Buscar

Apostila de Turismo Étnico

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da FonsecaTURISMO ÉTNICO AFRO
CEDERJ
Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Turismo
Rio de Janeiro, 2014.
SUMÁRIO
	Apresentação
	
	Unidade I
	
	Cultura: conceitos
	
	O Turismo como fenômeno cultural
	
	Turismo, etnicidade e identidade
	
	Unidade II
	
	2.1. Africanidade: raízes e tradições
	
	2.2. Turismo e religiosidade de matriz africana
	
	2.3. Comunidades Tradicionais Quilombolas
	
	2.4. Cultura Afro brasileira
	
	Unidade III
	
	3.1. Turismo e legado cultural material e imaterial
	
	3.2. Análises das relações entre turistas e culturas locais.
	
	3.3. A experiência turística na cultura contemporânea.
	
	3.4. Os impactos na cultura local
	
	Unidade IV
	
	4.1. Roteiros Afros
	
	4.2. Gastronomia Afro brasileira
	
	4.3. A expansão do turismo religioso de matriz africana
	
	Anexos
	
APRESENTAÇÃO
As discussões que giram em torno do Turismo Étnico no Brasil ainda são muito recentes, limitadas a estudos, pesquisas e publicações de artigos científicos, porém esse segmento vem crescendo de forma impressionante, fazendo com que as comunidades étnicas se organizem em torno da sustentabilidade e preservação da sua cultura, planejando e oferecendo um produto turístico que garanta ao visitante não somente o lazer mais também o conhecimento da riqueza cultural encontrada nas populações tradicionais brasileiras.
Em realidade, a organização deste material tem como base uma coletânea de artigos e pesquisas publicados em eventos que tiveram como temática a questão do afro brasileiro e sua realidade social, politica, econômica, cultural e educacional, porém abordados sob uma ótica do turismo, bem como as vantagens e desvantagens dessa atividade econômica para as comunidades quilombolas, as comunidades tradicionais de religiões de matriz africana e os movimentos sociais organizados em prol da questão étnicorracial brasileira.
A existência de roteiros do turismo étnico afro no Brasil contempla uma grande quantidade de atividades relacionadas à estética, religiosidade, gastronomia, danças, literatura, o esporte, a mitologia e lendas, levando o turista a valorização da cultura afrobrasileira e até mesmo a romper com preconceitos cultivados contra o afrodescendente na sociedade brasileira até os dias atuais.
O conhecimento deste segmento nos círculos acadêmicos abrem os horizontes para que os universitários tenham a percepção da dinâmica cultural da atividade turística, fazendo com que a mesma tenha uma percepção não somente antropológica, mas também sociológica e filosófica.
Então futuros turismólogos, bom proveito do material!
Prof. Nadson
UNIDADE I
Cultura
Leitura Textual
DIMENSÃO DO PROCESSO SOCIAL. CULTURAL NACIONAL - CULTURA E SOCIEDADE,
DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA.
Vamos encontrar nos espaços alternativos, fragmentários e dispersos, conquistados, na maioria das vezes, a duras penas e com muito empenho, pequenos grupos de vizinhos, amigos, parentes, companheiros de trabalho, de Igreja ou de partido. Tais grupos desenvolvem as suas formas de expressão, a partir de sua maneira de pensar, de agir, fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relações sociais capazes de tornar viáveis, política e materialmente as suas atividades.
O importante é que, mesmo usando recursos oriundos de outros agrupamentos externos, reafirmam-se e elaboram-se as relações internas desses grupos. Assim é que são reinterpretados em pequenos grupos, duplas ou conjuntos, as músicas ouvidas nos discos, no rádio, nos shows e na TV; os poemas lidos nos diversos livros ou nas coletâneas escolares; as histórias lidas nos romances e nas revistas, as peças assistidas no circo, na telenovela ou no teatro.
Tudo, como verdadeiros retalhos de tecidos emendados, é material reaproveitável e possível de ser matéria-prima concreta, amálgama aglutinador e estruturante das relações sociais internas dos grupos.
Processa-se continuamente a lei de Lavoisier: "Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma".
Se atentarmos para tudo que é subjacente no meio social, talvez possamos compreender que isso faz parte de uma luta constante, muitas vezes explícita, pela constituição da identidade social, num processo que é dinâmico e qúe passa por todas as esferas da vida social. Cultura é, portanto, uma dimensão do processo social, da vida de uma sociedade.
E se é. então, para considerarmos cultura em relação à sociedade como um todo, como uma dimensão da sociedade e de sua história, em que medida podemos falar de cultura nacional? Sabemos que cultura é um conteúdo do que se entende por nação e que, a maneira como as nações modernas são concebidas, é indissociável de preocupações com suas características culturais; Mas, a relação entre ambas é mais ampla do que isso. Cultura e Nação são dimensões de referências necessárias para se entender o mundo contemporâneo. Observemos que mesmo o confronto entre as classes sociais e seus interesses têm a cultura e a nação como marcas e panos de fundo inevitáveis, já que ambas lhe fornecem arenas institucionais, códigos de ação, projetos de desenvolvimento. Assim, a transformação da sociedade exige sempre que o potencial tanto da cultura quanto da nação, seja considerado, para o fortalecimento de vínculos internacionais e para a formação de uma civilização mundial.
É comum, hoje em dia, ao se falar em cultura brasileira, que se faça referência a certos comportamentos, os quais sempre dizem respeito a situações envolvendo desigualdade social ou política. Supostamente os brasileiros driblam as regras e exigências dos poderosos dando um "jeitinho" e alguém poderia concluir que, por serem capazes de burlar as relações de poder, não estão muito preocupados em modificá-las. Essa visão de brasilidade descreve, assim, uma realidade estática, desigual, mas que tem Tocanismos próprios de equilíbrio. Há ainda toda uma tradição de falar no espírito conciliatório do brasileiro, e isso sugere que é sempre possível acomodar os interesses diversos e, daí. se tem uma visão conservadora da sociedade, cuja ênfase pode levar a ignorar as lutas sociais em prol de uma vida melhor para a população.
Ao pensarmos sobre cultura, podemos estabelecer entre ela e a sociedade vários planos de relacionamento. Há aspectos importantes, por exemplo, das relações entre a cultura e a sociedade no Brasil, que são comuns a outros países semelhantes. Podemos notar que, nas sociedades de classe, se opera uma dissociação entre a produção material e o conhecimento que são transformados em esferas de atuação separadas dentro da sociedade. Poderosas instituições consolidam essa dissociação.
Assim, por exemplo, nas universidades e centros de pesquisas, o conhecimento em geral, a ciência e a tecnologia, em particular, são objetos de trabalho, matéria de produção. Essas instituições são controladas pelas classes dominantes da sociedade e o seu controle é um dos aspectos contemporâneos das relações de poder.
A tendência de pensar em cultura como algo meio separado do processo produtivo leva a ignorar essa questão importante, nesse sentido o controle do conhecimento é relevante não só para pensarmos as relações entre as classes sociais no interior da sociedade, mas também para pensarmos as próprias relações internacionais, posto que há uma concentração de desenvolvimento científico e tecnológico nas nações mais poderosas. Por isso, o que realmente interessa é que a sociedade se democratize, e que a opressão política, econômica e cultural seja eliminada, extinguindo de uma vez por todas, as mazelas culturais: o analfabetismo, o controle do conhecimento e seus benefícios por uma pequena elite, a pobreza do seNiço público de educação e de formação intelectual das novas gerações, etc.
Sendo a cultura um aspecto de nossa realidade e sua transformação, para melhor expressá-Ia e modificá-Ia são necessárias as lutas pela universalização
dos benefícios da cultura, contra as relações de dominação entre as sociedades contemporâneas e contra as desigualdades básicas das relações sociais no interior das sociedades.
Num sentido mais amplo e fundamental, cultura é o legado de toda a humanidade, portanto, um direito de todos.
FORMAS DE CULTURA
A partir de uma idéia de refinamento pessoal, cultura se transformou na descrição das formas de conhecimento dominantes nos Estados Nacionais que se formavam na Europa, a partir do fim da Idade Média. Esse aspecto das preocupações com a cultura nasce assim voltado para o conhecimento erudito, ao qual só tinha acesso setores das classes dominantes desses países. Esse conhecimento erudito se contrapunha ao conhecimento pela maior parte da população, um conhecimento que se supunha inferior, atrasado, superado e que, aos poucos, passou também a ser entendido como urna forma de cultura, a cultura popular.
Aquela origem antiga dessas preocupações continua a influenciá-la, e a cultura popular é pensada sempre em relação à cultura erudita, à alta cultura, a qual é de perto associada tanto no passado como no presente às classes dominantes. De fato, ao longo da história, a cultura dominante desenvolveu universo de legitimidade própria, expresso pela filosofia, pela ciência e pelo saber produzido e controlado em instituições da sociedade nacional, tais como a universidade, as academias, as ordens profissionais (de médicos, advogados. engenheiros e outros).Devido à própria natureza da sociedade de classes em que vivemos, essas instituições estão fora do controle das classes dominadas.
No caso das modernas sociedades industrializadas é comum que elas sejam consideradas como sociedades de massa, onde as instituições dominantes têm de prover e até mesmo criar as necessidades de multidões e de seus participantes anônimos, da mesma forma que desenvolvem mecanismos eficazes para controlar essas massas humanas, fazê-las produzir, consumir e se conformar com seus destinos e sonhos.
