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CAVALCANTE, Berenice; KAMITA, João Masao; JASMIN, Marcelo & PATUZZI, Silvia. Modernas Tradições: Percursos da Cultura Ocidental (séculos XV – XVII). ANÕES NOS OMBROS DE GIGANTES: A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO. A POLÊMICA RENASCENTISTA. O conceito de moderno tem uma longa tradição das sociedades europeias ocidentais e os diferentes significados com que foi empregado em textos literários, documentos administrativos e tratados políticos indicam a maneira como seus autores compreendiam a época em que viviam. O uso do conceito, portanto, relfetia uma determinada experiência de tempo, através da relação que estabelecia entre presente e passado. pg. 3 Foi Bernar de Chartres quem cunhou a imagem de seu tempo, o século XII, como a de “anões sentados nos ombros de gigantes”. A imagem tornou-se paradigmática e, ao longo dos séculos subsequentes, nos diferentes momentos em que se reacendeu a polêmica entre “antigos e modernos”, a imagem retornava, ainda que com interpretações diversas e até mesmo contrárias. pg. 4 Este não foi um ponto de vista isolado. Chartres era um dos mais famosos centros de ensino na Baixa Idade Média e diferenciava-se por valorizar a leitura de autores da Antiguidade, como Platão e Virgílio, em lugar das Escrituras. A filosofia de ensino ali adotada distinguia os antigos sábios como especialistas cujos textos eram considerados adequados aos conhecimentos das artes liberais e, por sua vez, os dos Padres e as Escrituras como próprios para o conhecimento teológico. pg. 4 Este método estimulava o estudo da retórica, da ética, da matemática, da física, da gramática e da poesia antigas. A crença na possibilidade de se alcançar uma maior compreensão dos textos e, consequentemente, uma apreciação plena de seu significado, estimulava a curiosidade, o espírito de observação e de investigação das fontes de cultura pagã em Chartres. pg. 4 Neste sentido, a imagem de Bernard é paradigmática: revelava respeito e admiração pelos autores do passado através da valorização da cultura greco-romana (o “gigante” no qual os intelectuais do presente se apoiavam) e pressupunha a possibilidade de aprimoramento do conhecimento, num processo de revelação progressiva da verdade. Este aspecto é particularmente relevante para a compreensão da relação entre modernos e antiqui e da consciência histórica naquele período. pg. 4- 5 Ressalvadas as sutis diferenças entre estas formulações, o que o letrados cristãos tinham em comum era a consciência do aperfeiçoamento do saber antigo pelo novo. Por esta razão, acreditavam, o tempo presente deveria ter primazia em relação à Antiguidade. Mais do que isto, ao conceberem as possibilidades de aperfeiçoamento e plenitude do conhecimento e ao reconhecerem sua condição de modernos, os humanistas do século XII não rivalizavam com os antigos. Ao contrário, deles se alimentavam, pois a apropriação do antigo se fazia a partir das potencialidades da nova época. Os novos comentários acrescentavam algo aos textos originais. Esta crença numa progressiva revelação do conhecimento que, ao fim, alcançaria o que originalmente estava claro apenas para a sabedoria divina, foi sintetizada na frase: “veritas temporis filia – a verdade é filha do tempo”, que, no futuro, seria reapropriada pelos apologistas da noção de progresso. pg. 5 A ideia de um tempo presente capaz de promover uma renovação do passado já havia sido cultivada anteriormente. Por exemplo, na corte de Carlos Magno, no século IX, notabilizada pelo florescimento cultural, expandira-se a consciência de que viviam “novos tempos” pois com o Império franco a Roma áurea renascera e restaurara um novo mundo. pg. 5-6 Para os escritores florentinos do século XIII, interessados nas questões de Estado que envolviam disputas com repúblicas rivais e delicadas negociações diplomáticas, o vínculo entre os dois momentos estabelecia-se através da recuperação de aspectos da natureza política. pg. 6 Os exemplos se multiplicam, e com eles firma-se um ponto de vista que teria grande relevância para a cultura ocidental, constituindo-se mesmo em um de seus traços mais característicos: a valorização do presente em relação ao passado, mesmo quando este, de alguma forma, era recuperado. Para os letrados, poetas e magistrados italianos do século XIV a valorização do presente fundava-se na ideia de renovação das glórias da Antiguidade, o