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Leishmaniose visceral e diagnostico diferencial de hepatoesplenomegalias E. L. O. Lucas Etiologia Leishmaniose visceral (ou calazár) é uma antropozoonose comumente causada pelo protozoário Leishmania chagasi e transmitida pela picada do mosquito flebotomíneo. Cachorros podem ser reservatórios domésticos. Epidemiologia A leishmaniose é endêmica na América do sul, norte da África, sul da Europa e da Ásia. O vetor no Brasil é o mosquito Lutzomyia longipalpis (mosquito-palha). Essa doença tem forte sazonalidade, com pico de incidência no início da estação chuvosa, após meses de seca. Epidemias são comuns após períodos de seca intensa, quando há maior desnutrição no norte de Minas Gerais e semi-árido nordestino. Embora rural, cada vez mais se torna urbana, devido à presença de cães infectados. Recentemente expandiu para áreas do sul de Minas Gerais, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul. A distribuição é igual entre os sexos na infância, mas mais prevalente em homens a partir da adolescência. Figura 1: Ciclo de vida do parasita (cdc.gov) – Flobótomo injeta promastigotas no hospedeiro, que se tornam amastigotas e invadem macrócitos, que se depositam no baço, fígado e medula óssea. Patogenia e Imunidade O período de incubação pode variar de 2 a 6 meses, embora haja relatos de 10 dias a 12 meses. A invasão dos amastigotas nos histiócitos do hospedeiro promove: Deposição no baço: comprimem os folículos linfóides, reduzem as células da polpa branca e levam ao aumento do órgão. Deposição no fígado: infiltrado inflamatório crônico nos espaços periportal e lobular, podendo levar a fibrose. Medula óssea: aumentando a concentração das linhagens eritrocíticas. Antígenos de Leishmania comprometem a imunidade celular, inibindo a produção de diversas interleucinas. Dessa forma, testes de reação cutânea (e.g. Montenegro) só se tornam positivos um ano após o tratamento e cura. Ainda, a produção de imunocomplexos pode levar a deposição renal. Achados clínicos Forma assintomática (mais freqüente na população) Pode evoluir para cura espontânea ou para formas sintomáticas. Forma inicial ou oligossintomática Sintomas: febre intermitente, perda aguda de peso. Sinais: baço palpável de consistência elástica, anemia. Forma clássica ou aguda (após 1 mês de evolução) Sintomas: febre diária, palidez, perda de peso, adinamia, anorexia, raramente tosse seca e diarreia. Sinais: aumento do volume abdominal, fígado firme e liso com aumento difuso (4-6 cm do rebordo costal direito), palidez, baço firme e palpado no nível ou abaixo da cicatriz umbilical. Forma tardia ou crônica (após de 40-60 dias) Sintomas: febre diária e duradoura, perda de peso, adinamia, anorexia acentuada, sangramento cutâneo ou de mucosas. Comum surgirem outras infecções. Sinais: palidez, edema de membros inferiores ou ascite. Sinais de gravidade: idades menores, co-infecção com HIV. Tabela 1: Principais queixas de pacientes hospitalizados com calazar (SBP). Hepatoesplenomegalia Sempre que o baço estiver palpável deve-se suspeitar de esplenomegalia. Apenas 3% da população têm baço palpável sem repercussão patológica. Durante o primeiro ano de vida, o bebê pode ter o fígado palpável a até 1-2 cm do rebordo costal na linha hemiclavicular. O fígado normal tem borda fina e lisa, de consistência elástica. Fígado palpável além de 2 cm do rebordo costal em lactentes e além de 1 cm em crianças maiores é considerado hepatomegalia por alguns autores. Caso suspeito = febre + hepatoesplenomegalia Caso confirmado = sorologia positiva e parasita na medula óssea. Quadro 1: Conceitos importantes. Diagnóstico epidemiológico Paciente que viva ou esteve em área de transmissão endêmica no último ano. Investigar se há cães no peridomicílio, com canil ou galinheiro. Diagnóstico clínico-laboratorial Paciente com febre e esplenomegalia. Pancitopenia, anemia normocítica e normocrômica. VHS e PCR elevados. Inversão da relação albumina/globulina, com aumento de globulinas. Aumento de transaminases, bilirrubinas e redução da atividade de protrombina. Diagnóstico parasitológico Pesquisa direta do parasita: punção de medula óssea em crista ilíaca de crianças ou esterno de adolescentes e adultos. Não se recomenda punção esplênica pelo risco de hemorragia. Cultura: cultura de aspirado medular ou esplênico após 2-4 semanas. Testes sorológicos: testes por imunofluorescencia indireta, imunoensaio enzimático, imunoaglutinação direta. Positivo em títulos de 1:40. Sensibilidade e especificidade são maiores que 85%. Tratamento Antimoniato de meglumina (glucantime): Esquema de tratamento: 20 mg/kg, 24/24h, Via IM ou EV por 20-40 dias. Uso em pacientes sem fator de risco. É de baixo custo e uso ambulatorial. Reações adversas: Artralgias, mialgias, inapetência, náuseas, vômitos, plenitude gástrica, epigastralgia, pirose, dor abdominal, dor no local da aplicação, febre, cardiotoxicidade, hepatotoxicidade, nefrotoxicidade e pancreatite. Observações: Monitorar as enzimas hepáticas, função renal, amilase e lipase séricas; Realizar eletrocardiograma no início, durante e ao final do tratamento para monitorar o intervalo QT corrigido, arritmias e achatamento da onda