Uma sociedade assim exige mecanismos culturais adequados, capazes de transmitir mensagens com rapidez para grandes quantidades de pessoas. Tais instrumentos seriam principalmente o rádio, a televisão, a imprensa e o cinema. Eles penetram em todas as esferas da vida social, no meio urbano ou rural, na vida profissional, nas atividades religiosas, no lazer, na educação, na participação política. Tais meios de comunicação não só transmitem informações, não só apregoam mensagens. Eles também difundem maneiras de se comportar, propõem estilos de vida, modos de organizar a vida cotidiana, arrumar a casa, de se vestir, maneiras de falar e de escrever. de sonhar, de sofrer, de pensar, de lutar,de amar. Eis a cultura de massa.
Na cabeça de alguns, a cultura popular é o que costumam chamar de cultura espontânea ou folclore epodem suceder-se sem problemas em um mesmo parágrafo. Na de outros, folclore é tudo o que o povo faz e reproduz como tradição. Com muita sabedoria. Lufs da Câmara Cascudo mistura coisa coma outra e define folclore como lia cultura do popular tornada normativa pela tradição".
Na verdade, há diferenças importantes entre folclore e cultura popular. Tudo que é folclórico faz parte acultura popular, mas tudo que é cultura não pode ser considerado como folclórico.Tomemos como exemplo três livros, três discos e três pratos de comida em cima de uma mesa. Umprato contém uma refinada salada mista, o outro, feijão com arroz e bife acebolado e o terceiro, umaporção de sarrabulho. Um disco é das "Bacchianas" de Villa-Lobos, o outro de sambas, de Martinho daVila e o terceiro, uma seleção de Bandas de Pife. O primeiro livro é "Helena" de Machado de Assis, osegundo o "Cante lá que eu canto cá" de Patativa do Assaré e o terceiro uma coletânea de lendas emido Sul do Brasil. Assim, estarfamos diante de uma cultura erudita através do livro machadiano, doisco de Villa-Lobos e da salada mista; feijão com arroz acebolado, os poemas de Patativa e os sambase Martinho são expressões de cultura e os demais são folclore, cultura de folk, ou são o disco e o livro eo folclore.
Portanto, são diversas as formas de cultura: cultura erudita, cultura de massa, cultura popular e culturaespontânea de folk ou folclórica.
(Secretaria de Educação. Folclore, Cultura e Patrimônio Histórico. Curso Técnico em Turismo. Escola Estadual de Educação Profissional. Ceará)
1.2. Turismo, etnicidade e identidade
Estudo de artigo científico
UNIDADE II
2.1. Africanidade: raízes e tradições
2.1.1. Estudo do Artigo: CONEXÃO ATLÂNTICA: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE.
Ubiratan Castro de Araújo *
* Doutor em História pela Université de Paris IV – Sorbonne. Professor do Departamento de História e ex-diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Atual presidente da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura. Endereço para correspondência: SBN Qd.02, Ed. Central Brasília, bloco F, 1º Subsolo – 70.040.904 Brasília-DF. E-mail: ubiratan.castro@palmares.gov.br Website: http://www.palmares.gov.br
RESUMO
Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adapta, se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de uma espantalho que afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio da herança cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. Esta utopia identitária fundamenta-se em uma constante evocação e reelaboração da das matrizes culturais africanas, o que só é possível graças às comunidades religiosas do Candomblé, verdadeiros arquivos da memória africana na Bahia.
Palavras-chave: Identidade negra – Cidadania negra – Memória e História Afro-Brasileira
A utopia africana
Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adapta, se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de um espantalho que afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refúgio da herança cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. 1
Essas tentações são especialmente apresentadas durante as conjunturas de mudança acelerada dos termos de integração do Brasil em uma economia mundial, durante as quais foram registradas algumas medidas importantes para a modernização da sociedade brasileira e, por conseqüência, das relações raciais no país. Entretanto, o fracasso de todas as sinceras tentativas de desenvolvimento das novas identidades negras nessas conjunturas de modernização explica o retorno dos movimentos de afirmação do negro à tradição africana, tal como ela é preservada dentro das comunidades religiosas.
Os Nagôs e os Sabinos: a formação do Estado Nacional Brasileiro
Por volta do fim do século XVIII, no início do século XIX, o Ocidente foi sacudido
pela primeira vaga de revoluções liberais, desencadeadas pela independência dos Estados Unidos da América, pela Revolução Francesa, pela Revolução dos Negros do Haiti, e pelas Revoluções produzidas pela expansão napoleônica na Europa, e pelo desmoronamento do Império de Portugal. Dentro desse novo momento da mudialização, fundado sobre o ?livre comércio? e sobre a universalização dos direitos do homem, dois desafios se apresentaram para a sociedade escravista brasileira: o fim do pacto colonial com a metrópole portuguesa e o fim do tráfico de escravos africanos.
No que diz respeito ao primeiro desafio, foi necessário às elites coloniais formarem um estado independente, com novas instituições, com uma ideologia nacional e com novos critérios de enquadramento dos povos habitantes do território do novo estado americano. Dentro dessa nova nação, quem seriam os brasileiros? As minorias de ?brancos portugueses e de brancos da terra? ao lado da maioria de escravos africanos, escravos crioulos, de pretos e pardos libertos e livres? Um novo regime político, ainda que exaltando um liberalismo semeado por todos os lugares, seria capaz de aceitar a universalização dos direitos de cidadania em benefício das pessoas de cor? A Revolução Francesa, ela mesma, não foi capaz de aceitar as reivindicações de VicentOgé para o alargamento dos direitos de cidadania para os negros de São Domingos – esta é a origem da Revolução Negra Haitiana. Da mesma maneira no Brasil, os independentes tiveram necessidade de pessoas de cor para carregar os fuzis, mas não os incorporaram como negros cidadãos.
Neste quadro muito estreito de escolha, as populações negras da Bahia se dividiram em dois movimentos. Os negros nascidos no Brasil, chamados na época de crioulos – libertos, escravos e negros livres – escolheram o caminho da participação no processo de formação do estado nacional, reclamando para eles uma nova identidade nacional, assim como na América Espanhola, sob o impulso do movimento bolivariano. Segundo o barão de Aramaré, um general baiano, estes negros eram pessoas sem pátria, que desejavam fazer um a seu modo, contra aquela dos descendentes dos portugueses, verdadeiros brasileiros. Esta massa crioula constituiu a base armada das revoltas e dos levantes populares, desde a Revolução dos Búzios, em 1798, até 1838, por ocasião do aniquilamento da revolução federalista chamada Sabinada. O saldo dessa participação política foi muito negativo: a manutenção da escravidão negra, a exclusão política pela adoção do voto censitário e o reforço da discriminação contra os negros segundo o critério da cor da pele. Em lugar de uma república liberal, eles viram se afirmar um Império Brasileiro escravista. Abatidos, humilhados, esses negros brasileiros fracasssaram nos seus propósitos de afirmação de uma identidade brasileira plena, a seu modo.
Os negros nascidos na África, escravos e libertos, rechaçados por todos, brancos e negros brasileiros, foram estimulados a empreender várias revoluções escravas. De 1811 até 1835, por ocasião do levante dos africanos islamizados chamados de Malês, suas esperanças foram renovadas. Para esses revolucionários, não estava em questão a criação de um novo Estado Americano mas, simplesmente, a superação do estatuto da escravidão e a colocação, em seu lugar, de um estado negro fundado sobre as tradições africanas. Derrotados como os outros, eles guardaram ao menos a honra do bom combatente. A propósito desses combatentes, foi formado o mito da resistência africana, com um forte apelo identitário.
A Abolição e a República
No final do século XIX, tempo do cientificismo e do imperialismo, as elites brasileiras propuseram, mais uma vez, a modernização da sociedade brasileira. O Brasil era o último país escravista do Ocidente e a única monarquia na América. Era necessário então abolir a escravidão e proclamar a república. E os negros brasileiros, que pensavam eles? Abolição, sim, mas com o direito a terra e ao trabalho. República sim, mas com a ampliação dos direitos de cidadania para todos os brasileiros. Para miséria deles, foram considerados pelos republicanos positivistas como pouco civilizados para o trabalho qualificado e para a liberdade. Assim, o novo regime republicano brasileiro decidiu pela substituição da mão-de-obra escrava pela mão de obra livre pela via da imigração européia. No que diz respeito aos direitos de cidadania, a Constituição de 1891 decidiu pela incapacidade política da maioria negra, recentemente saída da escravidão, excluindo-os do direito ao voto sobre o pretexto do analfabetismo. Era ainda uma questão de cultura! Existiam no Brasil pessoas civilizadas e outras bárbaras. Esta república constituiu então uma espécie de colonialismo interno pelo qual os verdadeiros brasileiros seriam aqueles que guardariam, dentro da sua cultura, os traços construtivos da civilização européia.
