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Entre crimes e goles de café

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Entre crimes e goles de café:
A sanção é a garantidora da eficácia da norma, de forma pessoal, imagino que quando Kelsen teceu tal raciocínio não seria capaz de imaginar como a sanção seria encarada na atualidade. Até o momento só falei o óbvio, mas a reflexão que tento invocar é de como o viés punitivo, sob um olhar positivista, direi então, sob o viés do próprio Direito Penal, se torna um dos grandes protagonistas da contemporaneidade. Não estou reclamando, mas sim desabafando sobre uma indigestão do discurso ordinário, onde todos se tornaram pós-doutores em Direito Penal, inclusive este que escreve, que me fizeram engolir diariamente.
Dostoievski, em “Crime e Castigo”, narra a história de Raskólnikov, um jovem angustiado e à sombra de realizar algo importante. Em um momento da obra, comete dois crimes, sendo um deles não planejado. Oque incomoda o jovem não a desconfiança das pessoas, nem o tamanho de seu crime, mas sim sua consciência, portanto se entrega e vai para uma cadeia na Sibéria. O interessante desta obra é que o ato de “se entregar” para o aparato estatal é visto pelo jovem como um instrumento emancipador, uma vez que a lei, ao meu ver, é encarada como a grande expressão da justiça e da paz.
O mesmo autor, na obra “Os Irmãos Karamazov”, a partir do relato de uma conturbada família russa dá a Jean Paul Sartre a seguinte reflexão: “se não há Deus, então tudo é permitido”. O ponto abordado talvez seja mais profundo, dentro das diversas interpretações possíveis, interpreto tal raciocínio como: Se há Deus há proibição. Assim o faço a figura teológica, dotada da faculdade de imposição da mais cruel sanção, na verdade é o garantidor da paz e da justiça (para o autor, não para mim, pelo amor de deus!). O medo sentido pelos homens de encarar a face sanguinária de Deus, que terceiriza seu trabalho para o inferno, na verdade faria com que não houvesse transgressão, e assim, o instrumento coativo não seria usado. Então o que daria legitimidade ao mesmo, seria justamente a existência da coação em abstrato, para que não fosse necessária a coação em concreto. 
Slavoj Zizek, subverte a frase de Sartre utilizando a seguinte abordagem: “Se não há Deus, então tudo é proibido”, uma vez que para Zizek, o cotidiano capitalista reifica o ser e dá ao mercado a possibilidade de tornar seu vassalo o pensamento humano. Neste contexto, a busca pretensamente hedonista onde o não gozo é proibido forma ao ser um conjunto de ansiedade política, onde o verdadeiro protagonista é o número de gozo/minuto. Neste sentido tudo que atente contra a lógica inferida é posto de fora do conjunto de condutas a serem exaltadas.
Em sua explicação, o autor cita de uma forma jocosa os resultados práticos desta máxima: “o café descafeinado, o chocolate sem açúcar, a marca que ao atingir um número de vendas dedica sua parte à caridade”. Perece banalização da discussão, mas a proposta de Zizek é interpretar uma sociedade que precisa de tudo a toda hora, mas sente o peso de suas escolhas, para que o peso não seja sentido é necessário fingir que resigna o gozo (no contexto de resignação ascética católico-medieval) para que então possa gozar “à vontade”. Neste sentido compra-se a ideia e descarta-se o que possa dar desconforto na mesma, e feito isso, o que se compra poderá ser comprado com uma frequência nunca antes vista. 
O café descafeinado então, não está aqui pois é mais saudável, muito menos pois é mais gostoso, é que a cafeína em grande número pode nos causar mais sequelas que seu concorrente, entretanto o protagonista não são as sequelas em si, mas a lembrança traga pela mesma. Quando sentimos na pele lembramos o quão doente podemos ser, e que estamos dispostos a pagar qualquer preço para o deleite momentâneo, a prescrição não é romper com a lógica de beber café a todo momento, mas nos enganar e trocar a capa do produto. Acontece que tudo demais faz mal, e o remédio não é contra o causador do mesmo, mas fuga de confronto com este.
Devaneio feito, discorro aqui sobre um dado intrigante, nunca se puniu tanto desde as décadas de 70-80, e nunca se teve tanto aumento da criminalidade. Isto me faz parar para pensar se de fato o instrumento existe para que não exista, imagino que o discurso que seja mais perigoso, e muito mais sutil. Perigoso pois entra em todo momento em todo lugar, todos discutem sobre, e sutil pois a discussão tem grau de exaurimento horizontal, onde a mesma se limita aos paradigmas impostos ao debate. Nunca se pergunta o que é punir, mas sim a falta de punição, nunca se perguntam porque punir, mas como e quando.
Imagino ainda que o Direito Penal tenha se tornado o grande catalisador dos problemas mundiais, e como o imã faz com metais, atrai para si a ideia de que sua a ausência seja responsável por todo o mal, e em contrapartida sua presença seja a solução destes. Não é realizado o debate pragmático se este novo “super-herói” cumpre com o prometido, mas só o amamos, amamos cegamente, sem perguntar se ele nos ama de volta, é um amor solitário, um amor bandido.
Trazendo o pensamento de Zizek, acho que o Direito Penal seja apenas mais um “café descafeinado”, pois nos dá a sensação responsabilidade com a ordem pública, com a paz e a justiça. Em contrapartida garante um terreno fértil para que possamos justamente realizar todos nossos fetiches por mais patológico que sejam, nos permite sacrificar tudo, pregar o que for, e deixar para o “super-herói” o encargo de limpar nosso entulho. Acontece que, assim como o café descafeinado, o Direito Penal não está pra limpar efetivamente, mas sim pra jogar para debaixo do tapete, não é a resposta ao trauma, é o rivotril que afasta a insônia.
Mas vamos esquecer, tomar um belo copo de café, descafeinado, e repetir adestradamente “punir é preciso, pensar não é preciso”. Que continue a empolgação, para que nos continuemos a realizar a ação, e que fiquemos empolgados, para que continuemos na condição de gado.
Leonardo Beraldo (ou Leleco)

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