que significava reconhecer no passado – fosse pelo aspecto político ou literário – uma referência para a atualidade. Este vínculo, contudo, não eliminava a consciência da diferença entre as duas épocas: o presente, ou seja, o tempo moderno passara a ser percebida como um tempo novo. pg. 6 Com Petrarca (1304-1374), leitor de Santo Agostinho, Sêneca e Cícero, esta noção retomou a ênfase da renovação no campo das artes e das belles lettres. Para ele, a transferência da capital do Império de Roma para Constantinopla no século IV assinalara o início da época moderna (aetas nova), que abrangia o momento de vida do próprio poeta. pg. 7 Outra importante formulação relacionada à sua compreensão da temporalidade está registrada em um pequeno trecho do poema épico Scipio Africanus, onde Petrarca intercalou um período de travas (tenebrae), entre aetas antiqua e a aetas nova: “Talvez, então, com a dispersão das trevas, nossos descendentes serão capazes de retornar à pureza da antiga luz... então grandes talentos crescerão de novo, e espíritos motivados pelo sincero estudo das Musas, irão duplicar o amor antigo”. pg. 7 O que mudara entre as concepções dos séculos XIV e XV e aquelas que as precederam? Em que medida as diferenças revelavam a consciência de um tempo presente distinta das formulações do mestre de Chartres e de seus contemporâneos? De que maneira expressavam uma compreensão diversa do moderno? Em primeiro lugar, a diferença apresentou-se em termos retóricos. A imagem de gigantes e anões cedeu lugar, temporariamente, a metáforas que evocavam a luz, a aurora, as trevas e a escuridão. Ainda que tais imagens fosse de origem religiosa, na voz dos humanistas italianos adquiriram sentido inverso daquele que desejava associar a expansão do cristianismo à iluminação do mundo pagão. As trevas eram identificadas, justamente, com o período medieval e o regozijo manifesto pelos poetas humanistas derivou do retorno a valores da cultura pagã. pg. 8 Em segundo lugar, o sentimento de euforia presente na elite letrada relacionava-se a um duplo movimento capaz de rechaçar a escuridão, isto é, o passado medieval, e pari passu duplicar o antigo amor pelas artes literárias. Havia uma clara manifestação da vontade consciente, expressa pela escolha de um certo passado feita pelos “espíritos receptivos” do presente. Por outro lado, como demonstram as palavras de Ulrich von Hutten (1488-1523) expandia-se o sentimento de que se vivia numa época que “acabara de nascer”, na qual a “barbárie” seria acorrentada e exilada. A consciência desta época nova formulava -se nas referências à aurora, ao nascimento e ao retorno que, progressivamente, vão substituindo as metáforas de luz e trevas. Estes sinais distinguiam os humanistas dos séculos XIV e XV dos sábios do século XII. Não se tratava mais de uma noção de aperfeiçoamento e plenitude do conhecimento, mas do renascimento de uma cultura. Finalmente, é preciso notar que ao interpor um período de trevas entre a época antiga e a moderna Petrarca afasta-se da perspectiva dual em que se considerava a história: fosse aquela que distinguia apenas duas temporalidade – o presente e o passado, a Antiguidade e os novos tempos – fosse aquela que separava a época pagã da época cristã. pg. 8-9 Assim a consciência histórica afastava-se da noção cristã tipológica e linear que predominara nos círculos eruditos do século XII. Estas formulações cederam lugar a uma compreensão cíclica da história,na qual as noções de renascimento e retorno eram as palavras-chave. pg. 9 Assim, foi na Itália dos séculos XIV e XV que se desenvolveu o movimento cuja designação Renascimento derivou da maneira como estes eruditos identificavam o tempo em que viviam, tempos de renovação e de regresso ao passado greco-romano eleito como modelo. Estes séculos assinalaram um grande interesse pelos textos dos filósofos, poetas, historiadores, matemáticos, geógrafos e artistas da Antiguidade. As obras clássicas, guardadas durantes centenas de anos nas bibliotecas das abadias e dos mosteiros, constituíram-se, a partir de então, no principal foco de estudos. O contato com os textos antigos logos suscitou um enorme interesse pelo estudo do idioma grego, e estimulou o trabalho dos filólogos. Estes especialistas dedicavam-se à reconstituição dos documentos, à recuperação de seu valor histórico, literário e cultural e, em larga medida, foram responsáveis por este movimento de renovação no