Era o tempo de civilizar os bárbaros a tiros de fuzis. Essa nova ordem foi finalmente imposta em 1897, quando o Exército brasileiro, sob o comando da esquerda republicana, exterminou o arraial baiano de Canudos, e decapitou milhares de camponeses negros e mestiços, considerados culpados de barbarismo, resistência à modernidade, monarquismo, etc… Ainda no território do massacre, o coronel Dantas Barreto escreveu à família dizendo que ele estava impaciente para retornar à civilização – Rio de Janeiro – porque ele estava, por muito tempo, entre os Tuaregs, no deserto, de fato naquele fim de mundo que era o interior da Bahia? Depois dessa derrota, todos os movimentos negros de integração política fracassaram: os negros republicanos, a guarda negra monárquica e mesmo o Partido Operário Democrático da Bahia, dirigido por antigos negros abolicionistas.
Na experimentação de um papel colonizador, as elites brasileiras e sua republica adotaram as ideias racistas, desenvolvidas na Europa, sob o rotulo da modernidade cientifica. Produziram um sistema de representações que se dizia cientifico, no qual os negros da Bahia e suas tradições africanas foram enquadrados em uma classificação inferior enquanto raça negra africana, portadora de uma cultura selvagem, um perigo potencial à civilização. Era necessário então, segundo esses cientistas do racismo, compreender as diferenças culturais das etnias africanas representadas na Bahia, entender todos os perigos ocultos que eles poderiam aportar contra a civilização e contra a civilização e contra a ordem republicana.Esse barbarismo era muito mais perigoso porque estava disfarçado em práticas religiosas, ou em manifestações folclóricas. A Faculdade de Medicina da Bahia foi um dos centros mais prestigiados no Brasil, nos domínios da Medicina Legal, da criminologia, da Antropologia Criminal. Nessa instituição foram produzidos os critérios da racialização do povo baiano. Era o tempo da Antropologia de Nina Rodrigues.
Da teoria a pratica, o novo regime passara então a considerar toda manifestação publica da cultura negra de origem africana como uma vergonha para o Brasil civilizado. A capoeira foi então declarada como contravenção criminal, assim como a religião africana – o Candomblé. Os grupos de carnaval formados por negros, que desfilavam na rua com motivos africanos – a coroação do rei Ménelik da Ethiopia, por exemplo – foram proibidos pela policia. Não estavam em questão fazer a Bahia parecer com a África.
É assim que os negros da Bahia, para salvar suas identidades, se refugiaram na africanidade originária. Apesar das expedições punitivas da policia, os candomblés resistiram. Apesar das dificuldades, os intelectuais negros, tal como o Prof. Martiniano Bonfim, estabeleceram contato direto com os Agoudas da Costa Ocidental Africana. A pureza africana constitui então o núcleo duro da resistência negra contra o colonialismo interno. Manoel Querino, um antigo abolicionista, desenvolve as proposições sobre o papel do ?colono negro? na formação do Brasil. Segundo ele, a honra dos negros brasileiros seria a sua africanidade, porque o colono negro tinha trazido para o Brasil todas
as virtudes do trabalho, da disciplina, da sociabilidade, da espiritualidade, da força civilizatória. Os portugueses, ao contrário, aportaram para o país o resto de suas civilizações, os condenados pela justiça, a violência da conquista, a preguiça dos senhores de escravos.
A democracia Racial.
Depois dos anos 30 do século XX, em seguida a revolução que propôs a modernização do velho Brasil republicano, mais uma vez a questão racial estava no centro da questão nacional brasileira. Os imperativos da industrialização e o surgimento de uma nova classe operaria exigiam um novo enquadramento das classes populares no Brasil. Quem são os brasileiro? É sempre a mesma questão! Um novo paradigma, aquele da democracia racial brasileira, substitui o racismo cientifico de outrora.
Este novo choque de modernidade impôs as elites brasileiras um grande desafio: como integrar as massas dentro de um processo de desenvolvimento, sem os riscos da revolução social e fracionamento do tecido social, levando em conta a diversidade racial da população? Os dois grandes modelos propostos ao mundo, justamente após a segunda Guerra Mundial, eram, de um lado a revolução e o comunismo soviético e, do outro lado, a democracia americana, marcada pela segregação e conflitos raciais permanentes. Como então enquadrar as massas sem perder o controle? Contra o perigo revolucionário, é colocada em ação uma dinâmica social centrada sobre a mensagem de união nacional à procura do desenvolvimento econômico, sob controle do estado populista, interposto entre os burgueses e os operários para amortecer a luta de classes.
No que respeita a população negra, viu-se o estabelecimento sólido de uma ideologia nacional, em que um dos elementos constitutivos era a negação da questão racial. Este novo conceito se apoiara sob a convergência de duas fortes correntes teóricas, da direita e da esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento do marxismo como instrumento de analise e ação política, a partir da obra de Caio Prado Jr., recolocara a questão racial no domínio da historia da escravidão colonial, nos termos da expansão do capitalismo centrado na Europa e depois nos Estados Unidos. De fato, a questão racial seria amplamente secundária, pois os descendentes dos antigos escravos são hoje os explorados sob o capitalismo contemporâneo. Do antigo sistema de exploração, restam alguns traços secundários, no domínio da cultura de fato um epifenômeno da superestrutura social. O verdadeiro problema do povo seria sua consciência de classe, o instrumento necessário para o inicio da revolução social e não as identidades fundadas sobre algumas permanências culturais. Esta tradição está enraizada no pensamento de esquerda no Brasil. É a convicção de que a questão racial e as identidades que ai decorrem são questões externas ao Brasil, uma espécie de exportação malvada ou desastrosa de um problema que não interessa senão aos Estados Unidos, e cuja evocação no Brasil somente pode acarretar o fracionamento do proletariado brasileiro.
Do lado da direita, a obra de Gilberto Freyre lança as bases da negação da questão racial no Brasil pela afirmação da democracia racial contemporânea, resultado histórico da adaptação da sociedade patriarcal portuguesa aos trópicos. A apologia da mestiçagem das três raças, do branco, do índio e do negro foi tomada como ideologia de estado para demonstrar e desenvolvimento harmônico do povo brasileiro, um ?povo novo? dentro da versão contemporânea apresentada por Darci Ribeiro. Segundo Gilberto Freyre, estava se estabelecendo no Brasil um tipo ?meta racial? denominado ?moreno?. Uma vez que não havia uma prática de segregação de raças como nos Estados Unidos, a questão racial não aparecia na classificação dos problemas brasileiros. O racismo seria então uma questão americana, e os brasileiros, em seu subdesenvolvimento, deveriam ser muito orgulhosos de terem superado um problema que sempre constrange os ricos americanos.
Para os movimentos negros brasileiros, o grande obstáculo à formação das identidades negras, autônomas e antirracistas, foi a deportação da questão racial do imaginário brasileiro. Racismo era coisa de estrangeiro, de americano. Diz-se hoje que o pior do racismo brasileiro é crer e fazer crer que não existe racismo no Brasil. Em um cenário contemporâneo de mundialização da cultura e da informação, em que se tornam possíveis as trocas entre vários movimentos negros no mundo, este obstáculo não chega a ser superado. Apesar do surgimento e da estabilização de novas identidades e de práticas sociais formadas dentro destes contatos, do pan-africanismo, do blackpower, do reggae, do hip hop, tudo termina sendo reduzido a uma escala de efêmeros acontecimentos da moda internacional, igualmente estrangeiros em relação ao Brasil.
O único refúgio dos movimentos negros na Bahia para a afirmação de sua identidade, para além da sua herança da sociedade escravista da Bahia, é a tradição africana, guardada com cuidado pelas comunidades religiosas do candomblé. Ninguém ousa dizer que o candomblé, cada um cultivando suas raízes africanas específicas ?suas nações, seja estrangeiro na Bahia. Isto explica o fato de que, desde a experiência política e cultural de Edison Carneiro sob a ditadura do Estado Novo em 1937, até os movimentos de esquerda negra contemporânea, inspirados por ?aggiornamientos? à la Gramsci e Thompson, todos esses marxistas negros procuram dentro do candomblé o relicário de sua identidades ancestrais. Esta co-habitação necessária entre o materialismo e o camdomblé produziu a deliciosa excentricidade cultura que Jorge Amado chamava ?materialismo? mágico.
Os suportes materiais da Utopia
Assim, ao longo da historia do Brasil independente, as comunidades formadas por homens e mulheres muito pobres, colocados em regiões negras nos subúrbios da cidade, todos submetidos ao peso do racismo, foram capazes de constituir um lugar da memória africana. Como isto foi possível? Os que crêem respondem logo em seguida: é o poder dos Orixás!. Os menos crentes estão sempre em condição de afirmar que as características das religiões africanas. Fundadas sobre os cultos dos ancestrais, têm necessidade guardar na memória coletiva toda a ambiência cultural originaria, sem a qual os orixás não teriam sentido. Isto explica o empenho dessas comunidades na preservação das tradições africanas, da língua Yorubá e da recusa à nacionalização do candomblé, tal como ocorreu com a Umbanda.
As razões religiosas, somente, não explicam totalmente o fenômeno da preservação da memória africana. O Candomblé, como aliás as outras tradições, foi atacado por todos os choques da modernidade, e também obrigado a toda sorte de adaptação para assegurar a solidariedade interna nas comunidades. Teve igualmente que estabelecer as negociações e as trocas com ?os outros?, os clientes, os que procuram no Candomblé socorros e cuidados materiais e espirituais. Como fazer para impedir que as adaptações sucessivas não resultem em um tipo de deformação da tradição originária e, por conseqüência, o enfraquecimento desses lugares de memória, sés e bastiões de nossa identidade negra baiana?
