasil
Muito se pergunta se os negros também são racistas em relação aos demais. Há uma ideia mais ou menos generalizada de identificar como racista quem luta contra o racismo. Isso pode ser decorrência da propalada democracia racial brasileira em que os diversos grupos étnico-raciais no país seriam felizes: negros, brancos, mestiços e amarelos, de modo que aqueles que estão levando para frente o assunto é que são racistas. Argumenta-se ainda que se está confundindo o Brasil com os Estados Unidos – lá, sim, é a terra do racismo. Quando se afirma irresponsavelmente que aqui não tem racismo, aqueles que batalham contra o racismo cordial brasileiro passam a ser vistos como visionários fanatizados.
O racismo aqui pode ser medido em real ou em dólar (vide tabela 4).
Rendimento médio mensal por raça e sexo em 1998 (em %) - tabela 4, p. 97
	Sexo
	Grupo racial
	São Paulo
	Porto Alegre
	Salvador
	Homem
Mulher
Homem
Mulher
	Não-negros
Não-negras
Negros
Negras
	100
63
51
34
	100
70
66
47
	100
62
47
28
	Fonte: Convênio Dieese/Seade, PED, 1998
Não-negros: brancos e amarelos; negros: pretos e pardos
O preço da cor no mercado de trabalho pode ser calculado com bastante exatidão, já as perdas de ordem moral como humilhações, tratamentos inadequados, maus-tratos, impedimentos, deboches, a não-inclusão qualificada na mídia e um sem-número de situações já foram constatadas em várias pesquisas. Apesar de tantas provas surge um novo mito: o “racismo às avessas “ do negro. 
Trata-se de equívoco antigo, cuja real intenção é o apagamento da sofisticação do racismo brasileiro que não opera de forma a facilitar o surgimento de um estado de revolta dos negros, ou seja, o racismo dos negros contra os brancos. O negro brasileiro é francamente aberto ao branco no que diz respeito aos seus espaços. Nos ambientes marcadamente negros os brancos são sempre bem-vindos, como é o caso de escolas de samba, gafieira, bailes black em São Paulo ou funk no Rio, locais de prática religiosa afro-brasileira (Candomblé e Umbanda). A recíproca não é verdadeira. Lembremos dos clubes, melhores empregos, mídia, poder político e econômico e os centros de excelência, permanecem vetados velada ou explicitamente ao negro.
Portanto, lutar contra o racismo, é uma coisa, ser racista é outra bem diferente. Exemplos como os dizeres “100% negro” numa camiseta, ou revistas voltadas para negros não significam racismo, mas uma busca de auto-afirmação.
O ponto de vista da sociedade brasileira, que considera os negro-descendentes como pessoas incapazes por natureza reflete-se diretamente em três setores fundamentais: 1) nos meios de comunicação; 2) na polícia e 3) na auto-estima dos próprios negros.
Os meios de comunicação
A mídia tem a visão da sociedade dominante e está a seu serviço. No passado existiu uma significativa imprensa negra (O Clarim d’Alvorada de 1924 a 1932, a Voz da Raça -1933 a 1937) e mais recentemente o Jornegro (78 a 81) e a revista Ébano (década de 80). Negros e negras precisavam contentar-se com modelos fotográficos brancos nas páginas das revistas, sem conseguir desenvolver um ideal próprio de beleza. Foram necessárias muitas negociações para que a família negra começasse a ser retratada como consumidora e não apenas de forma negativa e estereotipada.
(exemplos de peças racistas)
Além desses exemplos há a grande invisibilidade, a ausência de representantes negros nas peças publicitárias, mesmo num contexto como um pagode. Um levantamento feito por um jornal acompanhou 115 horas de programação das emissoras e constatou que a segregação se expressa não apenas na inferioridade numérica e no menor espaço de tempo de exposição que cabe e negros e mestiços, como na maneira estereotipada como são apresentados – esportistas, músicos ou empregadas domésticas. Há uma crença equivocada de que os negros aparecem menos porque pouco consomem e o publicitário lava as mãos dizendo que quem decide é o cliente. No entanto cabe ao publicitário ao saber da extensão do mercado, orientar seu cliente.
