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TEORIAS DA HISTÓRIA Antonio Fontoura E d u ca çã o T E O R IA S D A H IS T Ó R IA A nt on io F on to ur a Curitiba 2016 Teorias da Historia Antonio Fontoura ´ Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária – Cassiana Souza CRB9/1501 F684t Fontoura, Antonio Teorias da história / Antonio Fontoura. – Curitiba: Fael, 2016. 312 p.: il. ISBN 978-85-60531-63-9 1. História I. Título CDD 901 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/arosoft Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. O surgimento da história | 7 2. Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico | 33 3. Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade | 61 4. A busca por uma ciência histórica no século XIX | 91 5. O início de uma historiagrafia brasileira | 119 6. As inovações teóricas da escola dos Annales | 149 7. Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil | 179 8. O pensamento marxista e a importância dos conceitos | 207 9. História cultural e a micro-história | 237 10.Os limites da linguagem e a objetividade histórica | 265 Conclusão | 293 Gabarito | 295 Referências | 299 Carta ao aluno Prezado(a) aluno(a), Esse livro procurará demonstrar que a disciplina de histó- ria, nos dias de hoje, está em constante mutação, produzindo uma forma de conhecimento sobre a realidade presente e passada que, nos últimos anos, vem se redescobrindo, adaptando, evoluindo. Se, de alguma forma, o grego Heródoto reaparecesse nos dias de hoje, poderia até compreender que a forma pela qual ele produziu sua obra Histórias possui algum parentesco com os métodos e teorias históricos atuais: mas seria obrigado a concluir que muita coisa se modificou. – 6 – Teorias da História O primeiro objetivo desse livro é tratar desse processo de mudança: par- tindo das origens gregas até os debates atuais, discutiremos as várias formas de pensar os objetivos e os métodos da história, construídas por historiadores e escolas de pensamento ao longo dos últimos séculos. Com isso, pretende-se demonstrar que a disciplina histórica que conhecemos hoje é resultado de uma construção, de um fazer-se, de uma historicidade. Essa é a parte do livro que trata das escolas históricas, organizadas em uma análise cronológica. O segundo objetivo dessa obra – não menos importante que o primeiro – é o de discutir e buscar um aprofundamento em temas que são especifica- mente teóricos no pensar e refletir sobre o conhecimento histórico. A obje- tividade histórica e sua concepção de verdade, a relação entre a realidade do passado e as fontes primárias, a função dos conceitos e dos referenciais teóri- cos, serão discutidos de uma maneira mais aprofundada, mais abrangente e, fazendo jus ao título do livro, mais teórica. Porém, não pense em teoria como oposta à prática (como quando se diz que alguém apenas matuta, e pouco realiza). Teoria, aqui, é sinônimo de ferramenta: como bons historiadores, nossos instrumentos são intelectuais, e o propósito essencial desse livro, e que une os dois objetivos acima, é possibi- litar que você se instrumentalize, de modo a pensar a sua própria realidade de uma maneira histórica. História não é aquilo que aconteceu: é o processo de refletir sobre aquilo que aconteceu. Mas, para isso, precisamos de bases, que no caso dos estudos históricos, são teóricas. Em cada um dos capítulos você estudará tanto as escolas históricas, quanto refletirá sobre os fundamentos teóricos da história. E isso não é pouco: na verdade, é apenas o começo de um aprendizado que se estenderá por toda sua vida enquanto historiadora ou historiador. Meu único desejo, enquanto autor, é que você aprecie esse primeiro passo. Abraços, Antonio. 1 O surgimento da história Buscando construir algumas definições preliminares e analisando as raízes gregas e o desenvolvimento romano, este capí- tulo procura analisar o surgimento, bem como as especificidades da disciplina histórica e das características do conhecimento que produz. Iniciaremos discutindo alguns dos principais historiadores da Antiguidade dita “clássica”, para que possamos identificar o que é a “história”, como pode ser definida e quais são suas formas particu- lares de estudar e compreender a realidade. Ao mesmo tempo, serão analisadas as peculiaridades do trabalho histórico atual, procurando estabelecer uma definição acadêmica para o conceito de “história”, que será utilizado em todo o livro. Teorias da História – 8 – 1.1 Heródoto e as características do conhecimento histórico Ainda nos dias de hoje, Heródoto, grego do século V a.C., nascido na cidade de Halicarnasso (localizada onde é atualmente o litoral oeste da Tur- quia), é conhecido como o “Pai da história”. Esse título foi originalmente criado ainda na Antiguidade pelo filósofo e político romano Cícero (106 a.C. - 46 a.C.) e foram poucos aqueles que, ao longo do tempo, questionaram a validade dessa paternidade. Heródoto é o autor de “Histórias”, um extenso relato em que buscou identificar e analisar as origens dos conflitos entre os Persas e os Gregos. O enredo de seu texto é relativamente simples: seguindo, fundamentalmente, uma orientação cronológica dos reis persas, Heródoto narra as mudanças do Império Persa desde suas origens até, finalmente, a derrota diante dos Gre- gos, já no século V a.C. Originalmente criada como um texto único, a obra foi posteriormente dividida em nove livros, tendo cada um recebido como subtítulo, já na Renascença, o nome de uma das musas da mitologia grega (o primeiro livro é dedicado a Clio, o segundo a Euterpe, o terceiro a Tália, e assim sucessivamente). É dessa forma que a obra é conhecida na atualidade. Membro da elite grega, Heródoto buscou compor o texto de sua obra buscando atingir um alto valor literário, de modo que satisfizesse o gosto de seus contemporâneos: leitores que, também membros da elite grega, podem ser calculados, no total, em torno de algumas centenas. A influência e pere- nidade de “Histórias”, porém, não são dadas pelo inegável valor estético de sua criação. Tampouco é por causa disso que é conferida a seu autor, tradicio- nalmente, a paternidade de uma disciplina tão tradicional e influente como a história. Onde estariam, efetivamente, a qualidade e a originalidade da obra de Heródoto? No século V a.C., a palavra “história”, ἱστορία, significava, para os gre- gos, uma pesquisa, ou uma investigação racional. O que Heródoto estava buscando fazer, pela primeira vez, era uma análise dos eventos do passado, buscando separá-los de interpretações e narrativas míticas. Em síntese, cons- truía uma nova ideia de que a realidade do presente seria resultado de ações humanas no passado; que essas ações poderiam ser recuperadas a partir de vestígios; e que esses poderiam ser analisados a partir do uso da racionalidade. – 9 – O surgimento da história Isso pode, a princípio, não parecer muito, mas é um rompimento no modelo de conhecimento que existia na Grécia à época, quando lendas e fatos reais entrelaçavam-se de maneira indissociável e construíam interpretações que as pessoas do período acreditavam serem as “verdades” do próprio passado. Vamos analisar mais detidamente a originalidade do pensamento de Heródoto a partir das primeiras linhas de sua “Histórias”. Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homensse apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gre- gos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros (HERÓDOTO, 1964, s/p). Ainda que esteja em terceira pessoa, é o próprio Heródoto quem escreve que sua primeira motivação foi evitar que as ações praticadas pelos homens se apagassem pelo tempo. Note, aqui, duas características: em primeiro lugar, a importância da escrita histórica enquanto forma de evitar o esquecimento de determinadas pessoas e suas ações. Durante séculos, esse será um dos argu- mentos recorrentes que justificarão a produção de textos históricos. Segundo ponto: trata-se de ação dos homens. Heródoto vai, inclusive, criticar Homero (poeta grego, talvez de origem lendária, a quem tradicionalmente se identifica como autor da Ilíada e da Odisseia), por sua inexatidão e por se fundamentar em lendas, além de difundi-las. É objetivo de Heródoto, ainda, apresentar detalhes, tanto da vida dos gregos, quanto daqueles que denomina “bárbaros”. De fato, sabe-se que Heró- doto foi um grande viajante, e muito de sua obra “Histórias” possui informa- ções que hoje poderíamos denominar de etnográficas: ou seja, a descrição de formas de vida e crenças de povos diferentes. Alguns dos mais importantes detalhes sobre a vida no Egito do período, por exemplo, devemos a Heró- doto. Tais descrições, porém, não servem para efetivamente aceitar a cultura estrangeira, mas, especialmente, para salientar a especificidade e a validade do modo de vida dos gregos (STADTER, 2002). Heródoto afirma, ainda, que é seu objetivo “expor os motivos” que leva- ram persas e gregos à guerra. Aqui há outra inovação importante: as explica- ções que procurou construir e as relações de causa e efeito foram buscadas usualmente em uma tentativa de compreender as motivações humanas a par- Teorias da História – 10 – tir de falhas de seu caráter, como a inveja, o desejo pelo poder, a necessidade de expansão imperial, a vingança (esse, aliás, um tema recorrente em “His- tórias”) (ARNOLD, 2000). Era uma maneira, portanto, de entender mais sobre as pessoas e as sociedades. De toda forma, é o esforço por identificar as causas dos eventos que torna a busca por vestígios importante, pois estariam neles as provas de sua ocorrência. Se foram ações humanas as responsáveis por eventos do passado, é necessário identificá-las. Comparando-se, porém, com a situação atual do conhecimento histórico, sua visão do que seriam vestígios (hoje diríamos “fontes” ou “documentos”) é restrita: resumem-se àquilo que ou observou por conta própria, ou recolheu a partir de depoimentos. Em vários momentos de sua narrativa, Heródoto quer passar a impres- são de que era uma pessoa crítica. É por isso que ele coloca sob constante aná- lise as informações que recebe: compara relatos, julga a possibilidade de certos eventos terem ocorrido e, por não raras vezes, exime-se de emitir alguma opinião caso perceba que não possui informações suficientes para realizar um julgamento adequado. Historiografia e Teoria: Em busca de uma definição de história Busca por vestígios, análise das informações, preocupação com a vera- cidade dos relatos: certamente a obra de Heródoto é um marco, na filosofia ocidental, de uma nova forma de compreender o passado. Não é sem razões, portanto, que ele é conhecido como o “pai da história”. Não se pode, porém, exagerar em sua modernidade (ARNOLD, 2000). Heródoto não é apenas tri- butário de modelos mais antigos de exposição do conhecimento (remontando, inclusive, a Homero), mas também, pelos padrões atuais, poderíamos consi- derá-lo por demais crédulo. Afinal, eventos claramente fictícios – como a via- gem de um tocador de cítara de nome Arião de Metimna até Tenara, nas costas de um golfinho (HERÓDOTO, 1964, p. 44) – são tratados como verdadeiros. Sabe-se que Heródoto, em determinados momentos, simplesmente mentiu. Sua constrangedora descrição de um hipopótamo revela que ele nunca viu pessoalmente esse animal em toda sua vida (até porque, na época – 11 – O surgimento da história em que escrevera sua obra, os hipopótamos não mais existiam no Egito, onde ele afirmou tê-los encontrado): Os hipopótamos, que ali encontramos com o nome de Papremito, são sagrados, não o sendo, contudo, no resto do Egito. É um possante animal de pés e focinho achatados, dentes salientes e possuindo crina e cauda semelhantes às do cavalo, rinchando como este (HERÓ- DOTO, 1964, s/p). Escreve isso, a despeito de afirmar de forma recorrente que sempre bus- cava a verdade. Sabe-se hoje que a descrição que fornece foi extraída da obra de outro grego, Hecateu de Mileto – que, a propósito, também jamais vira um hipopótamo. Heródoto certamente funda uma determinada forma específica de cons- truir conhecimento. Porém, a disciplina de história, na atualidade, não é a mesma que aquela produzida no século V. a.C. “História” é uma palavra com cerca de 2 milênios e meio de idade, sur- gida entre os gregos para caracterizar uma específica atividade intelectual da qual somos, indubitavelmente, herdeiros. Entretanto, de toda forma, como afirmou o historiador francês Marc Bloch (1886-1944), para o “grande deses- pero” dos historiadores, “os homens não costumam mudar de vocabulário a cada vez que mudam de hábitos” (BLOCH, 2001, p. 24). E os “hábitos” do fazer história mudaram muito desde seu surgimento com Heródoto. Certa- mente o que ele, ou seu contemporâneo Tucídides, chamavam de “história”, não possuía o mesmo significado – não partia dos mesmos princípios, não seguia os mesmos métodos, não desempenhava a mesma função social, tam- pouco visava os mesmos objetivos – para o medieval Bede, o moderno Gib- bon, ou o contemporâneo Bloch. O que permaneceu e o que se modificou da concepção que Heródoto criou para a “história”, até nossos dias? Em certo sentido, esse livro, como um todo, procurará apresentar a resposta: afinal, trata-se de um percurso mile- nar, de ideias diferentes, que produziram o que hoje, no mundo acadêmico1, denomina-se de “história”. Permanecem, porém, alguns elementos importan- tes: a busca por explicações a partir de vestígios; de entender o passado como responsável pela construção do presente; de repelir narrativas fabulosas, ou 1 A palavra “academia” é utilizada, aqui, como sinônimo de “ensino superior”. Teorias da História – 12 – ficcionais; de organizar o raciocínio cronologicamente – ou seja, dentro de períodos, épocas, reinados, anos. Há, porém, um sem-número de diferenças. Atualmente, a história é uma disciplina institucionalizada, ou seja, participa de instituições, tais como uni- versidades; está submetida a determinada exigências de rigor, a partir de prin- cípios metodológicos; possui uma determinada tradição a que se deve respeitar, pois qualquer novo texto histórico é sempre escrito em diálogo com o que já foi produzido; possui funções sociais ligadas à construção e democratização do conhecimento; desenvolveu uma concepção mais profunda de verdade, objeti- vidade, temporalidade e fontes. E isso tudo, obviamente, não surgiu do nada, mas é o próprio resultado de seus mais de dois mil anos de passado. O parágrafo acima, aliás, nomeia alguns dos vários e importantes con- ceitos que caracterizam o estudo histórico. Compreender as formas como foram entendidos em épocas distintas, dentro do que definimos serem dife- rentes “escolas históricas” – ou seja, maneiras específicas de se pensar objeti- vos, métodos e funções da história –, é uma das finalidades deste livro. Mas, enfim, o que é a disciplina de “história” para os dias de hoje? Definindo conceitos: HISTÓRIA Estudo acadêmico e sistemático de grupos humanos, indivíduos e instituições ao longo do tempo, a partir de fontes históricas,dentro de uma determinada tradição de conhecimento. Essa definição evidencia algumas semelhanças e diferenças em relação àquele conhecimento construído por Heródoto. O estudo de história, hoje (e, para o presente livro) é fundamentalmente acadêmico, ou seja, produ- zido em instituições de ensino superior, que se responsabilizam pela guarda e manutenção de métodos e técnicas que são próprias à história. É, além disso, um estudo sistemático, ou seja, possui um modelo próprio para avaliação do rigor e produção de conhecimento, dentro de métodos que lhes são próprios. Seu objeto preferencial são as ações humanas, sejam elas individuais (uma biografia, por exemplo, é trabalho histórico) ou em grupos (podem ser sociedades inteiras, times de futebol, sindicatos, organizações de classe, – 13 – O surgimento da história turma de alunos). Nas palavras de Marc Bloch, “o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça” (BLOCH, 2001, p. 54). Esse estudo envolve também uma análise dos objetos ao longo do tempo. Essa é, aliás, uma das características que mais são próprias do pensamento histórico. O intuito da disciplina não é descrever o que ficou para trás – o “passado”, esse termo amplo e complexo, cuja multiplicidade de significados teremos ainda oportunidade de discutir nessa obra. Mas sim de, analisando um mesmo objeto de estudo em dois momentos diferentes, perceber e iden- tificar as razões de suas mudanças e permanências. O que nele mudou ou permaneceu, as razões das modificações e como se relacionam com o todo das sociedades. Trata-se de um conhecimento, por fim, construído dentro de uma deter- minada tradição. Novos historiadores não começam do zero a cada geração. Toda nova pesquisa, aula, livro, resumo, fonte, resenha – enfim, todo novo trabalho de cada nova historiadora ou historiador – inicia-se a partir do diá- logo com o conhecimento já acumulado. Pode-se questionar ou confirmar os textos já existentes; podem ser construídas hipóteses revolucionárias ou importantes estudos de confirmação ao que já se sabe. Não importa: sempre será a partir dos autores, obras, conceitos, temas consagrados, estabelecidos academicamente, que se constrói o conhecimento histórico. Acompanhar cronologicamente a construção desse modo de pensar é uma das formas de entender as complexidades próprias dos estudos históricos nos dias de hoje. 1.2 História, verdade e objetividade: Tucídides Não é possível falar de uma “escola histórica grega” como se fosse uma forma específica de pensamento a respeito da história. Pode-se, certamente, identificar suas origens com o pensamento de Heródoto e Tucídides, mas, entre esses e outros historiadores gregos importantes – como Xenofonte, Polí- bio e Plutarco – não há uma relação de continuidade. Mais correto é afirmar que se tratavam de indivíduos que pensavam a história a partir das próprias condições culturais e viam no ato de escrever sobre o passado uma forma de Teorias da História – 14 – atuar nas próprias sociedades. É por isso que discutir Tucídides lança luzes não apenas sobre as maneiras de pensar de Heródoto, mas, também, sobre a própria situação atual do conhecimento histórico. Figura 1 - Período de vida de alguns historiadores gregos. Os pontos de interrogação indicam quando não há certeza em relação às datas. Fonte: Elaborado pelo autor. Mais novo que Heródoto, Tucídides era seu contemporâneo e, certa- mente, conhecia a sua obra, embora jamais a cite diretamente. É interessante, ainda, como construiu um modelo de escrita de história específico, com características diferentes das do “pai da história”: enquanto Heródoto bus- cava uma abordagem ampla da análise histórica (tomando abordagens geo- gráficas e etnográficas), Tucídides voltou-se exclusivamente para os eventos políticos e militares. Outro contraste foi sua visão mais rigorosa e objetiva de fontes históricas de onde buscou – ao contrário de Heródoto – extrair conclu- sões abrangentes e generalizantes dos eventos que analisava. Para Tucídides, compreender historicamente determinado evento era uma das maneiras pelas quais se poderia compreender os seres humanos como um todo. É por essa razão, aliás, que sua atenção se centra na guerra: é diante do que ele denomina de maior kinêsis – distúrbio ou convulsão – da história grega, que seria possí- vel identificar os danos causados à vida civilizada, e como os conflitos mudam as pessoas (LUCE, 1997, p. 50). Em “História da Guerra do Peloponeso”, Tucídides buscou analisar as causas, bem como o desenvolvimento do conflito envolvendo as cidades de Atenas e Esparta, ocorrido entre os anos 431 a 404 a.C. A princípio, Tucí- dides não pode ser considerado um observador imparcial: era ateniense de uma família aristocrática e, já durante a guerra, alcançou o posto de general. Porém, por não ter conseguido defender a cidade de Anfípolis, acabou exi- lado, retornando a Atenas apenas após o final da guerra. – 15 – O surgimento da história Ainda assim, uma das características mais marcantes de seu trabalho é a busca pela objetividade. Ele afirma em determinado momento: Quanto aos fatos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros (TUCÍDIDES, 2001, p. 14). A concepção original do termo “história”, ou seja, a investigação racio- nal de um tema, é reforçada e aprofundada com Tucídides. É por isso que os eventos da Guerra do Peloponeso são apresentados apenas após terem sido cuidadosamente apurados e apresentados não como se fossem uma mera ver- são, ou opinião, mas resultados de uma análise que teria levado à verdade. Em uma passagem, que talvez tenha como objetivo criticar diretamente Heró- doto, Tucídides censurava aqueles que “compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos do que de dizer a verdade” (TUCÍDIDES, 2001, p. 14). De fato, não era raro que Heródoto apresentasse versões conflitantes e dissesse não poder afirmar qual seria a verdade de determinado tema. Tucí- dides, por sua vez, utiliza-se de análises, comparações, e inclusive probabili- dades para buscar encontrar o que para ele era o mais importante: a verdade, enquanto uma maneira de alcançar a universalidade do conhecimento e da compreensão dos homens. Segundo afirmou, Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia vol- tarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em conse- quência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará (TUCÍDIDES, 2001, p. 14). Em busca dessa objetividade, Tucídides apresenta algumas diferenças significativas em relação à obra e aos métodos de Heródoto. Uma novidade que seria muito copiada na historiografia ocidental foi a utilização de uma narrativa fundada em uma cronologia rigorosa: a “História da Guerra do Peloponeso” avança gradualmente ano a ano, apresentando os eventos mais importantes ocorridos durante o verão e as poucas ações que poderiam, even- tualmente, se passar durante o período do inverno. Teorias da História – 16 – Um segundo ponto de contraste diz respeito à análise das cau- sas. Enquanto Heródoto não estabelece análises causais2, que seriam mais ou menos significativas, para Tucídides existem as causas que seriam mais amplas, ou mais estruturais – ou seja, deveriam ser buscadas em um passado mais distante nas relações entre Atenas e Esparta –, e que não podem ser con- fundidas com causasmais imediatas, que acabaram por dar início ao conflito. Dentro de sua busca pela verdade, Tucídides constrói outra diferença em relação a Heródoto: sua preocupação com a veracidade das fontes. Era comum que Heródoto entrevistasse pessoas sobre eventos que haviam ocor- rido anos, ou mesmo séculos, antes, e as informações eram apresentadas de forma pouco questionadora. Tucídides, por outro lado, era ciente dos proble- mas gerados pela memória. O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória (TUCÍDIDES, 2001, p. 14). Isso o obrigava a tomar, como fontes privilegiadas, as pessoas que haviam participado, diretamente, dos eventos; ou mesmo as próprias lembranças, considerando que ele havia participado ativamente dos conflitos, em deter- minado momento. Ainda assim, essas versões seriam aprovadas ou rejeitadas a partir de sua análise, para descartar enganos, ou a parcialidade. Por fim, Tucídides se destaca também por seu desejo de compreender a universalidade, a partir do específico exemplo da guerra. Dessa forma as revoluções trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a aconte- cer enquanto a natureza humana for a mesma; elas, porém, podem ser mais ou menos violentas e diferentes em suas manifestações, de acordo com as várias circunstâncias presentes em cada caso (TUCÍ- DIDES, 2001, p. 198). Não era intenção de Tucídides simplesmente compreender aquele con- flito específico, mas analisar e raciocinar sobre a natureza humana como um todo. A Guerra do Peloponeso seria uma forma específica de manifestação 2 Repare que a palavra “causais” se parece muito com “casuais”. A primeira refere-se a causas, a segunda à causalidade. É importante não confundir ambas no momento da leitura. – 17 – O surgimento da história violenta dessa natureza, e sua história tinha a pretensão de lançar luzes sobre as razões, os desdobramentos e as mudanças que tais conflitos provocavam nas pessoas e nos povos. Assim proliferaram na Hélade3 todas as formas de perversidade em consequência de revoluções, e a simplicidade, que é a característica mais condizente com uma natureza nobre, provocava sorrisos de escárnio e desapareceu, enquanto florescia por toda a parte a hipo- crisia combinada com a desconfiança (TUCÍDIDES, 2001, p. 199). Historiografia e Teoria: História e a ideia de verdade Se o leitor deste livro tiver a sorte de ter mais de 30 anos, poderá lembrar de algum antigo professor, especialmente do Ensino Fundamental (o antigo “primário”), que na tentativa de ensinar às crianças a especificidade da dis- ciplina de história, apelava à distinção que essa palavra possuía em relação à “estória”. Tratava-se de uma adaptação nacional dos vocábulos ingleses history e story, uma contraposição didática útil que visava evidenciar o que seria a diferença fundamental entre o compromisso com a verdade da primeira e o apelo ao ficcional, e ao fantástico, da segunda. Desse modo, as crianças não se confundiriam quando lhes caíssem às mãos tanto a “História da Guerra do Peloponeso” quanto as “Histórias da Carochinha”. Quem primeiro sugeriu o uso da palavra “estória” foi o escritor, e mem- bro da Academia Brasileira de Letras, João Ribeiro (1860-1934), em 1919, com a boa intenção de estabelecer um termo que caracterizasse as específicas narrativas folclóricas e que se pudesse diferenciar, enfim, as “estórias” da “his- tória”. Atualmente, porém, o termo é considerado um arcaísmo, um “brasi- lianismo” e, em resumo, não deve ser utilizado. De toda forma, para o senso comum, essa é ainda a principal caracte- rística específica da disciplina de história, ou seja, a tarefa de contar “o que realmente aconteceu”. Esse era, aliás, o objetivo fundamental de Tucídides: seu esforço de compreensão e diligência em relação ao cuidado com suas fontes tinha como objetivo construir não uma versão dos fatos, ou uma nar- 3 Grécia. Teorias da História – 18 – rativa possível do que havia acontecido. Seu objetivo era maior: ele queria estabelecer a verdade. Saiba mais As “fontes” são os materiais a partir dos quais a história é produ- zida. Nos dias atuais, as fontes primárias, também denominadas de documentos históricos, são todos e quaisquer vestígios que permitem reconstruir aspectos das ações humanas no passado. Trata-se de uma definição bastante ampla, porque serão fontes primárias, por exem- plo: objetos da vida material, textos escritos, depoimentos orais, jar- dins, arquitetura das casas, estrutura urbana, instrumentos profissionais ou de uso cotidiano, enfeites, símbolos religiosos; podem ser durá- veis como um prédio, ou efêmeros como convites de casamento; públicos como editos, ou privados como diários; recentes como o jornal de ontem, ou antigos como as fogueiras dos primeiros huma- nos. Tudo o que se relacionar ao humano pode, em algum momento, ser uma fonte primária. Além das fontes primárias existem, também, as fontes secundárias. Essas são todas as obras que analisam um determinado evento. Ou seja, são estudos sobre um acontecimento, processo ou pessoa. Quando essas fontes secundárias são obras de história, podem rece- ber o nome específico de historiografia. Existe, portanto, uma historio- grafia da segunda guerra mundial, uma historiografia do Brasil Colônia, uma historiografia da história da ciência: todas fontes secundárias a respeito de um tema específico da história. A disciplina de história, como conhecemos nos dias de hoje, foi institu- cionalizada no século XIX, quando pretendeu se definir enquanto uma ciên- cia. Naquele momento, o modelo científico por excelência era especialmente o da física, que os historiadores oitocentistas4 queriam replicar nos estudos históricos. Buscava-se atingir, especialmente, o ideal de verdade e objetividade que parecia possível com as leis e a matematização dos fenômenos naturais. 4 Que diz respeito aos anos 1800, portanto, ao século XIX. Assim como “quinhentis- tas” refere-se aos anos 1500, ou seja, o século XVI. – 19 – O surgimento da história Tucídides foi a grande inspiração para esse modelo de objetividade. Na verdade, o principal historiador do século XIX e principal responsável pela profissionalização da história, Leopold von Ranke (1795-1880), recuperou a frase do historiador grego e acabou adotando-a como um mote para sua própria atividade enquanto historiador: tomou para si a tarefa de “desco- brir o que realmente aconteceu”. Criou-se, assim, uma continuidade entre Tucídides e os primeiros profissionais da história: aos historiadores caberia a tarefa de narrar a verdade dos fatos já ocorridos, esclarecendo, com a menor margem possível a dúvidas, quem fez o quê, quando, e por quê. Ainda hoje, no senso comum, parece ser esse o principal objetivo do trabalho de historiadoras e historiadores. Nosso primeiro profundo contato com a história antes de estudá-la academicamente é, de maneira usual, usual- mente por meio dos livros didáticos, que parecem confirmar essa impressão: após um costumeiro e rápido primeiro capítulo em que se discutem alguns aspectos teóricos e metodológicos, todas as demais unidades, de todas as séries, não fazem mais do que apresentar aos alunos, em forma de narrativa, o que já aparece como sabido e estabelecido como verdade. Parecem “contar a história”. Impressão, aliás, reforçada por outras mídias, como novelas, roman- ces, livros de divulgação popular de história e, mais recentemente, jogos digi- tais, como a série de sucesso Assassin’s Creed. Há razões para que esse modelo de história tenha se enraizado no senso comum (os capítulos 4 e 5 irãodiscutir esse tema mais detidamente), mas há, também, para que não seja essa a característica fundamental do conheci- mento histórico que se estuda academicamente. Com isso, se está querendo dizer que a história não se preocupa mais com a verdade? (Certa vez, ouvi uma piada que dizia que ser historiador era fácil, pois bastava aprender duas frases: “as coisas não são assim tão simples” e “tudo isso, na verdade, começou bem antes”). As coisas não são assim tão simples: certamente os historiadores mantêm seu compromisso com explicações que estejam adequadas aos vestígios, mas não se preocupam mais em reconstituir “A” verdade. Até porque, essa verdade única e imutável não existe. Especialmente em história, o que se acreditava como sendo “a verdade do que realmente aconteceu”, modelo paradigmático dos historiadores do século XIX, eram as específicas e muito limitadas ações Teorias da História – 20 – de um pequeno e particular grupo de pessoas (líderes políticos, ou militares), em um reduzidíssimo palco específico (o político, quando relacionado à for- mação dos estados nacionais). Essa restrita concepção dos estudos históricos foi substituída por uma noção muito mais ampla e dinâmica, própria da atu- alidade, e que afirma que será a partir de questões lançadas pelo presente que o passado será indagado em busca de respostas. Dizendo-se de outra forma, a partir de questões precisas, fundadas na necessidade do conhecimento do presente – e só o entendimento do presente realmente importa à história – é que serão lançados questionamentos a docu- mentos históricos, estabelecidos os fatos, definidas as causas e consequên- cias, realizadas as análises teóricas e construídas explicações. O presente dirige nosso olhar ao passado. Porque – e esse é um segundo erro do senso comum em relação à dis- ciplina de história – passado e presente não estão separados, cindidos. Não é pelo seu caráter interessante e curioso que se estuda a Roma dos césares (ou, ao menos, não exclusivamente por isso), mas porque somos o resultado do passado. E é a história que nos permite entender as maneiras pelas quais nós, e nossa realidade, fomos construídos. Se você retornar à definição de história apresentada algumas pági- nas atrás, verá que ela começa com a palavra “estudo”. Isso porque, den- tro dessa visão acadêmica na atualidade, a história não é o passado, mas o que se estuda de um determinado passado. Na linguagem cotidiana, não há qualquer problema em usar “passado” e “história” como sinônimos (o que, aliás, acontece frequentemente), mas dentro da disciplina histórica cada um dos termos remete a um conceito e realidade bem específicos. Passado é tudo o que já aconteceu – e entenda esse “tudo” no sentido mais amplo possível. Não apenas o que aconteceu com reis e rainhas, mas o que aconteceu com cada pessoa, em cada lugar, em cada momento. O que acontecia, por exem- plo, com o lavrador de cana português Manoel Rodrigues Penteado, quando morava na cidade Paranaguá (Paraná), em 8 de abril de 1716, às 8h da manhã, às 8h02, e a cada instante a partir disso. História, por sua vez, é o estudo desse passado. Da infinidade de coisas que já ocorreram, recorta-se um determinado tempo e local, que serão anali- sados a partir dos métodos históricos, na busca por resolver questões que são, elas mesmas, históricas. – 21 – O surgimento da história Mas tudo isso, a bem da verdade, começou muito antes, pois não apenas a atividade de história tem também seu próprio passado – e uma história, por assim dizer, da história –, mas inclusive, uma forma específica de se pensar sobre ela, a sua “teoria”, que é também construída historicamente. Ou “teo- rias”, porque não é apenas uma, mas várias, algumas delas até mesmo conflitu- osas entre si. É por isso que esse livro utiliza uma abordagem cronológica, pois procurará definir gradualmente as características do conhecimento histórico a partir dos questionamentos lançados por diferentes épocas e práticas, em relação à escrita da história. 