Ao longo dos anos, as pessoas do camdomblé desenvolveram estratégias para assegurar a sobrevivência das comunidades e, ao mesmo tempo, para a consolidação desse corpus de memória. Antes de mais nada, era necessário manter o contato permanente com a ?fonte?, com o fundamento, com a África. Durante a escravidão, assim como a aranha, o tráfico transatlântico de escravos teceu sua teia de conexões entre as duas bordas do Atlântico, um verdadeiro e complexos territórios de terras e de águas pelo qual circularam homens e mulheres, com seus bens, seus poderes e seus saberes. Este foi o fluxo e refluxo da Bahia para o Golfo de Benin, de que nos falou Pierre Verger, que ocorreu por meio do transporte de pessoas. Isso tornou possível um sistema de circulação de mercadorias, compreendendo os produtos utilizados nos rituais, como também a circulação de religiosos ?Yialorixás, babalorixás e babalôs.
Este vai-e-vem sobre o Atlântico nutriu a tradição religiosa e, por conseqüência, assegurou o fluxo de informações políticas e culturais entre a África e a Bahia. As revoltas africanas do início do século XIX determinaram a chegada, na Bahia, das informações sobre os movimentos sociais na África. Depois do fim do tráfico de escravos, de 1850 até 1889 a navegação na direção da costa da África quase cessou. Apesar da interdição, a antiga teia ancorou seus laços na memória efetiva dos povos sobreviventes, os afro-descendentes baianos na borda oeste e os Agudas espalhados ao longo da borda leste do Atlântico. Persistiu ainda a correspondência entre familiares e conhecidos.
No final do século XIX, a chegada da republica ao Brasil e a ocupação colonial na África impuseram o distanciamento das duas bordas do Atlântico. Alguns religiosos, como o Babalaô Martiniano Bonfim e a Yalorixá Aninha, ainda conseguiram várias vezes realizar a travessia para a Costa da África, durante a primeira metade do século XX. Apesar desses esforços heróicos, aquele foi o tempo mais difícil para a preservação da memória africana no Brasil.
Em 1959, ano da criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia, assistiu-se ao restabelecimento das relações bilaterais entre Bahia e África, por força da ação desse encontro universitário, em quadro da diplomacia brasileira para a África. Durante uma dezena de anos, pesquisadores e professores partiram em missão nas duas bordas do Atlântico. Foi assim que os religiosos do Candomblé fizeram a descoberta de que seu modo de falar dos Yorubá, mesmo arcaico em relação àquele falado contemporaneamente na Nigéria, ainda era entendido e louvado nos cursos dados por professores da língua Yorubá no CEAO, vindos da Universidade de Ilê Ifé. Depois de 1970, mais algumas personalidades negras da Bahia tiveram sucesso na Bahia tiveram sucesso na travessia do Atlântico, graças ao apoio da UNESCO e de outros organismos internacionais.
Hoje, constatamos que as possibilidades de contatos entre as comunidades africanas e as afro-baianas, por sus próprios meios, são praticamente impossíveis diante dos custos da viagem. De outra parte, as instituições públicas, tal como a universidade, não tem êxito na constituição dos suportes materiais para assegurar a circulação de pessoas e de idéias entre os dois lados do Atlântico, de forma a realimentar a memória africana das comunidades religiosas da Bahia. Diante do perigo da desafricanização, da dissolução da memória afro referente, em uma conjuntura cultural marcada pela pressão interna para a navegação das identidades negras e da pressão externa da geléia geral globalizante, é imperioso redobrar os esforços para o restabelecimento desta conexão atlântica, condição indispensável para o fortalecimento da identidade negra baiana. É importante reconhecer também que esta conjuntura é marcada por um novo choque de modernidade, com a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, na África do Sul, em 2001, e pela posse de um novo governo de esquerda no Brasil. Esta será, com fé nos Orixás, uma outra história.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Ubiratan Castro de. 1846: um ano na rota Bahia-Lagos: negócios, negociantes outros parceiros. Afro-Ásia, Salvador, nº 21-22, p.83-110, 1998-1999.
______. A política dos homens de cor no tempo da Independência. Recife:CLIO/UFPE,2001.
______. Sans glorie: le soldat noir sous le drapeaubrésilien, 1798-1838.In:CROUZET, François (Org.). Pourl´histoireduBrésil. Paris: Harmattan, 2000. p.527-540.
AMOS, Alcione M. Afro-brasileiros no Togo: a história da família Olympio, 1882-1945. Afro-Ásia, Salvador, nº23, p.175-197,1999.
BACELAR, Jéferson. A Frente Negra Brasileira na Bahia. Afro-Ásia, Salvador, nº17, p.73-85, 1996.
CENTRO de Estudos Afro-Orientais da UFBA (CEAO. Encontro de Nações do Candomblé. Salvador: Ianamá/CEAO-UFBA, 1984.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo, SP: Brasiliense, 1982.
MESTRE DIDI (Deoscóredes Maximiliano dos Santos). História de um Terreiro Nagô: crônica histórica. São Paulo, SP: Carthago e Forte, 1994.
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Quem eram os negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, Salvador, nº 19-20, p.37-73, 1997.
QUERINO, Manoel. O colono preto como fator da civilização brasileira. Afro-Ásia, Salvador, nº13, p.143-158, 1980.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, SP: Brasiliense, 1986.
RODRIGUES, João Jorge (org.). A música do Olodum: a revelação da emoção. Salvador: Olodum, 2002.
SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo atlântico. Amsterdam: Brasil: SEPHIS:CEAA, Universidade Cândido Mendes, 2001.
VERGER, Pierre. Fluxo e relfuxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. São Paulo, SP: Corrupio, 1987
2.2. Turismo e religiosidade de matriz africana
2.2.1. Leitura do Artigo: TURISMO E RELIGIOSIDADE POPULAR: TRADIÇÃO E MUDANÇA NA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO DO MARANHÃO1
Mundicarmo Ferretti2
INTRODUÇÃO 
Falar em religiosidade popular é falar em crenças e rituais de uma população e na relação essa população com o sagrado. Mas é preciso lembrar que, quando a população é mais ou menos homogênea, sua cultura popular se confunde com cultura nacional e não há grandes diferenças em sua religiosidade, mas, quando existem na população diferenças sócioculturais expressivas, sua cultura e sua religiosidade (um dos seus principais elementos) apresentam grande variedade. 
No Brasil, até a abolição da escravidão (1888), a cultura das camadas dominantes (da elite) procurava seguir o padrão da nobreza portuguesa, principalmente nas áreas mais próximas à sede do poder (cidades, vilas) e, apesar de na época não se pretender criar uma sociedade igualitária, alguns elementos dessa cultura de elite foram impostos aos segmentos populares (negros, índios, caboclos, degredados), como ocorreu com a língua portuguesa e com o catolicismo, que foi a religião oficial até a Proclamação da República (1889). Mas os segmentos populares das cidades e das áreas rurais (de origem indígena, africana e outros), excluídos ou quase excluídos das escolas e às vezes marginalizados nas igrejas, tinham seus próprios modelos e tradições culturais. 
A religiosidade popular nem sempre é vista de forma adequada pelas elites sócio - econômicas. As diferenças por ela apresentada em relação à das camadas dominantes é freqüentemente interpretada como decorrentes de arcaísmos (sobrevivências de um passado longínquo) ou de ignorância (baixa escolaridade), e, não raramente, a religião popular é referida na literatura acadêmica como: fetichismo, magia, feitiçaria etc. É curioso que nem sempre as pessoas consideradas avançadas - que têm uma história de luta pela valorização da cultura popular -, conseguem escapar dessa visão preconceituosa. Nina Rodrigues, pioneiro dos estudos sobre o negro no Brasil, apesar de tervalorizado as religiões afro-brasileiras, referiu-se a elas como “fetichismo” (RODRIGUES, 1935)3
Cultura popular e diferenças regionais 
Quando se comparam as produções e modos de vida de populações de regiões geográficas diferentes as suas diferenças culturais costumam aparecer de modo bastante visível e essas diferenças podem ser facilmente detectadas, tanto na rua e em outros locais públicos (como feiras; mercados; largos de igrejas, durante festejos religiosos etc.), como em locais privados (terreiros de religião afro-brasileira e outros ). Mas é ilusório pensar que a cultura de elite é homogênea. Apesar da ação uniformizadora do sistema escolar, grandes sãotambém as diferenças por ela apresentadas4.
Embora as diferenças culturais tenham sempre despertado a curiosidade dos povos5, na sociedade moderna elas se transformaram em atração turística e tem estimulado váriasatividades econômicas orientadas para o lazer. Os “pacotes turísticos” costumam incluir, além de atividades voltadas à apreciação das belezas naturais, programas direcionados ao conhecimento
das riquezas culturais das populações locais, com ênfase no artesanato, na culinária e nas festas populares. 
Turismo e religiosidade popular 
A participação de turistas nas festas e rituais religiosos, embora costumem emprestar a elas maior brilhantismo, tem causado alguns problemas. Com exceção dos programas caracterizados como turismo religioso, os turistas costumam participar de festas e rituais religiosos populares sem conhecimento ou sem preocupação com as normas que os regem e, não raramente, criam certos embaraços. Quando a afluência deles é muito frequente ou assume grandes proporções, tende a causar grande impacto naquelas atividades, daí a necessidade de discussão do problema entre produtores culturais, folcloristas, técnicos, antropólogos e outros interessados em cultura popular. O interesse turístico pelas produções culturais populares tradicionais, apesar de poder incentivá-las, às vezes, tem atuado negativamente sobre elas. É sabido que as produções “para turistas” são geralmente menos elaboradas, mal acabadas e que às vezes foram descaracterizadas para se adaptarem à programação turística e a outros padrões estéticos. Pretendemos a seguir analisar a questão da interferência do turismo no folclore tomando como referência a Festa do Espírito Santo na capital maranhense6. 