A TV aberta brasileira por sua vez também empobrece seu vídeo impunemente, sem qualquer preocupação em mostrar nossa diversidade étnica. Nas novelas o lugar do negro é sempre o de inferior, subserviente, e poucos atores em papel de destaque, com raras exceções. Consequentemente as crianças negras têm dificuldade de se identificar como negras. Mesmo nos programas infantis há um despreparo generalizado com a imagem: da Xuxa e suas Paquitas à Angélica e Eliana, enfatizandoum único tipo de beleza.
A literatura tampouco apresenta personagens negros importantes e quanto aos livros didáticos apenas recentemente estão sendo enquadrados ao que somos em termos de diversidade. As cartilhas e manuais de comunicação e expressão só retratavam famílias brancas e enquanto estes eram associadas ao belo, inteligente e bom e as figuras negras veiculavam o que é mau, feio, degradado, inferior e incapaz.
Apesar da sólida contribuição do negro à música popular brasileira, esta o agride com ataques frontais à sua dignidade, notadamente à mulher negra (“Nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia” ou “... a cor não pega”).
Se a maioria da população negra estivesse apta a lutar pela sua imagem, poderia boicotar com vigor a mídia (TVs, gravadoras, revistas, jornais, agências de propaganda, etc.”, para acabar com essa liberdade de agressão às mulheres negras e negro-mestiças, injuriosa e debochada.
Violência policial e racial
O Brasil oficial tem nas polícias (civil e militar) o seu braço armado. A sociedade vê os não brancos como inclinados para o mal, de modo que as polícias reservam para eles uma atenção maior, configurando um racismo policial que é pelo Estado com o dinheiro da população. O não branco é alvo principal da truculência: da Brigada Militar do Rio Grande do Sul que espanca crianças em favelas à feroz PM baiana e a PM Mineira, uma das mais sanguinárias do país.
As corporações foram estruturadas por pessoas que serviram como braço armado na repressão durante o regime militar.
A população mais pobre na qual pretos e pardos são maioria absoluta fica entre o crime organizado e os criminosos comuns e a própria polícia. A PM de SP matou 305 pessoas em 1987 e 1470 em 1992. A quase totalidade dos mortos é preta ou parda. Há uma faxina étnico-racial feita no Brasil pelas polícias. No Rio a chance de um marginal negro ser atingido por um tiro disparado por um policial e morrer é o dobro da do branco.
O crime organizado (contrabandistas, ladrões de banco, narcotraficantes, sequestradores e gangues de roubos de automóveis e cargas) leva vantagem sobre as polícias, por outro lado elas são extremamente eficazes contra meninos de rua, favelados, prostitutas, desempregados pobres, grevistas, adolescentes e negros em geral, com total impunidade.
Corre risco também o negro das classes médias e altas. Há casos flagrantes de juristas, médicos, atletas e advogados negros revistados e maltratados como assaltantes de carro pela PM, além do absurdo caso do Presidente do Suriname, Dei Bourtese, em visita ao Brasil, que, estando em comitiva de diplomatas, negros engravatados e inclusive uma mulher, foram tomados como assaltantes de banco em pleno centro de São Paulo, lançados ao chão e agredidos pelo bando de policiais ensandecidos.
O racismo é parte da cultura dessa instituição. Um ouvidor da polícia paulista afirma que 99% da violência policial são cometidas contra o pobre. Como a maioria deles é negra ou mestiça, é ela que sofre a violência. As estatísticas demonstram que o perfil do assaltante em São Paulo é de homens jovens, solteiros, desempregados, com baixa escolaridade e, apesar da maioria da população não branca da população possuir essas características, 57% dos que cometem delitos contra o patrimônio público são brancos, 12% negros de 31% pardos (43% não-brancos). Mesmo considerando-se a situação de penúria de vasta parcela do povo negro-descendente não é esta que efetua a maioria dos delitos. 