1.3 Historiografia romana e a importância da teoria Os historiadores romanos são, na atualidade, muito menos influentes do que os gregos. Ainda hoje se estuda Heródoto e Tucídides, suas concepções de fonte e objetividade, seus ideais de verdade e noções a respeito da função da história. A presença de nomes como Salústio, Lívio e Tácito, por outro lado, são mais raros. Figura 2 - Período de vida de alguns historiadores romanos. Fonte: Elaborado pelo autor. Há algumas razões para esse esquecimento. A primeira é a que se rela- ciona à qualidade da própria produção histórica. Os romanos demoraram a desenvolver uma historiografia local voltada ao conhecimento do próprio passado, separado do mito. Pode-se evidenciar também o caso de personali- dades como o historiador Salústio, que procurou encontrar a origem do que entendia como corrupção e decadência de Roma, e julgou encontrá-la no Teorias da História – 22 – amor desenfreado dos romanos pelo luxo, que teria surgido após a vitória romana sobre Cartago (século II a.C.): Antes da destruição de Cartago, o povo e o senado de Roma governa- vam a república de forma pacífica e com moderação. Não havia confli- tos entre os cidadãos fosse por glória ou poder; o medo ao inimigo pre- servava a boa moral do estado. Mas quando as mentes do povo foram aliviadas desse medo, lascívia e arrogância surgiram naturalmente, vícios que são promovidos pela prosperidade (SALÚSTIO, 1921, s/p). A obra de Salústio teve pouca influência na historiografia. Nas palavras do historiador austríaco Ernst Breisach (nascido em 1946), “não há um único aspecto da obra de Salústio que garanta seu lugar entre historiadores” (BREI- SACH, 1983, p. 56). Há outras questões, porém, mais atuais, que se associam a este esque- cimento dos romanos, como o quase total abandono do modelo clássico de ensino, comum até, especialmente, o século XIX. O estudo do latim era tra- dicional presença nos currículos escolares e a releitura de autores clássicos tor- nava suas obras conhecidas. Seus textos deveriam ser traduzidos e, por vezes, decorados, como parte da formação do estudante. Mais do que isso, quando ainda não existia uma disciplina específica para o estudo do passado, era a leitura desses e de outros autores que fazia as vezes de “ensino de história”. É por essa razão, aliás, que a imagem de uma “Roma decadente” que teria ruído por seus vícios, tornou-se tão comum no imaginário popular: afinal, interpre- tações como a de Salústio (e, não muito diferentemente, Lívio e Tácito), de uma Roma corrupta e moralmente frágil, eram lidas pelos estudantes. Uma outra razão para esse esquecimento refere-se ao modelo de história que produziam. Embora discutissem, primordialmente, a política e a guerra, o estilo dos antigos romanos era por demais apaixonado para o gosto dos historiadores do século XIX que se acreditavam sóbrios e neutros. Afinal, os romanos não buscavam a objetividade com seus textos, mas o elevar dos espí- ritos e a difusão, via comparação com o passado, de valores morais. Entretanto, não se deve desprezar a historiografia romana tão facilmente. A obra de Tito Lívio, ou simplesmente Lívio, por exemplo, é impressionante. Escreveu, por mais de 40 anos, sua “Ab Urbe condita”, traduzida como “Desde a fundação da cidade”. E é exatamente isso que ele procurou construir, uma narrativa que abrangesse os mais de 7 séculos da história romana, partindo da – 23 – O surgimento da história criação mítica, até sua contemporaneidade. O conjunto de textos totalizava, originalmente, mais de 140 livros, embora apenas cerca de 20% desse total tenha sobrevivido até os nossos dias. Se fossem impressos em estilo moderno, alcançariam mais de 8 mil páginas (LENDON, 2002, p. 62). Tratava-se de uma obra nacionalista, escrita sob aperspectiva de um aristocrata. Assim, prezava as tradições romanas, condenava ações que reve- lavam ausência de dignidade e valorizava a bravura, algo fundamental em uma sociedade altamente militarizada como a romana. Porém, há algo de “salustiano” na obra de Lívio: também ele acreditava viver em um período de decadência e buscava encontrar no passado, uma espécie de era de ouro de sua sociedade, que desejava ver restaurada. Talvez o mais conhecido dos historiadores romanos seja Tácito, cuja obra repete algumas características de seus companheiros. Ele era um homem ligado à política e sua obra também teve como uma das principais caracterís- ticas a busca por compreender a sociedade do próprio tempo. Continuando as semelhanças, igualmente compreendia o presente em que vivia como deca- dente, em especial, quando contrastado a períodos gloriosos do passado. Não é à toa que sua obra, “Histórias”, inicie no chamado “Ano dos quatro impe- radores”, ou seja, 69 d.C., quando, após o suicídio de Nero, Roma entrou em guerra civil e se sucederam no poder Galba, Otão, Vitélio e Vespasiano. Tácito buscava compreender as razões para o surgimento desse intenso momento de crise na sociedade romana. As razões que Tácito encontra para explicar tal decadência – assim como ocorrera com Lívio e mesmo com Salústio – estariam na perda daquilo que seriam os verdadeiros valores romanos, como a integridade mortal e o espírito cívico (BREISACH, 1983). Tratava-se da visão de um cidadão tradicional e, não se pode esquecer, o ponto de vista específico de um senador romano a respeito do próprio presente e passado. Observe-se, por exemplo, a maneira pela qual Tácito explicitamente valoriza a simplicidade e revela desgosto com os requintes próprios de seu tempo, ao descrever as ações de Cneu Agrícola na Bretanha, em sua obra “Vida de Agrícola”: Para acostumar ao descanso e ao repouso e aos encantos de luxo uma população dispersa e bárbara e, portanto, inclinada para a guerra, Agrícola deu incentivo privado e ajuda pública para a construção de Teorias da História – 24 – templos, tribunais de justiça e construção de casas, elogiando o enér- gico e reprovando o indolente. [...] Daí, também, um gosto levan- tou-se em direção a nosso estilo de vestir, e a toga tornou-se moda. Passo a passo, eles foram levados aos vícios sedutores, os pórticos, os banhos, os elegantes banquetes. Tudo isso em sua ignorância eles chamavam civilização, quando era apenas uma parte de sua servidão (TÁCITO, Agrícola, cap. 21). A despeito de exceções pontuais, como a recuperação de Lívio, na Europa do século XIV, e da de Tácito, nos Estados Unidos do século XVIII, foi apenas um determinado elemento do estilo dos historiadores romanos que acabou por se tornar relevante e continuou durante a Idade Média, e mesmo posteriormente: o uso da retórica. Para esses historiadores saudosos de uma antiga Roma que não mais existia, era fundamental convencer os cidadãos da possibilidade de melhoria das próprias ações e valores morais. Nesse sentido, seus textos de destacavam pelo uso de técnicas específicas que visavam con- vencer a modificar comportamentos. A partir do crescimento da influência cristã na sociedade romana (como veremos no próximo capítulo), o uso da retórica permaneceu como uma técnica própria dos trabalhos históricos, mas, nesse novo momento, direcionados à difusão do cristianismo. Historiografia e Teoria: Por que uma “teoria” para a história? Um ponto característico dos romanos no entendimento do passado é a sua forma complexa de explicar as mudanças. E por “complexa” não entenda “objetiva”. Na verdade, em alguns momentos, as causas dos eventos poderiam ser buscadas em ações humanas, enquanto em outros poderia haver impor- tantes ações divinas ou míticas. Tome-se, por exemplo, as seguintes explica- ções dadas por Plínio, o Velho (23-79), para o surgimento da tecnologia e de técnicas relacionadas à guerra: Beleferon inventou o ato de cavalgar cavalos, Peletrônio rédeas e selas e os Centauros [...] as táticas de cavalaria. A raça Frígia foi a primeira a atrelar dois cavalos a uma charrete, e foi Erictônio quem adicionou dois a mais. Durante a Guerra de Tróia Palamedes inventou a forma- ção militar, as senhas, os sinais para reconhecimento, e sentinelas. [...] Tréguas e tratados foram inventados por Licaão e Teseu, respectiva- mente (PLÍNIO, apud SHERWOOD, 1998, p. 542). – 25 – O surgimento da história Essa não era uma obra de história, a bem da verdade. Contudo, é inte- ressante notarmos como, dentro da cultura romana, explicações que consi- deraríamos fabulosas convivem sem constrangimentos com ações humanas. Várias características da produção histórica da atualidade diferenciam-se desse modelo criado por Plínio. A presença de definições explícitas, compre- ensão de diferentes temporalidades e utilização de conceitos rigorosos impe- dem que eventos históricos sejam atribuídos a, por exemplo, Centauros. Isso porque há uma fundamentação teórica que, atualmente, tem a função de sustentar as maneiras pelas quais se constrói a pesquisa em história. Os estudos históricos não precisariam de teoria – ou essa seria reduzida a um mínimo – se o ato de encontrar fatos históricos fosse semelhante ao de coletar besouros. Nesse caso, bastaria ir ao ambiente selvagem dos arquivos, colecionar o maior número possível de fatos e organizá-los cronologicamente. Pronto: teríamos a história. Pouca teoria necessária, talvez alguma metodologia. No entanto, a primeira complicação é que os fatos históricos não exis- tem por si mesmos. Não são um dado óbvio da realidade. Não estão prontos, congelados nos documentos, aguardando serem coletados. Essa fotografia é exem- plo de uma típica fonte pri- mária. Analisando-a, pode-se dizer, imediatamente, quais “fatos” estariam ali presentes? “As pessoas, representadas na imagem, estavam realmente ali, e isso é um fato”, você pode argumentar. Não há dúvida de que, pressupondo que essa imagem não tenha sido adulterada (e não há qualquer razão para supor isso), aquelas pessoas esti- veram reunidas e trata-se de um evento que realmente aconteceu. Um fato do passado, imutável, inalte- rável, não importa o que façam, digam, pensem ou desejem os historiadores. Figura 3 - Foto de 1922. Exemplo de fonte histórica. Fonte: Casa de Rui Barbosa. Teorias da História – 26 – Mas não é um fato histórico. Essa expressão – ou melhor, esse conceito – só será utilizado para definir aquelas informações que ajudem a solucionar questões propriamente históricas. Se nossa pesquisa for “Quais as relações políticas estabelecidas entre Brasil e Portugal no início do século XX? ”, o fato que nos interessará é o de que a imagem registra a visita de Antônio José Almeida, então Presidente de Portugal, a Rui Barbosa, em 1922. Outras pesquisas demandarão outras perguntas e, por consequência, gerarão novos fatos: “Qual o papel das mulheres nas discussões políticas do Brasil, no início do século XX? ”. Essa pergunta promove uma análise diferente da fotogra- fia, bem como gera novos fatos. Repare que, no espelho, aparecem refletidas a imagem de Maria Augusta Rui Barbosa (esposa de Rui Barbosa), junto com a de outras mulheres. Pode-se analisar esse detalhe sobre a participação feminina na política e sua relação com seus papéis sociais: usualmente não representadas, mas presentes e participantes. “Fato histórico”, portanto, não é um dado da natureza. Não existe pronto e acabado. A transformação de um fato do passado em fato histórico dependerá, sempre, das questões levantadas pela pesquisa e dos objetivos da historiadora e do historiador. Serão essas questões que direcionarão o olhar para as fontes e construirão os fatos históricos que participarão das análises. Definindo conceitos: FATO HISTÓRICO Todo dadoda realidade, encontrado em fontes primárias, utilizado para responder a determinada questão histórica. Até mesmo Heródoto e Tucídides nos servem de exemplos. Sabemos que as pessoas eram suas fontes primárias preferenciais, mas que perguntas faziam a elas? Como definiam o que perguntar e como perguntaram? De que maneira escolhiam as testemunhas? Como decidiam o tema sobre o qual perguntar? Como selecionavam o que era relevante e o que era irrelevante, das respostas obtidas? Eis que surge um novo elemento que demonstra a importância da abor- dagem teórica da história: o papel ativo da historiadora e do historiador na construção do conhecimento. Pois passará necessariamente por eles (nós) a decisão da escolha do tema, recorte temporal, definição da perspectiva, coleta – 27 – O surgimento da história e organização dos dados, redação e apresentação dos resultados. Sem defini- ções teóricas claras, os trabalhos históricos tornam-se, no mínimo, ingênuos e, muito comumente, terão suas conclusões comprometidas. Afinal, como definir, por exemplo, o que é uma “causa” em história? Que elementos teóricos e filosóficos sustentam a afirmação: “as punições impostas à Alemanha com o Tratado de Versalhes, após a Primeira Guerra Mundial, são uma das causas da Segunda Guerra”? Devemos ter uma concepção teórica bem definida de causalidade, para sustentar tais afirmações. Além disso, como podemos estabelecer o que é uma “explicação” em história? Como podemos dizer que algo está bem ou mal explicado? Para defi- nir essa ideia deve-se levar em consideração a concepção de causa. Podemos considerar um esclarecimento adequado como uma das razões para a queda de João Goulart, em 1964, a perda de sustentação política para seu governo? O avanço do pensamento anticomunista? A influência do conservadorismo católico? Todas essas causas em conjunto? E se a explicação tem de ser mul- ticausal – algo que é muito comum – como diferenciar as causas mais ou menos importantes? As estruturais das imediatas? Na linguagem cotidiana, “teoria” muitas vezes é utilizada como sinô- nimo de “hipótese”. Dentro da filosofia da ciência, não é esse, porém, o sentido dado a esse termo: “teoria” refere-se à utilização da racionalidade de modo a construir uma explicação coerente dos fenômenos observados. Evolu- cionismo, por exemplo, é uma teoria biológica, sistematizada originalmente por Darwin, que procura explicar a diversidade de espécies tanto existentes como já extintas. Teorias relacionam-se, portanto, ao uso da razão para a construção de modelos mais ou menos generalizantes para a explicação dos fatos observados. Em história, a ideia de teoria pode, em primeiro lugar, significar um modelo explicativo da realidade, seja em sua totalidade (como é pretensão do pensamento Marxista), seja para épocas ou eventos específicos (como a cons- trução de conceitos como “Feudalismo”, “Renascimento”, ou “Ditadura mili- tar”). Em segundo lugar, é função da teoria definir as formas racionais pelas quais se podem pensar as explicações históricas dentro de suas especificidades. Ou seja, como conceber as diferentes temporalidades dentro da problemática dos “tempos históricos”; conceituar e definir a ideia de “sujeito histórico”, Teorias da História – 28 – e como discutir a relação que existe entre as determinações de uma época e as vontades individuais. Além disso, é também papel da teoria fundamentar alguns temas que já abordamos rapidamente, como a questão da causa, a ideia de explicação histórica e os debates sobre a objetividade. Esse item objetiva lançar mais perguntas do que apresentar respostas. Afinal, é propósito desse livro promover a compreensão dos elementos que fazem parte da teoria da história em sua própria historicidade. Ou seja, em seu próprio processo de constituição, ao longo do tempo. É por isso que partimos das concepções históricas da Antiguidade até atingirmos, no último capítulo, as concepções contemporâneas (ou “pós-modernidade”) de teoria histórica. Nesse trajeto, discutiremos e apresentaremos as diferentes visões das ideias teóricas que fundamentam o conhecimento histórico. Da teoria à prática A palavra “história” não tinha o significado de uma disciplina específica quando Heródoto e Tucídides escreveram suas obras. Porém, na época de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) esse sentido já estava definido. Tanto assim que uma das mais famosas passagens relacionadas à teoria de história foi escrita por esse filósofo, em sua obra “Poética”. Em determinado trecho, Aris- tóteles compara a atividade do historiador – que seria a de descrever aquilo que aconteceu – com a do poeta – que escreveria sobre o que poderia ter acontecido. A conclusão do filósofo: “a poesia é algo mais filosófico e sério do que a história, pois refere aquela [a poesia] principalmente ao universal, e esta [a história], ao particular” (ARISTÓTELES, 1994, p.115). “Universal” diz respeito a pensar tudo o que poderia ter acontecido com Alcebíades (algo próprio da poesia), enquanto o “particular” refere-se apenas ao que efetiva- mente ocorreu com ele (raciocínio próprio da história). Em um livro de teoria, a primeira atividade prática será ela, também, teórica: você acredita que Aristóteles estava certo? 1. Em sua opinião, a poesia é mais filosófica do que a história? 2. Você acredita que a história lida apenas com o particular, o específico? Por quê? Por mais complexa que seja essa atividade, ela é importante. Ainda hoje, os historiadores discutem essa passagem de Aristóteles. O objetivo aqui é esti- – 29 – O surgimento da história mular o raciocínio sobre as características do conhecimento histórico. Espera- -se que, ao final do livro, você possa retornar a essa questão e verificar como o seu pensamento se modificou em relação aos significados e ao alcance do conhecimento produzido pela história. Síntese Neste capítulo foram apresentados alguns aspectos essenciais do surgi- mento da história na Grécia Antiga, além das características fundamentais da historiografia romana. Discutiu-se, ainda, como as concepções atuais da história diferenciam-se daquelas da Antiguidade e como o conhecimento teó- rico é importante para dar sustentação e validade ao conhecimento histórico produzido na atualidade. Atividades 1. O seguinte trecho está presente no capítulo LXXV, do Livro II, da obra “Histórias” de Heródoto. Leia-o com atenção. Há na Arábia, perto da cidade de Buto, um certo lugar para onde me dirigi, a fim de me informar sobre as serpentes aladas. Vi, logo à minha chegada, uma quantidade prodigiosa de ossos e de espinhas dessas ser- pentes (...). Dizem que as serpentes aladas voam da Arábia para o Egito assim que chega a Primavera. (HERÓDOTO, 1964, s/p). Considerando-se o trecho acima, é correto afirmar, sobre o método de investigação desenvolvido por Heródoto, em sua obra “Histórias”: a) Caracteriza-se pelo rigor metodológico, apreço à objetividade e à verdade, tanto que foi utilizado como modelo de pensador impar- cial pelos historiadores do século XIX. b) Traz evidências de que, antes do aumento da população humana, existiam animais que hoje são extintos, como as serpentes voadoras, então comuns no Egito. c) Heródoto trabalhava apenas com fontes históricas escritas, pois objetivava recuperar narrativas que pudessem ser utilizadas em sua obra. Teorias da História – 30 – d) Ainda que afirmasse buscar a verdade, Heródoto não demonstrava muito rigor na avaliação de suas fontes, reproduzindo como ver- dade afirmações obviamente falsas. e) Assim como fez Homero na Ilíada, a obra de Heródoto traz uma análise fabulosa de eventos históricos, e este caracterizou-se como um poeta importante na história grega. 2. São exemplos, respectivamente, de “fonte primária” e “fonte secundária”: a) Pinturas do século XVIIIe fotografias do século XIX. b) As obras de Heródoto e Tucídides. c) Livros didáticos de história e a carta de Pero Vaz de Caminha. d) Jornais e livros didáticos de história. e) Os conceitos de historiografia e de fato histórico. 3. Plutarco (46 d.C.-120d.C.) foi um escritor grego, famoso pela obra “Vidas Paralelas”, em que inaugurou o gênero histórico conhecido como “biografia”. Em seu livro, analisou a vida de um grande número de personalidades, procurando descobrir semelhanças e diferenças em relação a seus defeitos e virtudes. O trabalho de Plu- tarco é exemplo da variedade da historiografia grega antiga, da qual participaram outros pensadores, como Heródoto e Tucídides. Sobre a historiografia grega, é correto afirmar: a) Não possui uma homogeneidade, nem se caracteriza como uma escola histórica, visto que cada historiador grego pensou a história e a desenvolveu de uma forma pessoal. b) Iniciou-se com Salústio, que procurou no estudo do passado com- preender a sociedade de seu tempo e explicar a decadência nos modos de seus contemporâneos. c) Foi marcada pelo rigor objetivo, cuidado extremo com as fontes primárias e uma diversidade de análises geográficas e etnográficas, imitadas durante a Idade Média. – 31 – O surgimento da história d) Marcada pela retórica, não se preocupava com a verdade, mas com o estímulo à mudança de comportamento de seus leitores em dire- ção a uma vida mais virtuosa. e) Foi influenciada pelo cristianismo e acabou por desenvolver con- cepções históricas voltadas ao segundo retorno de Jesus, ao início do Apocalipse e ao fim da história. 4. Assim afirma o historiador Marc Bloch, a respeito do desenvolvi- mento da história: A palavra história é uma palavra antiquíssima: tão antiga que às vezes nos cansamos dela. [...] Mesmo permanecendo pacificamente fiel a seu glorioso nome helênico, nossa história não será absolutamente, por isso, aquela que escrevia Hecateu de Mileto; assim como a física de lord Kelvin ou de Langevin não é a de Aristóteles. Qual é ela, então? (BLOCH, 2001, p. 45). Essa reflexão de Marc Bloch procura destacar: a) A permanência, ainda nos dias de hoje, dos mesmos princípios rela- tivos a fontes históricas, o sentido de verdade e a ideia de objetivi- dade, que existia entre os gregos. b) A mudança promovida por Homero de Halicarnasso, ao construir um modelo de ciência histórica que permanece inalterado até os dias de hoje. c) O fato de que, sob o termo “história”, definem-se práticas que, ao longo do tempo, foram bastante diferentes entre si e mudaram conforme as épocas. d) A ideia construída por Tucídides da inviabilidade dos conceitos desenvolvidos por Hecateu de Mileto e Heródoto, em torno da busca pela objetividade em história. e) A noção de que o conhecimento histórico não muda, pois estuda o que está no passado, que por razões óbvias, não sofre alterações. 2 Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico A ideia de tempo é fundamental para os estudos históricos. Em primeiro lugar, pelo fato de que os eventos e processos estudados estão localizados no passado e também porque a precisão nas datações é uma primeira condição para uma adequada atividade histórica. Mas, a relação entre a história e o tempo vai além: é pela discussão sobre o diálogo entre presente e passado que devem ser compreendidos os objetos de pesquisa estudados por historiadoras e historiadores. Nesse capítulo estudaremos, inicialmente, as condições pelas quais se forma uma múltipla e específica forma de se escrever história durante a Idade Média. Para isso, procuraremos analisar como se deu a interpretação cristã da história – muito influente no pensamento medieval. A seguir, buscaremos compreender como as mudanças sociais do Renascimento, influenciaram nas concepções a respeito da história e de tempo histórico. Teorias da História – 34 – 2.1 Pode-se falar em uma historiografia medieval? Histórias são ações verdadeiras que realmente aconteceram, narra- ções plausíveis são aquelas que, mesmo que não tenham acontecido, poderiam de toda forma ter acontecido, e fábulas são coisas que não aconteceram e não podem acontecer, porque são contrárias à natureza (ISIDORO DE SEVILHA, 2006, p. 67). Essa diferenciação entre historiae, argumenta e fabulae foram escritas pelo estudioso, e arcebispo da cidade de Sevilha, Isidoro (560-630). Não são muitos os textos medievais que discutem, de um ponto de vista teórico, o significado da ideia de história para os europeus do período; além disso, a obra de Isidoro foi muito consultada e referenciada ao longo dos séculos: essas são duas pri- meiras razões que justificam o interesse pela citação. Mas há mais que se pode extrair do conceito de história, para a Idade Média, a partir desse trecho. A localização é também significativa: essa citação aparece sob o item “Gramática”, que é o Livro I de sua obra “Etimologias”, logo após a discussão de pronomes, substantivos, verbos, ortografia. Mas, por que gramática? O próprio Isidoro justifica: “porque tudo que é digno de ser rememorado está comprometido com a escrita” (ISIDORO DE SEVILHA, 2006, p. 67). A primeira conclusão a respeito do estatuto da história no período medieval, portanto, é que não era não era um ramo de estudos autônomo – ou seja, dependia de outras áreas do conhecimento –, e se qualificava mais como uma “narrativa”, com peculiaridades próprias. A maior parte dos trabalhos que poderíamos denominar de históricos, durante o período medieval, não explicava, ou o fazia muito brevemente, seus pressupostos teóricos. Isso é consequência de sua própria concepção de história: os textos tinham um profundo fundamento na retórica1, e não era raro que a narrativa visasse mais dar lições morais do que, realmente, regis- trar eventos do passado (daí, aliás, a presença constante de mitos e lendas nos textos “históricos”); era frequente a ausência de fontes que embasas- sem as afirmações, sendo comum considerar a Bíblia autoridade histórica; a organização cronológica não era prioridade, e eventos de épocas diferentes 1 O termo retórica refere-se à arte dos discursos, em sua capacidade de persuadir os ouvintes. Ganhou importância já na Antiga Grécia e, desde então, foi considerada fundamen- tal como parte da educação até aproximadamente o século XIX. – 35 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico poderiam aparecer próximos uns aos outros em uma única narrativa. Como afirmou a historiadora Gabrielle Spiegel, “a historiografia medieval, de uma perspectiva moderna, é inautêntica, anticientífica, desconfiável, a-histórica, ocasionalmente irracional, frequentemente iletrada, e, em seu conjunto, não profissional” (SPIEGEL, 2002, p. 78). Além disso, e justamente por não se constituir em um gênero claramente definido, textos que poderíamos denominar históricos foram escritos não por especialistas, mas por pessoas de diferentes formações, principalmente membros da Igreja Católica (até pelo menos o século XII, eram em sua maioria monges), mas também oficiais de governo, ou estudiosos. Sem estudos específicos para a história, e sem um reconhecimento de seu valor enquanto campo de estudos, tais obras acabaram sendo marcadas, sobretudo, por sua baixa qualidade. Não se pode esquecer, por fim, que coexistiam diferentes conceitos para “história” no período, variando de uma forma de conhecimento, passando por um gênero literário, alcançando o próprio objeto sobre o qual se estudava (DELIYANNIS, 2003). Na verdade, muitas das pessoas que definimos, nesse capítulo, como exemplos de “historiadores medievais” não se viam como tais, mas como compiladores, copistas, redatores, meros responsáveis por criar resumos de trabalhos escritos por outros (SPIEGEL, 2002). Por isso, há que se ter cuidado ao falar de uma “históriano período medieval” e, mesmo, em “historiador” medieval, por conta da extensão temporal do período, das dife- renças culturais regionais, e pelo simples fato de que existiam múltiplas defi- nições para a ideia de “história” na Idade Média. O que se podem apreender são diferentes temas, tópicos específicos, e abordagens que lhes são próprias, sendo a mais importante, sem dúvida, a interpretação cristã para a história. Saiba mais Dá-se o nome de Idade Média a um longo período da história europeia que se estende, aproximadamente, do século V ao século XV. Trata- -se de uma denominação criada na Renascença sob a crença de que esse havia sido um período no qual nada de historicamente importante havia ocorrido. Tratava-se, porém, de uma incompreensão: sabe-se, atualmente, que esse período do medievo (refere-se ao “medieval”, ou seja, à Idade Média) teve sua própria dinâmica, com movimentos his- tóricos – nas artes, crenças, política, economia – bastante importantes Teorias da História – 36 – 2.1.1 O pensamento historiográfico cristão no medievo O principal elemento unificador da historiografia medieval foi o pen- samento cristão. O cristianismo – bem como o judaísmo, do qual deriva – é uma religião histórica, tanto no sentido de que seus livros sagrados são basea- dos em narrativas de acontecimentos, quanto na crença de que Deus atuaria, de forma decisiva e constante, nos acontecimentos do mundo. Talvez por isso a história e a religiosidade tenham se aproximado tanto, a ponto de ser pos- sível afirmar que o mais característico dos modelos historiográficos medievais está fundamentado na religião e confunde-se com a hagiografia2. No que se poderia configurar como a passagem do mundo romano ao cristão, os textos históricos desempenharam um duplo e importante papel: procuraram estabelecer uma continuidade da cristandade com a herança romana e legitimar, por meio dessa ligação com o passado, o pensamento cris- tão e sua gradual ascensão e importância sociais. Pensadores como Eusébio de Cesareia, Santo Agostinho e Paulo Orósio marcaram essa transformação, digamos, historiográfica, entre o mundo antigo e o medieval. Figura 1 - Alguns pensadores cristãos sobre a história. Fonte: Elaborado pelo autor. Escrita em torno de 325, a “História Eclesiástica”, de Eusébio de Cesa- reia (265?