A Festa do Espírito Santo em São Luís-MA
A Festa do Espírito Santo, de origem européia, é encontrada em vários estados brasileiros, principalmente naqueles onde a população de origem açoriana é expressiva. No Maranhão ela é realizada com grande esplendor no Domingo de Pentecostes envolvendo “toda” a cidade, como ocorre em Alcântara, ou, simultaneamente várias comunidades, como ocorre em São Luís, onde é realizada principalmente em terreiros de mina – religião afrobrasileira hegemônica na capital (como na Casa das Minas e na de Casa de Nagô) ou sob a liderança de pessoas ligadas à religião afro-brasileira (como a realizada por dona Nilza, no bairro Goiabal). Mas nos terreiros as festas para o Espírito Santo são realizadas durante quase todo o ano, excluindo-se apenas o período do Carnaval, da Quaresma e algumas outras datas de grandes comemorações populares7. No Maranhão, embora as Festas do Divino incluam em sua programação uma missa, celebrada em igreja católica, são comandadas inteiramente por devotos do Espírito Santo, na maioria das vezes, como falamos anteriormente, ligados a terreiros de mina, daí a sua frequente relação com voduns e encantados. 
As Festas do Divino dos terreiros de mina são realizadas quase sempre durante o seu festejo grande, quando as casas de culto rendem homenagem às suas principais entidades espirituais (como Vó Missa/Nanã, sincretizada com Santana – no terreiro de mãe Elzita; Dom Luís Rei de França, no Terreiro de Yemanjá, do falecido Jorge Itaci) ou são em si uma obrigação para uma entidade espiritual, como ocorre com a Casa das Minas, onde é uma obrigação para NochêSepazim, vodum da família real do Daomé, conhecida como devota do Espírito Santo. 
No Maranhão a Festa do Espírito Santo tem uma longa duração e compreende várias etapas sendo as principais: 1) abertura da tribuna (ocasião em que são armados os tronos do império e dos mordomos); 2) buscamento e levantamento do mastro (tronco que, depois de enfeitado, deverá ser plantado no local da festa para ser visualizado de longe e anunciar a sua realização); 3) festa propriamente dita (com missa, cortejo do império, distribuição de comida, toque de caixa etc.); 4) derrubada do mastro; 5) transferência das posses (quando o império transfere ao escolhido para atuar no ano seguinte os símbolos de nobreza usados por ele: cetro, coroa etc.); 6) e serração do mastro e/ou carimbó (brincadeira de caixeiras após o encerramento da festa). Alguns momentos da festa, como o levantamento e a derrubada do mastro, e o dia da festa propriamente dita são mais solenes e atraem grande público. Em São Luís, um certo número dessas festas começa Sábado de Aleluia (que antecede ao domingo de Páscoa) e vão até a 2ª feira depois de Pentecostes (durando, portanto, mais de 50 dias). Nas festas longas, embora as atividades principais se concentrem em uma ou duas semanas, nas outras semanas são também realizadas algumas atividades, como toque de caixa às 6h da tarde, aos sábados etc.
A Festa do Espírito Santo é realizada no Maranhão com muito luxo, muita fartura e muito zelo para que nada saia errado, pois se acredita que qualquer falha pode atrair grandes desgraças. É uma festa dispendiosa, cansativa, que envolve muitos segredos, mas é também uma atividade que reforça a esperança em dias melhores, a autoestima e o prestígio do grupo. É também a festa onde há maior congraçamento de pessoas de diferentes crenças e classes sociais e por ser uma das principais manifestações folclóricas do Maranhão, vem há anos merecendo o apoio do governo8. 
O interesse turístico sobre a Festa do Espírito Santo no Maranhão 
Os ritos religiosos populares e as festas de santos costumam atrair não apenas devotos, mas também pessoas que às vezes desconhecem ou que não comungam das crenças e valores a eles associados. Alguns desses rituaisconstituem manifestações folclóricas expressivas (como é o caso da Festa do Divino Espírito Santo em São Luís e em Alcântara, no Maranhão, de que nos ocupamos anteriormente), daí porque são incluídos em calendários turísticos realizados pelo setor público e em programações de turismo cultural ou religioso realizadas por algumas empresas especializadas. Pretendemos discutir aqui alguns problemas gerados pela participação ou presença de turistas em rituais religiosos e apontar alguns cuidados que se precisa tomar para que ela não venha a prejudicar grandemente aquelas atividades religiosas. 
Os ritos e festas do folclore religioso, como a Festa do Espírito Santo, são realizados geralmente por devotos e envolvem grupos ou comunidades que professam a mesma fé. Mas, como falamos anteriormente, muitos deles atraem grande número de pessoas para quem a religião não tem tanta importância, que têm outra religião ou um outro sistema de crenças. A presença desses “não devotos” nas festas e rituais religiosos pode ter um efeito positivo sobre elas, uma vez que podem reforçar a motivação para a sua realização e aumentar o desejo dos devotos de realizá-las cada vez melhor. E não raramente esses “não devotos” contribuem financeiramente para a realização da festa, quer diretamente, quer indiretamente, participando de leilões, rifas, bailes com entrada paga, comprando comidas e lembranças em barracas dos devotos etc. 
Mas a participação de “não devotos” nas festas e rituais religiosos pode também acarretar problemas. Algumas vezes eles comparecem em grande número ao local do festejo ou de realização do ritual, passando na frente de quem tem alguma relação com o que ali está sendo realizado ou tomando o lugar de quem contribuiu para a sua realização. E, não tendo consciência do valor religioso da festa ou ritual, podem provocar mudanças na suaatmosfera, aumentando a bebedeira e a algazarra existente em torno deles, desrespeitando regras e proibições, e desviando a atenção para o que está sendo realizado9. 
Nos últimos anos tem havido muita reclamação sobre o comportamento de pessoas de fora e de turistas que têm ido a Alcântara por ocasião daFesta do Divino. Os terreiros de mina freqüentemente se sentem também agredidos pela presença de pessoas de bermuda oude roupa preta nas festas, e reclamam de pessoas atravessando o barracão durante a realização de rituais, geralmente em busca de melhor ângulo para as suas fotos ou de melhor local para as suas gravações de áudio, que às vezes são até proibidas. 
Um outro problema gerado por essa participação é o risco da introdução de mudanças nas festas e rituais religiosos para satisfazer o gosto daquela clientela passageira ou para adequá-los à sua disponibilidade de tempo, o que levaria fatalmente, mais cedo ou mais tarde, à transformação da festa religiosa em puro espetáculo para turista. Os cânticos dos rituais
e festas religiosas populares, por exemplo, além de longos, costumam ser repetidos muitas vezes, sem problema para os devotos, pois costumam estar ali sem nenhuma pressa, uma vez que estão cumprindo uma obrigação ou estão ali por devoção, daí porque costumam participar deles integralmente, do inicio ao fim. Mas constituem um grande problema nas programações turísticas. 
Como é bastante conhecido, as festas e rituais da cultura popular, além de longas, costumam ter data, hora e local determinados por motivos religiosos ou pela tradição, razão pela qual nem sempre se adéquam à programação turística. Os que ocorrem à noite, por exemplo, não costumam acabar antes do amanhecer, até porque durante a madrugada os transportes coletivos são poucos e muitas pessoas são obrigadas a permanecerem no local até de manhã. Por outro lado, existem etapas de festas ou rituais que só podem ser realizadas ao escurecer, ao raiar o dia, ou nas “horas grandes” – 6, 12, 18 e 24 horas. 
Existe mais um problema para a religiosidade popular, quando as festas passam a despertar maior interesse turístico, o surgimento de grupos motivados apenas pela demanda mercadológica. Sem nenhum compromisso religioso, esses grupos têm toda liberdade para criar e recriar em cima da cultura tradicional e, às vezes, alguns terminam se destacando mais do que os tradicionais e até influenciando os antigos que, no processo de adaptação às demandas turísticas, como estratégia de sobrevivência, abandonam as formas tradicionais e passam a imitar os grupos mais jovens (o que ocorre frequentemente após o falecimento de seus criadores).
A inclusão de rituais religiosos afro-brasileiros em calendários turísticos 
Os rituais religiosos afro-brasileiros há muito, vêm sendo objeto de atenções de não devotos, atraídos pela beleza de suas danças, músicas e indumentárias etc. Esse interesse (embora às vezes seja fruto do desconhecimento de sua verdadeira natureza ou da redução daqueles rituais a espetáculos para diversão das camadas populares) foi e continua sendo legitimada por vários pais-de-santo e, na maioria das vezes, parece que não tinha um impacto muito negativo sobre as religiões afro-brasileiras. É possível que no passado os próprios líderes religiosos tenham procurado atrair aquela clientela no intuito de reduzir o preconceito existente nas camadas sociais mais altas sobre aquelas religiões. 