campo das ideias filosóficas e religiosas. pg. 10 Esta admiração por um passado imaginado como padrão de perfeição levou os humanistas a defrontarem-se com o paradoxo de conciliar este ideal com a crença na capacidade criativa do ser humano, cujo pressuposto era a possibilidade de aperfeiçoamento de suas obras. A experiência histórica do Renascimento alimentou entre os filósofos e pensadores a consciência de que os homens não eram apenas criaturas de Deus, mas também criadores. A partir dessa perspectiva, eles postulavam que, à semelhança do Criador, seriam dotados de atributos que os habilitariam a um certo grau de intervenção no mundo, pois, com seu engenho, seriam capazes de produzir arte e imprimir, assim, sua marca nos assuntos mundanos. pg. 10-1 A escolha de um determinado passado como modelo para a reorganização do presente – atitude diante da história inédita até então – exemplifica a magnitude da experiência de liberdade vivenciada pelos homens do Renascimento. Por outro lado, este passado tido como um padrão parecia contradizer a possibilidade de seu aperfeiçoamento, invalidando assim a crença na capacidade criadora dos homens, que seriam portanto incapazes de ultrapassar as conquistas da Antiguidade. pg. 11 Contudo, este movimento de recriação não se fez sem alguns embaraços. Os partidários da superioridade da cultura antiga afirmavam que seu padrão de excelência não seria ultrapassado pelas gerações seguintes. Na polêmica entre antigos e modernos, esta foi a posição, por exemplo, de Niccoló Niccoli, que acreditava que a devoção à Antiguidade era uma força tão poderosa que inibiria seus contemporâneos. pg. 12 Foi exatamente a noção de que os antigos exemplos eram referências remotas no tempo que estimulou o impulso à criação, entre os integrantes dos círculos letrados das repúblicas italianas. A constatação da existência de um intervalo de trevas que os teria afastado de seu modelo levou-os a enfrentar o desafio de recriar, em termos modernos, os exemplos clássicos. Deste movimento originou-se a doutrina da imitação, formulada no Renascimento. Seu intento era o de conhecer, de forma aprofundada, as técnicas, os recursos e os procedimentos utilizados pelos antigos nos diversos campos da criação artística e intelectual. Acreditaram então que seriam capazes de reproduzi-las e, talvez, superar os antigos. A imitação foi, então, o mecanismo que eliminou a distância temporal que os separava do passado exemplar, combinando as noções de continuidade e mudança, que corresponderiam às imagens de ressuscitar e recriar. Esta atitude pode ser expressa sinteticamente na ideia de que, se a fonte que os inspirava era antiga, a voz que a manifestava era moderna. pg. 12 A doutrina da imitação alimentou o debate entre antigos e modernos, abrindo novos horizontes para o entendimento acerca do problema da historicidade, tal como fora formulada pelos humanistas do Renascimento. Tome-se como exemplo o comentário de Erasmo de Roterdã (1467-1536): “imitação estimula a semelhança, a emulação, a vitória... restaurar grandes coisas, às vezes, é uma tarefa mais difícil e mais nobre do que inventá-las.”. pg. 12-3 Nestes termos, a doutrina da imitação desenvolveu uma noção peculiar de inventor, cujo mérito resultava da realização da difícil e nobre tarefa de reencontrar o que estava perdido. Algo ainda mais desafiador do que a ação de fazer pela primeira vez. A emulação faria com que a obra do imitador se assemelhasse ao original sem contudo tornar-se uma cópia, comprovando a capacidade dos modernos de alcançar e, eventualmente, superar os modelos. Mais uma vez foi Petrarca quem criou a imagem que expressava este ideal. Para ele, os poetas buscavam a semelhança com os antigos do mesmo modo que os filhos pareciam-se com seus pais. pg. 13 Neste ponto, revela-se mais um aspecto que distingue o período como a aurora dos tempos modernos, como momento de invenção da tradição. Há uma ambivalência na relação com o passado: veneração e distanciamento ocorrem simultaneamente. Isso está na base da noção de diferença que esses homens incorporaram à forma como manifestavam sua consciências acerca da história. pg. 13-4 A opção feita por muitos destes humanistas de substituir o latim e o grego pela língua vernácula em seus textos é ilustrativa desta noção de moderno. Bruni, partidário da adoção do vernáculo, afirmava que os homens letrados deveriam agir “como os antigos”, isto é, escrever