-340?), marcou a primeira abordagem de construção de uma cro- nologia cristã, procurando criar uma retórica que demonstrasse não apenas a validade de sua religião, mas também sua superioridade moral sobre as tradi- cionais crenças politeístas dos romanos. Narrava a vida de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas, também, buscou dar memória a mártires, pensadores cristãos, bispos, descrevendo o crescente desenvolvimento do cristianismo, passando pela perseguição dentro da sociedade romana, até o que seria a vitória dessa 2 Textos de caráter religioso, voltados especialmente à narrativa das vidas de santos. – 37 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico religião. Eusébio foi um dos conselheiros do imperador romano Constantino (272-337), que afirmou ter se convertido ao cristianismo e, mais do que isso, atuou para garantir seu desenvolvimento na sociedade romana. Marcava-se, portanto, uma ligação íntima entre o mundo romano e o pensamento cristão. Santo Agostinho, ou Agostinho de Hipona (354-430), é ainda hoje consi- derado um dos mais importantes teólogos do cristianismo. Nascido em Tagaste, região do norte da África em que hoje é a Argélia, Agostinho viveu, inicial- mente, nas fronteiras do Império Romano. Indo estudar em Cartago, conheceu os principais pensadores romanos, e chegou a morar na cidade de Roma, onde ensinou retórica. Sua grande obra filosófica e teológica exerce profunda influ- ência até os dias de hoje (tendo sido fundamental para a Idade Média), da qual se destacam “Confissões” – na qual narra, com detalhes, seu lento processo de conversão ao cristianismo – e, especialmente, a “A Cidade de Deus” – obra que procurou construir uma interpretação religiosa para a história. “A Cidade de Deus” foi escrita como uma reposta teológica contra as acusações de que Roma fora saqueada pelos visigodos, em 410, como uma vingança pelo abandono dos deuses tradicionais romanos em favor do cristia- nismo. O argumento de Agostinho parte da explicação de que existiriam, no universo, duas forças cósmicas, a cidade terrena e a Cidade de Deus, sendo que essa última não existiria no mundo secular. Ao mesmo tempo, não exis- tia e não poderia existir nenhuma cidade na terra, nem mesmo Roma, que tivesse, em sua perfeição, o que existiria na Cidade de Deus. O mundo, até aquele momento, só havia conhecido uma mistura das duas cidades. Dois amores deram origem a duas cidades: o amor a si mesmo até o desprezo de Deus, a terrena; e o amor de Deus até o menosprezo de si, a celestial. A primeira se glorifica em si mesma; a segunda se glorifica no Senhor. A primeira está dominada pela ambição do domínio de seus príncipes ou das nações que submetem; a segunda utiliza mutu- amente a caridade dos superiores mandando e os súditos obedecendo (CIDADE DE DEUS, XIV, 28). Ao apresentar os eventos históricos enquanto o resultado dos desígnios de Deus, Agostinho construiu uma determinada teoria da história baseada em princípios cristãos e que, ao mesmo tempo, inseria a queda de Roma dentro de um projeto maior, divino. Os eventos que ocorriam no mundo deveriam ser entendidos como passos da cidade terrena em seu caminho de aproximação com a Cidade de Deus, em um lento e difícil processo de reden- Teorias da História – 38 – ção do homem, em sua busca para reconquistar a graça de Deus. E é por isso que nenhuma cidade secular poderia ter estabilidade eterna. Em não sendo o ponto final, todas as cidades terrenas teriam uma determinada tarefa a cum- prir e, realizado o seu papel, desapareceriam. Assim, para Agostinho, a função de guiar a cidade terrestre na direção correta seria da Igreja, a própria antecipação, no mundo, da cidade celeste. É por isso que, dentro de uma concepção histórica que irá durar pelo menos até o século XII, “história” confunde-se com a própria história da Igreja e de suas ações em direção ao progresso da cristianização. Uma obra de história de fundo religioso, bastante difundida no medievo, foi a de Paulo Orósio (380?-420?), teólogo que viveu na região em que atual- mente é a Espanha. A sua obra “Sete livros de história contra os pagãos3”, foi escrita como se fosse continuação do texto de Agostinho, embora com reda- ção mais simples e mais objetiva, e demonstrar certo otimismo em relação aos problemas que pareciam existir em sua época. Para Orósio, Roma sofrera durante séculos, e teria sido apenas com a ascensão do pensamento cristão que a sociedade se aperfeiçoara. Uma originalidade própria desse pensamento histórico cristão foi sua busca pela universalidade. Afinal, ainda que produzidas em local e momentos específicos, e ligando-se fortemente a uma presença romana, o pensamento cristão via a ação de Deus não apenas para determinados povos, mas para todo o mundo. Nesse sentido – e durante toda a Idade Média – pensam-se as ações divinas nos eventos terrestres como partes de uma determinada história que pretendia ser universal. Historiografia e Teoria: O pensamento cristão e a direção do tempo Descobrir as formas pelas quais uma sociedade organiza o próprio tempo – seus calendários, os termos que utiliza, os deuses que controlam esse tempo, os equipamentos que o medem – permite-nos entender como ela 3 “Pagãs” foi o termo tomado pelos primeiros cristãos da Europa para denominar as religiões que não eram o próprio cristianismo. Daí o termo “pagãos” a seus devotos e “paganis- mo” como sinônimo de sua religião. – 39 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico compreende o passado,qual a importância que dá aos eventos que já ocorre- ram na determinação do presente e do futuro e, em resumo, informa de que maneira constrói sua própria historicidade. Tome-se, por exemplo, a imagem asteca intitulada “As Cinco Regiões do Mundo”, criada no século XV. Trata- -se da representação de determinada história cósmica, tendo cada uma das eras passadas seu próprio deus que aparece às margens, estando o presente, a quinta era, ao centro. Os dias, indicados por pontos, caminham em dire- ção ao centro, revelando como o passado caminha em direção ao presente (CORFIELD, 2007, p. 2). Tal representação visual, mais do que uma simples alegoria, procura ordenar o passado, estruturar o conhecimento a respeito do mundo e do universo, e encontrar nele um sentido e uma racionalidade. Figura 2 - Codex Fejérváry. Repare que o norte está à esquerda, e o leste, acima. Fonte: Museus Nacionais, Liverpool. O mesmo acontece com o cristianismo e, particularmente, com os escritores que procuraram compreender a lógica dos eventos passados, den- tro de uma perspectiva religiosa que foi, aliás, profundamente influente no pensamento medieval. O que os textos históricos cristãos, dos autores do início do medievo, permitem-nos compreender é a criação de uma tempo- ralidade com duas características fundamentais: a elaboração de uma histó- Teorias da História – 40 – ria linear e teleológica. Essa organização temporal assemelha-se àquela dos astecas em um sentido fundamental: também era interesse dos pensadores cristãos organizar todo o passado humano, literalmente toda a história do mundo, em uma busca por ordenar e desvendar a realidade. Possuía algo de controle e outro tanto de conhecimento: nesse caso, desvendar qual seria lógica de Deus para o mundo. Vamos à primeira característica dessa historiografia cristã: sua lineari- dade. Isso pode ser afirmado porque havia um sentido bastante claro para o qual os eventos deveriam caminhar: da criação do mundo caminhava-se ao Julgamento Final, sendo a vinda de Jesus não apenas um marco em si, mas um sinal para que as pessoas se aproximassem do reino celeste. O caráter linear, com eventos fixos, e uma conclusão já profetizada, construíram um modelo da temporalidade cristã com começo, meio, e fim. Essa linearidade é facilmente observada nas propostas de organização temporal, apresentadas pelos escritores medievais, fortemente influencia- das pelos textos bíblicos. Embora em “A Cidade de Deus”, Agostinho não tenha criado qualquer periodização histórica, em “De catechizandis rudibus” (“Sobre a catequização dos não-instruídos”), apresentou uma divisão da his- tória do mundo em seis eras. A última – a sexta – teria começado exatamente com a vinda de Jesus, antecipando o último momento da história, a institui- ção do reino de Deus na Terra. Outra cronologia religiosa bastante influente foi a que se baseou nas pro- fecias do livro de Daniel, do Antigo Testamento. Nele, conta-se que Nabu- codonosor, rei da Babilônia, havia sonhado com uma estátua com cabeça de ouro, peito e braços prateados, barrigas e coxas de bronze, sustentado por pernas de ferro e pés de ferro e barro. Para Daniel, esse sonho seria uma pro- fecia dos quatro reinos que existiriam no mundo (cada um simbolizado por um metal) até a chegada do último, o de Deus, que seria eterno. Esse foi o modelo preferido por vários pensadores medievais, como Orósio. A segunda característica da temporalidade cristã é a de ser teleológica. A palavra “teleologia” significa meta, objetivo último, fim. A história cristã seria, portanto, teleológica porque era vista como tendo um propósito: tratava-se de uma narrativa de como as pessoas seriam levadas a se aproximar de Deus e, portanto, da salvação, que inevitavelmente deveria ocorrer no fim dos tempos. – 41 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico Definindo conceitos: TELEOLOGISMO Trata-se de um erro teórico em história, em que se concebem os eventos do passado como se estivessem caminhando, inevitavel- mente, para um determinado propósito, ou objetivo último. Um outro aspecto da organização temporal histórica que o Ocidente deve à cristandade é, ainda mais obviamente, a contagem do tempo que adota o nascimento de Jesus como marco temporal. Estamos tão acostumados a mencionar datas como a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depois de Cristo), que podemos esquecer que há por detrás dessa organização uma concepção religiosa, e determinada ideia a respeito da história. Tal periodização é devida a outro escritor-historiador do medievo: Beda, o Venerável. 2.2 Beda e os historiadores bárbaros A importância da relação entre religião e história torna-se bastante evi- dente com a adoção, por parte de Beda, o Venerável (672-735), da data de nascimento de Jesus como forma de contagem dos anos. Embora não tenha sido sua criação – e sim de Dionísio, um monge nascido nas últimas décadas do século V –, foi pelo sucesso da obra histórica de Beda que esse sistema tornou-se, gradualmente, conhecido. Beda faz parte de um grupo de pensadores que, diferentemente de seus antecessores, buscavam compreender a historicidade da região e do povo onde moravam. Procuraram fazer uma história local e, pela perspectiva particular e original, acabaram sendo associados à produção de uma “história bárbara”. Os invasores bárbaros do império Romano moveram-se de forma triunfante ao interior da historiografia da mesma forma como fun- daram seus estados-sucessores no antigo território imperial. Eles pro- duziram quatro grandes historiadores: Jordanes (falecido em 554?) para os Godos; Gregório, bispo de Tours (falecido em 593/4), para os Francos; Beda (falecido em 735) para os Ingleses; e Paulo, o Diácono (falecido em 799?) para os Lombardos (SMALLEY, 1974, p. 50). Ainda que sejam responsáveis por certas inovações, não se pode esque- cer o quanto possuíam de continuidade com determinado pensamento Teorias da História – 42 – antigo, especialmente cristão: tanto a Bíblia, quanto as obras de Eusébio, ou Orósio, eram invocadas constantemente como principais referências (GOFFART, 1988, p.8). Figura 3 - Linha do tempo dos chamados historiadores bárbaros do medievo. Não há dados suficientes sobre Jordanes. Fonte: Elaborado pelo autor. Beda foi um monge praticamente durante toda a sua vida, sendo “A his- tória eclesiástica do povo inglês” seu trabalho mais conhecido. Ainda que narre fatos políticos, ocorridos desde a época de Júlio César, sobre a região onde hoje se situa a Inglaterra, seu texto centra-se na construção da comunidade cristã e no desenvolvimento da Igreja Católica local. Como outros historiadores medie- vais, objetivava compreender de que maneira a específica cristandade inglesa compartilhava da graça divina como um todo (HIGHAM, 2006, p.54). Ainda em concordância com outros historiadores da época, sua intenção era a de buscar, dentro dos eventos passados, determinado padrão de com- portamentos humanos que permitisse compreender as maneiras de aproximar homens e mulheres de Deus. É por isso que, ao mesmo tempo em que narra o desenvolvimento político local, dentro de uma cronologia coerente, descreve a vida de santos, apresenta fatos maravilhosos, estabelece debates teológicos, discute aspectos morais. Foi a difusão do sistema de datação que utilizava o nascimento de Jesus como marco referencial, a sua mais duradoura contribuição aos estudos his- tóricos, e à cultura ocidental, de uma maneira mais ampla. A popularização desse sistema exigiu, porém, bastante tempo. Seu uso começou a se difun- dir de forma mais intensa com a sua adoção por Carlos Magno (742?-814), porém nem mesmo a Igreja Católica não o de forma sistemática antes do século XI. Sua difusão entre as regiões da Europa demandou séculos; Portugal adotou o sistema no século XV, e a Rússia, no XVIII.– 43 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico 2.3 A história e sociedade em mudança no medievo A ausência de uma suposta “cientificidade” da historiografia medieval, como a importância dada às interpretações religiosas, e o desapego à compro- vação factual, poderia ser interpretada como uma despreocupação dos medie- vos em relação ao passado. Mas, se de fato a história não era uma disciplina em si, o passado era, ao mesmo tempo, algo fundamental para seu cotidiano, central à compreensão do presente, e fonte de autoridade do que seria consi- derado certo ou errado, válido ou inválido, justo ou injusto. Estavam no passado as referências que manteriam inalteradas as regras definidas pelo costume. Em uma sociedade como a europeia medieval, a mudança era vista como ameaça à estabilidade e à continuidade, daí o cons- tante contato com o passado como forma de garantir que o presente se manti- vesse correto. Tal concepção relacionava-se com a ideia da intervenção divina na história: entender o passado era entender os caminhos definidos por Deus aos povos. Assim, a existência do presente deveria ser, de alguma forma, um sinal das intenções divinas. Sobre essa concepção própria do pensamento medieval, Marc Bloch assinala: Aos olhos de todas as pessoas capazes de reflexão, o mundo sensível não era mais do que uma espécie de máscara atrás da qual se passa- vam todas as coisas verdadeiramente importantes, uma linguagem, também encarregada de exprimir, por sinais, uma realidade mais pro- funda. Tal como a aparência de um tecido, em si, pouco interesse tem, desta atitude resultava que a observação era geralmente descuidada em favor da interpretação (BLOCH, 1987, p. 106). A preocupação com o passado, mesclada à influência religiosa e à busca por significados sagrados na realidade, limitava – também dentro de um ponto de vista historiográfico – a análise e busca pelas causas dos eventos, que eram vistos como significativos em si mesmos. É por isso que um monge beneditino inglês afirmava, ainda no século XII, que “a pedido dos meus companheiros, escrevo uma simples história onde relato os fatos ano a ano. (...) Não posso esclarecer a vontade divina pela qual tudo acontece. Não quero divulgar as causas das coisas” (apud BOURDÉ, 1990, p. 16). E é também por isso que a principal forma de se representar grafica- mente as mudanças históricas era por meio da utilização de tábuas de datas. Teorias da História – 44 – As cronologias não eram representadas em linhas do tempo, tão comuns nos dias de hoje, mas em quadros, com os locais ocupando o eixo horizontal, os anos o eixo vertical e, na interseção, os eventos considerados notáveis. A ideia de utilizar a linha do tempo para indicar determinadas mudanças históricas está ligada à ideia de causalidade: quando os eventos são represen- tados em uma linha, presume-se determinado sentido, porque se sucedem, sendo o anterior antecipando e muitas vezes causando, o posterior. Mas esse modelo era ignorado no medievo: como as causas não eram, usualmente, buscadas, e considerando que os eventos eram compreendidos neles mesmos, não se pensava em criar qualquer indicação gráfica que os unisse como se fossem pontos em uma linha reta. Historiografia e Teoria: As representações do passado Segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012), uma das características da contemporaneidade é o fato de que as pessoas não mantêm mais uma relação com o passado, porque “quase todos os jovens de hoje cres- cem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem” (HOBSBAWM, 1995, p. 13). Ou seja: viveríamos em algo como um eterno presente no qual o passado – embora saibamos que exista, e inclusive o estudemos – pouco influenciaria nas decisões das pessoas. Pode-se ou não concordar com a opinião de Hobs- bawm, ou mesmo de outros historiadores que pensam dessa forma. Mas há algo fundamental que essa discussão nos traz: a noção de que cada sociedade, em cada momento, constrói uma relação específica com o próprio passado. Dizendo de outra maneira: é variável, histórica e culturalmente, a forma como o passado é relembrado, invocado, e utilizado no presente. Percebe-se, contrastando as concepções medievais e as contemporâneas, como esses dois momentos históricos possuem, cada um, sua própria relação presente-passado. Em cada um desses momentos, as ações dos antepassados, os costumes ditos tradicionais, os valores considerados atemporais, podem prescrever ações, ou serem considerados irrelevantes. Porém, e ao mesmo tempo, estas relações presente-passado podem ser modificar quando a própria sociedade sofre transformações. – 45 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico De forma gradual, mudanças socais na Europa medieval a partir do século XII acabaram por consolidar a importância política de determinadas famílias que se tornaram aristocráticas. E isso estava relacionado à compre- ensão de passado, de história e causalidade. O apelo à antiguidade tornou-se, nesse momento, uma das formas pelas quais se legitimavam linhagens e, com isso, a manutenção dos nomes das famílias, e a preservação de direitos e pro- priedades. Nesse novo contexto, tornou-se importante a pesquisa e a escrita de genealogias, pois se fazia necessário demonstrar, e reforçar, a existência de antepassados que garantissem a nobreza. Essa nova ideia de genealogia influenciou a concepção de causalidade na relação passado-presente. Afinal, para que fosse possível legitimar o direito familiar de um indivíduo, fazia-se necessário estabelecer relações diretas com os pais, avós, bisavós. Nas genealogias, não se pode considerar os eventos históricos como encerrados neles mesmos: uma pessoa sempre será gerada (ou, pode-se dizer, “causada”) por aqueles que vieram antes; e estas mesmas terão antepassados e, assim, sucessivamente. Desta maneira, as árvores gene- alógicas se tornaram cada vez mais comuns enquanto representações gráficas de mudança temporal na Idade Média, justamente para indicar uma ligação direta de causa-efeito, entre certos sujeitos e seus antepassados. A ampliação do uso das árvores genealógicas – ainda hoje, aliás, bastante comuns – acompanha uma mudança da concepção de história: se os eventos do passado são considerados isolados neles mesmos, as tábuas cronológicas bastavam; para essa concepção, em que é preciso garantir que se é fruto, resul- tado, ou consequência de certos antepassados, há a necessidade da represen- tação de continuidade. E essa continuidade é representada pelas linhas que unem os progenitores aos filhos. Figura 4 - Representação visual de cronologia em tabela, seguindo o modelo de Eusébio; e genealogia dos reis ingleses. Fonte: Universidade de St. Andrews, séc. XVI; Biblioteca Britânica, séc. XIV. Teorias da História – 46 – Essas mudanças fizeram parte de processos mais amplos da sociedade europeia após o século X, em que os modelos históricos, como um todo, começaram a se modificar. Ainda que a religiosidade não tenha sido abando- nada, foram cada vez mais comuns as narrativas que objetivavam legitimar o poder de reis e príncipes, por meio do apelo ao passado. 2.4 O Renascimento europeu e a ideia de tempo histórico Embora o modelo de interpretação histórica fundado na religião não suma ao final do medievo, surgiu no Renascimento – uma denominação que, aliás, já denuncia sua relação com o passado – uma forma bastante dife- rente, mais humanista4, de relação com a história, a partir da recuperação de saberes e valores antigos. Parte da identidade europeia foi construída, nesse momento, por meio de um diálogo com a Antiguidade. Por isso, os estudos históricos passaram a ser valorizados devido à importância do conhecimento preciso do passado, a partir especialmente dos clássicosgregos e romanos, para o entendimento do presente. Saiba mais É bastante difícil definir, com precisão, o período e as características que definiriam o que se chama “Renascimento” na Europa. Em pri- meiro lugar, o nome: ainda que os europeus do período utilizassem eventualmente a expressão “renascença”, essa ficou mais conhecida apenas no século XIX, pelos trabalhos do historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897). Segundo: o período. Historiadores na atualidade localizam o Renascimento entre os séculos XIV e XVII, embora deva ficar claro que formas antigas de pensar a sociedade ainda permaneciam na Europa. Terceiro, as características: além da recuperação de textos, ideias, valores, estética, de parte da Antigui- dade, o humanismo ficou marcado como ponto comum de várias ideias renascentistas. Deve-se ter em mente, porém, que diferentes 4 O humanismo, na Renascença, referia-se à valorização da racionalidade e da intelec- tualidade humanas para a compreensão da realidade. – 47 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico locais e períodos tiveram características, detalhes, e aprofundamentos específicos dos ideais humanistas. O Renascimento, como um todo, não foi um movimento uniforme. Tradicionalmente, o Renascimento é visto, dentro do ponto de vista da historiografia, como um período de nascimento (ou ressurgimento) de certa consciência histórica. O aumento da importância dada à Antiguidade, e o humanismo como princípio para compreensão da realidade, características próprias do movimento, ajudaram a desenvolver um maior cuidado com as fontes, uma atenção à precisão cronológica, uma busca por causas humanas, e não divinas, de eventos. Houve, inclusive, discussões sobre a necessidade da objetividade para o estudo da história, de modo que fosse possível construir um conhecimento efetivamente válido. O primeiro nome que deve ser destacado na construção desse sentido histórico não é, porém, de um historiador, mas de um poeta florentino: Petrarca (1304-1374). Credita-se a ele a redescoberta da Antiguidade euro- peia, especialmente romana, como um período áureo das artes e do conheci- mento, que poderia e deveria ser resgatado. A novidade de Petrarca estava em sua sensibilidade para com o passado, e na construção de uma autoidentidade que se relacionava com o conhecimento dos valores e da grandeza dos antigos romanos: “O que é história, senão o louvor a Roma?” (apud KELLEY, 1991, p. 131), afirmou. Tratava-se, em seu caso, de uma relação mais emotiva do que racional: “Buscando esquecer de minha própria época, constantemente luto para me colocar, em espírito, em outras eras, e consequentemente eu me deliciei com a história” (apud SPIEGEL, 2002, p. 99). Mas Petrarca não via o seu próprio presente como resultado de um processo evolutivo linear, e sim como um salto: partindo da glória da Antiguidade, teria se seguido uma “Idade das Trevas” (essa denominação, aliás, foi inspirada em Petrarca, que descreveu a “escuridão” cultural que teria sido a Idade Média), até alcançar a recuperação do valor dos antigos em seu próprio tempo. Teorias da História – 48 – Figura 5 - Linha do tempo com alguns pensadores renascentistas da história. Fonte: Elaborado pelo autor. O pensamento de Petrarca, a recuperação de pensadores da Antiguidade, e o desenvolvimento de novas concepções humanistas fizeram com que a his- tória ganhasse um novo estatuto, sendo valorizada enquanto disciplina. Não se renegava a religiosidade, mas recuperava-se a concepção de que o passado poderia trazer explicações a problemas modernos, desde que fossem busca- das suas causas humanas. E, particularmente nas cidades italianas, era uma maneira de compreender as próprias origens, e o caminho tomado durante seu desenvolvimento. É isso que permitiu o aparecimento de situações como a de Pietro Bembo (147-1547) que chegou a conquistar o cargo de historió- grafo oficial de sua cidade, Veneza. Originalmente copiando o modelo retórico dos historiadores romanos, os renascentistas gradualmente passaram a construir, porém, suas próprias formas de apresentação textual e, principalmente, de pesquisa. E é dentro desse interesse renovado que surgiram discussões sobre a verdade e a história, dúvidas sobre se o que produziam era arte ou ciência, além de aprofundaram técnicas para determinar a validade de um documento. Em meados do século XVI, já se possuía uma ideia bem definida da importância e das formas de identificação de uma fonte original. Nesse aspecto, os antiquaristas desempenharam um papel essencial: tratavam-se de colecionadores eruditos, que construíram coleções significati- vas de documentos e objetos do passado. Sem existir, à época, metodologias precisas de datação ou de identificação de origem dos objetos – os museus, como os conhecemos, surgirão apenas no final do século XVIII – foram esses antiquaristas os primeiros a desenvolver práticas, compartilhar dados e infor- mações, que permitiriam a avaliação da veracidade e contexto das fontes, essenciais ao desenvolvimento da história. – 49 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico Novos métodos e o reconhecimento do passado Um dos personagens mais significativos dessa mudança de comportamento em relação à história foi Lorenzo Valla (1407?-1457), nascido em Roma, e que se especializou em retórica e em linguística, além de desenvolver técnicas próprias para analisar a validade dos documentos. Utilizando de forma intensa os arquivos da Biblioteca do Vaticano, Valla tornou-se famoso ao demonstrar que o documento chamado “Doação de Constantino” era forjado. A Doação afirmava que o Impe- rador Constantino teria transferido ao Papa a autoridade sobre Roma. Foi utilizado, especialmente no século XIII, como uma forma de legitimar a autoridade do Papado, ligando-a direta- mente aos imperadores romanos. Valla descobriu que esse documento fora forjado (provavel- mente no século VIII). Duas características dessa descoberta importam para entendermos as novas concepções renascen- tistas sobre a história. Em primeiro lugar, Valla comprovou a falsidade ao demonstrar que o latim utilizado no documento não existia à época de Constantino; ou seja, havia a compre- ensão da importância do método para verificar a veracidade das informações sobre o passado. E, em segundo lugar, Valla demonstrou consciência histórica ao perceber que a língua, e a cultura de uma forma geral, modificavam-se no tempo. Outros pensadores contribuíram com discussões metodológi- cas importantes. O napolitano Francesco Guicciardini (1483- 1540) preocupou-se em diferenciar documentos falsos dos verdadeiros, além de debater temas como a verdade histórica, e a descoberta de leis próprias à história. O francês Jean Bodin (1530-1596), inconformado com as contradições exis- tentes nos textos históricos de seu tempo, discutiu em seu “Método para o simples conhecimento da história” formas de interpretação de documentos históricos. Teorias da História – 50 – Historiografia e Teoria: O tempo histórico A história é mais do que ape- nas o “conhecimento das ações de homens do passado” (RICOEUR, 1994, p. 139). É um conheci- mento que tem como preocupa- ção fundamental compreender como ocorrem as mudanças nos indivíduos enquanto seres sociais, ou de suas próprias instituições e sociedades. Trata-se, portanto, de uma forma específica de saber que se dá no tempo, ou seja, na con- traposição entre ao menos duas temporalidades. E, mais propria- mente, no diálogo entre o pre- sente e o passado. A relação que a história mantém com a ideia de “tempo” é, portanto, essencial. Não há dúvida que localizar adequada- mente os eventos em datas precisas é uma condição básica do trabalho em história. Como afirmou o historiador britânico Moses Finley (1912-1986), as“datas e um esquema coerente de datação são tão essenciais para a história quanto a medição exata é para a física” (FINLEY, 1965, p. 285). Mas o que se pode denominar de “tempo histórico” relaciona-se a mais do que isso. A definição de sua ideia parte do pressuposto de que, em cada sociedade do passado, os indivíduos se organizavam social, política, econômica, e cultural- mente de maneira própria e específica. Observe, por exemplo, como Petrarca finaliza sua carta que, em sua ima- ginação, remeteria ao historiador romano Lívio: Adeus para sempre, historiador inigualável! Escrita na terra dos viven- tes, naquela parte da Itália e naquela cidade na qual eu estou agora Figura 6 - Usualmente, não é possível perceber as pequenas mudanças em nossos dias que, acumuladas após certo período, resultarão em mudanças significativas. Assim como cada tom de cinza é quase idêntico aos que o cercam, é muito comum que as pessoas, em seu cotidiano não percebam que estão sujeitas às mudanças. Apenas pela contraposição de dois momentos diferentes é possível identificá-las. O papel da história é entender as diferenças entre esses dois momentos, e as razões que as motivaram. É bastante comum que o próprio presente do historiador seja o “tempo 2”, contra o qual o passado é contrastado. Fonte: elaborado pelo autor. – 51 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico vivendo e onde você um dia nasceu e foi enterrado, no vestíbulo do Templo da Virgem Justina, e na visão de seu próprio túmulo; no vigé- simo segundo de Fevereiro, no ano mil trezentos e cinquenta de Seu nascimento, que você deve ter visto, ou de cujo nascimento você teria ouvido, tivesse você vivido um pouco mais (PETRARCA, apud KEL- LEY, 1991, p. 225). Exprimem-se aqui noções que nos ajudarão a compreender o sentido do “tempo histórico”: a consciência de Petrarca de que o ano de 1350 era diferente da época em que vivera Lívio, ainda que estivessem na mesma região; e, ainda mais importante, sua convicção de que o “presente” era conceitualmente diferente do “passado”. Tal concepção, existente entre os gregos, era pouco importante para boa parte dos autores de trabalhos his- tóricos da Idade Média. Essa percepção do poeta Petrarca foi transformada efetivamente em um trabalho historiográfico de início com Leonardo Bruni (1370?