Muitos policiais têm sido expulsos da instituição por abusos cometidos e uma parcela deles torna-se criminosa. Pesquisas confirmam a desconfiança da população com relação à presença policial. 
Quem confia na PM? (em %) - tabela 9, p. 143
	Cor/etnia
	+ Confiança
	+ Medo
	Não sabe
	Total
	Brancos
Pardos
Pretos
	41
38
35
	56
59
61
	3
3
4
	100
100
100
	Fonte: Data-Folha 1996
Os negros descendentes são os que menos confiam na PM e de cada 100 negros 61 temem mais do que confiam na polícia militar. Os negros mais jovens, as pessoas com formação superior, renda acima de 20 salários mínimos e as mulheres são os que menos confiam na polícia. 88% dos paulistas e cariocas acreditam que a polícia está ligada ao crime organizado e 76% deles acreditam que os esquadrões da morte são formados por policiais.
A falta de confiança da classe média e dos ricos faz prosperar o setor de segurança privada. Para a população não branca esse é um forte fator de insegurança, porque além de ter que preocupar-se com a violência policial agora precisa lidar com inúmeras empresas de segurança que uniformizam pessoas despreparadas. Como todo mundo quer ter sua própria segurança a improvisação tem sido a regra: homens armados travestidos de autoridade.
Assim, os negros e mestiços recebem três vetores contra si: o par sociedade/meios de comunicação e a violência racial, cuja manifestação explícita do racismo e do preconceito se dá pela mídia e pelas (in)seguranças pública e privada.
*Fonte: SANTOS, H. A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. São Paulo: Editora Senac, 2001 (Texto 8A: A visão da sociedade, 3º passo, p. 107-148). Resenha feita por Eliana Righi.
Leitura complementar:
Pedagogia da Exclusão: a representação do negro na literatura brasileira
Lúcia Maria de Assunção
De que brancura deslumbrante nos saíra aquele negro! E como são ne​gros certos ministros brancos! Negro quando acerta de ser bom vale por dois brancos.
(Trechos de contos de Monteiro Lobato)
Esse texto propõe um estudo da imagem do negro (enquanto personagem) em algumas obras da literatura brasileira, publicadas antes e após a abolição da escravatura.
A literatura, por expressar a realidade subjetiva do ser humano e seus sentimentos a respeito desta mesma realidade, é matéria muito interessante para se tomar como ob​jeto, pois, através dela, pode-se vislumbrar os costumes da época em que foi produzida. Dessa forma, é interessante interrogar como estes sentimentos refletiram-se nas obras ficcionais. Como foram retratados os negros e mulatos e seus conflitos e problemas co​tidianos, sua convivência com os outros da comunidade, no universo literário? Sabemos que o tratamento dado por cada autor, em sua época, às personagens de sua criação, corresponde à sua visão de mundo e, princi​palmente, à do meio social, pois ambos estão interligados.
Analisando, então, com que tintas os diferentes autores retratavam suas persona​gens negras, podemos inferir qual era a visão da sociedade a eles contemporânea a respeito dessa população que foi mãos e pés do País. 
Por meio de uma análise mais demorada da literatura brasileira, constatamos que ela está repleta de exemplos que nos dão um abrangente painel de estereótipos e caricatu​ras depreciativas referentes à população neg​ra. Ressalte-se que talvez seja o Romantismo, salvo as exceções, a escola literária que mais atribui uma visão preconceituosa e redutora à figura do negro em todas as instâncias. 
Não podemos dizer que personagens negros deixaram de ocupar espaços na ficção brasileira. Segundo França (1998), já nos es​critos de 1584, José de Anchieta assinalava a presença de africanos em solo brasileiro. No entanto, na mesma proporção em que povoa​vam as linhas ficcionais, os negros foram sendo estigmatizados, reduzidos a seres vadios e animalizados. Suas características físicas justificavam ou definiam seus sentimentos, suas sensações e seus movimentos. 