Atualmente a presença de “não devotos” nos terreiros tem crescido graças à integração de programação de instituições que atuam na área de turismo, o que tem sido objeto de críticas e de preocupações de líderes religiosos. Não raramente se ouve falar em São Luís, com um tom crítico, em terreiros “de turistas” e em rituais “para turistas” realizados naquelas casas. E, como os terreiros vinculados à programação turística costumam passar por um acentuado processo de mudança, é também grande a resistência encontradanessa área em relação a programas do setor publicoou de empresas que visem propiciar a visitação de turistas àquelas casas. 
Em 2002, pesquisadores do GP-Mina, realizando pesquisa de levantamento para a FUMTUR, encontraram em alguns terreiros grande resistência em relação à sua inclusão na lista dos que poderiam receber turistas, temendo o controle dos coordenadores de programas e mudanças por eles impostas em relação a seus calendários das festas e rituais, pois, segundo eles, “nos terreiros toda mudança tem que ser solicitada ou aprovada pelas entidades espirituais”10. 
Os exemplos apresentados parecem suficientes para mostrar que a inclusão de festas e rituais religiosos em calendários turísticos tem que ser feita com cautela, principalmente quando ocorrem em locais privados (como em terreiros de religião afro-brasileira).
Conclusão
A interação entre turismo e religiosidade popular é problemática e precisa ser acompanhada pelos produtores culturais, técnicos e responsáveis pela formulação de políticas públicas, para que o primeiro não venha a causar danos à segunda. A participação intensa de turistas em uma atividade religiosa pode levar a substituição dos seus motivos e desvirtuá-la facilmente, se os motivos para a sua realização forem substituídos por interesses econômicos. 
Mas, enquanto os devotos conseguirem encarar com naturalidade a presença de turistas em suas festas e rituais, e continuarem realizando essas atividades por promessa, obrigação, tradição ou por prazer, o turismo não deverá afetá-las grandemente. 
O risco maior de interferência negativa do turismo sobre a religiosidade popular surge quando os produtores culturais tradicionais deslocam o foco de sua atenção para os expectadores externos (os turistas), encarando-os como motivo especial de orgulho (já que são geralmente de classe social superior a deles) ou como oportunidade de lucro. 
Referencias Bibliográficas
ANDRADE, Mario. Musica de feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: INL/PROMEMORIA, 1983. 
Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 32, São Luís, agosto, 2005. (Agenda Cultural). 
Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 34, São Luís, junho, 2006. (Agenda Cultural). 
Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 35, São Luís, agosto, 2006. (Agenda Cultural). 
FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo da Mina em um terreiro de São Luís. São Luís: EDUFMA, 2000. 
FERRETTI, Sergio. Religião e cultura popular: festa da cultura popular na religião afrobrasileira do Maranhão. Vídeo. São Luís, 1995 (17’).
Notas
1. Apresentado no 12º Congresso Brasileiro de Folclore. Mesa Redonda 1. Natal, de 29/08 a 1/09/2006. Publicado no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 36, 2006. 
2. Comissão Maranhense de Folclore; Dra. Em Antropologia; pesquisadora de Religião afro-brasileira. 
3. E, algumas décadas depois, Mário de Andrade referiu-se à música produzida nos terreiros como “música de feitiçaria”, apesar de ter sido um “apaixonado” por ela (ANDRADE, 1983). 
4. Um exemplo dessa diversidade pode ser encontrado na diferença de sotaques observados na fala das populações das diversas regiões, apesar da costumeira imitação dos grandes centros pelos menores.
5. O relato de viajantes sobre o “Novo Mundo” despertou grande interesse dos europeus e influenciou obras de arte (pinturas, tapetes e louças passaram incluir imagens da flora, da fauna e retratos dos nativos das terras “descobertas” pelos europeus). 
6. Para maior informação, ver FERRETTI, Mundicarmo (2000); FERRETTI, Sergio (1995); NUNES, Izaurina (2003). 
7. Ver agenda organizada pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho e publicadas no Boletim da CMF, n, 32 (2005), 34 e 35 (2006).
8. O Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nos seus números 32 (2005) e 34 (2006), fornece uma relação de 50 Festas do Espírito Santo apoiadas financeiramente pelo Governo do Estado no período 2005-2006. 
9. Na Festa do Espírito Santo de Alcântara, o desrespeito a certas proibições, como a de cruzar os braços em locais e momentos especiais, obriga o infrator a “pagar uma prenda”. Para que não escape, ao ser flagrado, um dos fiscais da festa amarra uma fita em seu braço e só desamarra após o cumprimento da obrigação (que consiste, geralmente, em dar algum dinheiro).
10. Em 2002, coordenamos um trabalho do GP-Mina (grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA), para a FUMTUR (Fundação Municipal de Turismo de São Luís) o levantamento de informações gerais e o calendário de festas e rituais públicosde trinta terreiros de São Luís, com vista a fornecimento de informação a turistas interessados em religião afro-brasileira. O trabalho, solicitado pela Fundação Municipal de Turismo (FUMTUR – São Luís-MA), foi realizado por três membros do grupo de pesquisa, com a nossa orientação, e envolveu 30 terreiros da ilha de São Luís (a maioria da capital). Pelo menos 50% desses terreiros já haviam sido pesquisados de forma sistemática por estudantes ou pesquisadores maranhenses e vários deles
já eram conhecidos na literatura especializada e/ou havia sido cadastrados peloCentro de Cultura Domingos Vieira Filho (ligado à administração estadual) como produtores de folclore, pela realização anual de Festa do Espírito Santo, Bumba-boi de encantado, Pastor etc.
2.2.2. Estudo de Caso: O DESENVOLVIMENTO DO “TURISMO ÉTNICO” NA BAHIA: O CASO DA CIDADE DE CACHOEIRA1
Xavier Vatin2
Resumo: O conceito de “turismo étnico” tem se desenvolvido de forma significativa nas últimas décadas. A Bahia, que representa há muito tempo a imagem idealizada de uma África mítica transposta nas Américas, através de relatosde viajantes, dos trabalhos clássicos da antropologia afro-brasileira e, recentemente, dos esforços redobrados de órgãos governamentais federais e estaduais de “Cultura e Turismo”, chamou rapidamente a atenção de um público específico: os “africano-americanos”. Nessa perspectiva, a cidade de Cachoeira, às vezes vista como a “Meca do candomblé”, recebe a cada ano um número crescente de turistas negros estadunidenses, em busca de “raízes perdidas”, herança africana e ancestralidade. A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, deste ponto de vista, marca o momento central do calendário turístico, litúrgico, festivo e antropológico da cidade. É nesta perspectiva múltipla que tentaremos analisar os mecanismos identitários e étnicos em ação nesse novo cenário/mercado “etno-turístico”. 
Palavras-chave: turismo étnico; transnacionalização das religiões afro-brasileiras; diáspora africana nas Américas. 
Meu interesse antropológico pelas relações entre o turismo internacional e meu objeto de estudo – as religiões afro-baianas – começou em 1992, durante uma cerimônia no Terreiro Pilão de Prata, em Salvador. Apoiado na janela do barracão com material de gravação sonora para registrar o ritual, chegou ao meu lado um grupo de turistas norte-americanos brancos. Um deles olhou para mim e perguntou: “Howmuchisthe show?”. Desde este dia e ao longo dos anos que seguiram, surgiram diversas interrogações na cabeça do “baiano por opção” que me tornei: Qual a visão êmica dos turistas estrangeiros sobre o candomblé? Qual o impacto potencial do desenvolvimento do turismo internacional sobre as comunidades religiosas afro-baianas numa Bahia que utiliza o candomblé como cartão postal? O que será aquele tão falado “candomblé para turistas”, do qual se queixam religiosos ortodoxos e turistas em busca de “autenticidade” e “pureza africana”? Qual a expectativa dos turistas afro-americanos ao chegar na “Roma Negra” (Salvador) e na Bahia de forma geral? Como é que, na cidade de Cachoeira, os adeptos das religiões de matriz africana e as irmãs da Boa Morte encaram a expansão rápida do turismo étnico afro-americano? Tentarei apontar nesta comunicação alguns elementos de reflexão sobre o desenvolvimento recente do “turismo étnico” na Bahia, com uma ênfase no caso específico de Cachoeira. 
O desenvolvimento do turismo étnico: diáspora africana e “africano-americanos”
O conceito de “turismo étnico”, ou “turismo de raízes” (roots tourism) na terminologia anglo-saxônica, tem se desenvolvido de forma significativa nas últimas décadas. Será abordada aqui uma modalidade específica deste turismo, praticada pelos “africanoamericanos”, ou negros estadunidenses, na sua busca de raízes perdidas na África e nas Américas Negras – para usar o termo usado por Roger Bastide (1967) – ou, para retomar uma terminologia mais recentemente empregada por Stuart Hall (2003), na diáspora africana nas Américas. 
A supremacia das perspectivas eurocêntricas e “estadunidocêntricas” nas ciências sociais em fortalecido a idéia de que há um modelo exclusivo de “modernidade”, vivido primeiramente nos centros econômicos mundiais e, em seguida, adotado nas “periferias”. Esta mesma lógica pode ser encontrada nos estudos sobrenegritude no Brasil, que caracterizam muitas vezes a experiência negra estadunidense como a mais “moderna” da diáspora africana. 