-1444), político e pensador florentino, que escreveu 12 volumes sobre a “História do Povo Florentino”. Nessa obra, e inspirado nas ideias de Petrarca, Bruni explicitou essa nova concepção temporal, de que as ações humanas, no pas- sado, ajudavam a explicar o presente: a secularização da análise histórica associava-se, portanto, a essa compreensão da necessária relação entre pas- sado e presente. Se a divisão da história Asteca era uma maneira de organizar a compre- ensão do cosmos; se as Seis Eras, de Agostinho, visavam organizar os desíg- nios divinos para o mundo; é significativo que Bruni organize a sua história, utilizando, pela primeira vez, uma divisão famosa ainda nos dias de hoje: Antiga, Média e Moderna. Bruni buscou, também aqui, organizar o mundo, mas essa organização temporal não possuía ligação com a religiosidade. É uma divisão caracteristicamente humanista, fundada na racionalidade e na secularização. Isso fica ainda mais evidente quando se constata que Bruni renegou explicações mitológicas para explicar as origens de sua cidade. Essas novas concepções temporais aparecem sintetizadas na imagem “O triunfo do tempo”, criada pelo artista holandês Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569). Teorias da História – 52 – Figura 7 – “O triunfo do tempo” de Peter Bruegel, século XVI. Nessa imagem aparecem vários símbolos sobre o significado da passagem temporal, que passou a ser aprofundado no período renascentista. Cronos, o senhor do tempo, aparece ao centro, sentado sobre uma ampulheta, andando em uma carroça movida por rodas da fortuna. Está segurando, em uma das mãos, uma cobra que morde o próprio rabo, símbolo da continuidade e do perpétuo renascimento. É puxado por dois cavalos, que levam emblemas do sol e da lua, representando a luz e as trevas. Ao fundo, podem ser vistos os símbolos do zodíaco. Ao chão encontram-se coroas, armaduras, capacetes, instrumentos musicais, livros, significando como, diante do tempo, tudo tende a desaparecer. Ao fundo, à direita, há a representação de uma cidade que, à esquerda, aparece destruída, tendo sucumbido à ação do tempo. Vários outros símbolos podem ser encontrados na imagem. Fonte: Galeria Nacional de Arte, Washington, Estados Unidos. Os regimes de Historicidade Para compreender as diferentes e complexas relações que cada período desenvolve em torno da história, o historiador francês François Hartog (nascido em 1946) desenvolveu a ideia de “regimes de historicidade”. Segundo ele, em cada época, as pessoas constroem, a partir das experiências vividas (que, na atualidade, seria a nossa ideia de “passado”), concepções a respeito do próprio presente, e de ambas desenvolvem um específico horizonte de expectativas (o “futuro”). – 53 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico Hartog identifica, então, um “regime heroico” de historici- dade, próprio das sociedades antigas, quando as ações míti- cas participavam da construção da interpretação da realidade. No “regime cristão”, haveria o nascimento e a morte de Jesus enquanto elementos centrais, indicando tanto um sentido, quanto uma incompletude do tempo. A partir do século XVIII teria surgido o “regime moderno de historicidade”, mar- cado pela crença no progresso, e pela ideia de aperfeiçoa- mento (HARTOG, 2013). Essa diferença entre o presente e passado foi brilhantemente expressa pelo romancista britânico L. P. Hartley (1895-1972) em uma frase hoje bas- tante famosa: “O passado é um país estrangeiro. Eles fazem as coisas dife- rentes lá” (apud ARNOLD, 2000, p. 6). A intenção de Hartley era definir algo semelhante a Petrarca, embora cerca de meio milênio os separem: existe um passado, e ele é distinto do presente; as razões, as formas de vida, as con- cepções, as visões de mundo, enfim – como acontece com países distantes e exóticos – são diferentes das do presente. Seríamos, enquanto historiadores (e mal comparando), tal qual navegan- tes a aportar em terras estrangeiras do passado. E, penetrando em um mundo que já não mais existe, estaríamos diante desses estrangeiros que, em muito, diferenciam-se de nós. Mas seria essa diferença absoluta ou irredutível? Não. Em contraposição à frase de Hartley, podemos usar outra, dessa vez extraída do “Guia do Mochileiro das Galáxias”, do escritor estadunidense Douglas Adams (1952-2001): “O passado é como um país estrangeiro. Eles fazem exatamente as mesmas coisas lá” (ADAMS, 2009, p. 113). Afinal, pen- semos juntos: se o passado fosse totalmente diferente, seria incompreensível. Se as pessoas do passado fossem diferentes de nós em todos os seus aspectos – dos mais complexos, como sua linguagem, aos mais básicos, como suas funções biológicas ou sua aparência humana – seriam absolutamente ininte- ligíveis para nós. Poucos exemplos de contatos entre culturas profundamente diversas são tão fortes quando os encontros ocorridos no período das navegações. No momento em que Cabral aportou na Baía de Todos Santos em 1500, Teorias da História – 54 – defrontou-se com um “outro” radicalmente diferente de todos que conhecia: os indígenas que vivam naquela região. Cabral via aquelas pessoas (e eram também vistos) como “outros” radicalmente diferentes: não compartilhavam história, idioma, costumes. Eram, literalmente, dois mundos separados por milênios. De toda forma, algum tipo de compreensão mútua foi possível. Não há dúvida de que podem ser encontrados também exemplos de equívocos nesses encontros: ficou famoso o caso de Vasco daGama que, chegando em Calicute, na Índia, confundiu os templos locais por igrejas cristãs, e as divin- dades hindus por santos católicos. Ainda assim, em determinado momento, e de alguma forma, o diálogo foi construído. A diferença que existe entre o presente e o passado, portanto, pode ser maior ou menor; gigantesca, até. Mas sempre parece ser possível encontrar pontos de contato a partir do qual diálogos são iniciados. Um teste de conceito: a mais antiga piada conhecida data de cerca de quatro mil anos atrás, tem origem na Suméria, e diz assim: “Algo que nunca aconteceu desde tempos imemoriais; uma jovem mulher nunca soltou um pum no colo do marido”. Outro exemplo, agora do Antigo Egito, data de 1600 a.C.: “Como você entretém um faraó entediado? Encha um navio cheio de jovens mulheres vestidas apenas com redes de pesca e mande Nilo abaixo, e incentive o faraó a pegar um peixe”. Podemos achá-las mais ou menos engraçadas. Provavelmente eram muito mais hilárias em seus idiomas originais. Além disso, certamente muito se perdeu do contexto em que costumavam ser contadas, bem como as razões pelas quais eram populares. Mas, independentemente da existência dessa diferença (são, afinal, exemplos de um “país estrangeiro” do passado), esse estranhamento não é total, ou absoluto. Conseguimos compreender que há uma intenção de hilaridade, podemos pensar em anedotas semelhantes que conhecemos, e é possível inclusive intuir o que haveria de engraçado original- mente quando contadas. Sem dúvida, os piadistas de outros tempos são dife- rentes de nós; mas não tão diferentes a ponto de não conseguirmos compre- ender suas intenções. Se, como diziam os antigos, “a virtude está ao centro”, a relação que os historiadores estabelecem com o passado tem algo de Hartley, e outro tanto de Adams: um mundo diferente, por certo, mas que pode ser traduzido para nossa própria realidade (ARNOLD, 2000). “Tradução” é, aliás, um termo apropriado para nos referirmos à ativi- dade histórica e sua relação com o passado. O trabalho da historiadora ou – 55 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico do historiador é, em grande medida, o de um tradutor: compreendendo o significado das ações do “país estrangeiro” que se estuda no passado, deve-se construir uma ponte de inteligibilidade para o presente. Esse processo de tradução, porém, deve ter seus próprios cuidados espe- cíficos. Se formos ao passado, e tentarmos entender aquela realidade apenas pelos termos deles, e não realizarmos nenhum processo de adaptação à nossa realidade, estaremos cometendo o erro do ventriloquismo (GINZBURG, 2012, p. 110). Deixaremos o passado falar por conta própria, e isso nos dirá muito pouco. Limitaremo-nos a repetir o que encontramos nas fontes, tais quais bonecos de ventríloquo, sem compreender seu significado. E se, de forma oposta, formos ao passado e impormos, sobre eles, nossas concepções, estaremos cometendo anacronismo. Aqui, o passado fica mudo, e serve apenas de palco para impormos nossas próprias ideias e conceitos. Definindo conceitos: VENTRILOQUISMO e ANACRONISMO Ventriloquismo é o erro histórico de recuperar do passado ideias, termos, concepções, sem que sejam reinterpretados por uma estru- tura conceitual do presente, permitindo que o passado “fale por si mesmo”, sem a ação de historiadores. Anacronismo é o erro histórico de impor a um período histórico as características de outro; por exemplo, ignorando o significado das ideias do passado, e tomando-as com o significado que possuem no presente. A construção dessa “ponte de inteligibilidade”, ou seja, desse caminho para a compreensão do passado, é parte da atividade da historiadora e do historiador e não pode ser feito de qualquer forma, ou sem uma direção definida. Será na busca por respostas construídas no presente, em função de determinada questão histórica que se pretende resolver, que os documentos serão lidos e o passado será interpretado. Repare como essa abordagem constrói uma relação de dialógica – ou seja, de diálogo – entre o passado e o presente. Por um lado serão os interes- ses da atualidade que dirigirão a atenção ao passado – o presente conduz a Teorias da História – 56 – forma como o passado se apresentará a nós; por outro, o passado, assim lido, entendido, consultado – ou traduzido – permitirá uma leitura diferente do presente. Há, portanto, uma influência mútua, uma troca, entre dois tempos históricos específicos. Da teoria à prática A seguir há dois textos que não estão em ordem. Um deles foi escrito por Beda, o Venerável, e é um exemplo de historiografia medieval. Outro é de Leonardo Bruni, historiador e seguidor das ideias de Petrarca, e marca o início de uma produção histórica Renascentista. É sua tarefa não apenas descobrir qual texto pertence a qual autor, mas também fornecer indícios e argumentos que sustentem a sua escolha. Texto 1: Texto 2: Tenho o prazer de reconhecer o entusiasmo sincero com o qual, não contente em apenas ter ouvidos atentos às palavras da Sagrada Escri- tura, você compromete-se a apren- der as palavras e atos dos homens de tempos antigos. Quando a história fala de homens bons e de seu bom estado, o ouvinte atencioso é estimu- lado a imitar o bem; quando registra os fins perversos de homens maus, com muito mais cuidado perseguirá as coisas que ele aprendeu serem boas e agradáveis aos olhos de Deus (apud HIGHAM, 2006, p. 69). Mas não devemos esquecer que a verdadeira distinção é para ser adqui- rida por uma ampla e variada gama de tais estudos, de forma a conduzir um aproveitamento rentável da vida (...). O primeiro entre tais estudos eu coloco a História: um tema que não deve, sob nenhum argumento, ser negligenciado por aquele que aspira um verdadeiro refinamento. Pois é nosso dever entender as ori- gens de nossa própria história e seu desenvolvimento; e as conquistas de Povos e de Reis (apud KELLEY, 1991, p. 245). Qual o objetivo da história para cada um dos textos? Como se relacio- nam com o conhecimento religioso? O que consideram mais importante para ser conhecido? Utilize essas questões como guias à sua investigação. – 57 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico Síntese Do mundo medieval à Renascença houve mudanças importantes no conhecimento histórico. De um conhecimento pouco valorizado, e tomado por princípios religiosos, passou, a partir da influência humanista, para um estudo mais secular, sobre o qual se buscaram desenvolver debates teóricos e metodologias. Essa mudança no estatuto permitiu compreender, também, a importância fundamental para a história da ideia de tempo histórico, sua relação com as sociedades, e sua importância enquanto ferramenta teórica para análise do passado. Atividades 1. O trecho a seguir foi extraído da obra “A Cidade de Deus” escrita por Santo Agostinho. Leia-o e, a seguir, faça o que se pede. Eu diferencio dois ramos da humanidade: uma feita dos que vivem de acordo com o homem, e outra dos que vivem de acordo com Deus. Eu falo desses ramos também alegoricamente como duas cidades, isto é, duas sociedades de seres humanos, uma das quais está predestinada a reinar eternamente com Deus e a outra a receber punição eterna com o demônio (AGOSTINHO, apud KELLEY, 1991, p 143). Sobre a concepção agostiniana a respeito da história, é correto afirmar: a) A Cidade de Deus era representação alegórica de Roma, enquanto a cidade dos homens eram as cidades em que o cristianismo ainda não havia penetrado. b) A concepção cíclica da história foi fundamental na obra de Santo Agostinho, enquanto representação da eterna redenção dada por Jesus. c) Sendo o livre arbítrio algo dado por Deus aos homens, para Agosti- nho não haveria qualquer participação divina nos eventos históricos. d) Agostinho pensavaa história como um caminho em direção à Cidade de Deus, ou seja, em direção às concepções cristãs de religiosidade. Teorias da História – 58 – e) Nessa obra Agostinho famosamente declarou que o estudo da his- tória era fútil, pois era impossível entender os desígnios de Deus. 2. O historiador estadunidense Francis Fukuyama (nascido em 1952) publicou, no ano de 1992, a obra “O fim da História e o último homem”, em que afirmava que o colapso da União Soviética repre- sentava o fim da história, pois teria significado a vitória do mais avan- çado estágio de organização social, qual seja, a democracia liberal. Fukuyama, nessa obra, comete um erro histórico conhecido como: a) Ventriloquismo, por não compreender o passado a partir dos ter- mos do presente, lendo equivocadamente as fontes. b) Anacronismo, por lançar, ao passado, determinadas concepções e valores que seriam próprios de sua época. c) Datação equivocada, afinal, não consegue perceber que diferentes eventos ocorrem em diferentes épocas d) Teleologismo, por ler os eventos do passado como se estivessem direcionados para um objetivo ou propósito. e) Concepção cíclica do tempo, o considerar que, no presente, encon- tra-se um tempo histórico que seria próprio do futuro. 3. No trecho abaixo, François Hartog procura definir aspectos impor- tantes do conceito que denominou de “regimes de historicidade”. Leia-o com atenção. O uso que proponho do regime de historicidade pode ser tanto amplo, como restrito: macro ou micro-histórico. Ele pode ser um artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico (tal como Napoleão, que se encontrou entre o regime moderno, tra- zido pela Revolução, e o regime antigo, simbolizado pela escolha do Império e pelo casamento com Maria-Luisa de Áustria), ou a de um homem comum (...). (HARTOG, 2013, p. 13). Os regimes de historicidade caracterizam-se: a) Por cada período histórico construir uma determinada relação entre a experiência (o que já ocorreu), a vida presente, e o horizonte de expectativas (o que poderá ocorrer). – 59 – Medievo, Renascença e a ideia de tempo histórico b) Por construir um entendimento do passado a partir do presente, fazendo que com que se encontre nas fontes históricas apenas aquilo que já se sabe ou se deseja encontrar. c) Por uma relação de clivagem, ou separação radical, entre o presente e o passado, pois são dois momentos temporais que não mantêm relação entre si. d) Pelo entendimento da historiografia como “fontes secundárias” o que permite a compreensão de determinadas épocas históricas sem consulta a fontes. e) Por estabelecer as características dos vários períodos históricos, servindo como referencial seguro para identificarmos as várias eras da história. 4. O trecho do artigo abaixo, extraído de uma revista de história, trata do trabalho do historiador francês Lucien Febvre (1878-1956). Leia-o com atenção. Na contramão de teorias contemporâneas, Febvre lançou no livro a hipótese de que, na Europa do século XVI, o ateísmo não era ape- nas uma realidade distante, mas algo literalmente inimaginável. Para tanto, toma a vida e obra do humanista François Rabelais (1483- 1553) para demonstrar que a ideia de Deus estava impregnada na cul- tura europeia de tal modo que não se poderia falar em descrença sem incorrer em um erro histórico, pois o conceito simplesmente inexistia do modo como o vemos hoje (BELISARIO, 2009, s/p). Nessa sua obra, Febvre queria demonstrar o erro de imputar, ao passado, determinadas concepções do presente como, por exemplo, afirmar que Rabelais seria “ateu”. A esse erro histórico, que Feb- vre considerava o “pecado irremissível” da profissão de historiador, dá-se dá o nome de: a) Voluntarismo. b) Pós-modernismo. c) Ventriloquismo. d) Populismo. e) Anacronismo. 3 Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade Dentro de qualquer análise histórica, não basta à historia- dora ou ao historiador listar datas e eventos. É essencial que, na busca por construir respostas para problemas históricos, sejam apre- sentadas análises que sustentem determinado argumento, fundado no estudo das fontes. Em resumo: é necessário explicar. Mas, para isso, deve-se ter, inicialmente, determinada teoria a respeito de como as pessoas agem, seja isoladamente, seja em grupo. Sem concepções adequadas sobre a relação existente entre indivíduo e sociedade, não é possível compreender as ações das pessoas nos eventos históricos. O que as motiva? É sua natureza, ou as formas pelas quais reagem a experiências? Razões religiosas são mais importantes que as econô- micas? E os costumes locais, que papel exercem? Procuraremos discutir, nesse capítulo, algumas ideias das relações que os indivíduos estabelecem com a própria sociedade e de que maneira atuam em função do contexto a que estão submetidos. Para isso, iniciaremos uma análise da historiografia do período Ilumi- nista, discutiremos as particularidades do pensamento histórico dos alemães Herder e Hegel, até alcançarmos as visões específicas de Jules Michelet. Encerraremos com uma importante discussão a respeito do debate entre agência e estrutura, do ponto de vista da história. Teorias da História – 62 – 3.1 A concepção iluminista da história História, s. f., é o registro das coisas representadas como verdadeiras, contrastando com a fábula, que é o registro das coisas representadas como falsas (VOLTAIRE, apud KELLEY, 1991, p. 225). Essa definição simples de história aparece na “Enciclopédia”, e foi escrita por Voltaire (1694-1778), um dos mais famosos pensadores iluministas. A princípio, não parece haver diferenças significativas em relação à definição de Isidoro de Sevilha, de quem tratamos no início do capítulo 2, e sem dúvida remete à nossa discussão sobre “história” e “estória” do primeiro capítulo. De fato, o pensamento historiográfico iluminista deve muito às abordagens anteriores, seja de antigos como Heródoto ou Tucídides, seja do pensamento Renascentista e seu renovado cuidado em relação à importância das provas e a preocupação com a verdade histórica. Saiba mais O Iluminismo foi um movimento intelectual da Europa do século XVIII que defendia a razão como forma de conhecimento a respeito da natureza e da humanidade. Por isso, combatia todo conheci- mento fundado na superstição, no medo ou na irracionalidade, além de defender valores como tolerância e liberdade. Analisando das leis à religião, passando pela economia, educação, política, ética, os iluministas acreditavam que poderiam descobrir as leis racionais que regeriam o mundo, cabendo à humanidade utilizar suas capacida- des para melhorá-lo. Talvez o melhor símbolo desse objetivo fosse a “Enciclopédia”, editada por Denis Diderot e Jean d’Alembert, entre 1751 e 1772, e tinha como objetivo descrever e analisar todo conhe- cimento humano existente no período. Os pensadores definiam a si mesmos como “filósofos”, embora não fizessem apenas filosofia. Poucos se definiam como historiadores ou acreditavam que a escrita da história uma das formas de exercer sua atividade intelectual. A França destacou-se como iniciadora e principal local do iluminismo, embora pensadores de diversas regiões tenham aderido e implemen- tado características próprias ao movimento. – 63 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade Os iluministas, especialmente os pensadores franceses, estavam cientes dessa herança. Porém, acreditavam superá-la. Enquanto no Renascimento os pensadores se viam como recuperadores de um conhecimento antigo que valorizavam, os iluministas viam o próprio presente como superior ao passado. Não se tratava, portanto, de “renascer” conhecimentos antigos (o que seria um retorno ao passado), mas de construir um conhecimento ainda melhor(que era uma valorização do presente). Essas ideias foram influencia- das pelo sucesso do método científico, que acabou alcançando também os estudos sobre as sociedades. Os resultados obtidos pelo físico britânico Isaac Newton (1643-1727) na descrição das leis da natureza, criaram um entusiasmo, na Europa, pelas possibilidades do método científico. Em sua obra “Principia”1, de 1687, Newton apresentava as principais leis do funcionamento do universo, e não fazia isso apelando a filósofos da Antiguidade ou a verdades religiosas: mas por meio da prática da observação sistemática do mundo ao seu redor, aliada ao uso da razão. E apenas dois anos depois, em 1689, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) lançava seu “Ensaio acerca do entendimento humano”. Nessa obra, argumentava que as pessoas eram como folhas em branco – tabula rasa, como se adaptou ao latim – e tudo o que sabiam provinha dos sentidos. Ouvir, ver, tocar, cheirar, degustar: era assim que o ambiente escre- via na mente as experiências que formariam um indivíduo. Não existiriam, portanto, ideias inatas, apenas aquelas aprendidas durante a vida. A partir das ideias de Locke, parecia claro que o progresso era possível. Afinal, mudando-se o ambiente mudavam-se as experiências e, com isso, as pessoas. E, ao final, seria possível inclusive mudar a sociedade. Mas, de que forma? Assim como Newton fez com as leis da física, a razão deveria ser usada para entender as leis que regiam a sociedade, permitindo-se encontrar os caminhos para aperfeiçoá-la. Esse raciocínio foi influente no movimento iluminista como um todo, e também deixou marcas nos estudos históricos. O mitológico e o fabuloso foram excluídos das explicações, e as ações humanas tornaram-se o ponto 1 O nome completo da obra é, em latim, “Philosophiæ Naturalis Principia Mathema- tica”, ou “Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”. “Filosofia natural” era como, à época, denominava-se a disciplina que hoje chamamos Física. Teorias da História – 64 – central das análises causais. Era a ideia de “filosofia da história” que pessoas como Voltaire, por exemplo, tinham em mente: uma narrativa do passado que fosse também crítica, e seguisse os ideias iluministas. Voltaire escreveu algumas obras históricas bastante populares em seu tempo, como “História de Carlos XII”, “O século de Luís XIV”, e o “Ensaio sobre os costumes”. Nessa última, Voltaire deu um grande destaque ao conhe- cimento histórico, atribuindo-o função essencial na formação dos indivíduos, e meio necessário para as sociedades alcançarem a prosperidade. Construindo um texto que procurava levar em consideração os diferentes modos de vida de cada povo, Voltaire selecionava eventos que considerava mais relevantes: aqueles dos personagens vistos como mais importantes, em espacial reis. Se, por um lado, Voltaire buscava descobrir as razões que motivavam as ações humanas, por outro procurava dar espaço ao acaso, ao banal, ao surpreen- dente (BOURDÉ, 1990, p. 73). Deixar sua narrativa aberta a diferentes possibilidades concordava com sua visão de que alcançar a verdade absoluta não era possível em história: “Toda certeza que não parte de demonstrações matemáticas é apenas extrema probabilidade. Não há certeza histórica” (apud KELLEN, 1991, p. 445). O pensamento histórico iluminista tinha, porém, uma contradição. Por um lado, reconhecia a diversidade de culturas, pregava a tolerância como forma racional de relacionamento entre as pessoas, defendia ideias libertárias. Mas, ao mesmo tempo, passava a conceber a possibilidade de melhoria do gênero humano, o que era, aliás, uma consequência direta da utilização das ideias de Newton e Locke no estudo das sociedades: utiliza- -se a razão (Newton) para melhorar as pessoas; afinal, em sendo “folhas em branco” pode-se escrever o que se quiser nelas (Locke). O problema: qual direção a história deveria tomar? Como seria melhorada? Qual o modelo tomado como ideal? Daí surgia uma contradição, pois, ainda que se devesse ter tolerância com outras culturas, uma delas seria concebida como melhor, e modelo para as demais: e os iluministas escolheram a própria, a europeia ocidental, como referência. Dentro desse objetivo de construir e entender a história sob um ponto de vista racional e natural, pouco a pouco o processo histórico foi sendo pensado como um caminho em direção à civilização. Gradualmente foram estabelecidos níveis de civilidade, que representavam desde o mais atrasado momento da his- – 65 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade tória, até o mais avançado. Se o objetivo da história era de explicar o caminho pelo qual um povo se civilizava; e se a Europa ocidental era o modelo civilizado por excelência; então, cada vez mais a ideia de “história” passou a significar “his- tória do ocidente”. Essa concepção de história em direção à civilização – e mais particularmente, “civilização europeia” – aparece bastante claramente no texto de outro filósofo francês, Condorcet (1743-1794). Todos os povos cuja história está registrada estão colocados em algum lugar entre nosso presente grau de civilização e aqueles que vemos entre as tribos selvagens; se analisarmos amplamente a história universal dos povos, os veremos às vezes fazendo novos progressos, às vezes retor- nando à ignorância, às vezes sobrevivendo entre esses extremos ou para- lisados em certo ponto, às vezes desaparecendo da face da terra sob o julgo do conquistador, misturando-se com os vencedores ou vivendo em escravidão (CONDORCET, apud BENTLEY, 2006, p. 384). O “nosso presente grau de civilização”, afirmou Condorcet: ou seja, o seu próprio, escrevendo na França em 1795. Uma ideia, aliás, que não era apenas dele: Voltaire já havia afirmado que Paris superara Atenas e Roma na “arte de viver” (MAH, 2002, p. 146). No reforço dessa ideia de civilização, a disciplina histórica desempenhou um importante papel; e suas consequên- cias, aliás, estão presentes até hoje nos livros didáticos. É pela história que se construiu determinada herança com a Grécia Antiga, que passou a ser identi- ficada como a “origem” da Europa moderna. À ideia da supremacia da razão, própria dos iluministas, foi adicionado o sistema tripartite de divisão histórica (Antiga, Média, Moderna) constru- ída no Renascimento; e, a ambos, aliou-se a visão de progresso, ou seja, de melhoria da humanidade, oriunda da Revolução Científica, sendo a Europa o suposto ápice da civilização. Figura 1 – Tempos de vida dos principais autores iluministas citados nesse item. Fonte: Elaborado pelo autor. Teorias da História – 66 – Porém, a maior influência historiográfica resultante do pensamento ilu- minista não foi francesa, mas inglesa. Edward Gibbon (1737-1794) foi o autor de “Declínio e queda do Império Romano”, longo estudo marcado pela precisão das informações, construção de uma análise filosófica dos eventos, e cuidado com as fontes primárias. Gibbon acreditava poder reconstruir o passado, desde que desse atenção suficiente aos detalhes. A obra abrange um longo período, que vai do século I ao XVI, buscando narrar a construção histórica do Ocidente. Em sua análise, Gibbon preocu- pou-se em discutir e encontrar leis históricas que pudessem ser, inclusive, universais. Em certo sentido seu trabalho é tanto confluência do que veio antes, como antecipação do que se seguiu, do ponto de vista historiográfico. Com ele, a preocupação com os detalhes e o conhecimento erudito, surgidos com os antiquaristas do Renascimento, somou-se à análise filosófica do Ilu- minismo. Ao mesmo tempo, a sua obra antecipava o rigor com as fontes, e a preocupação com o método, que serão essenciais para o desenvolvimento de uma “ciência histórica” que surgiu a partir da segunda metade do século XIX. 3.2 O pensamento alemão: Herder e Hegel Quais foramas pessoas mais felizes da história? Essa é uma boa pergunta. Como você a responderia? De que forma você organizaria dados, coletaria fontes, sustentaria argumentos? Pense nela por um instante: o que ela pre- sume? Quais os termos fundamentais da questão? Por singela que fosse, a pergunta gerou uma discussão historiográfica e teórica importante. Formulada pela Academia Prussiana de Ciências no final do século XVIII, a sua simples enunciação presumia que todas as pessoas são iguais, em todo mundo e em todas as épocas, tornando-se possível, de alguma forma, “medir” a felicidade a partir de algum padrão universal. Essa era uma resposta possível no pensamento iluminista francês, porém, não recebeu a mesma compreensão dentro do Esclarecimento2 alemão. 2 Para os países de fala alemã, o termo Esclarecimento (Aufklärung) era mais comum que o termo Iluminismo (em francês Lumières) para indicar o movimento filosófico de valo- rização da racionalidade. Em ambos, porém, permanece a ideia fundamental de trazer à luz: “esclarecer” e “iluminar”. – 67 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade Sem dúvida, os pensadores franceses e alemães concordavam na valo- rização da capacidade racional do intelecto humano, para conhecer a rea- lidade e desvendá-la. Porém, o “esclarecimento” alemão não concordava em tudo, nem apresentava exatamente as mesmas características, que sua contrapartida “iluminista” francesa. Enquanto, na França, os pensadores acreditavam que seu pensamento poderia ser aplicado a todos os países, e o modelo francês deveria ser imitado (afinal, não acreditava Condorcet que a França era o auge da civilização?), muitos pensadores alemães acreditavam que o importante era salientar as diferenças de cada local, as regras de cada sociedade e seus costumes. Ou seja, não seria possível encontrar as pessoas mais felizes da história porque eram todas diferentes, deveriam ser entendidas dentro de suas especi- ficidades, e cada uma teria a própria medida do que seria ou não “felicidade”. Essa é a ideia central do que se denomina “historicismo alemão”: a crença de que os povos devem ser compreendidos, historicamente, dentro de suas realidades sociais específicas, e não a partir de parâmetros univer- sais, generalizantes. O principal iniciador dessa corrente de pensamento foi o alemão Johann Gottfried Herder (1744-1803) para quem as sociedades deveriam ser entendidas como indivíduos: ao invés de buscar elementos generalizantes, o importante seria descobrir suas características próprias, exclusivas, específicas. Assim o povo “inglês” seria fundamentalmente diferente do “alemão” ou do “francês”, por exemplo. Contrastando com a visão francesa de superioridade intelectual e capacidade de lançar, a todos os povos e períodos, suas próprias concepções, Herder argumentava pela validade de se entender os diferentes povos e costumes, cada um tendo seu próprio direito à existência (IGGERS, 2008, p. 32). Sua compreensão de história estava ligada a essa ideia. Nas palavras de Herder, “você precisa entrar no espírito de uma nação antes de poder divisar sequer um de seus pensamentos e ações” (apud KELLEY, 1998, p. 181), pois, apenas assim, seria possível encontrar as características de determinada socie- dade. Foi, aliás, pensando dessa forma que o próprio Herder respondeu à per- gunta que iniciou esse item: “cada nação tem seu próprio centro de felicidade em si mesma, assim como cada esfera tem seu próprio centro de gravidade” (apud KELLEY, 1998, p. 184). Teorias da História – 68 – Definindo conceitos: HISTORICISMO Compreensão de que cada sociedade possui uma irredutível indivi- dualidade, que só pode ser analisada, compreendida, e avaliada, a partir exclusivamente de seus próprios parâmetros. Herder se notabilizou, ainda, por utilizar o influente termo “cultura” (kul- tur) para designar esse modo particular de existir de cada sociedade. Ou seja, seria apenas dentro de seus referenciais culturais específicos que a sociedade poderia ser compreendida. Veremos mais sobre esse conceito ainda nesse capítulo. Figura 2 - Tempo de vida de Herder e Hegel, dois pensadores alemães sobre a filosofia da história. Fonte: Elaborado pelo autor. Historiografia e Teoria: Entre a natureza e a cultura Dentro da filosofia iluminista, a natureza era eterna, universal e imutá- vel. Porém, apresentava, também, características que poderíamos chamar de valores: era entendida como racional (as leis da física, por exemplo, poderiam ser traduzidas em matemática), virtuosa (tudo o que se afastava dela seria mau ou indesejável), simples (em contraposição ao refinado, visto como exagerado e superficial). A natureza possuía, ainda, autoridade: se algo era “natural”, seria considerado bom, preferível, correto. Distanciar-se da natureza, por sua vez, levava à falsidade, à corrupção. Se todas as pessoas poderiam se aperfei- çoar (não eram elas “folhas em branco”, como afirmara Locke?), a educação deveria, necessariamente, estar de acordo com a natureza. – 69 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade Figura 3 - Pedro, “o jovem selvagem”, é mostrado em panfleto de 1726. À esquerda a imagem de um urso, que supostamente o teria criado, e à direita Pedro é representado sobre uma árvore, local onde foi encontrado. Fonte: DOUTHWAITE, 2002, p. 26. Se a revolução científica prometia a descoberta das leis que regiam o fun- cionamento do universo, tornou-se o principal objetivo dos pensadores ilu- ministas compreender quais seriam as características da “natureza humana”. Havia relativa concordância em relação a alguns elementos essenciais: seria essencialmente boa, a razão tinha um papel central, e todo indivíduo visava a felicidade. Mas existiam, também, muitas dúvidas: que comportamentos, atos, pensamentos poderiam ser considerados “naturais”? Em 1725, um menino de cerca de 12 anos de idade foi encontrado em uma floresta no norte da Alemanha. Andava à maneira dos cães, tinha a pele escura e, quando ouviu pessoas se aproximando, fugiu rapidamente, subindo em uma árvore. Acabou capturado e levado ao Reino Unido, onde se tor- nou atração local, sendo apresentado inclusive ao rei. Era tratado com um bicho de estimação: foram-lhe dadas roupas, ainda que preferisse dormir no chão; eventualmente, conseguia escapar de novo para matas próximas, mas era recapturado. Não dispunha de qualquer vocabulário, não tinha modos à mesa, e preferia alimentos que fossem crus. Passou a ser conhecido como “Pedro, o menino selvagem” ou “Pedro de Hanover”. Para os filósofos do século XVIII, o caso de Pedro parecia ideal como teste para suas teorias. Afinal, ele seria a “folha em branco” na qual poderia ser escrito qualquer coisa: uma criança verdadeiramente selvagem, no mais absoluto “estado da natureza”. Compreender sua humanidade, entender o que e como aprendia, descobrir de que maneira ingressava na sociedade como um todo, seria descobrir, pensavam, como seria a natureza humana. Afinal, apenas uma pessoa sem qualquer contato com a sociedade poderia revelar Teorias da História – 70 – essa verdadeira natureza – e Pedro parecia o sel- vagem ideal para revelá-la. Do interesse que des- pertou surgiram opiniões conflitantes a respeito da relação entre os seres humanos, a natureza e a sociedade. Esse caso do século XVIII proporciona uma oportunidade para discutirmos as relações que os indivíduos mantêm com a sociedade: é a natureza que define nossas ações e escolhas? Ou é mais relevante aquilo que aprendemos em nossa sociedade? 