No Brasil colonial, Gregório de Matos (1633-1695) talvez seja o escritor que mais tenha feito referências nada positivas à popu​lação negra da Bahia. De acordo com França (op. cit.), na obra do poeta baiano, “negros e mulatos estão associados a crendices e bruxarias, aos desregramentos sexuais e ao abuso de bebidas”. 
A partir do século XIX, encontraremos uma presença mais significativa de persona​gens negros nos escritos literários. Entretanto, podemos afirmar que o negro, diferentemente dos personagensindígenas, foi perspectivado na produção literária como objeto e não como sujeito. A literatura funciona, assim, como mais uma forma de marginalização e de ex​clusão da população negra brasileira. 
Com a finalidade de demonstrar as visões estereotipadas que prevalecem nessa produção literária, retomaremos a tipologia adotada por três autores que, em diferentes momentos, dedicaram-se a esse assunto: 
a) Roger Bastide (1973) que demonstra, através de exemplos retirados de inúmeros textos da ficção brasileira, os estereótipos do negro servil, fiel ao seu senhor benevolente; da feiúra simiesca ou apenas animal do ne​gro e da sua submissão hereditária ao senhor branco;
b) Heloísa Toller Gomes (1988) que faz referências aos estereótipos utilizados pela literatura oitocentista do Brasil em relação ao negro como um ser humilde, infantil e dócil, mais preocupado com a felicidade do outro (branco) do que com a sua própria, capaz de sacrificar-se até a auto-imolação pela “bon​dosa” família de seu senhor; 
c) David Brookshaw (1983) que demon​stra, por meio de diferentes exemplos, es​tereótipos como o escravo nobre, o escravo demônio, o negro vítima (resignado), o negro infantilizado, pervertido, erotizado, sen​sual. 
Ao observarmos tais estereótipos, vemos que muitos deles permanecem, não apenas na literatura, mas em diferentes linguagens de nosso cotidiano: na publicidade, nos meios de comunicação em geral, nos textos e nas imagens de livros didáticos e de revistas, nas brincadeiras e piadas. 
O Romantismo oferece-nos um corpus significativo referente à representação do negro. A obra O tronco do ipê (1871), de José Alencar, constitui um exemplo de onde podemos retirar estereótipos como o do negro servil, o do negro feiticeiro (encarnado pelo personagem pai Benedito), do bom cativo e eternamente grato a seu senhor, conforme transcrição abaixo:
E o bom preto expandia-se de júbilo, mostrando duas linhas de dentes alvos como jaspe. Ser motivo de alegria para esse menino que ele adorava, não podia ter maior satisfação a alma rude, mas dedicada do africano. 
 No trecho, vemos o grau de subserviência do personagem pai Benedito, em relação a nhonhô Mário, filho do senhor. 
 O romance retrata a escravidão como um sistema revestido de extrema benevolência por parte daquele que escravizava. Sob essa perspectiva, não havia lugar para conflitos entre brancos e negros ou entre a casa grande e a senzala. 
 Para uma visualização mais apurada dos estereótipos, um levantamento dos adjetivos referentes ao personagem Benedito e a outros negros do romance poderia ser motivo de uma análise mais demorada. 
 Do mesmo período, o romance A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, tem​atiza a escravidão atribuindo à personagem Isaura (uma escrava) o lugar de protagoni​sta. Segundo Toller (op. cit.), o êxito obtido por esse romance deve-se ao fato de que é uma escrava branca que sofre os horrores do regime escravocrata descritos na obra. Embora tivesse sangue negro, Isaura não pos​suía nenhum traço físico que lembre qualquer herança africana, fato que a aproxima dos leitores e leitoras oitocentistas. O trecho em que a personagem sinhá Malvina refere-se à Isaura é revelador: “És formosa e tens uma cor linda, que nin​guém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano” ( p. 13).