Seria preciso uma densa reflexão teórica para superar a centralidade dos Estados Unidos nos estudos sobre “negritude”, recuperando a noção de diáspora africana como complexo multicentralizado. Para tanto, podemos apontar a posição da Bahia como centro importante para a formação do mundo moderno, bem como para a construção de identidades negras contemporâneas. O desenvolvimento rápido do “turismo de raízes” afro-americano no Brasil vem justamente questionar o papel aparentemente coadjuvante do Brasil na diáspora africana, em um contexto dominado pela hegemonia dos conceitos “US-cêntricos” de negritude. Ao mesmo tempo, o “turismo de raízes” aponta para três tipos de desigualdades: a disparidade entre aqueles que têm acesso à viagem e os que não têm; a crença de muitos turistas afroamericanos de que podem trocar o que eles considerem como a sua “modernidade” pelas “tradições” das comunidades negras locais com as quais interagem durante as suas viagens; o acesso muito maior dos “africano-americanos” – deAfrican-American, termo mais politicamente correto atualmente vigente nos Estados Unidos, equivalente de negro ou afrodescendente no Brasil – aos meios pelos quais a África e a diáspora podem ser representadas. Os negros localizados no Norte e no Sul do continente americano têm um acesso muito desigual a fontes de poder globalizadas. Desta forma, mesmo oferecendo aparentemente a possibilidade de desafiar os fluxos tradicionais de intercâmbio cultural Norte-Sul, o turismo étnico afro-americano confirma a hierarquia em vigor dentro do Atlântico Negro. Idealizando uma África mítica, fonte única da civilização, o afrocentrismo estadunidense, com certo maniqueísmo, contrapõe uma visão unilateral ao tradicional eurocentrismo tão justamente combatido. No entanto, nos dois casos, a África é reduzida a uma imagem única e estereotipada. Paul Gilroy afirma, sobre a visão afrocêntrica nos movimentos negros:
“As formações autoritárias e proto-fascistas da cultura política negra do século XX têm sido constantemente estimuladas por um desejo intenso de recuperar as glórias perdidas do passado africano. O desejo de restaurar esta grandeza longínqua nem sempre tem coincidido com um entusiasmo equivalente em remediar a situação difícil da África no presente” (Gilroy, 2000: 323).
Há de constatar então que o turismo étnico desembarca na Bahia num contexto de relações desiguais de poder e de trocas possíveis,opondo a priori tradições africanas e africanismos baianos à modernidade negra estadunidense. Ao chegar à Bahia, os turistas afroamericanos esperam fazer uma viagem ao passado, aos tempos remotos da ancestralidade. A atemporalidade dos mitos e o tempo místico dos ritos extraem, por um momento, esses turistas de seu caminho rumo ao futuro e à “modernidade”. Tal encontro parece responder à busca de uma forma peculiar de exotismo, auto-referenciada, introspectiva. 
A busca da África na Bahia: viajantes, antropólogos... e turistas 
A Bahia representa há muito tempo a imagem idealizada de uma África mítica transposta nas Américas, através dos relatos de viajantes, dos trabalhos clássicos da antropologia afro-brasileira e, recentemente, dos esforços redobrados de órgãos governamentais federais e estaduais de “Cultura e Turismo”, no intuito de chamar a atenção de um público específico: os “africano-americanos”. Patrícia Pinho explica as origens históricas deste fenômeno recente:
“A majoritária população negra da Bahia contribuiu para que viajantes e exploradores que visitaram a cidade durante os séculos XVIII e XIX a descrevessem como uma cidade negra, apelidando-a de “nova Guiné” e “Negrolândia” (Verger, 1999). Mais tarde, a Bahia recebeu ainda os títulos de “Roma Negra” e “Meca da Negritude”, designações que apontam para sua condição central na rede de circulação de povos e símbolos negros. “Roma Negra” e “Meca da Negritude” são termos que enfatizam claramente o caráter da Bahia como uma cidade-mundial, primeiroporque destaca sua centralidade no Atlântico Negro – que (...) é um sistema que permite a existência de muitos centros
em sua configuração diaspórica – e, em segundo lugar, porque caracteriza a Bahia como um ponto de convergência, contato e peregrinação” (Pinho, 2004: 43). 
As ramificações históricas, inauguradas com a chegada dos primeiros escravos africanos na Bahia em meadas do século XVI, os relatos de viajantes e exploradores acima mencionados, junto aos conceitos deafricanismos e africanidade desenvolvidos pela antropologia clássica afro-brasileira, de Nina Rodrigues a Roger Bastide, ao longo do século XX, vão convergir para fazer da Bahia, desde a década de 1970, um atrativo de destaque para o recém nascido turismo étnico afro-americano:
“É precisamente o que parece ter sido preservado da África na Bahia que tem atraído um número cada vez maior de turistas negros dos Estados Unidos. Desde a década de 1970, os afro-americanos têm viajado à Bahia para encontrar “africanidade”. O que começou como uma viagem informal de um grupo de amigos se transformou ao longo das últimas décadas em um mercado estruturado e organizado que inclui agências de turismo do Brasil e dos EUA. Eu chamo este fenômeno de “turismo de raízes” porque é desenvolvido por pessoas que viajam para encontrar suas “raízes africanas”, estejam estas localizadas no continente africano ou em países da diáspora com significativas populações negras. Os turistas de raízes afro-americanos buscam conhecer culturas negras diaspóricas e estabelecer uma conexão com povos afrodescendentes de outras partes da diáspora. (...) Salvador e as cidades do Recôncavo, reconhecidas por sua forte herança negra, têm sido locais de visitação cada vez mais freqüente por parte de militantes negros de outros estados do Brasil ede turistas afro-americanos em suas viagens de “retorno às raízes”. Muitos negros norte-americanos visitam a Bahia a fim de conhecer de perto o que eles afirmam ser suas “tradições perdidas”. (...). Esses turistas negros vêm à Bahia com a intenção de reencontrar suas “raízes africanas”, que não estariam apenas na África, mas em todos os lugares da diáspora onde a África tem sido recriada” (Pinho, 2004: 47-48).	
A mesma autora conta o seu primeiro contato com turistas afro-americanos na Bahia
“A primeira vez em que me deparei com um destes grupos [turistas afro-americanos], acreditei que se tratassem de turistas africanos, já que estavam todos vestidos com longas batas coloridas, além de ostentarem penteados chamativos ou de cobrirem a cabeça com grandes turbantes. Só depois das primeiras conversas com aqueles “africanos”, foi que descobri que eram, na verdade, afro-americanos. A “africanidade” deles é tanta, e tão bem conferida é a “autenticidade”, que permite a (con)fusão com a matriz, ou ao menos com o que se imagina dela” (Pinho, 2004: 21)
A autora negra estadunidense Rachel J. Christmas relata a sua visita à Bahia:
“Nós sentimos o pulso africano na batida do samba, conhecido como semba em Angola; o engolimos com a comida condimentada, feita com castanhas, leite de coco, gengibre e quiabo, também usados na cozinha africana; o testemunhamos nas cerimônias de Candomblé, enraizado na religião dos iorubás da Nigéria; o ouvimos no musical sotaque iorubano do português falado no estado da Bahia. (...) Hoje, os baianos estão muito mais conscientes de suas origens do que estão os afro-americanos” (Christmas, 1992: 253-254).
Vamos ver agora como esta forma nova de turismo encontra incentivos a diversos níveis de articulação, do local ao global. 
O turismo étnico na Bahia: incentivo internacional, federal e estadual
Artigos de jornais encontrados na Internet dão a dimensão do fenômeno relacionado ao turismo étnico na Bahia e colocam a Festa da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira4, como ponto culminante desta nova onda turística afro-americana:
“A Bahia virou uma Meca para turistas negros americanos que buscam entender melhor a herança e as tradições africanas, de acordo com uma reportagem publicada neste domingo pelo diário americano “Los Angeles Times”. De acordo com a reportagem assinada por Patrick J. McDonnel, milhares de americanos – e quase todos negros – visitam o estado todo o ano em busca desse resgate do passado. (...) Um dos exemplos encontrados pelo LA Times foi o consultor Semaj Williams que, embora seja natural de Nova Jersey, se identifica “totalmente” com o Brasil. “Para mim, está evidente que em outra vida eu fui brasileiro”, disse Williams. “Tenho certeza: o Brasil é um dos meus lugares.” (...) Para muitos, segundo o jornal americano, a cultura africana foi muito diluída nos Estados Unidos, mas ainda pode ser vista no dia-a-dia dos baianos. Nem mesmo a barreira da língua dificulta a identificação dos turistas afro-americanos com os negros brasileiros, segundo a reportagem. Tradições populares comuns na Bahia, segundo o jornal, “evocam para muitos o fantasma da escravidão e as suas conseqüências, trazendo à tona lembranças de uma tradição oral passada adiante por falecidos avós e bisavós. Nos Estados Unidos, agências de turismo especializadas em clientes afro-americanos lotam hotéis baianos e vendem pacotes que incluem escala no Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras. Mas o ponto alto da viagem, segundo o LA Times é ofestival de Nossa Senhora da Boa Morte [grifos nossos]. “É uma encarnação clássica do sincretismo religioso: elementos do catolicismo importado pelos portugueses coexistem com a devoção afro-brasileira, em especial, o credo conhecido como Candomblé”, diz a reportagem. “Nós afro-americanos falamos da nossa conexão com a África, mas não temos muitas provas dessa conexão. Quando vamos para o Brasil, tudo fica evidente e faz sentido”, afirma, na reportagem, WandeKnow Gonçalves, uma professora afro-americana que se apaixonou pelo Brasil e por um brasileiro, e hoje mora na Bahia (BBC Brasil e Portal Globo)”5.
Para estimular esta forma de turismo étnico, um convênio foi assinado entre governos federal e estadual em agosto de 2007, na ocasião da Festa da Boa Morte, em Cachoeira, e determinou a liberação de recursos para o Programade Ação de Turismo Étnico Afro da Bahia: 