em seu próprio idioma, pois, argumentava ele, o idioma grego, no passado, fizera de Atenas uma cidade gloriosa. pg. 14 HOMINES NON NASCUNTOR, SED FINGUNTUR. IMITAR, MODELAR, TRANSFORMAR: A NOÇÃO DE INDIVIDUALIDADE NA AURORA DOS TEMPOS MODERNOS. Ao mesmo tempo em que expôs seu programa de retorno à Antiguidade – a propósito, é bom lembrar que permaneceu utilizando o latim em seus poemas – Petrarca fez a apologia do “estilo próprio”, considerando “mais gratificante” desenvolver o que cada um tem de “individual em si” do que seguir um modelo em tudo. pg. 15 A referência à “instabilidade espiritual” indica que Petrarca se afastava do cânon escolástico dominante até então, segundo o qual a natureza humana era inalterável. A consciência da diversidade e da pluralidade de interesses ao longo de sua vida mostra, ainda que de forma tímida, que o humanista foi um precursor na noção de que a experiência individual poderia realizar-se sem a submissão exclusiva de vida religiosa. pg. 15 Em relação à mudança de percepção da identidade individual, o que em Petrarca fora um passo inicial, transforma-se numa afirmação de grande ousadia no século seguinte, como sugere a leitura da Oração sobre a dignidade do homem, de Pico della Mirandola (1463-1494). refletindo o otimismo que impregnava o período, essa fábula sobre a Criação descrevia o homem como dono de uma natureza indeterminada. Exercendo a liberdade de escolha, ele poderia assumir qualquer forma ou função no amplo espectro do universo. (…) Verificava-se, assim, mais um deslocamento em relação à doutrina aristotélica-tomista dominante até então, que entendia como uma característica inata ao indivíduo o agir conforme sua natureza (habitus), do que resultaria uma concepção rígida em relação à condição humana. Dito de outra forma, na perspectiva de Aristóteles e, depois, de São Tomás de Aquino, o homem era impotente para alterar sua própria condição, dependendo para isso da graça e da assistência divina. De um ponto de vista radicalmente distinto, Pica della Mirandola e Erasmo de Roterdã postulavam a existência de uma maleabilidade inerente à condição humana (…) pg. 16 A aceitação da flexibilidade do Eu e, consequentemente, o reconhecimento das individualidade – diversas, mutáveise passíveis de serem criadas – deu novo alento às discussões acerca da relação arte e natureza durante o Renascimento. Isso alimentou a crença nas potencialidades criadoras do homem e acrescentou um novo dado na reflexão sobre a dupla condição humana de criador e criatura, noção que se expandia no pensamento da época. Duas interrogações balizavam esta especulação: seria possível ao homem aprimorar-se até mesmo igualar-se a Deus? Sua capacidade de modelagem lhe permitiram ultrapassar as fronteiras da condição humana, do contingente, do mortal? As fronteiras entre o humano e o divino pareciam apagar-se, em parte, pela tendência característica do período de confundir formação – educação no sentido amplo – com transformação. Uma vez que os humanistas admitiram a possibilidade de expandir suas capacidade intelectivas, tornou-se difícil determinar onde ou quando os limites do transcendente interviriam. pg. 16-7 Importa ainda destacar que o diálogo dos humanistas com a Antiguidade clássica promoveu um crescente movimento de crença nas potencialidades criativas do homem e uma progressiva valorização dos aspectos mundanos da existência. Este longo processo é referido ao conceito de secularização ou de desenvolvimento do mundo tal como entendeu Max Weber ao salientar a autonomia que as diferentes esferas da vida humana – econômica, social e política – alcançam em relação a uma ordem transcendente. pg. 20 NOVOS MUNDOS – AS VIAGENS RENASCENTISTAS: A NOVA GEOGRAFIA DAS IDEIAS. Para muitos historiadores, as viagens pelo Mar Tenebroso, como era conhecido o oceano Atlântico por se supor que nele habitavam monstros e seres aterrorizadores, e a descoberta do continente americano no final do século XV e início do XVI assinalaram o começo dos Tempos Modernos. pg. 21 É notório também que estes corajosos navegantes, embora utilizassem novas invenções e instrumentos de orientação, como a bússola e astrolábio, não tiveram de imediato consciência exata de seus feitos. Naquela época, o conhecimento geográfico tinha por base as especulações dos antigos que, como se sabe, já tinham se referido à existência de outros mundos, embora não tivessem condições de localizá-los