O romance fornece inúmeros indícios da visão do homem branco em relação à mulher branca e à mulher negra. A primeira possui características para ser esposa enquanto a segunda, sobretudo a mulata, é vista como objeto sexual. Aliás, observando as perso​nagens femininas, vemos que há uma certa hierarquia definida pela cor: negras (para trabalhar), mulatas (para satisfazer os de​sejos sexuais dos homens) e brancas (para casar). A obra revela-se, portanto, como um paradoxo: ao mesmo tempo em que denuncia a escravidão, privilegia o branco, exaltando seus traços físicos. 
A moreninha (1844), de Joaquim Manoel de Macedo, também é um outro exemplo para examinarmos a representação do negro. A escravidão nesse romance é vista como algo natural: os negros são feitos para servir os brancos e nada pode alterar, no romance, essa realidade. Desse modo, são abundantes os estereótipos relativos aos negros, como os trechos comprovam:
[...] um crioulo de 16 anos, todo vestido de branco com uma cara mais negra e mais lustrosa do que um botim envernizado, [...] dá-lhe a ligeireza, a inquietação e rapidez de movimentos de um macaco e terás feito idéia desse diabo de azeviche, que se chama Tobias.[...] Tobias, escravo de meu senhor, crioulo de qualidade, fiel como um cão e vivo como um gato [...] (MACEDO, p. 19-20).
Fica evidente a visão depreciativa em relação ao negro, sua vinculação a caracter​ísticas de animais (macaco, cão, gato), de objetos (botim) ou do mal (diabo). 
O poeta Castro Alves (1847-1871) é con​hecido como aquele que introduziu defini​tivamente a causa abolicionista em sua obra. Nela transitam diferentes tipos negros, como salienta França (1998): 
O escravo melancólico (saudoso de sua terra), o negro humilhado, a escrava en​louquecida pelas crueldades do cativeiro, a mãe negra, a criança negra desam​parada, o escravo sofredor que alcança a liberdade através da morte, a escrava desonrada pelo filho do patrão, a bela mulata que se torna amante do patrão etc (FRANÇA, p.56-59)
Embora reconheçamos que o poeta fez de seus poemas uma bandeira contra a es​cravidão, sobretudo humanizando o negro, quando normalmente ele era coisificado, é preciso ressaltar que também ali predomina a figura do negro vítima, resignado, sem movimento de reação ou de revolta. Se há movimento de reação, esta será enfatizada como uma atitude vingativa do negro contra o branco. Ou seja, o poeta não escapa aos estereótipos, mas pode ser visto “como um advogado de defesa que quer comover a platéia e provar a injustiça da situação que denuncia” (PROENÇA FILHO, 2004, p.5). 
Entendemos que seja importante ressaltar que no período oitocentista e nos primórdios do período seguinte, o gênero romance tinha a função clara de moralizar a sociedade por meio de lições selecionadas do cotidiano, como salienta França (1998):
Esta concepção ‘pedagógica’ do ro​mance, sobretudo, daquele ambientado no espaço urbano, foi uma constante no meio literário brasileiro oitocentista [...] Enormes esperanças eram depositadas nesse gênero literário: a ele caberia, entre outras coisas, colaborar para a edificação de alguns mitos nacionais, divulgar a história e a geografia pátria, contribuir para a singularização da ‘língua brasileira’ e, sobretudo, moralizar os leitores. (Ibid., p. 71).
Nesse sentido, a leitura de As vítimas-algozes (1869), também de Joaquim Manoel de Macedo, é recomendável porque nela podemos visualizar a tese de que a escravidão é um mal que deve ser extirpado da sociedade brasileira, uma vez que os negros represen​tam um perigo aos seus proprietários. Para comprovar sua tese, Macedo descreverá com pesadas tintas os horrores praticados por ne​gros traiçoeiros nas fazendas. As novelas que compõem esse título são consideradas uma espécie de pedagogia do medo, pois o autor procura convencer seus leitores a se livrarem do mal e do perigo (os negros) que coabitam com eles. 