“A cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, será beneficiada com recursos da ordem de R$ 1.245.200,00 para o Programa de Ação do Turismo Étnico Afro da Bahia. Em meio aos festejos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, o governador Jaques Wagner e a ministra do Turismo, Marta Suplicy assinaram o convênio para atender, principalmente, aos turistas afro-descendentes de vários países. (...) O Programa de Ação do Turismo Étnico Afro da Bahia foi destacado pela ministra, ao justificar o investimento do governo federal neste segmento. Para ela, a Bahia é o coração do Brasil, em termos afros, e é necessário trabalhar para desenvolver o desejo do turista negro conhecer as suas raízes. (...) “A Bahia é plural e tem muito a oferecer ao país e ao mundo”, disse, destacando a história e a tradição, a exemplo da secular festa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte [grifos nossos], da cidade de Cachoeira. (...) Acompanhado de vários turistas norte-americanos, o professor de Antropologia da Universidade de Nova York, Davis Earl, elogiou a preocupação do governo com o turismo étnico afro e se disse orgulhoso de conhecer Cachoeira e a Irmandade da Boa Morte, desde 1986, o que já possibilitou a vinda de mais de 70 outros turistas dos Estados Unidos, para conhecer a história e a tradição da secular festa do Recôncavo. A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é formada por mulheres negras e mestiças com mais de 40 anos, representando uma tradição de 235 anos [sic]. Juíza Perpétua da Irmandade, Estelita Santana, de 101 anos, lembrou que a confraria católica comemora o passado e o futuro, embalados pelo amor a Maria. Com 65 anos de irmandade, Estelita é uma das 22 irmãs que ainda mantém a tradição, ao lado de mais sete noviças. A mais velha do grupo é Narcisa Cândida da Conceição, Dona Filhinha, com 104 anos”6.
No artigo seguinte é apresentada a opinião do Secretário de Turismo do Estado da Bahia sobre a importância do turismo étnico para aBahia, mostrando
a dimensão das expectativas turístico-financeiras em torno do “turismo de raízes”: 
“Com o objetivo de resgatar a cultura afro, a Bahia começa a divulgar o roteiro de turismo étnico, uma iniciativa da Secretaria do Turismo do Estado (Setur). “De cada dez baianos, oito são afro-descendentes e temos que valorizar aquilo que temos para oferecer”, afirma Domingos Leonelli, secretário de Turismo do estado. O turismo étnico pretende conquistar não apenas brasileiros vindos de outras regiões do país, como também os norte-americanos. “Há condições favoráveis para estimular a vinda de negros dos Estados Unidos para conhecer a Bahia. Muitos querem buscar sua identidade”, diz Leonelli. Salvador reúne vários pontos que merecem visitação. A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte [grifos nossos], realizada na cidade de Cachoeira, também integra o roteiro. De acordo com o secretário, a intenção do novo programa é fazer com que os turistas passem mais tempo na Bahia e, conseqüentemente, gastem mais, favorecendo a economia local”7.
Outros artigos fazem menção ao referido convênio eàs iniciativas para atrair os turistas negros estadunidenses: 
“(...) Em agosto de 2007, foi assinado um convênioentre o Ministério do Turismo e o governo da Bahia, em Cachoeira (BA), para a implementação do Programa de Desenvolvimento do Turismo Étnico-Afro, que é uma ação pioneira. O programa recebeu um investimento de cerca de R$ 1, 3 milhão e tem por objetivo atrair mais visitantes, sobretudo os afro-descendentes norte-americanos, para a Bahia, especificamente para Salvador e Recôncavo. Já foram realizadas quatro missões aos Estados Unidos, com foco no turismo étnico. O investimento do programa, no momento, está sendo aplicado no mapeamento de necessidades dos locais nos quais os turistas norte-americanos se hospedarão e em Home-Spaces para diversificar o atendimento da rede hoteleira. Esse trabalho de mapeamento envolve a Universidade de Brasília, a Universidade Federal da Bahia (Ufba) e também a Universidade do Estado (Uneb). Home-Spaces são pousadas que estão sendo construídas para suprir as necessidades dos turistas que se hospedarão nos empreendimentos por meio de um pré-cadastro. Esse mapeamento resultará num diagnóstico que será usado para sanar as deficiências turísticas da Bahia. A cada evento desenvolvido pela Setur, é realizada uma pesquisa relacionando os participantes do evento com o turismo étnico, como por exemplo o Seminário de Matrizes Africanas, no qual foi identificado que o “povo de santo” aprova o Programa, que dentre outras coisas servirá para mostrar de que forma eles gostariam de ser tratados [grifos nossos]”8. 
Vale ressaltar o aspecto inovador deste “Seminário de Matrizes Africanas” promovido pela Secretaria de Turismo do Estado da Bahia. No entanto, há de se perguntar como o “povo de santo” foi representado em tal ocasião, relembrando que existem na Cidade de Salvador e Região Metropolitana em torno de dois mil terreiros de candomblé. É pouco provável que haja consenso sobre o assunto do turismo étnico e é importante, do ponto de vistaantropológico, pensar nas conseqüências possíveis de uma massificação deste turismo sobre a estrutura organizacional e a liturgia dos terreiros de candomblé. 
“O Programa de Desenvolvimento do Turismo Étnico-afro foi lançado pelo governo em agosto do ano passado, durante a Festa da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, que a cada ano atrai um número cada vez maior de visitantes estrangeiros. Na época, o Ministério do Turismo assinou um convênio no valor de R$ 1,245 milhão para ações imediatas de diagnóstico. Grande parte desse dinheiro já foi investida em cursos e seminários voltados para associações de capoeira e comunidades religiosas de matriz africana e em pesquisas que identificaram as principais necessidades para a estruturação desse tipo de segmento turístico no Estado. (...) Origens – Aguinaldo Silva, presidente do bloco carnavalesco Filhos de Gandhy, com sede no Pelourinho, avalia positivamente o programa estadual de incentivo ao turismo étnico-afro: "Além de trazer divisas para o estado, proporciona que esses turistas conheçam as suas origens fincadas na África", afirmou. Para o guia de turismo Josué Cassiano, essa é uma boa política. "Os negros norte-americanos têm interesse na busca por sua identidade cultural.Mês passado, por exemplo, guiei um pai-de-santo nova-iorquino", contou”9. 
Tais ações e relatos inserem-se em um contexto globalizado de transnacionalização das religiões afro-americanas – entre as quais se destacam o candomblé baiano, a santeria cubana e o vaudou haitiano – estimulada pela intensificação da circulação em um Atlântico Negro multicentralizado. 
A repercussão jornalística da vinda de Condoleezza Rice à Bahia: raízes perdidas, globalização, capital
Neste contexto de desenvolvimento significativo do turismo étnico afro-americano, a vinda de Condoleezza Rice à Bahia, em 14 de março deste ano, toma uma dimensão simbólica inédita. A Secretária de Estado estadunidense parece sintetizar em si só a ambivalência, as ambigüidades e os limites de um ideal afrocêntrico de povo negro unido na diáspora. Símbolo máximo do poder imperialista estadunidense tão execrado na América Latina, Rice, enquantomulher negra, representa ao mesmo tempo um dos grupos histórica e socialmente mais oprimidos das Américas, no passado e no presente. Ao chegar à capital baiana, esta foi recebida pelo coral da Irmandade da Boa Morte na Igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Momento certamente inaugural de uma nova era para os povos da diáspora africana nas Américas... Vejamos alguns artigos encontrados na Internet:
“Irá chegar um novo dia, um novo céu, uma nova terra, um novo mar". Estes foram os primeiros versos do afoxé que o coral da Irmandade da Boa Morte [grifos nossos] cantou para saudar a secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, na manhã de hoje (dia 14 de março), na Igreja do Rosário dos Pretos. A secretária chegou às 8h15, em companhia do prefeito João Henrique; do governador doEstado, Jaques Wagner, e dos ministros da Cultura, Gilberto Gil, e do Turismo, Marta Suplicy, dentre outras autoridades. (...) Desenvolvimento do turismo étnico: Além da história, musicalidade, culinária, religiosidade e natureza que compõem o imaginário negro de Salvador, a cidade vem cada vez mais ganhando elementos que fortalecem a prática do turismo étnico. Ações da Secretaria Municipal da Reparação (Semur) têm sido imprescindíveis para o planejamento e desenvolvimento do setor. O mapeamento dos terreiros e seu tombamento como patrimônio do município, as ações de incentivo ao empreendedorismo junto aos artistas afrodescendentes e o apoio ao Corredor Cultural, no bairro da Liberdade, expressam a preocupação da Prefeitura em promover não apenas a igualdade racial, mas a organização do setor turístico. Os resultados já podem ser percebidos pela ação de regularização fundiária de 33 terreiros do município, que se encontra em processo na Secretaria Municipal da Habitação (Sehab).”10
 “A secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, participará na noite desta quinta-feira, em Salvador, de jantar com o governador Jaques Wagnere empresários. Segundo a Agência Estado, a principal pauta do encontro será o estímulo ao turismo étnico. Desde o ano passado, o governo baiano eo Ministério do Turismo elaboram um plano para atrair turistas afrodescendentes americanos a Salvador e à região do recôncavo, as áreas que mais concentram a população negra no Brasil. (...)Às 11h, ela tem encontro a portas fechadas com o chanceler Celso Amorim, no Palácio Itamaraty. Eles assinarão um acordo sobre o combate à discriminação racial [grifos nossos]”11. 
A coalizão entre interesses econômicos – desenvolvimento do turismo étnico – e preocupações sociais e humanistas – combate à discriminação racial – pode soar um tanto estranha. Somente o futuro nos dirá se a implantação de tais medidas será positiva para população negra no Brasil e de que forma um acordo Brasil/Estados Unidos

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Outros materiais