2 A influência da natureza. Se a natu- reza só traria o certo e o justo, aqueles que viviam próximos a ela deveriam ser, também, melhores. Por isso foram comuns, no século XVIII, as referên- cias ao chamado “bom selvagem”: pessoas de comunidades tradicionaisexóticas (como os indígenas brasi- leiros, por exemplo), consideradas moralmente superiores, socialmente mais justas, e mais verdadeiras do que os europeus, porque viviam próximas do “estado de natureza”. Apenas em sociedades complexas poderia haver a falsidade, o ciúme, a injustiça, a cruel- dade: sinais de seu distanciamento em relação à racionalidade natural. O naturalista Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), assim imaginou como seria um hipotético encontro entre Pedro, e outra criança, uma menina encontrada em 1731, na França, também considerada selvagem: Figura 4 - Para o médico e criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), a tendência para o crime fazia parte da natureza humana. E, mais do que isso, seria possível identificar, por meio de traços físicos, quais os crimes teriam tendência a cometer. A imagem acima, originalmente legendada como “Cabeça de um criminoso” é seguida pela explicação: “cabelos negros prevalecem especialmente em assassinos, e cabelos crespos e cheios em trapaceiros. Em ambos o cabelo grisalho é raro. (...) A barba é rala, e frequentemente inexistente. Por outro lado, a testa é frequentemente coberta de penugem. As sobrancelhas são cheias”. Portanto, sua explicação para os problemas sociais, como a existência do crime, era fundada apenas na natureza, aqui, degenerada. Fonte: LOMBROSO, 1911, p. 18. – 71 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade A menina selvagem encontrada nas matas de Champagne, e o homem encontrado nas florestas de Hanover [Pedro] (...) viveram em absoluta solidão; e não poderiam, por isso, ter qualquer ideia de sociedade, ou do uso das palavras: mas se eles um dia se encontrassem, a força da Natureza os teria direcionado, e os unido com prazer. Ligados um ao outro, eles em breve se teriam feito entender; teriam primeiro apren- dido a linguagem do amor, e então a ternura de seus descendentes (BUFFON, apud DOUTHWAITE, 2002, p. 28). Para Buffon, claramente a natureza direcionava o comportamento humano em direção à sociabilidade, ao amor, e à reprodução – mesmo que não tivessem qualquer tipo de ideia de sociedade, e nem sequer soubessem usar as palavras. Fazia parte de sua natureza, era-lhes algo inato, instintivo. Ideias semelhantes tornaram-se populares no século XIX, e foram comuns até pelo menos meados do XX. Reforçaram-se, nessa época, concepções semelhantes à de Buffon: o comportamento dos seres humanos seria consequência de suas tendências naturais. Selvagens ou não, todos teriam uma natureza humana que definia atitudes, direcionava ações, e mesmo determinava escolhas indivi- duais e inclusive sociais. A biologia e a medicina do período, gra- dualmente, ganharam destaque na explicação dos comportamentos humanos, e diferenças sociais. Mas, quais seriam essas características “naturais”? Aqueles compor- tamentos que eram os mais comuns da sociedade europeia. Fora disso, tudo o que fosse diferente ou desviante seria considerado não-natural, ou “anormal”. Além disso, se a natureza tendia à bondade, como seria explicar os crimes, ou os problemas sociais? A resposta passou a ser encontrada também na natureza: quando se degenerava, ou se corrompia, pro- duzia os “anormais” – homossexuais, criminosos, prostitutas, por exemplo. Ou seja, aqueles que não se encaixavam no modelo con- siderado adequado e normal para o período. Seriam pessoas “não naturais”, doentes, e que precisavam de cura, ou isolamento. Esse modelo de argumento criou o que se denomina naturalização de diferenças sociais. As pessoas não cometiam crimes por conta das Teorias da História – 72 – questões sociais a que estavam submetidas, mas porque era de sua natureza: a explicação para o crime foi naturalizada. As mulheres não eram retidas no espaço doméstico a despeito de seu interesse em participar da vida pública, mas porque eram mais frágeis, ou menos racionais: as diferenças entre gêneros foram naturalizadas. Esse modelo de raciocínio construiu espaço para o desenvolvi- mento do racismo dito “científico”. A partir dessa visão precon- ceituosa defendia-se que africanos ou asiáticos não tinham uma cultura própria, mas eram pouco evoluídos e, por isso, desconhe- ciam os princípios básicos da civilização: as diferenças de modo de vida foram naturalizadas, ou seja, entendidas como naturais. Esse modelo explicativo foi reforçado quando o biólogo Charles Darwin (1809-1882) publicou seu livro “A origem das espécies”. Nele, Darwin argumentava que os animais que evoluem, ao longo do tempo, são os adaptados ao ambiente. Suas ideias – e a despeito da aprovação de Darwin – foram equivocadamente adaptadas às diferenças entre as sociedades: também os povos teriam diferentes graus de evolução, com os europeus colocando-se a si mesmos no topo dessa escada evolutiva. Para nós, historiadoras e historiadores, esse é um ponto funda- mental: todas as explicações que se fundamentam na natureza, não deixam espaço para intenções, contextos, condicionantes. Afinal, tudo é explicado pelo que é inato, próprio aos indivíduos. As expe- riências e o aprendizado, a forma de vida, as crenças e os valores tornam-se irrelevantes, pois os motivos das ações serão sempre bus- cados no que é natural. Não há classe social, cultura, economia, crenças, preferências: apenas aquilo com o que se nasce, e que se torna naturalmente destino. Por isso, para o pensamento histórico, explicações sobre eventos sociais que se fundamentam no “natural” levantam importantes problemas teóricos. Supondo-se que a natureza seja eterna e imutá- vel, a insistência em uma “natureza” que defina os comportamentos, as crenças individuais, a organização social, levará à consequência inevitável de que um egípcio de 1600 a.C., um romano de 2 d.C., e um asteca do século XV, serão fundamentalmente iguais. Nesse – 73 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade caso, sobraria à história apenas estudar o superficial, o decorativo, ou o curioso. Afinal, o apelo à natureza leva à atemporalidade e ao determinismo. E sem mudança no tempo não há história. 2 A influência da cultura: Voltemos a Pedro. Sendo uma “folha em branco”, supunha-se, poderia ser educado para se tornar um cida- dão ideal. “Tal qual uma grosseira tábua de madeira é o homem na mera condição em que nasce, saído das mãos da natureza”, afir- mou o escritor Daniel Defoe (1660-1731), após conhecer o caso de Pedro: “e, por consequência, a melhoria da alma pela instrução, que nós denominamos educar, é da mais alta importância” (apud DOUTHWAITE, 2002, p. 23). Para essa corrente de pensamento, o que determinava o futuro de Pedro não era a natureza, mas sua educação e sociabilização. No que, afinal, desapontou os teóricos: apesar dos esforços de vários tutores, Pedro jamais conseguiu pronunciar senão algumas poucas palavras, adquiriu apenas vagamente os costumes da sociedade de sua época, e foi considerado alguém que não se poderia ensinar. Ao envelhecer, passou a viver junto a camponeses, sobrevivendo de recursos da monarquia. Apenas após sua morte concluiu-se que Pedro não era a folha em branco de Locke, mas uma pessoa com doenças mentais, razão pela qual não poderia ser ensinado. A educação sempre foi um tema importante para os iluministas, como uma estratégia para melhoria dos indivíduos e socieda- des. Em certos momentos, contrapunha-se à busca pela natureza humana, pois enquanto uma defendia a perfectibilidade do ser humano, outra acreditava na existência de princípios inatos, pode- rosos e determinantes. Herder, como vimos, foi ainda mais radical na valorização do apren- dizado, e da herança cultural. Para ele, o que caracterizava um indi- víduo era o que se aprendia a partir dos pais e da comunidade em que vivia: e era isso que construíasua identidade individual. Por essa razão, só seria possível compreender as sociedades a partir de seus próprios valores, que as gerações mais velhas ensinavam às mais novas, e não de ideias generalizantes. Utilizando-se de um termo que acabou por se tornar fundamental não apenas aos estudos his- Teorias da História – 74 – tóricos, mas às Ciências Humanas e Sociais como um todo, Herder defendia a importância de se compreender a cultura de cada povo. Até aquele momento, o termo “cultura” apresentava dois significa- dos essenciais. Um primeiro ligado à agricultura, no mesmo sentido que utilizamos, ainda hoje, expressões como “cultura do arroz”. E um segundo associado ao refinamento dos modos e saberes: dispu- nha de mais cultura aquele que apreciasse as artes, a literatura, a música, além de comportar-se de certas maneiras. Tratava-se de um termo que designava distinção social (cultura era algo próprio da elite) e que uma pessoa poderia ou não ter. Herder, porém, compreendia o termo dentro de um significado diferente. A cultura seria o conjunto de elementos que formam determinada sociedade, tornando-a particular, e específica. As forma de cozinhar, crer, pensar, agir, organizar-se socialmente, construir objetos, trabalhar, aprender a própria língua, definir valo- res, estabelecer regras, enfim, só poderiam ser compreendidas den- tro da própria realidade local, e eram fundamentalmente diferentes tanto das de outros povos, quanto das pessoas de outros tempos. Saiba mais Foi apenas no século XIX, porém, que o termo “cultura” passou a ser utilizado enquanto um conceito, seguindo os avanços da Antro- pologia, nos trabalhos do britânico Edward Tylor (1832-1917) e do teuto-americano Franz Boas (1858-1942). A partir de estudos em populações não ocidentais – particularmente, sociedades ditas tradicio- nais – desenvolveu-se a antropologia enquanto uma forma de estudar, cientificamente, como se construíam as diferentes culturas: as “inven- ções, vida econômica, estrutura social, arte, religião, morais” que cul- turalmente estariam “todas inter-relacionadas” (BOAS, 1940, p. 255). As explicações culturais vão por caminhos opostos aos que apelam à natureza. Afinal, não serão ideias inatas, ou determinação dos instintos que modelam as sociedades, mas apenas as opções das pessoas, a partir do que aprenderam, e que procuraram repassar às gerações seguintes. Pouco, ou – 75 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade nada, é deixado à natureza: as explicações serão buscadas nos contextos sociais específicos, que são criações humanas. Por isso as explicações que partem da cultura estão entre as preferidas de historiadoras e historiadores. Porque, dentro da cultura, o indivíduo é, por assim dizer, histórico: deve ser contextualizado em seu tempo, dentro de suas crenças, a partir de seus próprios valores, e considerando as condicionantes sociais, políticas e econômicas em que vivem. Só assim será entendido. As sociedades e suas mudanças tornam-se resultados de opções, mais ou menos conscientes e voluntárias, analisadas historicamente. 3.2.1 Hegel e a razão na história O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) con- cordava com o pensamento historicista de que valores como a liberdade não eram dados universais, como desejavam os iluministas franceses, mas sim resultado de processos históricos. Porém, diferentemente de Herder, Hegel procurou construir uma filosofia que explicasse a história como um todo, que definisse sua lógica interna e, inclusive, seus objetivos. Hegel tinha uma convicção: “a forma que a plena compreensão do Espí- rito assume na existência [é] o Estado” (HEGEL, 2001, p. 67). Ou seja, o Estado nacional era, para Hegel, o ponto máximo da evolução histórica, seu estágio final, sua verdadeira conclusão. A razão era incorporada, manifestada nos Estados, e é neles que se encontra o mais alto estágio da história. Estabe- lecido o Estado racionalizado, que garantiria a liberdade para seus cidadãos, a história não precisaria mais evoluir. Certamente haveria eventos, novos fatos, velhos e novos governantes, mas o processo histórico deixaria de avançar, pois o Espírito teria alcançado seu autoconhecimento e sua concretização. Espírito? Sim, espírito. O raciocínio histórico de Hegel é não apenas filosófico, mas metafísico, e abstrato. Os termos que utiliza para explicar as maneiras pelas quais os processos históricos ocorrem podem gerar confusão e são, por vezes, altamente complexos. Para Hegel, o Estado era o fim da história, e a realização plena da razão. Quanto mais as sociedades e suas instituições se tornavam racionais, mais se aproximavam do modelo de Estado que Hegel conhecia e admirava (o Estado Teorias da História – 76 – em que vivia, a Prússia do final do século XVIII e início do XIX). A história, portanto, evoluía pelo aumento de sua racionalidade; e tinha, ainda, um obje- tivo: atingir a suprema razão, que se corporificava no Estado. Nessa filosofia, as pessoas importavam pouco para as explicações histó- ricas. Desejos, interesses, lutas, motivações, não eram as forças motrizes do desenvolvimento histórico. Como o próprio Hegel mesmo afirmou: Ao contemplar a história como sendo o cadafalso em que foram sacri- ficadas a felicidade dos povos, a sabedoria dos Estados e a virtude dos indivíduos, necessariamente surge uma pergunta: para que princípio, a que objetivo final foram oferecidos estes sacrifícios monstruosos? (HEGEL, 2001, p. 67). Esse processo da razão que gradualmente se desenvolve não era con- duzido segundo a vontade humana. Pessoas que tiveram, na visão de Hegel, um impacto fundamental na história, como Júlio César ou Napoleão, não fizeram outra coisa senão servir de instrumento a esse processo maior da qual participavam involuntariamente. Eram úteis para que a história se desenro- lasse, mas não eram, propriamente, seus agentes. O que motivaria a história em direção à razão era o Espírito, agindo por meio das ações humanas. Porém, não há algo de religioso nessa concepção, embora o uso do termo “espírito” pareça implicar a religiosidade. Para Hegel, Espírito é a forma como as instituições sociais foram movidas pelo Espírito em direção a essa racionalidade. Cada momento de conturbação e contradição seria superado, dialeticamente, por outro mais racional: entrava-se em um novo estágio, mais racional que o anterior, e no qual o Espírito se conhecia um pouco melhor. Até superar as novas dificuldades e entrar em um novo estágio que deveria novamente ser superado. E, assim, sucessivamente. Até atingir a total racionalidade, a total liberdade, em que o Espírito conhece a si mesmo. Saiba mais Dialética é o nome que se dá a uma forma de argumentação em que duas ideias contrárias são confrontadas e, pelo uso da racionalidade, busca-se encontrar uma solução ao impasse. A dialética, na filosofia moderna, tomou usualmente a forma de determinada ideia (a tese) que é apresentada à sua refutação (a antítese), e da racionalização das duas surge a solução (ou síntese). – 77 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade Você pode pensar: “mas isso é por demais abstrato! Não é possível que a história funcione dessa maneira”. Sim, é bastante abstrato. Mas há duas razões bastante concretas pelas quais não se deve desconsiderar Hegel: pri- meira, porque ele constrói um modelo de evolução da história que se dirige à racionalidade (nesse sentido, cai no erro do teleologismo) sem que isso seja resultado da intenção ou ações conscientes das pessoas. Ou seja, o processo histórico hegeliano é explicado sem a necessidade de entender os interesses e motivações humanos: isso será importante para discutirmos outras filosofias que também procuraram criar leis históricas excluindo as próprias pessoas. Segunda:o pensamento de Hegel vai ser utilizado como fundamento para uma filosofia fundamental para os estudos históricos, o pensamento mar- xista3. Vários elementos do pensamento de Hegel estarão presentes em Marx: o teleologismo, a dialética, a concepção de que a história caminharia para uma racionalidade superior (no caso de Marx, o comunismo), fundada em uma lógica interna de progresso. Historiografia e Teoria: Determinismo Uma das características do pensamento de Hegel é seu determinismo histórico: em outras palavras as pessoas são determinadas a agir de certa maneira. Não têm opção, porque a história lhes obrigaria a agir de certa forma. Utilizando uma terminologia teórica, podemos dizer que, para Hegel, as pessoas não teriam “agência”, ou seja, não seriam agentes, ou protagonistas conscientes, de suas próprias ações históricas. Várias foram as filosofias que, na busca por compreender o sentido dos eventos do passado, construíram modelos interpretativos em que descarta- vam a atuação histórica dos indivíduos. Nelas, as pessoas seriam determinadas pelos acontecimentos. A seguir estão alguns exemplos: 2 Giambattista Vico (1668-1744), filósofo. Para ele, a história era uma mente superior às vontades individuais. 2 Friedrich Engels (1820-1895), filósofo. O “evento histórico deve ser visto como produto de um poder que opera inconscientemente” (apud THOMPSON,1987, p.102). 3 Relativo ao filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), sobre o qual estudaremos no capítulo 8. Teorias da História – 78 – 2 Norbert Elias (1897-1990), sociólogo. A história associa-se à dire- ção que a sociedade toma, embora ninguém seja o diretor. 2 Michel Foucault (1926-1984), filósofo. As relações de poder são intencionais e não subjetivas. Ou seja, têm uma intencionalidade, mas não dependem de um sujeito. 2 Louis Althusser (1918-1990), filósofo. A história é um processo sem sujeito. Cada uma dessas concepções parte de fundamentos diferentes, chega a conclusões diversas, e apresenta perspectivas específicas. O que todas têm em comum é seu determinismo: indivíduos não participam do modelo explica- tivo e, para esses pesquisadores, a história pode ser analisada sem preocupação com as intenções das pessoas. O pensamento histórico determinista parte do pressuposto de que as mudanças históricas não são resultado, propriamente, das ações humanas, mas de forças profundas de outra ordem, não controladas por indivíduos. São concepções que não podem ser comprovadas por evidências ou, quando muito, extraem-se das fontes primárias exemplos escolhidos de maneira sele- tiva para demonstrar a falaciosa tese principal. Atualmente, há severas críticas a esse viés determinista na história. Um dos principais argumentos apesentados hoje é que não existem fenômenos políticos, ou econômicos, ou religiosos que existam independentemente das ações humanas. São todos resultados sociais de escolhas individuais, dentro de contextos sociais, culturais, políticos, econômicos específicos. Vimos que buscar na natureza a explicação de eventos sociais é flertar com o determinismo. Ao mesmo tempo, discutimos como o conceito de cul- tura nos ajuda a compreender sociedades e indivíduos como historicamente localizados. Porém, mesmo a cultura pode, eventualmente, ser utilizada de modo determinista. Isso ocorre quando se defende que apenas a cultura – e nada mais – explica o comportamento dos indivíduos e as formas pelas quais as sociedades se organizam. Um exemplo: o antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia (nas- cido em 1932) é autor de uma obra bastante popular de introdução ao estudo da antropologia: “Cultura, um conceito antropológico”. Nela, Laraia – 79 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade demonstra como as sociedades constroem culturalmente suas sociedades e de que maneira determinismos biológicos e geográficos não são capazes de explicar a diversidade de coletividades humanas. Em certos momentos, porém, transmite uma ideia de determinismo cultural quando, por exem- plo, afirma: “Um menino e uma menina agem diferentemente não em fun- ção de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada” (LARAIA, 2001, p. 12). Não há dúvidas de que a infância é vivida diferentemente em cada socie- dade, e em diferentes grupos sociais. E mais, que os papéis sociais dados ao masculino e ao feminino (ou seja, o que significa ser homem” e ser “mulher”) em determinada sociedade, são construídos cultural e historicamente. Porém, a biologia interfere, em certa medida, nas maneiras pelas quais meninos e meninas crescem e se inserem socialmente. Acreditar que apenas a cultura molda as pessoas é retornar ao século XVII, e às ideias de Locke. Seríamos nada mais do que “folhas em branco” nós mesmos, modelados apenas, e tão somente, pelo que aprendêssemos dos mais velhos. Além disso, acreditar que as crianças se formam apenas por conta do que lhes é dito e ensinado, é tomá-las por bonecos vazios: ao contrário de serem meras massas modeladas passivamente, sabe-se que agem ativamente dentro do próprio aprendizado. E mais: tentar separar os seres humanos da natureza, colocando-os no mundo exclusivo da cultura (ao contrário de todos os demais animais), é retornar à concepção medieval cristã, que via o Homem como um ser totalmente diferenciado dentro da criação divina. Pesquisas em diversas áreas do conhecimento – da biologia à pedagogia; da antropologia à neurologia – demonstram que existem componentes biológicos importantes que interferem no comportamento e na formação humanos. Tais componen- tes podem ser sublimados, acentuados, modificados: mas existem. De toda forma, o diálogo que há entre natureza e cultura ainda é algo ainda a ser estudado dentro das Ciências Humanas. 3.2.2 A visão romântica de Jules Michelet Uma das principais características do ocidente no século XIX foi o surgi- mento de sentimentos nacionalistas. Desde o final do século XVIII, particu- larmente na Europa – mas não somente –, cresceu a ideia de que uma nação Teorias da História – 80 – seria uma entidade única, absolutamente particular em suas características, que possuiria não apenas um passado específico, mas determinado caráter ou espírito, além de um idioma próprio. Seria marcada pela sua unidade e identidade étnica. O desenvolvimento de tais sentimentos não era dirigido ao governo, ou ao Estado (ainda que fossem seus representantes), mas a valores abstratos, concretizados em símbolos como bandeiras, hinos, monumentos, ou mesmo em particularidades naturais. A história foi influenciada por esse processo, e a ele influenciou forte- mente. Dos mais importantes símbolos para a construção desses sentimentos nacionalistas, estavam aqueles ligados à constituição histórica do país. Assim, o sentimento nacional foi construído, também, com o apelo a determinado passado, a lembrança de certas lutas (fossem vitoriosas ou não), a veneração de heróis. O culto à nação assemelhava-se a uma devoção religiosa, que cons- truiu seus próprios ritos (como os feriados nacionais), objetos devocionais (os símbolos nacionais) e tinha seus próprios mártires e altares (os heróis, reme- morados em monumentos espalhados pelas praças das cidades). Historiadores como o francês Jules Michelet (1798-1874) ou o britâ- nico Thomas Macaulay (1800-1859) destacaram-se na escrita de uma história caracterizada por apoiar a criação de estados nacionais (ou seja, países inde- pendentes), por meio de narrativas que explicavam o surgimento das caracte- rísticas únicas da nação. Os objetivos nacionalistas de suas obras influencia- vam a forma como selecionavam os eventos, como os analisavam e, também, o modelo de escrita histórica que produziam. Figura 5 - Tempos de vida de Michelet e Macaulay. Fonte: Elaborado pelo autor. Em texto escrito datado de1869, Michelet afirmou que seu trabalho como historiador surgiu ao perceber que a França “tinha anais, e não uma – 81 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade história” (MICHELET apud BOURDÉ, 1990, p. 93). Em sua visão, os his- toriadores que lhe antecederam eram culpados por fragmentar a história fran- cesa: um se preocupava com a questão da raça, outro com as instituições, um terceiro somente com a política. Faltavam a eles, na concepção de Michelet, a ideia de uma integralidade. Em Michelet, o texto não apenas citava ou descrevia eventos. Sua análise buscava, e não incomumente criava, significados para o passado: procurava encontrar nos personagens e ações já desaparecidos, determinada mensagem que serviria às pessoas do presente. E, para que fosse possível produzir essa história, era necessário apaixonar-se por ela, fazer dela parte da própria iden- tidade. Observe, no trecho abaixo, como Michelet entendia como sua própria vida estava integrada aos estudos do passado. Minha esposa morreu e meu coração estava em pedaços. Mas desde aquele rompimento surgiu uma energia violenta e quase frenética: mergulhei com um prazer sombrio sobre a morte da França no século XV, misturando com ele essas paixões ferozmente sensuais que eu encontrava igualmente em mim e em meu tema. (MICHELET apud CROSSLEY, 2002, p. 187). O objetivo de Michelet com sua história era construir uma ideia de inte- gralidade, de totalidade dos elementos que teriam participado da constituição da França. “Meu problema histórico”, afirmou, era buscar a “ressurreição da vida integral, não nas suas superfícies, mas nos seus organismos interiores mais profundos” (MICHELET apud BOURDÉ, 1990, p. 94). Imaginava reconstruir o passado e, com isso, recuperar a unidade do que seria a França. Por isso, ao contrário de seus antecessores, preocupou-se com elementos como a cultura ou a geografia, e não se centrou apenas em temas políticos. Agindo dessa forma, a França era pensada enquanto um ser vivo, uma enti- dade mergulhada em determinadas forças vitais. Para encontrar a vida histórica, seria preciso segui-la pacientemente em todas as suas vias, todas as suas formas, todos os seus elementos. Mas também seria preciso, com uma paixão ainda maior, refazer e restabelecer o jogo de tudo isto, a ação recíproca destas forças diversas num poderoso movimento que se tornaria a própria vida (MICHE- LET apud BOURDÉ, 1990, p. 93). O discurso histórico de Michelet é diferente dos modelos que encontra- mos até aqui. Ele se preocupava com as fontes primárias (na verdade, criticava Teorias da História – 82 – seus predecessores por desconsiderá-las), mas iria buscar nelas mais do que fatos, dados, informações. Queria resgatar determinada vida, determinado movimento que havia construído a França. Sua narrativa apaixonada, pró- pria do período Romântico em que vivia, visava exaltar esse passado heroico dos franceses, além de glorificar, de uma forma quase religiosa, a sua própria nação. Por essa razão, a objetividade – o que significaria, também, a ausência de paixão –, era um problema que não lhe importava. Saiba mais O Romantismo foi um movimento estético que se iniciou na Europa em finais do século XVIII, mas difundiu-se no Ocidente, sendo impor- tante pelo menos até meados do século XIX. Caracterizava-se por uma valorização dos sentimentos sobre a razão, do individualismo, além de glorificar tanto a natureza, quanto o passado, que eram idealizados. Historiografia e Teoria: Agência e Estrutura Para Michelet, o grande agente histórico era o “povo”. Tomado como um ente único, homogêneo, com identidade e interesses próprios, esse povo era o responsável, em última instância, por revoluções e atos de coragem que marcariam o desenvolvimento francês. Em nacionalidade, é tal como em geologia, o calor está em baixo. [...] O camponês casou com a França em legítimo casamento; é a sua mulher, para sempre; é um com ela. Para o operário, é a sua bela amante; nada tem, mas tem a França, o seu nobre passado, a sua gló- ria. (MICHELET, apud BOURDÉ, 1990, p. 91). Esse “povo”, imaginado por Michelet, porém, não existe, senão como abs- tração. Nenhuma comunidade, não importa seu tamanho, é homogênea: toda sociedade é composta por indivíduos únicos, organizados em diferentes grupos sociais, religiosos, culturais que apresentam diferentes gêneros e etnias; são de dife- rentes idades, com variáveis graus de instrução. Para cada um a realidade é dife- rente e, dentro dela, conduz sua vida diante das opções que lhe são disponíveis. Tome-se um indivíduo, mulher ou homem, de qualquer época ou lugar. O que define suas escolhas? O que condiciona a tomada de decisão, de pro- blemas simples do cotidiano (“O que vestirei hoje?”), até ações complexas – 83 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade (“Vendo a minha propriedade para pagar minhas dívidas?”)? Nesse capítulo observamos buscas por respostas a questões de como as explicações à natureza costumam gerar explicações a-históricas, e como o apelo à cultura, ainda que escape desse problema, pode construir seus próprios determinismos. Vimos ainda que existem filosofias que se fundamentam, justamente, na exclusão das ações humanas da história. Não há dúvida de que as pessoas são agentes históricos: ou seja, são de ações humanas, individuais e coletivas, que partem a organização social, sua perpetuação, e suas mudanças. Somos indivíduos e, assim, realizamos escolhas, atribuímos valores às opções de que dispomos e, dentro de certas possibilidades, procuramos conduzir nossas próprias vidas. Contudos, nossas opções não são tomadas no vácuo, mas fazem parte, elas também, da vida social. Por mais íntimas e privadas que sejam as decisões que tomamos, elas sempre participam de um contexto. Estão sempre submetidas a uma socie- dade, a um grupo, a determinadas expectativas e possibilidades. Somos agen- tes de nossas próprias decisões, mas apenas parcialmente, pois estamos condi- cionados pelas opções estruturais. Figura 6 - Em 2014, a revista eletrônica estadunidense “This is colossal” apresentou os resultados do trabalho do fotógrafo holandês Hans Eijkelboom. Durante mais de 20 anos ele viajou o mundo fotografando pessoas em algumas cidades do mundo, e notou que, em cada lugar, era muito comum a repetição de determinados padrões de roupas, tanto masculinos quanto femininos. Ainda que reflitam preferências pessoais, as pessoas tendiam a vestir conjuntos similares. A criação desses padrões reflete as influências da moda e da mídia, os produtos disponíveis, as expectativas dos grupos, a classe social em que as pessoas se encontram, o clima, a ocasião para que se vestem. A repetição demonstra que, por mais individuais que possam parecer nossas escolhas, estamos submetidos a opções que estão disponíveis socialmente. Fonte: thisiscolossal.com/Hans Eijkelboom Teorias da História – 84 – Se não há possibilidade de tomarmos decisões exclusivamente com base em nossa vontade – afinal, somos seres sociais e históricos – o inverso também é impossível: não existe apenas a estrutura que, por si só, define os caminhos tomados pelas sociedades, e exclui a agência. Isso seria retornar ao pensa- mento determinista. As ações individuais importam; como também importam os contextos; sabemos, ainda, que as sociedades se modificam (caso contrário, não haveria história). Como, então, podem ser conjugadas essas diversas relações entre agência (os objetivos e interesses individuais) e a estrutura (as sociedades, a cultura, como um todo)? 