Portanto, o que se depreende das linhas do chamado romance urbano é que negros e mulatos são representados quase sempre com traços de animalidade, portadores de um comportamento instável e imprevisível. A mulata ‘fogosa’, devido à sensualidade e à ausência de qualquer valor moral, representa ameaça constante à harmonia matrimonial e às pessoas de bem. 
A personagem Rita Baiana, do romance O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, é o exemplo maior dessa caricatura. No mesmo romance temos o personagem Firmo, estereo​tipado como vadio, beberrão, desordeiro, vio​lento. Bertoleza é descrita como suja, pouco inteligente e símbolo da aceitação passiva da sua submissão ao personagem João Romão. 
Nas obras de Machado de Assis, embora os negros apareçam apenas como figurantes, é possíveldetectar as diferentes funções ex​ercidas por eles no contexto urbano, no Rio de Janeiro mais propriamente. 
Apenas a partir da Semana de 22 (Mod​ernismo) e à medida que estudos sobre o negro na Europa ganharam força e terreno é que músicos, artistas plásticos, poetas e romancistas passaram a usar temas relaciona​dos às raízes africanas em suas artes. A partir daí, vemos o aparecimento de jornais como O Clarim da Alvorada (1924) e A voz da raça (1939), em São Paulo. Esses jornais atuavam como porta-vozes da comunidade negra e, sem dúvida, deram espaço para o surgimento de uma literatura negra no Brasil. Nesses escritos o negro é sujeito de ações que buscam uma identidade negra e instauram uma poética da diversidade. 
Apesar desse contexto favorável à desconstrução dos estereótipos referentes ao negro, cujos alicerces foram, como vimos, pedagogicamente sedimentados pela litera​tura brasileira, o escritor Monteiro Lobato, contemporâneo do Modernismo, é um exemplo de como esses estereótipos estavam (e es​tão) implantados no imaginário da sociedade brasileira. 
Ater-nos-emos a alguns contos que compõem a obra Negrinha, publicada pela primeira vez em 1920. Os contos são, na sua maioria, textos que “narram casos vividos e acontecidos com os capiaus do vale do Paraíba, que ficaram na mira do escritor desde 1914, quando, como fazendeiro prejudicado pelas quei​madas, investe pela imprensa através de artigos impiedosos, em que acusa o caipira de ser o piolho da terra” (LAJOLO, 1981).1 
No plano estético, os textos que compõem Negrinha foram influenciados pelo Realismo e pelo Naturalismo. Monteiro Lobato, apesar de refutar os regionalistas românticos e todos os outros que, segundo ele, exprimiam a total irrealidade em seus romances ao se referirem ao caboclo, estabelece, a nosso ver, uma di​cotomia em seus textos em relação ao negro: por um lado procura descrever os problemas brasileiros, mostrando a situação real em que se encontrava o negro; por outro revestirá o mesmo de estereótipos que reforçam precon​ceitos naturalizados até nos dias de hoje.
O conto O jardineiro Timóteo relata a história do negro Timóteo, um preto branco por dentro, que cuida, há mais de quarenta anos, do jardim de uma fazenda. Por ser zeloso e bom, conforme será reforçado várias vezes, é aceito pela família do senhor e pode viver feliz naquele lugar. O texto desenha a postura humilde, servil e dócil do jardineiro em relação aos proprietários da fazenda, como mostram os trechos:
	O canteiro principal consagrava Timóteo ao ‘Sinhô Velho’, tronco da estirpe e generoso amigo 	que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea.
Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim do Cabo, de galhos negros e copa dominante ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobreexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum importador de escravo de Angola. 
Dessa perspectiva, o no mundo de Timó​teo e seus senhores não havia as contradições ou conflitos que a escravidão gerou; há, pelo contrário, até uma inversão, a escravidão é “doce” e dá lugar a uma afetividade que a neutraliza por completo:
O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher [...] Tal qual a moça, que desde menina se habituara a monopo​lizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando ao ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinha​zinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?