corretamente. pg. 21 No início da Época Moderna o formato e o tamanho do globo terrestre eram ignorados, vigorando ainda a suposição de que seria uma superfície plana, e que existiria um grande abismo para além da linha horizonte. pg. 21 Quimera ou não, o fato é que, embora não tivesse alcançado o Oriente, sua chegada ao continente americano em 1492, seguida pelos feitos dos navegantes portugueses – especialmente a descoberta do caminho marítimo para as Índias, por Vasco da Gama, em 1498, e a descoberta do Brasil, por Pedro Álvares Cabral, em 1500 -, mudou radicalmente este quadro. A constatação da esfericidade da Terra e o contato com as populações nativas foram apenas os primeiros dados a subverter antigas certezas, num processo de expansão e reformulação do conhecimento que se estenderia pelas décadas subsequentes. pg. 22 Mas, a despeito das diferenças, é inegável que os estudiosos partilham o ponto de vista de que estes seriam os episódios inaugurais do mundo moderno. Uma importante justificativa para este argumento está no fato de que o impacto das descobertas realmente abalou os fundamentos sobre os quais assentava-se o poder na época. pg. 22 Deve-se ressaltar, contudo, a dupla face deste processo, no qual os mitos alimentados por uma longa tradição – o El Dorado, o reino do Preste João ou o reino das Amazonas – que povoavam a imaginação à época e estimularam muitos a se lançarem na aventura das navegações oceânicas, ao final acabariam sendo negados, na medida em que estes acontecimentos subverteram a ordem e os valores dominante até então. O deslocamento do eixo econômico do Mediterrâneo para o Atlântico, o processo de conquista e colonização do continente americano, a expansão da economia mercantil e consequente ampliação dos impérios de além-mar, a escravidão africana e as guerras coloniais são os eventos mais relevantes da história do período; neles manifestaram-se os efeitos mais conhecidos das grandes navegações. Contudo, seu impacto não se limitou aos acontecimentos no plano da história econômicas e política. pg. 23 O contato com os povos nativos do continente americano, a constatação da existência de espécies da flora e fauna até então desconhecidas incentivou a curiosidade e a imaginação dos letrados, dos naturalistas e filósofos europeus, originando novas interpretações que abalaram os fundamentos epistemológicos dominantes até então. Não sem razão, estas mudanças foram consideradas como “transtornos” derivados das viagens que levavam ao contato com o outro, com o diferente, com o que era impensável até então (Costa Lima: 1991, 78). Foi nesta perspectiva que a travessia do Atlântico e a “descoberta do mundo”, como definiu Michelet, ampliou horizontes para além da perspectiva espacial e geográfica. Significou a conquista de novos espaço mentais, contribuindo assim para o desenvolvimento de novas interpretações sobre a natureza e a condição humanas, levando a um novo olhar sobre os princípios e os conhecimentos herdados da tradição. Paralelamente, entretanto, a descoberta do Novo Mundo também renovou antigas tradições: estimulou as ambições imperiais e insuflou a esperança na expansão do mundo cristão, abalado e enfraquecido pelas reformas religiosas. pg. 23-4 Mas, como ocorre com frequência no curso da história, as descobertas marítimas e a conquista colonial provocaram efeitos imprevisíveis e, numa certa medida, opostos aos propósitos que as originaram. Em razão do contato com uma realidade totalmente desconhecida, a conquista e a ocupação do novo mundo ofereceu um campo especial para a experiência de dessacralização e desencantamento. Essa reação, sentida por alguns dos conquistadores, foi resultado da aventura que viveram no Novo Mundo, aventura que misturou ilusão e realidade. Foi a descoberta do descompasso entre os ideais civilizatórios que as justificavam e a prática da conquista, entre propósitos cristãos e objetivos mercantis numa aventura para muitos em vão e da qual o retorno nem sempre foi possível. pg. 24 VELHOS MUNDOS, NOVOS PÉRIPLOS: as “grafias” modernas. O paradigma das viagens medievais era um misto de peregrinação, cruzadismo e dos ideais de cavalaria combinados num roteiro cuja finalidade era elevar o viajante em direção ao divino, a uma visão transcendental. Assim, o sentido da trajetória era dado pelo elemento do milagre e do contato com o maravilhoso. O exemplo clássico deste tipo de viagem era a busca do Santo