2 Há uma relação de diálogo entre agência e estrutura. Nem as pessoas agem a despeito do que existe na sociedade, nem as socieda- des mudam sem que sejam modificadas pelas próprias pessoas. As condições sociais influenciam as decisões individuais;essas escolhas repercutem no contexto como um todo. 2 Aos indivíduos é oferecido um conjunto de possibilidades. Não podemos escolher qualquer coisa, a qualquer momento, mas apenas aquilo que está disponível social, e historicamente. Assim como nossas roupas, também há um número limitado de crenças, comportamentos, empregos, opções de vida, locais de moradia, sentimentos, relacionamentos. Nossa inserção em determinada cultura, bem como o contexto social em que vivemos, condicio- nam as decisões que tomamos. E, como regra geral, pode-se dizer que sempre optamos por aquilo que simbólica ou materialmente valorizamos mais. 2 As pessoas podem ser originais. As opções sociais não determi- nam escolhas, apenas apontam as possibilidades mais prováveis, ou usuais. Sempre poderão existir pessoas que, sob certas condições, constroem soluções novas, mais ou menos radicais, para qualquer problema. Isso pode gerar uma mudança, ainda que pequena, na estrutura. 2 Os diferentes elementos da sociedade são interdependentes. Isso significa que mudanças importantes na religião, por exemplo, impactarão a economia; e ambas influenciarão e serão influencia- – 85 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade das pela política. Nas últimas décadas no Brasil houve um sen- sível aumento no número de pessoas que passaram a frequentar igrejas evangélicas (uma mudança religiosa) o que produziu, entre tantos outros impactos, consequências políticas (tais como líderes religiosos atuando em cargos públicos). 2 Os contextos são dinâmicos. Mudanças individuais e coletivas impactam contextos que acabam se modificando. Criam-se assim novos contextos que, por sua vez, oferecerão às pessoas novos con- juntos de possibilidades. Daí surgirão novas opções, que poderão construir novos contextos. Do constante diálogo entre contexto e opções individuais, permitem-se as mudanças que podem ser, ao final, objeto de estudo da história. Da teoria à prática Nos últimos anos do final do século XIX, no interior da Bahia, o exército brasileiro destruiu uma localidade chamada Canudos e seus habitantes, em um episódio que entrou para a história com o nome “Guerra de Canudos”. Liderados por Antônio Conselheiro, pessoas que de alguma forma se encon- travam marginalizadas pela estrutura política e econômica, organizaram-se em torno dessa comunidade, fundada a partir de sentimentos religiosos e mesmo messiânicos. Acredita-se que, em seu auge, tenha reunido cerca de 25 mil pessoas. O primeiro que buscou explicar o evento foi o médico Nina Rodrigues, escrevendo em 1897, ainda antes do final do conflito: “Antônio Conselheiro é seguramente um simples louco”, afirmou; e seus seguidores seriam “um bando de fanáticos” (RODRIGUES, 2006, p. 42). E qual seria a origem desse fanatismo? “O jagunço é um produto tão mestiço no físico que reproduz os caracteres antropológicos combinados das raças de que provém”. Tratava-se, portanto, de algo da própria natureza da população que tinha, para Rodri- gues, “o instinto belicoso, herdado por essa população do indígena ameri- cano” (RODRIGUES, 2006, p. 56). Para explicar aquele evento, Nina Rodrigues fundamentou-se na medi- cina de sua época. Teorias da História – 86 – O contexto, o passado, as crenças religiosas, para ele, pouco importa- vam: em sua explicação, Canudos é consequência da uma corrupção da natu- reza humana. Trata-se de uma resposta historicamente ultrapassada. Contudo, como os eventos de Canudos são explicados atualmente? Ainda há determinantes (natu- rais, sociais, culturais) nas explicações? Pesquise em livros didáticos, sites da internet, e obras de história, para encontrar explicações atuais sobre o evento, e compare-as com as apresentadas por Rodrigues. Procure descobrir quais as causas que historiadores indicam, e verifique se Canudos está sendo estudado historicamente, e se ainda persistem explicações deterministas sobre o episódio. Síntese Analisando o pensamento histórico do Iluminismo a Michelet, pudemos analisar as diferentes maneiras pelas quais filósofos e historiadores pensaram a história, e as relações estabelecidas entre indivíduos e sociedade, entre mea- dos do século XVIII e XIX. Percebemos, ainda, que as explicações fundadas na natureza, bem como todos os determinismos de maneira geral, devem ser evitados, pois negam a historicidade da sociedade e cultura humanas. – 87 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade Atividades Leia com atenção os textos seguintes, ambos escritos por pensadores do século XVIII. Atente ao fato de que ambos os textos serão utilizados para as questões 1 e 2. Voltaire, “História de Carlos XII”, 1730. David Hume, “Ensaio sobre o entendimento humano”, 1777. É preciso, ao ler-se uma história, ter- -se em conta a época em que o autor a escreveu [...]. Quem lesse somente a história dos belos tempos de Luís XIV diria: os franceses nasceram para obe- decer, para vencer e para cultivar as artes. [...] Os ingleses de hoje já não se assemelham aos fanáticos de Cromwell, assim como os monges e os monsig- nori de que Roma está povoada não se parecem com os Cipiões (VOLTAIRE, apud LOPES, 2003, p.36). A humanidade é de tal modo a mesma, em todas as épocas e lugares, que a his- tória não nos informa nada de novo ou estranho a este respeito. A sua utili- dade principal é apenas a de descobrir os princípios constantes e universais da natureza humana, mostrando-nos os homens em todas as variedades de circunstâncias e situações (HUME, apud BARROS, 2012, p. 34). 1. A respeito do conceito de história durante o período Iluminista, é correto dizer: a) Preocupou-se com a fundamentação em fontes, enquanto causas eram buscadas em ações humanas, reflexos da preocupação dos filó- sofos com a verdade e a rejeição a mitos. b) Foi baseada no princípio religioso cristão caracterizado pela con- trarreforma católica, marcada pelo aumento da autoridade papel sobre os temas seculares. c) Defendia a escrita de narrativas apaixonadas e vibrantes, buscando enaltecer heróis e líderes dos países, processo resultante da atuação dos chamados “déspotas esclarecidos”. d) Caracterizou-se por seu voluntarismo, isto é, a crença de que cada sociedade deveria ser compreendida a partir dos próprios valores, crenças e visão de mundo. Teorias da História – 88 – e) Foi marcada pelo abandono do uso de fontes, e uma ampliação das chamadas filosofias da história, em que não se faziam pesquisas originais, mas comentários de obras já escritas. 2. Além dos filósofos iluministas mencionados ao longo desse capí- tulo, houve outros ilustres como o escocês David Hume (1711- 1776). Leia o trecho de autoria de Voltaire e o outro de Hume. Estabeleça uma comparação entre eles e, depois, identifique a alter- nativa correta. a) Enquanto Voltaire demonstra um determinismo cultural, Hume expressa a possibilidade da variabilidade da natureza humana, resultado da ação do próprio passado. b) Tanto Voltaire quanto Hume defendem que as sociedades só podem ser conhecidas dentro de suas realidades específicas, ou pode-se cair na naturalização dos fenômenos sociais. c) Para Voltaire, a história deve ser entendida a partir de variações políticas, enquanto David Hume compreende os seres humanos como resultados de opções culturais e sociais. d) Enquanto Voltaire está valorizando a diversidade das possibilida- des, Hume está acentuando a presença de uma natureza, atemporal e universal, regendo as ações humanas. e) A natureza humana, para ambos, é resultado de construções his- tóricas, pois cada época e sociedade modelam a própria natureza segundo os próprios princípios culturais e religiosos. 3. O texto a seguir foi escrito em 1831, e aparece na obra “Introdução à história universal”,do historiador francês Jules Michelet. Leia o trecho com atenção. A França não é uma raça como a Alemanha; é uma nação. Sua origem é a mistura, a ação é sua vida. Toda ocupada do presente, do real, seu caráter é vulgar, prosaico. O indivíduo retira sua glória de sua partici- pação voluntária ao conjunto; ele pode dizer também: eu me chamo legião (MICHELET, 1831, p. 64). Considerando o trecho acima, e aquilo que você conhece sobre as concepções de Michelet a respeito da história, é correto afirmar: – 89 – Iluminismo, romantismo e a relação indivíduo e sociedade a) Michelet desenvolveu o conceito de cultura de modo a se contrapor às definições biológicas, como a ideia de “raça”. b) Na França do século XVIII iniciou-se um movimento a favor da objetividade em história, do qual Michelet foi um dos líderes. c) Michelet via a França como uma unidade, e glorificava sua história como parte de um projeto nacionalista. d) Concordando com o pensamento do alemão Hegel, Michelet acre- ditava que os eventos eram determinados pela razão. e) Michelet buscava a neutralidade e, por isso, acreditava que a produ- ção de “anais” era a melhor forma de se escrever história. 4. A respeito do debate “agência e estrutura”, e sua relação com a his- tória, pode-se afirmar que: a) há uma mútua influência entre os indivíduos e o contexto em que vivem. b) há o determinismo das ações humanas sobre a sociedade em que moram. c) há a naturalização dos desejos e ações humanas, como resultado da cultura. d) trata-se de um debate que não pertence à teoria da história, mas à filosofia. e) é resultado das determinações culturais sobre as sociedades. 4 A busca por uma ciência histórica no século XIX Qual é a causa de um evento histórico? Como determinamos quais foram os fatores essenciais para que ocorresse uma mudança cul- tural, uma crise, uma revolução? Como diferenciamos eventos impor- tantes de eventos irrelevantes? Na busca por construir uma disciplina histórica que fosse absolutamente objetiva e científica, alguns histo- riadores do século XIX construíram um modelo de pensar e organizar os eventos do passado que visava explicar a história, mas a partir de uma redução da importância das reflexões teóricas e filosóficas. Isso acabou gerando modelos explicativos bastante simplificadores. Neste capítulo, estudaremos duas escolas influentes do período – a liderada pelo alemão Ranke, e a francesa denominada “metódica” – para compreendermos seus modos de pensar a cons- trução dessa “ciência histórica”. E, em seguida, iremos contrapor as maneiras pelas quais os historiadores ligados a essas correntes pen- savam o tema da causalidade com as concepções históricas atuais. Teorias da História – 92 – 4.1 Leopold von Ranke O alemão Leopold von Ranke (1795-1886) é considerado o precursor da história científica, além de importante referência na criação de métodos sistemáticos para leitura de fontes na busca pela objetividade no trabalho his- tórico. Foi com Ranke que surgiu uma pretensão fortalecida no século XIX, que durou até as primeiras décadas do século XX (e, nos livros didáticos de história no Brasil, até os anos 1980), de que a função de historiadores seria evitar apresentar julgamentos sobre o passado, e alcançar a verdade histó- rica narrando o que realmente aconteceu. O historiador deve evitar julgamentos sobre o passado: esta não era uma concepção exclusiva de Ranke. Na verdade, nessa questão, ele estava dialo- gando com outros pensadores alemães, como Johann Gottfried von Herder. Como vimos no capítulo anterior, o historicismo alemão era contrário à con- cepção de que existiriam valores universais que poderiam ser aplicados a todas as sociedades. Basta lembrarmos da polêmica sobre o “povo mais feliz da his- tória”. Ranke, nesse sentido, também era historicista, pois defendia que não se deveria julgar os povos do passado, pois isso seria impor, sobre eles, valores que eram próprios do presente. Assim, a primeira tarefa do historiador seria compreender cada sociedade em sua própria especificidade. “Cada época é próxima a Deus”, afirmava Ranke, “e seu valor não é baseado naquilo que car- rega adiante, mas em sua própria existência, em si mesma, o que, de qualquer forma, não exclui a possibilidade de que algo surja dela” (apud HARDWIG, 2001, p. 12740). O que realmente aconteceu: esta é uma das mais famosas frases de Ranke, e não raro aparece grafada em alemão (wie es eigentlich gewesen). Aparente- mente inócua, a frase não apenas sintetiza determinadas concepções ranke- anas sobre a história como também foi apropriada por seus adversários para caricaturar seu pensamento. Buscar “o que realmente aconteceu” traz uma pretensão de obtenção da verdade. Afinal, Ranke deixava claro que queria separar o que não aconteceu do que realmente aconteceu: “a estrita apresentação dos fatos, contingente e desinteressante que possam ser, é sem dúvida a lei suprema” (RANKE, 1824, p. 57). Trata-se de um objetivo, convenhamos, bastante ambicioso e que – 93 – A busca por uma ciência histórica no século XIX implicava buscar, por meio da análise minuciosa das fontes primárias, como os fatos teriam realmente ocorrido, as verdadeiras motivações dos persona- gens, bem como a ordem particular dos eventos: “ninguém pode estar mais convencido do que eu de que a pesquisa histórica exige o método mais estrito: criticismo dos autores, banimento de toda fábula, a extração dos fatos puros” (apud CHENG, 2012, p. 74). Essa é a forma mais comum pela qual a expres- são “o que realmente aconteceu” é usualmente analisada. Porém, há mais nela. Vamos compreendê-la em seu contexto original: A história recebeu a tarefa de julgar o passado; de instruir o presente para o benefício das eras futuras. O presente estudo não aspira tão grandiosas funções. Seu único objetivo é meramente mostrar como as coisas realmente aconteceram (wie es eigentlich gewesen) (apud TOSH, 2011, p. 21). Ranke afirmava, aqui, que o principal objetivo da história não estava em buscar valores universais ou modelos de comportamento para o futuro (ainda que, a princípio, isso fosse possível). Tratava-se de uma nova referên- cia à concepção historicista de compreender a sociedade nela mesma, den- tro de sua própria integridade. Dessa forma, buscar “o que realmente acon- teceu”, significava, também, compreender o passado dentro de sua lógica particular, e não impor interpretações ou significados que, originalmente, não estavam presentes. Por sua vez, a busca por compreender “o que realmente aconteceu” com as sociedades do passado – ou seja, tanto a verdade dos fatos quando os sig- nificados para aqueles povos – exigia um comprometimento com a leitura correta e precisa das fontes, fundado em uma metodologia. Para Ranke, a verdadeira história só poderia ser feita com a consulta a documentos origi- nais, preferencialmente próximos aos eventos estudados. Em texto de 1824, definiu assim as fontes utilizadas em seu estudo sobre as nações latinas e ale- mães entre 1494 e 1515: Mas, quais as fontes de tal inédita investigação? As bases do presente trabalho, as fontes deste material, são memórias, diários, cartas, regis- tros diplomáticos, e narrativas originais de testemunhas oculares. (...) Estas fontes serão identificadas em cada página; um segundo volume, a ser publicado a seguir, apresentará o método de investigação e as conclusões críticas (RANKE, 1824, p. 57). Teorias da História – 94 – Rigor metodológico, fundado na objetividade do historiador, em busca da verdade do passado: este é o modelo de história científica empirista1 criado por Ranke. Mas, além da herança historicista, Ranke também se aproximava das ideias de outro pensador alemão, Hegel, quando afirmava, por exemplo (em uma frase famosa já citada anteriormente),que “cada época é próxima a Deus”. A frase demonstra que Ranke não enxergava contradição em sua busca pela objetividade e a defesa de certa religiosidade, além de evidenciar a pro- ximidade com as ideias hegelianas de que a história, como um todo, possuía determinado significado: “Deus habita, vive, e pode ser conhecido em toda a história”, afirmou Ranke (apud CHENG, 2012, p. 74). Outro ponto de aproximação entre Ranke e Hegel está na concepção de que os Estados – que seriam verdadeiros “pensamentos de Deus”, segundo Ranke – seriam o ápice da realização da racionalidade humana. Por essa razão, seus estudos históricos deveriam se centrar no desenvolvimento político dos países e na construção da nacionalidade. Dentro do pensamento rankeano, os Estados seriam os verdadeiros agentes da história e expressão do poder divino que se revelaria no mundo. A ideia de uma espiritualidade que está na base dos fenômenos históricos toma, com Ranke, um verdadeiro sentido religioso. As ideias de Ranke se difundiram também por conta de sua atuação como professor. Criando cursos universitários de história, separados de outras disciplinas como Letras, Filosofia ou Religião, às quais usualmente estavam associados, ele contribuiu de forma decisiva para a profissionalização do his- toriador. Como afirmou o brasileiro Sérgio Buarque de Holanda: Foi ele [Ranke] quem criou para os estudos históricos o sistema dos seminários, que aos poucos iriam proliferar em outros países. Ao mesmo tempo desenvolveu recursos de pesquisa e crítica das fontes, adaptando para isso, à História, processos já em uso, antes dele, entre filólogos e exegetas da Bíblia (HOLANDA, 1979, p. 16). Seus seminários tornaram-se bastante famosos na Europa e mesmo fora dela: estudantes de vários locais do mundo iam assistir a suas aulas e, ao retornar 1 Empirismo refere-se à doutrina de que todo conhecimento provém da experiência. No caso da história, significa afirmar que todo conhecimento tem origem nos dados das fontes. Assim, concepções filosóficas a respeito da história seriam desprezadas. – 95 – A busca por uma ciência histórica no século XIX a seus locais de origem, acabavam por aplicar o modelo rankeano de se pensar história. Difundiram-se, assim, suas ideias e, fundamentalmente, seu método. 4.2 A escola metódica francesa O historiador alemão Georg Iggers (nascido em 1926), publicou em 2008 um ambicioso livro com o título A história global da moderna historio- grafia. Seu objetivo era descrever o desenvolvimento, a nível mundial, das diferentes escolas históricas. Apenas sobre o século XIX, o livro analisa as várias correntes historiográficas europeias, a influência do nacionalismo entre os historiadores islâmicos, as transformações ocorridas na pesquisa na Índia, as influências de Ranke no Japão, entre outras. Este livro que tem em mãos e a grande maioria das obras de história da historiografia à disposição no Brasil usualmente optam por apresentar o desen- volvimento do pensamento histórico na segunda metade do século XIX a partir de uma perspectiva bem específica: apresenta-se o trabalho de Ranke e, a seguir, passa-se a discutir a historiografia francesa, iniciando-se com a escola metódica (que veremos neste capítulo), seguindo-se a Escola de Annales (que veremos no Capítulo 6). Por que, do grande número possível de perspectivas historiográfi- cas, estaremos nos centrando nos franceses? O que eles têm de especial? Afinal, é comum que a maior parte dos livros de história da historiografia produzidos na Inglaterra ou nos Estados Unidos, por exemplo, não deem grande destaque à Escola de Annales e mal citem os chamados metódicos. O grande número de nomes franceses que encontramos nas bibliogra- fias históricas no Brasil ainda nos dias de hoje se explica não porque tenham produzido uma visão histórica universalmente revolucionária – vários histo- riadores, em diferentes países, produziram visões semelhantes –, mas por sua profunda influência no Brasil, desde o século XIX, a qual, apesar da globali- zação, de certa forma ainda persiste. Essa influência começou com a presença do modelo metódico de pensar a produção histórica tanto nos cursos de graduação em história quanto na produção de livros didáticos no Brasil. Aliás, antes da existência de manu- ais nacionais de história (ainda no século XIX), os estudantes utilizavam os próprios títulos franceses nas aulas. E mesmo hoje existem vestígios de sua Teorias da História – 96 – presença: não é difícil encontrar, por exemplo, livros didáticos brasileiros que apresentem capítulos sobre as dinastias Merovíngias e Capetíngias francesas; e possivelmente você aprendeu que a chamada Idade Contemporânea iniciou em 1789, com a Revolução Francesa – uma divisão histórica que foi inven- tada na França, importada pelo Brasil, e está longe de ser consenso mundial. Assim, estudamos os metódicos por sua importância relativa, e não absoluta: o modelo histórico que construíram acabou sendo importado pelo Brasil e, para entendermos a historiografia nacional, estudá-los é importante. Então quem foram os metódicos e o que defendiam? A escola metódica, também chamada de tradicional, surgiu nas últimas décadas do século XIX, na França. Buscando construir um modelo de história absolutamente científico, inspirou-se tanto nas ideias de Ranke quanto do positivismo para criar uma tradição historiográfica fundada no rigor metodológico: “Tudo o que não estiver provado deve permanecer provisoriamente duvidoso”, defendeu Charles Seigno- bos (1854-1942), um dos principais divulgadores desse modo de pensamento. O positivismo e a História A filosofia positivista afirmava que todo conhecimento só seria válido se partisse de informações capturadas pelos sentidos humanos e analisadas racional e logicamente. Para os positi- vistas, apenas as informações construídas pela ciência, que poderiam ser testadas e verificadas, eram verdadeiras. Trata- -se de um modelo de pensamento ligado ao filósofo francês Augusto Comte (1798-1857), que pretendia construir um conhecimento sociológico das sociedades, procurando deter- minar as leis que as regeriam, seguindo-se o método científico. O que se pode denominar de “história positivista” é aquela escrita sob influência de preceitos dessa filosofia, especial- mente copiados do método das ciências naturais. Para o his- toriador positivista, a própria maneira de produzir história seria a única verdadeiramente objetiva: neutralidade diante dos eventos para manter a objetividade; agregando dados e infor- – 97 – A busca por uma ciência histórica no século XIX mações, evitando julgar o passado; listando os fatos obtidos em cronologias e unindo-as em uma narrativa que considera- vam isenta e objetiva; apegando-se ao particular e específico, recusando-se a generalizações; centrando-se na história polí- tica tanto por ser a que mantinha relação com o Estado (con- siderado o principal agente histórico) quanto por se relacionar a eventos que poderiam ser datados precisamente, como a queda da Bastilha (14 de julho de 1789) ou a independência do Brasil (7 de setembro de 1822). Porém, não houve desenvolvimento pleno de escola histórica positivista. Acabou por se configurar mais como um adjetivo que serve para designar determinadas práticas historiográficas que seguiam, integral ou parcialmente, preceitos do positivismo. Ranke teve aspectos de seu trabalho definidos como “positi- vistas”; os historiadores da chamada “escola metódica” francesa são, por vezes, também denominados historiadores positivistas. Os princípios teóricos do positivismo são hoje considerados ultrapassados para os estudos históricos: sua noção simplista de fato, sua necessária linearidade cronológica, o apelo ao político como único tema possível, a crença na existência de uma única verdade a ser obtidapelo estudo do passado e sua ingênua concepção de objetividade são alguns dos aspectos do pensa- mento positivista superados pelos atuais estudos históricos. O principal veículo divulgador das concepções metódicas de história surgiu em 1876, quando foi criada a Revista histórica, por Gabriel Monod (1844-1912) e Gustave Faignez (1842-1927). Apresentou-se, inicialmente, como uma ruptura ao modelo histórico romântico de escrita da história, caracterizada pelos trabalhos de Jules Michelet (1798-1874). Considerado um modelo pouco objetivo – afinal, Michelet claramente escrevia como um apaixonado pela história e pela França –, os metódicos afirmavam basear suas concepções no modelo rankeano: “O seminário (...) na Alemanha é a verda- deira escola dos historiadores”, afirmou Seignobos (1934, p. 90). Teorias da História – 98 – O objetivo da escola metódica, segundo Monod, era fazer da história “uma ciência positiva”. E isso significava adotar determinada atitude cientí- fica fundada na busca pela objetividade dos eventos, e não no julgamento do passado. Além disso, defendia determinada “vocação nacional” ou “simpatia intuitiva” para com o patriotismo, nas palavras de Monod: acreditava que era função da história participar da construção e do reforço da unidade nacional, o que foi feito por meio da construção de narrativas heroicas para a histó- ria da França, legitimando o sistema de governo então vigente (BOURDÉ, 1991, p. 97). Saiba mais Ao tomar para si a função tanto de construir uma história científica quanto de contribuir para a união nacional (no caso, da França), a escola metódica influenciou fortemente os estudos históricos: participou da escrita de manuais escolares, definiu temas e abordagens, construiu maneiras específicas de se ensinar e estudar história. Essa foi uma influ- ência duradoura, que se refletiu também no Brasil. Mas, além disso, influenciou também o ensino superior de história, com a organização de cursos e a publicação de um influente manual para estudantes: Intro- dução ao Estudo da História, escrito por Charles Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos e lançado originalmente em 1898. Nesse manual, procuravam ensinar seu pensamento a respeito da história, bem como os métodos que consideravam adequados à abordagem de documen- tos. No Brasil, esse livro ainda era publicado em 1946, o que mostra a extensão de sua influência no País. Figura 1 - Tempos de vida de Leopold von Ranke, e de três importantes historiadores da escola metódica. Fonte: Elaborado pelo autor. – 99 – A busca por uma ciência histórica no século XIX Sua concepção de história era fundada na primazia do acontecimento, nos “grandes homens” como agentes históricos, na naturalidade do fato, na temporalidade linear, na política; privilegiava as fontes escritas e, por fim, era supostamente objetiva e desencarnada. São muitas as características: a seguir, vamos analisá-las uma a uma. O acontecimento como ponto básico da história: o termo “aconteci- mento”, aqui, tem o mesmo sentido que no mundo jornalístico. Certos mate- riais didáticos de história que chegaram a criar “jornais da história”, inseridos entre as páginas do livro, utilizavam-se dessa mesma compreensão de evento. Para os metódicos, o evento histórico era um acontecimento específico, que poderia ser localizado temporalmente, de forma usual, em uma data bem específica. Esse apelo ao acontecimento, ao fato singular, é consequência da convic- ção dos historiadores metódicos de que não eram grupos sociais ou contextos que definiam os eventos históricos. Ainda que se estudassem crises, eventos políticos, mudanças religiosas, concepções culturais, o fundamental eram os atos dos indivíduos, os chamados “grandes homens”. Figura 2 – “Jornal da história”: uma concepção factual que ainda persiste. Fonte: VICENTINO, 1997 Teorias da História – 100 – Em trecho de um livro didático de 1997 (portanto, de cerca de um século depois do surgimento da chamada escola metódica), reproduzido na imagem, eventos históricos aparecem reduzidos a manchetes jornalísti- cas. Trata-se de uma concepção bastante restrita de história: o que era con- siderado importante, digno de aparecer na “notícia”, era um determinado acontecimento – “Escravos importados de Angola”, “Já são 60 os engenhos de açúcar no Brasil” – ligado a uma determinada data. Nessa concepção de história, o que importa é o acontecimento, um fato específico, ocorrido em certo momento. O que aparece nesse livro didático é ilustrativo da forma como os metódicos percebiam a história: uma série de acontecimentos, de curta duração, ligados a datas bastante específicas. Apenas por comparação, a história atualmente lida com temporalidades bastante variadas. Os fatos particulares reduzidos a acontecimentos específicos ainda existem, mas não são fundamentais, e quando aparecem sempre são analisados a partir de seu contexto mais amplo; ou seja, não têm valor em si. Os “grandes homens”: se história era sinônimo de política, consequen- temente os principais personagens desse modelo historiográfico eram aqueles que atuavam politicamente: reis, imperadores, generais que se denominam genericamente de “grandes homens” eram, para os metódicos, os verdadeiros agentes históricos. Não se considerava, usualmente, que a população comum fizesse história ou que contextos condicionassem as escolhas. Valorizavam-se as ações individuais. O fato natural: para os metódicos, o fato histórico era algo que existia por si só e bastava ao historiador ir às fontes para “descobri-los”. Cada docu- mento histórico tinha um número limitado de fatos, por isso acreditavam que seria possível para os historiadores, um dia, analisar todos os fatos históricos e, assim, dar seu trabalho por concluído. Trata-se, como vimos no primeiro capítulo, de uma visão ultrapassada: atualmente sabe-se que os documentos históricos não trazem fatos históricos prontos, apenas informações que res- pondem a determinadas perguntas de historiadores. Temporalidade linear: para os metódicos, a temporalidade era linear; a um acontecimento seguia-se outro (usualmente entendido como causa) de uma maneira progressiva e uniforme, semelhante à derrubada de uma fileira – 101 – A busca por uma ciência histórica no século XIX de dominós. Os eventos históricos eram narrados, assim, como se tivessem determinado objetivo ou finalidade. Centralidade da política: uma das características mais próprias da escola metódica era a preocupação quase exclusiva com eventos políticos. Contextos sociais e econômicos interessavam pouco, pois, acreditando que o Estado era o objeto central da história, tornava-se essencial compreender seu surgimento, desenvolvimento, crises, e sua formação. É por isso que datas específicas, como assinaturas de tratados, declarações de guerra, fundação de cidades, eram essenciais para um historiador metódico. As fontes escritas: “Sem documentos, sem história”, afirmavam Lan- glois e Seignobos (1904, p. 17), porém, sua concepção de documentos, com- parando-se com a atual, era bastante restrita. Para os metódicos, as fontes primárias privilegiadas eram os textos de instituições – como o Estado, ou a Igreja – que fossem escritos. Outros objetos eventualmente eram utilizados, tanto que fazia parte da formação do historiador metódico o estudo de disci- plinas como heráldica (que estuda o significado dos brasões) e numismática (que se especializa em moedas e medalhas). Tais documentos eram, porém, complementares, e não substituíam a autoridade dos textos. A presença da escrita em uma sociedade, portanto, tornava-se sinônimo da possibilidade de história. Não é à toa que, por essa razão, os povos sem escrita acabaram sendo denominados, de forma genérica e imprecisa, como “pré-históricos”. A história objetiva e desencarnada: o rigordo método era uma das principais características dessa escola histórica; daí, aliás, seu nome. Para os metódicos, o cuidado minucioso com as fontes, o respeito estrito às datas, aos eventos e aos personagens e a construção de uma crítica dos documentos eram as principais atividades do historiador: O primeiro grupo de investigações preliminares, que se debruça sobre a escrita, a linguagem, a forma, a fonte, constitui o domínio especial da CRÍTICA EXTERNA. A seguir, vem a CRÍTICA INTERNA: busca, com ajuda de analogias emprestadas especialmente da psicolo- gia geral, reproduzir os estados mentais que passavam pela mente do autor do documento. (...) 