Timóteo era feliz. [...] Sem família, criara uma família de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.[...] era feliz sim. Trabal​hava por amor
Como podemos perceber, a bondade de Timóteo e sua benevolência são cada vez mais acentuadas, procurando enternecer o leitor e desviando-lhe a atenção, nunca o levando a uma reflexão, pelo contrário, dando aos fatos cores sentimentais. 
No texto, brancos e negros parecem con​viver harmonicamente, uma vez que não há nenhum vestígio de qualquer conflito racial. Todos vivem pacificamente; o negro liberto era feliz vivendo ligado ao seu senhor: Essa ideia do negro tutelado eternamente é reforçada quando o personagem morre ao ser deixado na fazenda, tendo sido esta ven​dida. A família parte e Timóteo permanece na fazenda e é “passado” para outra famí​lia como se fosse um móvel, um utensílio qualquer ou fizesse parte do “seu” jardim. A ideia de viver sem a tutela do “bom senhor” será insuportável ao doce serviçal e culminará com a sua morte: 
Eu vou, mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.
Vale observar ainda, que o texto atribuirá ao personagem características eminentemente infantis, de adulto-criança ou do “negro/cri​ança/grande”. Ao pintar sua espontaneidade, sua simplicidade e ingenuidade, o discurso textual passará sutilmente a ideia de total impossibilidade de uma convivência de iguais; dessa forma, sendo o negro ainda criança, pre​cisará de alguém que o guie e que o proteja. A morte de Timóteo apenas virá confirmar essa ideia. A afetividade do negro em relação aos seus patrões pode ser resumida como uma apologia ao senhor branco.
O conto Os Negros reunirá diversos es​tereótipos. É o conto mais longo da coletânea, contém vinte e seis páginas e está dividido em vinte e dois capítulos. Conta a trágica história de amor entre a filha de um fazendeiro e um empregado português.
Um dos estereótipos mais recorrentes nesse texto talvez seja o do negro rude cativo do campo, desprovido de qualquer vestígio de inteligência. O destaque maior será dado à ideia de que o negro foi feito para obedecer, submeter-se, uma vez que tem a alma servil. Os trechos a seguir dão-nos a dimensão dessas características:
– Há de morar aqui por perto algum urumbeva, disse eu. Não existe tapera sem lacraia. 
– Pai Adão, viva!
– Vassumcristo! Respondeu o preto. 
– Era dos legítimos... 
– Tio Bento, pra servir os brancos.
O excelente negro sorriu-se, com a gen​giva inteira à mostra...
No texto aparece reforçado o vazio social do negro: sem família, sem bens próprios, ele se assemelha aos bichos do mato, conforme citamos:
O melhor é acomodar-nos na casa grande, que isto cá não é casa de bicho-homem, é ninho de cuitelo...
E fomo-nos à casinhola do preto engulir o café e arrear os animais.
Morreu tudo, meu branco, e fiquei eu só. Tenho umas plantas na beira do rio, palmito no mato e uma paquinha lá de vez em quando na ponta do chuço. Como sou só...
Há que se ressaltar o estereótipo da sub​missão, do negro bom e trabalhador, fiel ao branco e disposto a qualquer sacrifício para agradar o mesmo, como podemos observar:
Contente de ser-nos útil, Tio Bento so​braçou a quitanda e deu-me a levar o candieiro.
Era mau, meu branco, como deve ser mau o canhoto. Judiava da gente à toa pelo gosto de judiar.
Ninguém, entretanto, estranhava aquilo. Os pretos sofriam como predestinados à dor. E os brancos tinham como dogma que de outra maneira não se levavam os pretos.
O sentimento de revolta não latejava em ninguém [...].
Na penúltima transcrição, vemos a figura do negro digno de compaixão, indefeso e sem nenhuma ação concreta de autodefesa, como se os castigos recebidos por ele pertencessem à ordem natural das coisas, de forma que, assim, ele os compreendia. 