T; Contra-indicado em insuficiência renal, hepática ou cardíaca, uso concomitante de medicamentos que alteram o intervalo QT corrigido com duração maior que 450 ms e pacientes que foram submetidos a transplante renal e em gestantes. Anfotericina B desoxicolato: Esquema de tratamento: 1 mg/kg/dia, 24/24h, Via EV lenta em 2-4h, por 14-20 dias. Uso em pacientes com fatores de gravidade (PBH), reação adversa ou resistência ao antimonial pentavalente, recidivantes, formas graves da doença. Uso hospitalar. Reações adversas: Febre, cefaléia, náuseas, vômitos, hiporexia, tremores, calafrios, flebite, cianose, hipotensão, hipopotassemia, hipomagnesemia e alteração da função renal. Observações: Monitorar função renal, potássio e magnésio séricos e repor potássio quando indicado; Na disfunção renal, com níveis de creatinina acima de duas vezes o maior valor de referência, o tratamento deverá ser suspenso por dois a cinco dias e reiniciado em dias alternados quando os níveis de creatinina reduzirem. Anfotericina B lipossomal: Esquema de tratamento: 3 mg/kg, 24/24h, Via EV por 7 dias OU 4 mg/kg, 24/24h, EV por 5 dias. Reações adversas e observações iguais a da Anfotericina B desoxicolato. Indicação: transplante renal, insuficiência renal prévia, e refratários ao tratamento com desoxicolato de anfotericina B. Uso hospitalar. Miltefosina Esquema de tratamento: 2.5 mg/kg/dia, 12/12h, por 28 dias. Reações adversas: vômitos, diarréia, aumento das enzimas hepáticas, raramente nefrotoxicidade. Estudos em animais demonstraram eficácia semelhante a do glucantime e já tem sido usado com sucesso na Índia. Diagnósticos diferenciais: Principalmente com outras causas de esplenomegalia, sejam febris ou não. O que? Se suspeito, como diferenciar? Parasitoses Malária Exame da gota espessa Toxoplasmose Sorologia IgG/IgM Toxocaríase Imunofluorescência Esquistossomose Pesquisa de ovos nas fezes, biópsia retal Infecções bacterianas Endocardites subagudas Hemoculturas, Ecocardiograma Febre tifoide Sorologia, hemocultura e coprocultura Enterobacteriose septicêmica prolongada (salmonelose) Hemocultura, pesquisa de ovos de S. mansoni. Tuberculose miliar Epidemiologia, RX tórax, PCR Brucelose Infecções fúngicas Histoplasmose, coccidioidomicose RX tórax, lavado brônquico, hemocultura Infecções virais HIV Epidemiologia, sorologia e carga viral Mononucleose (Epstein-Bar) Linfocitose e atipias, sorologia Hepatite crônica com cirrose US abdominal, sorologias Linfoproliferativas Leucemia, linfomas Leucograma, pesquisa de linfoblastos, esfregaço de medula óssea, biópsia óssea Anemias hemolíticas Talassemia Reticulócitos, provas de fragilidade corpuscular Doençasde depósito Doença de Gaucher Compromete o crescimento e a função do SNC. Quadro 2: Diagnóstico diferencial de hepatoesplenomegalias por áreas e propedêutica para diferenciação. Critérios de cura Desaparecimento da febre, melhora do estado geral, ganho de peso, redução da hepatoesplenomegalia, recuperação da medula óssea. Notas sobre protocolo da PBH Fazer teste rápido se houver suspeita. Em caso positivo, enviar amostra de soro para teste confirmatório na Fundação Ezequiel Dias, acompanhada de notificação. Resultados negativos do teste confirmatório indicam estender a propedêutica laboratorial. Sempre realizar teste Anti-HIV. Internação Está indicada internação quando houver sinais clínicos ou laboratoriais de gravidade: Sinais clínicos Idade menor que 1 ano ou maior que 50 anos. Recidiva ou reativação de leishmaniose visceral. Presença de co-morbidades. Febre há mais de 60 dias. Diarréia ou vômitos. Icterícia. Edema. Quadro infeccioso bacteriano associado. Sinais de toxemia. Desnutrição grave. Fenômenos hemorrágicos. Quadro 3: sinais clínicos de gravidade. Sinais Laboratoriais Leucócitos < 1.000/mm3 ou > 7.000/mm3 Contagem de neutrófilos ≤ 500/mm3 Contagem de plaquetas < 50.000/mm3 Creatinina sérica acima do valor de referência para a idade Hemoglobina ≤ 7 g/dl Atividade de protrombina < 70% ou RNI > 1,14 Bilirrubina acima do valor de referência ALT ou AST > 5 vezes o valor de referência Albumina < 2,5 g/dl Quadro 4: sinais laboratoriais de gravidade. Referências Kliegman, R. M., Behrman, R. E., Jenson, H. B., & Stanton, B. M. (2007). Nelson textbook of pediatrics, p. 2447. Elsevier Health Sciences. Lopes, F. A., & Junior, D. (2010). Tratado de pediatria–Sociedade Brasileira de Pediatria, p. 1240. Sociedade Brasileira de Pediatria. Fontes, M. J. F., Rodrigues, M. E. M., Moura, J. A. R., Afonso, A. G. A., Calazans, G. M. C., Assis, I., ... & Mota, J. A. C. (2013). Pediatria Ambulatorial, p. 198 e 383. Coopmed. Martins, M. A., Viana, M., Vasconcellos, M., & Ferreira, R. (2010). Semiologia da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: MedBook. 10 perguntas e respostas sobre Leishmaniose visceral. Prefeitura de BH (2012). Costa Filho, A. V. D., Lucas, Í. C., & Sampaio, R. N. R. (2008). Estudo comparativo entre miltefosina oral e antimoniato de N-metil glucamina parenteral no tratamento da leishmaniose experimental causada por Leishmania (Leishmania) amazonensis. Rev Soc Bras Med Trop, 424-7. Aula da professora Regina Lunardi Rocha na Faculdade de Medicina da UFMG.
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