1. O que ele quis dizer? 2. Ele acredita no que disse? 3. Era justificável crer no que ele acreditava? (SEIGNO- BOS, 1904, p. 66-7) Teorias da História – 102 – Para os metódicos, esse rigor metodológico era garantia tanto da objeti- vidade quanto das verdades obtidas com o estudo da história. Dava certeza da correta interpretação dos documentos e da real intenção dos agentes históri- cos e prevenia os preconceitos dos historiadores. O que pretendiam com esse modelo era atingir nada menos que a verdade: Nós não mais vamos à história por lições de moral, nem por bons exemplos de conduta, nem mesmo por cenas dramáticas ou diver- tidas. (...) Nós entendemos que o valor de toda ciência consiste em ser verdadeira, e o que pedimos da história é a verdade, e nada mais (SEIGNOBOS, 1904, p. 331). A citação anterior tem um dado curioso, porém. No texto original, há uma nota de rodapé na qual Langlois afirma que, ao serem perguntados, em julho de 1897, “A qual propósito serve o ensino da história?”, oitenta por cento dos alunos de bacharelado em história responderam: “Para promover o patriotismo”. Trata-se de uma incoerência nesse desejo de metódico de objetividade, embora os metódicos não compreendessem desse modo. Ainda que buscassem construir uma “ciência” e vissem seu método como um caminho trabalhoso, mas seguro, em direção à verdade, seus textos dialogavam com a formação dos nacionalismos europeus. Tratavam-se, portanto, de textos pouco isen- tos, pois compartilhavam do objetivo de construir heróis, valorizar eventos históricos, construir narrativas memoráveis. Eram nacionalistas e, por isso, escolhiam uma perspectiva favorável, e não raro laudatória, quando narravam os acontecimentos do próprio país. Ligado a essa história pretensamente objetiva estava seu caráter – na falta de um termo melhor – idealmente desencarnado. Com isso se quer dizer que os historiadores metódicos acreditavam que existia uma separação radical entre sujeito que analisa e objeto pesquisado, ou seja, entre presente e pas- sado. O historiador se colocava quase como um espírito, um fantasma que viajava ao passado e estudava os acontecimentos como se os testemunhasse de uma posição privilegiada. Esses historiadores não acreditavam que levavam preconceitos aos documentos ou eram por eles influenciados; viam suas obras como expressão da objetividade, do desinteresse e, em síntese, da verdade. – 103 – A busca por uma ciência histórica no século XIX Figura 3 – A complexa relação entre historiadores e passado. Fonte: tomgauld.com. Historiadores não podem modificar os eventos do passado. Porém, sabe- -se atualmente que, ao analisarem os documentos históricos, carregavam con- sigo visões de mundo e preconceitos próprios da época. E, mais do que isso, levavam as questões do presente que deverão ser respondidas pelos documen- tos. Presente e passado estão sempre próximos, e as concepções do primeiro interferem na compreensão do segundo. A charge de Tom Gauld, de 2016, ajuda-nos a pensar que historiadores não podem realmente interferir no pas- sado, mas não há dúvida de que interferem na história. Para encerrarmos esse item, uma importante nota sobre os metódicos: seus princípios e objetivos foram bastante criticados, especialmente pelo que se passou a considerar sua visão bastante restrita de história. Porém, suas prin- cipais figuras não apresentavam ideias tão ingênuas quanto sua posterior cari- catura fez questão de afirmar. E mesmo as características dessa escola, com as quais trabalhamos nas páginas anteriores, podem ser mais encontradas em sucessores e, particularmente, nos manuais escolares produzidos sob a con- cepção metódica, do que naqueles próprios historiadores. Nem tudo dessa escola histórica é dispensável: nos dias de hoje, ficaram como saldo positivo os ensinamentos dos metódicos com os cuidados a res- peito dos documentos, ainda importantes para a pesquisa histórica. Teorias da História – 104 – Historiografia e Teoria: A ideia de “causa” em história Um livro didático de história para o antigo ginasial (atual 6º ao 9º anos), de 1965, escrito a partir dos princípios da escola metódica, apresentava, ao final de um capítulo sobre abolição da escravatura, a seguinte atividade a ser realizada pelos alunos: Figura 4 - Exercícios sobre abolição. Fonte: HERMIDA, 1968, p. 275. Notam-se, nesses exercícios, algumas das concepções da escola metó- dica. Por exemplo, todos os eventos e personagens que o aluno deveria conhe- cer estavam ligados a questões políticas. Tratava-se de uma atividade que, além disso, valorizava a mera memorização de fatos, nomes e dadas. Aliás, foi essa perspectiva que deu à disciplina escolar de história a má fama de ser apenas “decoreba”. Isso, porém, é consequência de uma especificidade desse modelo de se compreender a história: o importante era o “dado positivo”, o fato (notadamente o político) e, considerando-se que a concepção “cientí- fica” queria expulsar do estudo da história qualquer forma de filosofia (por considerar que não era uma atitude objetiva), seguia-se que não havia análise histórica, busca por relações entre eventos, compreensão teórica aprofundada. Não ia muito além do fato pelo fato: ligado a outros em uma narrativa cro- nológica, com análises minimizadas. Assim, se a história era só isso, seguia-se que, também, era só isso que se deveria cobrar dos alunos. A pobreza analítica da escola metódica é evidenciada, especialmente, quando seus historiadores se propunham a apresentar a análise das causas de determinados eventos históricos. Observe-se, a seguir, outro livro didático, desta vez de 1964 e também influenciado pelos princípios metódicos, em que são apresentadas as causas da Guerra do Paraguai. – 105 – A busca por uma ciência histórica no século XIX Causas da guerra. - 1ª: A causa verdadeira foi a ambição de López com o sonho do “Paraguai Maior”. 2ª: A causa pretexto foi a intervenção brasileira no Uruguai, que pare- cia transformar os planos de Solano López. 3ª: A causa imediata foi o aprisionamento do “Marquês de Olinda” (DEUS, 1964, p. 63). Vamos nos centrar aqui, na causa que o autor denomina de “verdadeira” (em contraposição a outras que seriam, portanto, falsas: uma apenas pretexto e outra, imediata). Repare que, em primeiro lugar, a causa de um evento histórico importante, violento e relativamente longo como a Guerra do Paraguai (que durou de 1864 a 1870) teria tido uma única e simples causa: a ação de determi- nado personagem, um dos “grandes homens”, o presidente do Paraguai à época, Solano Lopez. Trata-se de uma concepção causal bastante limitada: a história é movida pela vontade de alguns poucos personagens que, por vontades especí- ficas, criam guerras, tratados, alianças, governos. É curioso como, em um livro de história, há muito pouco de história ali: não há qualquer referência a con- textos anteriores, a eventos do passado, a transformações que teriam construído aquela situação política e, depois, militar. A busca pela explicação não passava por análises de contextos ou compreensão de estruturas sociais, mas apenas pela ação dos indivíduos e, eventualmente, pela pura casualidade2.Um exemplo desse modelo de interpretação de causa histórica, fundada unicamente na vontade individual e por vezes na própria sorte, foi dada pelo político britânico Winston Churchill (1874-1965) a respeito do falecimento do rei Alexandre da Grécia (1893-1920): em suas palavras, “a mordida de um macaco resultou na morte de 250 mil pessoas”. A linha de raciocínio: mordido por um macaco, o rei Alexandre sofreu septicemia e faleceu; seguiu-se uma conturbação política na Grécia na disputa por sua sucessão e que acabou por enfraquecer a força militar grega diante da Turquia; precipitou-se uma guerra entre os dois países, a qual levou à morte um quarto de milhão de pessoas. Porém, essa relação de causa e efeito – se o macaco não tivesse mordido o rei, 250 mil pessoas estariam vivas – entende as transformações sociais como 2 Lembre-se, aliás, de ler este capítulo com cuidado. “Causalidade” tem a ver com causas; “casualidade”, com o acaso. São palavras muito semelhantes, mas com significados totalmente diferentes. Teorias da História – 106 – resultantes de uma série de contingências, ou seja, acidentes e mesmo casu- alidades que se ligam entre si: não se dizia que, se o nariz de Cleópatra fosse mais curto, Roma não entraria em guerra civil? No trecho da história em quadrinhos mostrado na imagem, os persona- gens Asterix, Panoramix e Obelix, brincam com a suposta beleza do nariz de Cleópatra. Trata-se de uma referência ao pensador Blaise Pascal (1623-1662) que afirmou certa vez: “se o nariz de Cleópatra fosse mais curto, a face inteira do mundo teria mudado”. O seu raciocínio: se o nariz dela fosse mais curto, não seria tão bonita; se não fosse tão bonita, não teria seduzido Júlio César e Marco Antônio; se não tivesse seduzido ambos, Roma teria tido um destino diferente e, com isso, todo o Ocidente. Trata-se de uma concepção contin- gente de causalidade. Figura 5 – Cleópatra junto a Asterix, Panoramix e Obelix. Fonte: GOSCINNY, 1985, p. 27. Existe uma correspondência direta entre as concepções dos objetivos, dos métodos e das abordagens de determinada escola histórica e sua concepção de causa. No caso da escola metódica, pode-se observar que, ao tentar atingir a objetividade rejeitando análises filosóficas, acabou por construir uma ideia de causa que nada mais era do que uma série de eventos contingentes – ou seja, acidentais e mesmo casuais – produzindo mudanças. Tentando “eliminar da ciência a ideia de causa”, como afirmou o historiador Marc Bloch (2001, p. 147), a concepção positiva de ciência e de história adotada pelos metódicos construiu um modelo teórico de explicação frágil das mudanças do passado. Ter uma definição teórica coerente sobre o que significa uma “causa” em história – como as mudanças são provocadas, por quais fatores, sobre que – 107 – A busca por uma ciência histórica no século XIX circunstâncias – reflete diretamente, portanto, o real resultado da atividade da historiadora e do historiador. Nos dias de hoje, a história trabalha com relações causais de uma maneira bem mais complexa de que aquela dos metó- dicos. Mas isso não significa que, na atualidade, não existam dificuldades em se determinar as causas de qualquer evento histórico. Um primeiro e importante problema é que, muitas vezes, historiadoras e historiadores não deixam claro, seja para os leitores, seja para si próprios, com qual noção de causa estão trabalhando. Por vezes, sequer utilizam pro- priamente o termo, mas o substituem por sinônimos como forças, condi- cionantes, condições, razões, motivos, pressupostos, agentes, fundamentos, como que desejando escapar das implicações que a palavra “causa” pode tra- zer. Afinal, é muito comum entre historiadores o receio de construir expli- cações deterministas, o que um mau uso do conceito de causa pode, real- mente, implicar. Porém, fugir de uma conceituação causal rigorosa agrava o problema. Afinal, a análise continuará trabalhando com a ideia, mas de uma forma inadequada, sem definição apropriada, sem fundamentação. E isso pode, inclusive, comprometer a análise histórica. É claro que falar é mais fácil do que fazer. O filósofo estadunidense John Stuart Mill (1806-1873), por exemplo, afirmou que uma das maneiras de encontrar a causa de um evento é verificar quando dois fenômenos variam simultaneamente. Se toda vez que eu chuto uma bola, ela se move, então meu chute é a causa do movimento da bola. Surgiu dos estu- dos estatísticos, porém, um ditado famoso: “correlação não implica cau- sação”. Ou seja, ainda que dois even- tos ocorram simultaneamente, não se pode garantir, necessariamente, que mantenham uma relação causal. Há ainda outro problema, pró- prio dos estudos históricos: não há dúvida de que eu posso chutar uma Figura 6 - Ao confundir causa e correlação, o menino acredita que a luz que orienta os passageiros a apertar os cintos está causando a turbulência no voo. Fonte: STEG, 2008, s/p. Teorias da História – 108 – bola tantas vezes quanto queira e, assim, medir os resultados. Mas eu não posso fazer a Revolução Francesa acontecer várias vezes para tentar diferenciar os fatos necessários dos fatos suficientes e dos irrelevantes. Então, como fazer? Entramos, aqui, não apenas no reino da teoria, mas da própria filosofia. As discussões filosóficas sobre causalidade são imensas, profundas e longuís- simas. É por isso que procuraremos, nas páginas a seguir, discutir apenas algumas das várias questões importantes para que possamos construir, mais rigorosamente, noções de causalidade em história para os dias de hoje. Motivação como causa Começamos com outra frase de Marc Bloch (2001, p. 149): “os fatos históricos são, por essência, fatos psicológicos. É, portanto, em outros fatos psicológicos que encontram geralmente seus antecedentes”. Em 1755, a cidade de Lisboa, em Portugal, sofreu um terremoto que destruiu a cidade: por que isso seria um “fato psicológico”? Porque tal evento afetou pessoas que estavam em determinado contexto social e cultural. O desastre ambiental, ainda que não tenha sido resultado de qualquer ação humana, foi inserido dentro do mundo humano. Por isso, tudo o que os portugueses fizeram em relação à tragédia esteve de alguma forma relacionado a sua psicologia. Mas há problemas em considerar a motivação humana, sua psicologia, como causa histórica. Vejamos alguns: 2 Individualmente, as pessoas podem agir de forma totalmente não previsível. Ainda que vivam em um tempo e em uma cultura, não se pode determinar como, individualmente, cada pessoa agirá. 2 Não se pode necessariamente confiar que a razão alegada por uma pessoa seja o real motivo para sua ação. Não apenas ela pode estar mentindo como pode ocorrer que a verdadeira motivação não esteja evidente nem para ela mesma. 2 Corre-se o risco de, ao explicar as ações isoladas de um indivíduo, criarem-se fantasias semelhantes ao homo economicus: uma ficção teórica criada para os estudos econômicos3 que afirma que os seres 3 A figura do homo economicus ainda é utilizada na economia, campo no qual possui importante função teórica na elaboração de cenários considerados ideais. – 109 – A busca por uma ciência histórica no século XIX humanos seriam perfeitamente racionais e lógicos e que, em qual- quer interação, sempre buscariam ampliar ao máximo seus lucros. Porém, na vida real, as pessoas não são assim. Seja porque não têm todas as informações disponíveis, seja porque agem conforme outros motivos que não a estrita razão – a partir de valores culturais ou emocionais, por exemplo –, ou mesmo pelo simples fato de que não é incomum que as pessoas não sejam muito boas usando apenas a lógica. Um exemplo extremo desse problema é mostrado na imagem a seguir. Na tentativa de utilizar teorias matemáticas para explicar a situação políticana Europa no final do século XIX, o cientista político Frank Zagare pressupôs que o líder da Alemanha à época, Otto von Bismarck (1815-1898), fosse per- feitamente lógico, consciente de todas as ações dos líderes dos outros países, e de todas as consequências possíveis para cada movimento seu. Zagare, em sua análise, criou uma espécie de homo economicus, porém, ligado à história. Os gráficos apresentariam as supostas ações e reações matematicamente possíveis a cada decisão de Bismarck, nas possíveis alianças com os diversos países. Jamais existiu alguém, no mundo, que fosse dessa forma perfeitamente lógico. Figura 7 - O sistema de Bismarck. Fonte: ZAGARE, 2014, p. 83. 2 E, ao não serem perfeitamente lógicas, é comum que as ações indi- viduais produzam consequências que são, além de indesejáveis, possivelmente contrárias ao objetivo inicial. Como afirmou o his- toriador inglês Edward Carr (1892-1982): São fatos sobre as relações de indivíduos entre si em sociedade e sobre as forças sociais que, a partir das ações individuais, produzem resulta- Teorias da História – 110 – dos que nem sempre concordam e, às vezes, se opõem aos resultados que pretendiam (CARR, 2011, p. 87). 2 Além disso, ao se buscar explicar a motivação de um único indi- víduo, corre-se o risco de cair no voluntarismo próprio da escola metódica, ou seja, o da pessoa que agiria sem sofrer qualquer pres- são social ou contextual – como Solano Lopez que, na concepção metódica da Guerra do Paraguai, pareceu simplesmente “decidir” iniciar uma guerra contra o Brasil. 2 Durante a Revolução Francesa, no século XVIII, ocorreu um epi- sódio curioso: o rei da França, Luís XVI, temeroso de ter seu poder ainda mais diminuído pelo movimento revolucionário, resolveu fugir de Paris, em 1791. Foi identificado poucos quilômetros antes de alcançar seu objetivo e capturado na cidade de Varennes. Um cidadão local, Jean-Baptiste Drouet, reconheceu o rei porque a face da realeza estava representada em moedas. Luís XVI acabou acu- sado de traição e foi guilhotinado menos de dois anos depois. Que destino teria tomado a Revolução Francesa caso Luís XVI tivesse chegado a Montmédy, uma cidadela fortificada, que era seu destino? Drouet poderia não estar naquele lugar, o rei poderia não ter aparecido na janela de sua carruagem, as moedas à disposição, quem sabe, pudessem estar desgasta- das. Infelizmente, porém, não temos como saber como quaisquer mudanças teriam afetado o desenrolar dos fatos. De qualquer forma, e para nossa análise de causas, mesmo que algo tivesse ocorrido de maneira diferente, as ações individuais estariam sempre dentro de determinados contextos, seriam moti- vadas e limitadas por eles. Não ocorrem no vácuo social e são dependentes das circunstâncias. Considerar a agência humana, ou ter atenção a sua psicologia (nos termos de Bloch), não significa desconsiderar a estrutura. Ao buscarmos as causas de ações individuais, portanto, devemos estar sempre atentos a todos esses problemas e considerar a inserção do indivíduo dentro de seu grupo social, suas crenças, suas possibilidades e interesses. Ten- derão a ser mais sólidas as explicações causais que não estejam restritas a um único evento (“Por que Luís XVI quis fugir de Paris?”), mas que analisem grupos de indivíduos por um período razoável de tempo. Nesses casos, pode- -se constatar, com mais segurança, o que as pessoas consideram mais valioso e como orientam suas decisões. – 111 – A busca por uma ciência histórica no século XIX Diferentes níveis de causa Qualquer evento terá diferentes níveis de causa, que devem ser con- siderados na análise histórica. O assassinato do Arquiduque Francisco Fer- dinando do império Austro-húngaro, em 28 de junho de 1914, precipitou os acontecimentos que levaram à Primeira Guerra Mundial. Não se pode afirmar, porém, que esse homicídio tenha causado a guerra, o que seria o mesmo que dizer que o assassino, Gavrilo Princip, teria provocado, sozinho, o conflito. Porém, e ao mesmo tempo, trata-se de um evento que não pode ser simplesmente desconsiderado. Foi um fato importante: mas sua importância é definida pelo contexto. A diferenciação entre causas estruturais e imediatas é comum em histó- ria. A morte do Arquiduque foi um evento imediato, mas que deve ser enten- dido pelo impacto provocado em uma estrutura já dada. O historiador inglês Lawrence Stone (1919-1999), em seu trabalho sobre a Revolução Inglesa, apresentou uma sugestão para diferenciar níveis causais: dividiu sua análise em pré-condições (eventos de até um século antes), causas precipitantes (em torno de uma década), e gatilhos (no curto período de cerca de dois anos). Desta maneira teve condições de discutir os diferentes níveis causais, pesando o impacto relativo de diferentes acontecimentos. Quando mais impactante for um pequeno evento, mais relevante é a análise do contexto e das condições que tornaram aquela pequena ação em algo fundamental. É por isso que se torna importante considerar a maneira como diferentes níveis causais operam em qualquer análise histórica. Diferentes tipos de causa Dificilmente a história trabalha apenas com uma única causa. Mesmo os mais simples problemas históricos demandam análises culturais, econômicas, políticas, sociais. A atenção com a multiplicidade causal deve, porém, tomar alguns cuidados específicos. 2 Os diferentes tipos de causas interagem entre si. As condicionantes culturais afetam e são afetadas por questões políticas, econômicas ou sociais. 2 Causas econômicas não geram apenas consequências econômicas. O mesmo vale para outros campos da realidade. Um evento com- Teorias da História – 112 – portamental, como a chamada “revolução sexual”, não tem como suas causas apenas questões culturais. No caso do Brasil, em que essa mudança ocorreu especialmente a partir dos anos 1970, exis- tem questões sociais (como o processo de urbanização), políticas (enfraquecimento da censura), técnicas (barateamento do processo de impressão e publicação de revistas), científicas (surgimento da pílula anticoncepcional) entre outros fatores que fazem parte da explicação causal. 2 Nem todas as influências são igualmente importantes e deve-se saber distinguir sua relevância no objeto de análise. Se nos pro- pomos a analisar os modelos de relacionamento conjugal no Bra- sil do início do século XX, as questões econômicas terão alguma importância, mas serão menos influentes que aspectos religiosos ou comportamentais. A economia influencia, por exemplo, o número de casamentos ou a renda familiar. Porém, com ou sem crises, os casamentos continuaram sendo monogâmicos, heterossexuais, visando à estabilidade da instituição familiar com a mulher pos- suindo menos direitos em relação ao marido etc. Como ilustração desse problema, o historiador estadunidense David Fis- cher (nascido em 1935) conta a anedota de um aluno que compareceu a um exame diante de uma banca de professores, munido de um conjunto de cartas, cada uma trazendo uma única palavra – “polí- tica”, “econômica”, “constitucional”, “religiosa”, “militar”, “intelectual”, “educacional”, “diplomática”, “demográfica”, “cultural”, “social” e “mis- celânea”. Diz-se que ele respondeu cada uma das questões colocadas consultando os cartões e enumerando “fatores” em cada categoria, dando igual tempo para cada uma (FISCHER, 1970, p. 176). Em busca de causas Cada problema histórico demanda um diferente conjunto de causas, além de métodos e temporalidades específicas para serem buscadas. Algumas regras gerais sobre a busca de causas históricas podem, porém, ser apresentadas. A causa sempre é antecedente ao evento. Esta é a regra filosófica mais básica em relação à causalidade, pois as causas, seja em história, seja em tudo mais, sempre devem anteceder as consequências. Ainda queseja uma lei primária, – 113 – A busca por uma ciência histórica no século XIX há casos em que historiadores identificam como causas eventos que foram produzidos posteriormente às supostas consequências, o que evidencia um grave problema cronológico. Mas há, além disso, explicações em que a ante- rioridade não é tão explícita: é o preconceito que gera a discriminação social ou o inverso? Este é um exemplo de dois fatores que se reforçam mutua- mente: o preconceito reforça a discriminação social, que por sua vez reafirma o preconceito. Em tais situações, é difícil diferenciar causa e consequência. A causa está sempre próxima, tanto no tempo, quanto no espaço. Eventos distantes não podem ser considerados como causa: é possível dizer, por exem- plo, que a revolução cubana de 1959 influenciou a juventude urbana do Brasil nos anos 1960, que se engajou na luta armada contra a ditadura militar. Mas, para isso, deve-se demonstrar que os jovens, no Brasil, tinham informações sobre a revolução: a partir da mídia, de testemunhos de pessoas que vieram ao país, de professores que ensinavam sobre o tema. Ainda que tenha sido um evento distante, a causa foi, digamos, “aproximada” pelas várias formas pelas quais as informações sobre a revolução circularam no Brasil. Eventos históricos tendem a ser multicausais. A realidade não é comparti- mentalizada com caixas separando a “economia” da “política” e da “religião”. As causas de um evento devem ser buscadas, portanto, na complexidade que forma a própria realidade. Deve-se atentar aos diferentes níveis de causalidade. Isso significa conside- rar tanto as causas imediatas quanto as intermediárias e as mais estruturais. Quanto mais imediata e factual for a causa, mais ela tenderá a ser resultado de opções e escolhas individuais. Quanto mais estruturais forem, mais serão devido a permanências sociais e, portanto, tenderão a direcionar as opções dos indivíduos. Causas podem ser encontradas porque eventos se repetem. Vimos o exemplo da bola: podemos chutá-la quantas vezes quisermos para nos certificarmos de que o chute é a causa de seu movimento; foi dito, também, que algo seme- lhante não poderia ser feito com a Revolução Francesa, por ser um evento que não se repete. Mas isso não é exatamente verdade. Ainda que só tenha ocor- rido uma única vez, vários dos acontecimentos que constituíram a Revolução podem ser encontrados em incontáveis sociedades e períodos: sabemos, por exemplo, que a desestrutura financeira de um país tende a criar instabilidade política; que injustiças tributárias ou políticas podem levar a protestos; que, Teorias da História – 114 – diante de uma situação social de medo, podem surgir ações violentas, seja por parte do estado, seja por parte da população; que novas ideias, quando divulgadas socialmente, podem produzir novas análises da realidade e, talvez, novas ações. Causas são sempre prováveis. Vimos no capítulo anterior que, segundo Voltaire, não existe certeza histórica. Essa é uma afirmação que continua valendo: todas as explicações causais são sempre prováveis. Caso contrá- rio, cairíamos no determinismo ou, ainda mais grave, na inevitabilidade. A Guerra do Paraguai foi inevitável? A Primeira Guerra Mundial foi inevitável? A ascensão das democracias no Ocidente, no século XX, foi inevitável? Essas são, na verdade, questões metafísicas que não podem ser respondidas por meio da consulta a fontes históricas. São, assim, problemas filosóficos. “As causas, em história como em outros domínios, não são postuladas. São buscadas” (BLOCH, 2001, p. 158). Ou seja, devem ser encontradas nos documentos, nas análises, na relação com outros eventos do período. As cau- sas devem concordar com os dados da pesquisa. Da teoria à prática Neste capítulo, trabalhamos com algumas características da escola metó- dica – especialmente a centralidade do acontecimento, o foco nos “grandes homens” e na política, a naturalidade do fato, a temporalidade linear, o pri- vilégio às fontes escritas. Trata-se de um modelo de se pensar a história que, durante muito tempo, foi dominante nos livros didáticos. Atualmente, os manuais educativos procuram estar atualizados em relação às mais atuais cor- rentes historiográficas e, por isso, buscam evitar abordagens que eram comuns à escola metódica. Mas será que, nos dias de hoje, podemos encontrar vestígios daquela abordagem tradicional, fundada no fato, na política e na “decoreba”? Analise livros didáticos atuais de história, seja do ensino fundamental, seja do ensino médio, e procure identificar exemplos de permanências em textos, abordagens, atividades que ainda são semelhantes ou mesmo idênti- cas àquelas dos metódicos. Ainda existem livros didáticos que possuem uma concepção de história próxima àquela tradicional? Procure discutir seus resul- tados e, é claro, identificar as causas que expliquem suas conclusões. – 115 – A busca por uma ciência histórica no século XIX Síntese A busca por causas em eventos históricos deve ser feita considerando- -se sua multiplicidade e as diferentes temporalidades: causas mais imedia- tas agem de maneira diversa daquelas mais estruturais. Além disso, deve-se compreender como a noção de causalidade é consequência de determinada concepção mais ampla de história; é por isso que, mesmo os criadores de uma perspectiva dita “científica” da história, como Ranke – mas especialmente os metódicos – desenvolveram uma concepção bastante limitada de causalidade histórica, consequência de sua visão, também reduzida, do papel da análise teórica nos estudos históricos. Atividades 1. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, Ranke foi mais um metodólogo que um filósofo da história. Foi o “maior mestre do método crítico filológico”. Lutando contra o ana- cronismo, denunciou o falso romanesco histórico, por exemplo, nos romances de Walter Scott e afirmou que a grande tarefa do historia- dor consistia em dizer “o que de fato existira”. Ranke empobreceu o pensamento histórico, atribuindo excessiva importância à história política e diplomática (LE GOFF, 1990, p. 91). A respeito das concepções históricas de Leopold von Ranke, é cor- reto afirmar: a) Desenvolveu uma literatura de ficção para temas históricos, popu- larizando a história enquanto gênero popular, o que ajudou a difundir o conhecimento histórico. b) Caracterizou-se pela crença na subjetividade do historiador, na existência de diferentes narrativas possíveis à história, e pela adoção de uma perspectiva cultual. c) Acreditava que o pensamento histórico deveria ser baseado na mate- mática, de modo a construir modelos lógicos de análise dos fatos. d) Procurou construir uma ciência histórica baseada no primado do fato, na busca pela objetividade, e na análise da formação dos Esta- dos nacionais. Teorias da História – 116 – e) Centrou sua atenção nas camadas populares, e na busca por uma história que desse voz aos desprivilegiados na história, como traba- lhadores, servos, e escravos. 2. Na edição de 1965 de seu livro didático “História moderna” (uti- lizado nas escolas brasileiras no que seria hoje o ensino médio), o historiador Estevão Pinto afirmou sobre a maneira pela qual estru- turou sua obra: Relativamente ao método, segui, tanto quanto possível, o dos exce- lentes manuais de Seignobos, de Lavedan, de Bloch, de Hallynck (...), assim como o das obras que compõem os Cours d’Histoire de Jules Isaac, os Cours Vallèe e a Colection Jean Monnier. (...) Não tive preten- são de ser de todo original. Colhi desses autores tudo o que pudesse servir à finalidade do presente livro, algumas vezes acompanhando-os literalmente (PINTO, 1965, p. 7-8). A respeito da concepção de história que se depreende desse trecho, assinale as afirmativas abaixo com V quando forem verdadeiras, e F, quando falsas.I. ( ) A referência a autores como Seignobos demonstra a influência da escola metódica francesa nos manuais escolares do Brasil, ainda na segunda metade do século XX. II. ( ) O autor deixa claro como, apesar de se utilizar de outros autores, participa da construção de um modelo brasileiro de manuais didá- ticos que diferem dos europeus. III. ( ) As concepções históricas presentes nesse trecho são caracte- rísticos de uma abordagem economicista da história, ou seja, de influência marxista. IV. ( ) Para o autor, os fatos históricos seriam sempre iguais e jamais mudariam, tornando possível copiar integralmente outros textos, pois a história já estaria escrita. Assinale a alternativa que indica a sequência correta. a) V, V, F, F. b) F, F, V, F. c) F, V, V, F – 117 – A busca por uma ciência histórica no século XIX d) F, F, V, V. e) V, F, F, V. 3. Segundo o historiador inglês Robin Collingwood (1889-1943), cada nova geração deve reescrever a história de sua própria maneira; cada novo historiador, não contente em dar novas respostas a antigas questões, deve revisar as próprias questões; e – já que o pensamento histórico é um rio no qual não se pode mergulhar duas vezes – mesmo um único historiador, trabalhando em um único tema por um certo período de tempo, descobre quando ele tenta reabrir uma velha ques- tão, que a questão já mudou (COLLINGWOOD, 1956, p. 248) Nesse trecho, Collingwood argumenta que o conhecimento his- tórico também muda, conforme mudam as formas de se pensar a respeito do pesquisar e escrever história. Isso implica, também, em maneias diferentes de se pensar a ideia de “causa” ou de “cau- salidade” nas análises de eventos históricos. Sobre essa questão, é correto afirmar: a) As causas histórias são sempre as mesmas, independentemente dos historiadores, pois eventos devem ser entendidos de forma objetiva. b) A questão da análise das causas não é uma preocupação da história, pois esta deve se preocupar em narrar os fatos, não em explicá-los. c) A ideia de causa, na escola metódica, era bastante aprofundada, e tornou-se essencial nos estudos de historiadores como Charles Seignobos. d) Diferentes escolas históricas possuem diferentes noções de causali- dade, que devem estar de acordo com sua concepção geral de história. e) Em história, as causas sempre devem ser buscadas na economia, que é a razão primeira das mudanças que ocorrem nas sociedades. 