A personagem Liduina, uma crioula muito viva que desde bem criança passou da senzala pra casa grande, como mucama de Sinhazinha Zabé, encarna exaustivamente os estereótipos por nós já assinalados. Ela também, como os outros personagens negros, aparece de​sprovida de vida própria; suas atenções estão voltadas para a sua Sinhá, como demonstração de subserviência e lealdade. Além disso, seus movimentos e atitudes estão mais próximos dos animais: 
Amor? Respondeu a arguta mucama em quem o instinto substituía a cultura.
Bobagens, muxoxou a mucama, trepando à pitangueira com agilidade de macaco.
Pois Sinhazinha não sabe que soumais sua amiga do que sua escrava?
Conforme podemos observar, a person​agem Liduina vem apenas reforçar, dentre outros, o estereótipo da submissão e do servilismo do negro. Suas atitudes também servem para escamotear e dissimular os con​flitos da escravidão. 
O conto O Fisco terá como pano de fundo a imagem do negro degenerado, violento, movido tão somente por seus instintos primiti​vos. O texto evidencia o estereótipo da feiúra simiesca do negro, pois todos os seus traços de origem africana veicularão a ideia do feio e do animalesco: 
[...] Este glóbulo branco era negro. Tinha o beiço de sobejar e nariz invasor de meia cara, aberto em duas ventas acesas. 
E o Pau-de-Fumo, em atitude de Bonaparte em face das pirâmides ficou, de dedo no nariz e boca entreaberta [...]
Como vemos, os traços fisionômicos de ascendência africana são indícios da inferio​ridade racial do negro.
Os textos refletem, portanto, uma visão preconceituosa, não diferente daquela mostrada por grande parte de escritores oi​tocentistas. Embora os textos de Monteiro Lobato tenham sido escritos no período pós-abolição, neles vemos explícitos estereótipos do negro submisso, cujos traços africanos mais o aproximam de um animal que de um ser humano. Embora liberto, não poderia sobreviver sem a tutela do senhor, pois era hereditariamente predisposto ao trabalho servil e desprovido de qualquer autonomia enquanto pessoa. 
Conclusão
Não nos surpreende, portanto, a per​manência dos estereótipos citados em nossos dias, a literatura encarregou-se de agregá-los à figura do negro. Talvez por isso, considera​mos naturais algumas atitudes, piadas e ditos populares de cunho preconceituosos. Derivam dessas ideias cristalizadas, no âmbito da nossa sociedade, os pretos de alma branca e muitos outros que se perpetuaram e criaram raiz em nossa sociedade historicamente racista. Como vimos, a literatura, respeitadas as exceções, implantou, difundiu e materializou peda​gogicamente fortes mecanismos de exclusão social, na tentativa de escamotear as nuanças.
SILVÉRIO, Valter Roberto; ABRAMOWICZ, Anete; BARBOSA, Lúcia Maria Assunção (Coords). Projeto São Paulo Educando pela Diferença para a Igualdade. Módulo II - Ensino Médio. 2004. Universidade Federal de São Carlos – NEAB / UFSCar (Texto 8B: BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção. Pedagogia da Exclusão: a representação do negro na literatura brasileira, p. 51-58). 
Atividade 1 
a) Avalie até que ponto os estereótipos produzidos pela literatura brasileira permanecem e circulam em nosso cotidiano. 
b) Analise o papel da mídia na representação da população negra nos dias de hoje. Até que ponto a presença do negro atlético e viril, do cidadão suspeito, da neutralização dos conflitos e da violência, da mulata sensual funcionam como espécie de substituição dos estereótipos apresentados nos textos literários?
Atividade 2
Analise sobre a representação do negro hoje: nas novelas, na publicidade, nos livros didáticos, em letras de canções brasileiras, nas piadas, nos ditos populares. Liste os estereótipos que são mostrados e compare-os com aqueles que apresentamos.
Sugestão de filmes e canção:
Filme: Notícias de uma Guerra Particular. Dir.: João Moreira Sales, Kátia L. Sales. Brasil, 1998. 
Filme: Carandiru. Dir.: Hector Babenco. Brasil / Argentina / Itália, 2003.
Música: Haiti, Caetano Veloso.

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