Graal, cujo desfecho deveria satisfazer integralmente à motivação inicial de alcançar a dimensão transcendental: a visão que colocava o cavaleiro mais virtuoso diante do mistério espiritual. Distante de motivações de cunho religioso, Marco Polo (1254-1324) destacou-se entre os pioneiros nas viagens pelo Oriente. O veneziano alcançou a Ásia e percorreu a China, narrando o feito no Livro das Maravilhas, obra que despertou grande interesse em sua época. Na sua esteira e, sem dúvida, com percursos bem mais modestos, os italianos, seguidos depois por portugueses e espanhóis, deram prosseguimento à exploração de novas terras. Assim, pouco a pouco, disseminou- se o gosto pelas viagens, que se fez acompanhar pelo estudo das artes da navegação e, consequentemente, pelo aprimoramento da cartografia e por uma maior precisão das informações geográficas. Levado pela satisfação de uma curiosidade ou pelo desejo de ampliar seus conhecimentos, o viajante renascentista em muito se distinguiria de seus predecessores, pois lançava-se rumo ao desconhecido. A viagem moderna revestiu-sedo caráter de aventura justamente por ser um processo em aberto, cujo fim estava no próprio ato de viajar. Este movimento não implicou, de imediato, no desaparecimento das motivações religiosas, mas acabou por revesti-las de novas formas. Assim, nas viagens modernas, tais motivações conviveram com propósitos mercantis que, não raro, levariam à modificar seu sentido, distanciando-se do significado simbólico que as caracterizava no mundo medieval. pg. 25 As descobertas marítimas, com todo o repertório de novidades que descortinou aos seus contemporâneos, despertaram grande curiosidade à época. O segredo sobre as rotas de navegação e recursos naturais do continente americano, sigilosamente guardados pelas potências marítimas que lideraram a conquista ultramarina, aumentava ainda mais o interesse pelas narrativas de viagem, cuja divulgação foi facilitada pela invenção da imprensa, que rapidamente disponibilizava os exemplares, ou suas traduções, pelas principais potências europeias. E, na medida em que se ampliava seu público leitor, o gênero legitimava-se por ser um discurso construído a partir do testemunho direto de um viajante ou de um marinheiro que se aventurara por regiões tão distantes. Neste sentido, estes relatos contribuíram para uma significativa mudança nos princípios sobre os quais se erigia o estatuto da verdade, dando crescente autoridade ao testemunho ocular, à afirmativa calcada no olhar. pg. 26 Ancorados na experiência do navegante e, por extensão, no dado empírico fornecido por sua presença no local sobre o qual falava, estes relatos, e a verdade que transmitiam, passaram a disputar espaço com as antigas afirmações baseadas na especulação – como faziam os sábios da antiguidade, ou amparadas na revelação – como constava nos textos das Sagradas Escrituras. pg. 26 Constatações desta natureza compunham o quadro em que se desenhou a crise dos paradigmas sobre os quais, durante séculos, firmara-se o domínio cristão: um conflito originado pela dificuldade, senão impossibilidade, em conciliar princípios universais com a diversidade e a pluralidade que se apresentavam diante de seus olhos. Contudo, sobre esta diversidade iria fundar-se um dos princípios da conquista e dominação das terras recém-descobertas. Em 1493, a Bula Itercoetera do Papa Alexandre VI, reconheceu a diferença de costumes, utilizando-a para formular a justificativa da ação missionária que igualaria os dois mundos sob o princípio religioso. pg. 27 Depois da chegada dos europeus ao continente americano, o contato com os nativos, a alteridade, ou melhor, a sua tradução passou a receber outro tratamento. Imbuídos de uma cultura fundada no princípio do uno e de valores universais, para os viajantes modernos a noção do contrário foi impensável. Abria-se, assim, a possibilidade para que o diferente fosse visto como o novo (…). Este “mundo novo” que se descortinava diante do olhar de viajantes portugueses, espanhóis e franceses não se enquadrava no rígido e hierarquizado sistema aristotélico-tomista, com sua lógica de um mundo fechado. Este foi o ponto de partida de um longo processo de descobertas que caminhou pari passu com a conquista e com a dominação política e econômica. Assim o mundo novo não apenas reavivara a busca do maravilhoso, a ambição imperial e o ideal de evangelização, como também impusera novas indagações sobre a natureza e seus habitantes. Desse modo, a partir das reflexões desenvolvidas naquele momento, antigos mitos começaram a se desfazer, dando lugar a outros tantos; entre os quais o mito do “bom selvagem” que desempenharia importante papel nas reflexões filosóficas e políticas dos séculos subsequentes. pg. 28 A experiência de Oviedo contrapõe-se ao olhar subjetivado do poeta, revelando um comportamento que, da época dos descobrimentos em diante, assumiria um papel cada vez mais relevante: a busca da objetividade e de maior precisão na descrição. No que se refere à descrição do espaço físico, esta precisão constituiu-se numa estratégia indispensável para a construção dos impérios coloniais e fomentaria uma outra grafia moderna, a cosmografia. Apoiando-se em escritos técnicos – na anotação do navegador, ou de seu escrivão, - as novas pranchas obedeciam às informações oriundas da experiência individual. Aos poucos, os antigos mapas foram sendo corrigidos, deixando de assinalar a localização de espaços relacionados ao sagrado. A partir de então a correta descrição do globo constitui-se em poderoso instrumento para a montagem dos impérios coloniais modernos. pg. 31-2 VIAGENS IMAGINÁRIAS: A UTOPIA DE THOAMS MORE As ambiguidades e a ironia que atravessam o texto reforçam o argumento que identifica na Utopiade More traços da cultura renascentista, pois a recepção do ideário humanista na Inglaterra não se limitou à tradução de textos, caracterizando-se por uma rica produção original. Para Quentin Skinner (1979, 255), a obra é uma típica manifestação da corrente principal do pensamento humanista no norte da Europa e uma das maiores contribuições para a teoria política, num estilo que o aproxima de Castiglione e Maquiavel, podendo ser lido como um “livro de conselhos” sobre a arte de governar, muito em voga na época. As qualidades morais e a sabedoria, reassaltadas como qualidades maiores tanto em Pedro Gil quanto em Hitlodeu, são típicas do “homem virtuoso”, tal como concebiam os humanistas e renascentistas. A ideia mesma de descrever uma sociedade ideal não deixa de revelar a crença na potencialidade humana em modelar indivíduos e, a partir de então, a sociedade. pg. 39-40 UM INCANSÁVEL VIAJANTE: MICHEL DE MONTAIGNE, EXPERIÊNCIA E REFLEXÃO. Para ele, duas razões tornaram favorável o contato com o estrangeiro, considerado tão importante quanto o “comércio dos homens”. Em primeiro lugar, para que se pudesse “observar os costumes e o espírito dessas nações”. Em segundo lugar, e como decorrência da primeira condição, para “limar e polir nosso cérebro em contato com os outros”. Assim, o mundo exterior era cenário e motivação para um deslocamento interior, dentro do próprio pensamento: a viagem que efetivamente interessava. A abertura para o mundo exterior, portanto, não excluía a atenção sobre si mesmo. Ao contrário, esta era a condição para que se desenvolvesse seu projeto. Como ressaltou Auerbach (1976, 263), o método de Monataigne assentava-se na importância da experiência, que deveria ocorrer de forma numerosa e variada. pg. 45 Este foi o modo como realizou seu projeto , procedimento explicitado em diversas passagens, o que faz com que seus comentaristas sejam unânimes em considerar os Ensaios como variações sobre um mesmo tema. No prefácio ao leitor, escreve Montaigne: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria desse livro”. No último ensaio, repete o refrão: “estudo-me, mais do que qualquer outro assunto. É minha metafísica, é minha física” (Montaigne, 372). Este falar de si mesmo, de Michel de Montaigne, e não do gramático, do poeta ou do jurisconsulto, a partir da própria observação, livre de toda e qualquer doutrinação e mesmo contra as convenções retóricas e religiosas, em noma da liberdade e da verdade, faz dos Ensaios o “evangelho” da espiritualidade moderna (Gusdorff: 1980, 29). A obra assinala a emergência de uma escrita fundada na subjetividade, na qual confundiam-se o sujeito e o objeto do conhecimento. O ineditismo do empreendimento está resumido na célebre interrogação de Monatigne: “quem sou eu”? pg. 46 Além de substituir a visão etnocêntrica por uma perspectiva relativizadora, Montaigne ainda punha sob suspeita a superioridade dos povos civilizados afirmando “não haver razão para [se supor] que a arte, sobrepuja em suas obras a natureza, nossa grande e poderosa mão”. pg.18
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