4. A respeito da chamada doutrina positivista, é correto afirmar: a) Foi baseada na religião Católica, originando estudos históricos que visavam criar o bem estar dos leitores. b) Pretendia abolir os estudos das ciências naturais, centrando-se ape- nas na análise da sociedades e sua melhoria. Teorias da História – 118 – c) Foi desenvolvida pelo historiador francês Charles Langlois, como forma de combater as concepções metódicas. d) Buscava construir um conhecimento totalmente objetivo da socie- dade, a partir de dados obtidos pela experiência. e) É parte importante dos estudos históricos ainda nos dias de hoje, por conta de seus princípios teóricos. 5 O início de uma historiagrafia brasileira Como a teoria dirige o olhar do historiador e o ajuda a ela- borar explicações? Como influencia seu trabalho, na leitura das fon- tes, na busca por respostas, e na construção de explicações? Nesse capítulo iremos estudar os momentos iniciais da historiografia bra- sileira, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, além dos trabalhos de Francisco Adolfo de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Procuraremos analisar, além dos objetivos políticos desses primeiros estudos históricos, como diferentes concepções teóricas sobre a história geram diferentes significados para o passado, mesmo que utilizem um mesmo conjunto documental. Teorias da História – 120 – 5.1 Da fundação do IHGB a Francisco Adolfo de Varnhagen Figura 1 - Primeira missa no Brasil. Fonte: Meirelles, Vitor. Primeira missa no Brasil. 1861. A pintura Primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, concluída em 1861, é uma das mais conhecidas do País, especialmente por ser constante- mente reproduzida em livros didáticos. Retrata o que teriam sido os eventos de 26 de abril de 1500, quando Pedro Álvares Cabral ordenou a realização de uma missa para celebrar a chegada dos portugueses naquele território. Produzida pouco menos de 40 anos após a independência, a obra de Meirelles acompanhava uma tendência do período para a criação de pintu- ras com temas históricos, parte de todo um esforço para a criação de uma identidade nacional. Instituições de preservação da memória como a Biblio- teca Nacional, o Arquivo Público Nacional, o Museu Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) atuaram ativamente na construção dessa identidade. O que nós entendemos hoje como uma identidade brasileira ou “ser brasileiro” é o resultado de um processo criado e fortalecido no século XIX. Quando ocorreu a Independência, em 1822, não existia um país unificado, mas sim uma ex-colônia na qual diferentes regiões mantinham poucas relações entre si, organizadas, até aquele momento, para manter contatos administra- – 121 – O início de uma historiagrafia brasileira tivos e legais diretamente com a Metrópole (Portugal). Em 1833, ou seja, 11 anos após a independência, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire ainda salientava essa divisão territorial: Cada capitania tinha seu sátrapa1, cada qual com seu pequeno exér- cito; cada uma com seu pequeno tesouro. Comunicavam-se dificil- mente entre si; frequentemente mesmo, ignoravam reciprocamente suas existências. Não havia, absolutamente, no Brasil, um centro comum; era um círculo imenso cujos raios iam convergir bem longe da circunferência (SAINT-HILAIRE, 1941, p. 431). As pessoas, do norte ao sul do território, não imaginavam fazer parte de um mesmo “país” ou ter alguma identidade comum (à parte de com- partilharem religião e idioma); muito menos existia qualquer sentimento de “brasilidade”. O ano de 1822 marcou tanto o início de um processo de inte- gração política e manutenção territorial da ex-colônia quanto a busca pelo desenvolvimento de sentimentos patrióticos que viriam aliar o ideal de uma Nação ao de um Estado. Os estudos históricos participaram ativamente desse processo, pois se fazia necessário justificar, a partir de determinada herança, a construção de uma unidade nacional. Em outras palavras, o país que se formava, neces- sitando de uma identidade, precisava de um passado que fosse próprio, ou seja, de sua própria história. Fundado em 1838, o IHGB era uma ins- tituição que tinha, prioritariamente, esses objetivos. Procurou atingi-los, inicialmente, a partir da organização e da guarda de documentos importan- tes sobre o passado do Brasil, bem como da produção de textos, didáticos ou não, relativos à história nacional. Formado por pensadores de diversas atividades e ligado intimamente ao poder monárquico (D. Pedro II seria um de seus membros mais efetivos, além de seu principal financiador), o IHGB desempenhou uma função importante de criação de um passado nacional que auxiliasse no desenvolvimento do patriotismo e participasse da construção de um poder centralizado forte; isso era feito, aliás, com a produção de uma história nacional que valorizava a herança portuguesa na colonização do País. Parte importante da tarefa do IHGB era, em resumo, a construção de uma “história do Brasil”. 1 Sátrapas eram os governantes locais na antiga Pérsia. No contexto, Saint-Hilaire está se referindo aos poderosos senhores locais. Teorias da História – 122 – Saiba mais Durante o período colonial, uma parcela da elite que recebia instru- ção formal estudava história, embora fosse ensinada em conjunto com temas religiosos e com preocupaçãopara eventos europeus. De toda forma, mesmo antes da Independência já haviam sido escritas “histó- rias do Brasil”: a primeira, do Frei Vicente do Salvador (1564-1636), é do início do século XVII, na qual preocupou-se em descrever a vida no Brasil do período; outra foi publicada no século XVIII pelo escritor Sebastião da Rocha Pita (1660-1738) e se caracterizava mais como uma novela histórica; e uma terceira pelo escritor britânico Robert Southey (1774-1843), nas primeiras décadas do século XIX. Essas duas últimas descreviam o Brasil como um paraíso tropical e pouco influenciaram os estudos posteriores de história. O texto de Vicente do Salvador ainda é utilizado como fonte sobre a vida no período colonial.. A necessidade de criação de uma história nacional era tanta que o IHGB chegou a criar um concurso que tinha exatamente como proposta premiar aquele que apresentasse a melhor sugestão para escrever a história do Brasil. Estamos tão acostumados com os períodos e os eventos essenciais da história nacional que pode nos parecer um tema natural ou que “sempre exis- tiu”. Mas tanto o objetivo daquele concurso como as primeiras reuniões do IHGB atestam quantas discussões e debates se fizeram necessários para criar os elementos essenciais dessa história: ainda em 1838, Raymundo da Cunha Matos, um dos fundadores do Instituto, propunha a seguinte periodização da história do Brasil: Sejam três as épocas da nossa história: na 1ª trate-se dos aborígenes ou autóctones; em a 2ª compreendam-se as eras do descobrimento pelos portugueses, e da administração colonial; e a 3ª abranjam-se todos os acontecimentos nacionais desde o dia em que o povo bra- sileiro se constituiu soberano e independente, e abraçou um sistema de governo imperial, hereditário, constitucional e representativo (MATTOS, 1863, p. 129). – 123 – O início de uma historiagrafia brasileira Até o fato que nos pode parecer evidente, da “descoberta do Brasil” – tão famoso dentro do ensino de história no País –, foi motivo de controvérsia: enquanto alguns defendiam a primazia de Pedro Álvares Cabral como des- cobridor, outros acreditavam que seria mais “científico” conceder esse título a Vasco da Gama. Em uma coisa, porém, todos concordavam: a história do Brasil teria começado, realmente, com a chegada dos portugueses e o que traziam do que se imaginava ser a “civilização”. O modelo de história que os membros do IHGB desejavam construir era, também, reflexo direto da forma como boa parte da elite do País entendia a si mesma. Acreditavam que os brancos europeus, descendentes de portugue- ses, foram responsáveis pela colonização e pela integração do Brasil à história europeia. Portanto, defendiam que seria função dessa elite branca “civilizar” o País, o que os tornava os principais agentes da história nacional. Não é à toa que seus trabalhos historiográficos tratam sempre de maneira muito rápida e sumária da população indígena e dos escravos, além de defenderem, de forma insistente, a monarquia e a estrutura social estabelecida. Além disso, possuíam uma concepção nacionalista bastante forte, da qual foi construída, aliás, uma diferenciação que ainda é presente em mui- tos livros didáticos de História: a separação clara entre “história do Brasil” e “história geral”2. Imaginavam, por fim, que a religião católica desempe- nhava um papel importante na formação da nacionalidade brasileira e de sua ação civilizatória. A fama e a difusão da pintura de Meirelles sobre a primeira missa deve-se também ao fato de que conseguiu capturar, em imagens, essa específica con- cepção de história e de civilização próprias da elite nacional e do IHGB. Ao centro da imagem está a cena religiosa e, próximos à cruz e ao altar, os portu- gueses: a civilidade europeia e seu fundamento na religião católica aparecem como os símbolos centrais do quadro, representando o que pensavam ser o ideal do Brasil para o período. Mais afastada, uma multidão de indígenas 2 A maior parte dos livros didáticos de história que estão hoje à disposição de profes- sores e alunos prefere a organização dos conteúdos no modelo da chamada “história integrada”, ou seja, aliando a história nacional à geral. Na prática, porém, essa integração não ocorre para a maioria das obras. Os temas de história do Brasil e de história geral continuam claramente diferenciados, com pouca relação entre si. A única coisa que os une é a cronologia. Teorias da História – 124 – observa com espanto e em paz: uma visão que concordava com a concepção histórica do IHGB de que a colonização teria sido pacífica e até desejada pelos habitantes locais. O vencedor do concurso criado pelo IHGB foi Carl Friedrich von Mar- tius (1794-1868), um naturalista alemão, e a razão de sua vitória é fácil de ser compreendida. Afinal, seu texto “Como se deve escrever a história do Brasil” apresentava teses que concordavam com a visão do IHGB em vários pontos, como a responsabilidade do historiador para com sua pátria, a necessidade de convencer os cidadãos “da necessidade de uma Monarquia em um país onde há um tão grande número de escravos” (MARTIUS, 1844, p. 381), a busca por compreender a “civilização” do país. Porém, a principal origina- lidade de sua proposta, bem como sua maior influência, foi a sugestão de considerar a participação “das três raças” na formação histórica do Brasil: “a de cor de cobre ou americana, a branca ou Caucasiana, e enfim a preta ou etiópica”. Afinal, segundo von Martius, “da união e contato de tão diferentes raças humanas” surgiu o novo povo, responsáveis por dar “um movimento histórico característico e particular” (MARTIUS, 1844, p. 382). Cabe destacar, porém, que von Martius não via as contribuições dessas “três raças” como iguais ou em um mesmo nível. Ainda que originassem as características específicas da formação nacional, o branco era o elemento civi- lizador e principal agente histórico. De toda forma, a sugestão de von Martius tonou-se persistente especialmente nos livros didáticos, e é influente ainda nos dias de hoje (embora com diferenças importantes de posicionamento, como veremos no “Da teoria à prática”, desse capítulo). O primeiro historiador brasileiro a produzir uma obra relevante foi Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), também conhecido por seu título nobiliárquico de “Visconde de Porto Seguro” (o que já denuncia sua proximidade com o poder imperial e a defesa da monarquia. Aliás, suas obras eram costumeiramente dedicadas a D. Pedro II). Cursos superiores de His- tória só surgiram no Brasil nas primeiras décadas do século XX e Varnhagen, assim como os demais historiadores do período, tinham outras profissões: ele era diplomata. Foi, aliás, aproveitando-se de suas atividades na diplomacia que Varnhagen trouxe para o Brasil uma grande quantidade de documen- tos históricos essenciais para a nascente atividade historiográfica do País. E, – 125 – O início de uma historiagrafia brasileira apenas a título de curiosidade, é dele também o mérito de ter redescoberto o túmulo de Pedro Álvares Cabral. De sua ampla obra historiográfica – são dezenas de livros, memórias, artigos – destaca-se “História Geral do Brasil”, lançada em meados do século XIX e na qual cria as bases de uma periodização, metodologia, e narrativa para a história nacional. Participante ativo do IHGB, Varnhagen comparti- lhava das ideias do instituto de que era função da história auxiliar a criação de uma unidade ao país. No início de sua principal obra, destaca que seu trabalho, como historiador, era o de escrever, com certa unidade de forma e com a dos princípios que professamos, uma conscienciosa história geral da civilização do nosso país, padrão de cultura nacional, que outras nações civilizadas só ao cabo de séculos de independência chegaram a possuir, ou não pos- suem ainda. (VARNHAGEN,1854, p. VI) As obras de Varnhagen são de difícil leitura, pois apresentam narrativas densas, tediosas, literariamente pouco estimulantes. Esse “estilo”, criticado por não poucos historiadores posteriores, tinha relação com determinada opção metodológica. Varnhagen renegava obras históricas consideradas por ele como “demasiado sentimentais” e que “pretendendo comover muito” che- gavam a “afastar-se da própria verdade”. O compromisso com a documenta- ção era, para ele a primeira obrigação do historiador: O amor à verdade nos obrigará mais de uma vez a combater certas cren- ças ou ilusões, que já nos havíamos costumado a respeitar. (...) E pedimos que se resignem ante a verdade dos fatos (...) [e] pelos argumentos incontestáveis que resultam das provas que, mediante aturado estudo, conseguimos reunir. (VARNHAGEN, 1854, p. XIII) Sua explícita pretensão pela verdade dos fatos e a implícita defesa de uma objetividade não impedia que seu texto refletisse suas próprias convicções polí- ticas. Defendia ativamente a monarquia, e em sua obra aparece diminuída a importância de movimentos sociais de contestação à Metrópole. Além disso, concordando com a concepção tanto do IHGB quanto da elite social e política do Brasil no período, Varnhagen pouco tratou da importância histórica dos negros para o País e da forte presença da escravidão. Afinal, como escrevia uma história da “civilização” do Brasil, acreditava que nada seria mais correto do que Teorias da História – 126 – se centrar naquele que seria o verdadeiro agente civilizador: “a história geral da civilização do Brasil deixaria de ser lógica com o seu próprio título, desde que aberrasse3 de simpatizar mais com o elemento principalmente civilizador” (VARNHAGEN, 1854, p. XXV); ou seja, o branco europeu. Para Varnhagen, escrever a história do Brasil era descrever o processo de colonização português e a expansão da religião católica no Brasil: as duas forças que ele, acompanhado por um grande número de elementos da elite brasileira e representadas em obras como a de Meirelles, entendiam como os agentes civilizadores do País. Por último, deve-se destacar a permanência das ideias de Varnhagen dentro dos estudos históricos: ainda que a estrutura cronológica que criou para a história do Brasil, bem como sua narrativa, tenham sido criticadas e combatidas (e, dentro do mundo acadêmico, gradualmente abandonadas), exerceu uma influência cujos efeitos sentimos até os dias de hoje. Afinal, na segunda metade do século XIX, o País não possuía manuais escolares dedicados à história do Brasil e o primeiro a ser escrito – por Joaquim Manuel de Macedo, membro também do IHGB e publicado em 1863 – foi influenciado fortemente pelo texto de Varnhagen. Tal adoção acabou por influenciar os demais livros didáticos por quase um século e foi uma das razões pelas quais a disciplina de História acabou ficando, durante muito tempo, marcada pelo incentivo ao patriotismo bem como à rememoração de datas e fatos – era esse, essencialmente, o modelo de Varnhagen de com- preender a história. A arte e a criação de fatos históricos Vamos colocar lado a lado a pintura de Victor Meirel- les, “A Primeira Missa” (1861), com a “Primeira Missa em Kabylie”, de Horace Vernet (1854). O que é possível notar de interessante? 3 Vem de “aberrar” que significa desviar, afastar. – 127 – O início de uma historiagrafia brasileira Figura 2 - Primeira Missa em Kabylie; Primeira Missa no Brasil. Fontes: Vernet, Horace. Primeira Missa em Kabylie. 1854 e Meirelles, Vitor. Primeira missa no Brasil. 1861. Não há dúvidas de que Meirelles utilizou-se, como modelo para sua composição, do quadro de Vernet. Na verdade, isso ocorreu com alguma frequência em algumas imagens que são ainda hoje famosas por representar eventos da história do Brasil. Repare, por exemplo, no quadro “1807, Friedland”, pintado em 1875 por Jean-Louis Ernest Meisso- nier, e no “Independência ou Morte” de Pedro Américo, de 1888. Teorias da História – 128 – Figura 3 - 1807, Friedland; Independência ou Morte. Fontes: Meissonier, Jean-Louis Ernest. 1807, Friedland”. 1807 e Américo, Pedro. “Independência ou Morte”. 1888. A posição do personagem principal no quadro, bem como seu gesto, a distribuição dos cavalos, o movimento dos demais personagens: vários são os detalhes que remetem, na pintura de Américo, à criação anterior de Meissonier. Figura 4 - Em filme de 1972, o evento da Proclamação da Independência foi reencenado, tendo como base a imagem do quadro de Pedro Américo. Isso mostra como o fato histórico acabou se confundindo com sua recriação, revelando a força da representação artística. Fonte: Independência ou morte. Direção: Carlos Coimbra. Cinedistri. São Paulo - SP, 1972. Há algo aqui mais do simples plágio e é importante para entendermos a criação de determinada história do Brasil. Buscando contribuir para o fortalecimento do ideal nacional, esses artistas procuraram criar referências visuais para a história nacional que até hoje nos acompanham (afinal, quem não as conhece?). Essas imagens se tornaram tão comuns e significativas que, muitas vezes, podemos esquecer que não são um testemunho fiel do fato histórico que representam, mas recriações posteriores que buscavam idealizar aqueles momentos. – 129 – O início de uma historiagrafia brasileira O que esses e outros tantos artistas fizeram foi tomar deter- minados modelos ou códigos de representação, comuns na arte europeia (onde a grande maioria estudou) e adaptá-los para os personagens e eventos da história brasileira. Houve uma importação de símbolos: afinal, a busca por construção de valores nacionais e a exaltação de heróis e eventos eram fenômenos pelos quais também passava a Europa. Assim, por compartilharem uma mesma influência artística, os pintores bra- sileiros repetiam modelos de representação para adaptar, ao contexto brasileiro, sentimentos e valores que estavam tam- bém sendo construídos no continente europeu. Figura 5 - Coroação de Carlos X, por François Gérard (1827); Sagração de D. Pedro II, por Manuel de Araújo Porto-Alegre (1840). Fonte: François Gérard.Coroação de Carlos X.1827 e Manuel de Araújo. Sagração de D. Pedro II. 1840. Importando esquemas artísticos e recriando-os no contexto local, os pintores brasileiros contribuíram, à sua maneira, para o reforço de criação de uma identidade nacional e a cons- trução de imagens representativas de fatos considerados rele- vantes à história do Brasil. Participaram, enfim, da criação de determinado passado. 5.2 Capistrano de Abreu “A pátria traja de luto pela morte de seu historiador”: assim começava o necrológio escrito, em 1878, para Francisco Adolfo de Varnhagen, que fale- Teorias da História – 130 – ceu aos 62 anos. Publicado originalmente no “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro, entre 16 e 20 de dezembro daquele ano, tratava-se de um texto interessante e significativo sobre as mudanças que a escrita histórica viveria nas últimas décadas do século XIX e início do XX no Brasil. Esse texto merece destaque, em primeiro lugar, por marcar a celebração de um personagem – Varnhagen – que, a despeito dos problemas teóricos e mesmo políticos levantados por sua maneira de pensar a história do Brasil, inaugurou certa tradição historiográfica. E isso é valorizado no necrológio, ao destacar sua preocupação com a busca pela precisão dos eventos históricos, sustentada pelos “fatos materiais por ele descobertos, ou retificados, [que] igualavam, se não excediam, aos que todos os seus predecessores tinham aduzido”. O necrológio é importante, também, por conta de seu autor: o historia- dor Capistrano de Abreu (1853-1927), cujas ideias inovadoras sobre a prá- tica histórica apareceram de forma explícita no texto. Capistrano ainda era um jovemhistoriador quando escreveu a homenagem a Varnhagen – tinha apenas 25 anos – mas, ainda assim, procurou evidenciar os problemas que percebia na escrita da história do Brasil naquele momento e da qual Varnha- gen era, sem dúvida, o maior representante. Mais do que isso, e ainda que sucintamente, Capistrano utilizou-se da oportunidade para, entre elogios ao Visconde de Porto Seguro, sugerir novas abordagens históricas que, ao longo dos anos, caracterizou seu trabalho. Figura 6 - Tempos de vida de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Fonte: Elaborado pelo autor. Em síntese, o necrológio tornou-se o marco de uma mudança nas concep- ções sobre a maneira de se pensar e escrever a história do Brasil: um momento de passagem entre duas concepções contrastantes de história e teoria. Capistrano procurou marcar essa diferença, inicialmente, evidenciando o que seriam defeitos na obra de Varnhagen: – 131 – O início de uma historiagrafia brasileira A falta de espírito plástico e simpático – eis o maior defeito do Vis- conde de Porto Seguro. (...) Os pródromos4 da nossa emancipação política (...) encontram-no severo e até prevenido. Para ele, – a Con- juração Mineira é uma cabeçada e um conluio; (...) a Revolução Per- nambucana de 1817, uma grande calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de inteligência estreita, ou de caráter pouco elevado. Sem D. Pedro a independência seria ilegal, ilegítima, sub- versiva, digna da forca ou do fuzil. Juiz de Tiradentes e Gonzaga, ele não teria hesitado em assinar a mesma sentença que o desembargador Diniz e seus colegas. (ABREU, 2010, p. 63) Capistrano evidenciou o que aparentava ser uma diferença de visão polí- tica entre os dois historiadores, embora fosse mais do que isso. Vimos como as concepções conservadoras de Varnhagen estavam totalmente de acordo com sua visão de sociedade e de história: se a civilização do Brasil era devida à ação dos portugueses, e se a organização política legítima era aquela herdada da Europa, todas as ações coloniais que atentavam contra o poder constituído – ou seja, contra aquele poder civilizador dos predecessores de D. Pedro I e II – eram vistas como ameaçadoras da ordem, e retrocessos. Já para Capistrano, aqueles eventos não eram contrários a um processo de construção do Brasil, muito pelo contrário: eram sinais evidentes do nascimento, gradual, de um sentimento de nacionalidade, de brasilidade que se formava. Há duas visões de história e sociedade brasileiras muito diferentes aqui. Varnhagen voltava seu discurso histórico para a Europa: era de lá que vinha a civilização, foi com os portugueses que surgiram as instituições, a língua, a religião. Era da tradição das dinastias monárquicas europeias que se marcava a legitimidade do Estado brasileiro e, daí, sua inserção no mundo civilizado e mesmo na história. Capistrano, opostamente, virava seu discurso para o inte- rior do Brasil: procurou encontrar, nos processos de interiorização do País, sua efetiva construção histórica, que se diferenciava da Europa. Era daí que vinha sua valorização de movimentos como a Inconfidência Mineira ou a Revolução Pernambucana de 1817: seriam sinais de que o Brasil, antes do processo de Independência, já construía um sentimento de brasilidade, de diferença em relação ao português-europeu. Capistrano investiu muito de sua carreira de historiador desenvolvendo essa análise. Seu primeiro ensaio original, “O descobrimento do Brasil pelos 4 Antecessores, precursores. Teorias da História – 132 – portugueses”, de 1883, já trazia alguns elementos dessa concepção: de maneira original, utilizou-se de estudos sobre os indígenas e o folclore nacional além de pesquisas na área da linguística para analisar a viagem de Cabral e os pri- meiros contatos estabelecidos com indígenas (FRINGER, 1971). Porém, eram em seus textos sobre a interiorização do País que melhor se podiam perceber as concepções teóricas e a visão de história desenvolvidas por Capistrano de Abreu. Foi, por exemplo, em sua obra “Caminhos anti- gos e povoamento do Brasil”, de 1889, que os bandeirantes paulistas foram considerados, pela primeira vez, um tema historicamente importante. Até então, sua relevância histórica estava limitada às ações contra o Quilombo dos Palmares; o que é de se compreender, pois, se a visão histórica até aquele momento pretendia sublinhar a organização de um Estado português no Bra- sil, valorizava-se o que se acreditava ser, com Palmares, uma desestabilização da ordem. Para Capistrano, porém, esses bandeirantes estavam entre os pri- meiros que participaram da criação de um modo de vida especificamente brasileiro. Afinal, sem recursos de Portugal, abriram caminhos pelas matas, entraram em contato direto com os indígenas (de forma violenta) e expan- diram o território do Brasil em direção ao interior. Nessa visão, portanto, os bandeirantes eram “brasileiros”, pois não mantinham relações com a estru- tura política portuguesa. Capistrano de Abreu nunca escreveu obras muito longas ou uma “his- tória do Brasil” completa, como a de Varnhagen. Isso foi consequência – segundo ele mesmo admitiu – do tempo que dispendeu na busca, na catalogação e na crítica de fontes primárias. Em uma de suas poucas obras de maior fôlego, “Capítulos de História Colonial”, de 1907, manteve a preocupação teórica central de encontrar na história do interior do País sinais do surgimento do povo brasileiro em sua especificidade. Para Capis- trano, episódios como a expulsão dos holandeses do Brasil, no século XVII, eram sinais claros da presença de uma identidade local que seria refletida em outros eventos de contestação ao poder da Metrópole – os mesmos que eram vistos com desconfiança por Varnhagen. Capistrano acreditava que tenha sido justamente a existência desse sentimento nacionalista que teria permitido um processo de Independência tão tranquilo, como acreditava ter sido o caso do Brasil. – 133 – O início de uma historiagrafia brasileira Havia, assim, uma divergência entre os dois historiadores sobre quem seriam os principais agentes históricos no Brasil. Para Varnhagen, eram cla- ramente os “grandes homens”: nisso, seguia uma interpretação comum do período a respeito da história. Já Capistrano acreditava que a história deveria se ocupar em entender as populações, e não se preocupar em demasia com as ações de apenas alguns indivíduos. Certa vez, chegou a brincar que seu desa- fio era demonstrar ser possível escrever uma “história do Brasil” sem sequer mencionar o nome de Tiradentes. Na história, nós apenas nos dirigimos àquelas figuras dominantes, aquelas que destruindo ou construído, deixaram para trás um rastro de sangue, ou um raio de esperança. Nós não nos lembramos dos ombros que os ergueram, ou da coragem das massas que os deu sua força, a mente coletiva que exaltava suas mentes, das mãos anônimas que lhes assinalaram o ideal que somente haveriam de alçar os mais afortunados. E com frequência a cooperação da pessoa anônima foi a mais vital na realização do grande acontecimento. (ABREU apud FRINGER, 1971, p. 261) Tais conclusões originais foram o resultado, segundo o próprio Capis- trano de Abreu, de seu desejo de construir análises amplas sobre a história do Brasil. Para ele, o historiador deveria dialogar com concepções teóricas que o permitissem sair do simples empirismo, ou seja, da mera descrição de aconte- cimentos presentes nos documentos. Era um problema que, aliás, acreditava existir nos textos de Varnhagen: Ele [Varnhagen] poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a autenticidade, solver enigmas, desvendar mistérios, nada deixar que fazer a seus sucessores no terreno dos fatos: compreender, porém, tais fatos em suas origens, em sua ligação com fatos mais amplos e radicais de que dimanam; generalizar as ações e formular-lhes teoria; repre- sentá-lascomo consequências e demonstração de duas ou três leis basilares, não conseguiu, nem consegui-lo-ia. (ABREU, 2010, p. 64) “Sinais de renascimento nos estudos históricos já se podem perceber”, afirmou Capistrano de Abreu (2010, p. 65), quase ao final de seu elogio à memória de Varnhagen: “por toda parte pululam materiais e operários; não tardará talvez o arquiteto”. Foi na busca por tornar-se esse arquiteto, incor- porando concepções teóricas aos dados empíricos, que Capistrano definiu a novidade de sua abordagem histórica. Teorias da História – 134 – Historiografia e Teoria: A construção do significado do passado Assim Capistrano iniciou o último parágrafo de seu necrológio: Que venha [um historiador] e escreva uma história da nossa pátria digna do século de Comte e Herbert Spencer. (...) Guiado pela lei do consensus, mostre-nos o rationale de nossa civilização, aponte-nos a interdependência orgânica dos fenômenos, e esclareça uns pelos outros. Arranque das entranhas do passado o segredo angustioso do presente. (ABREU, 2010, p. 65) Saiba mais Aqui, Capsitrano cita dois pensadores importantes do século XIX, Comte e Spencer. Sobre Augusto Comte, falamos rapidamente no capítulo anterior; ele foi o criador do sistema filosófico denominado de “positivismo”. Herbet Spencer (1820-1903), por sua vez, foi um filósofo inglês que pensava as sociedades de forma semelhante à maneira que o biólogo Charles Darwin pensava a seleção natural. O “darwinismo social” de Spencer pregava que as sociedades evoluíam, das mais simples às mais complexas, a partir de regras semelhantes que definiam o processo evolucionário na biologia. Quando Capistrano pedia para que algum historiador revelasse a “ratio- nale de nossa civilização” estava sugerindo a existência, por detrás da multidão de fatos do passado, de determinada razão – rationale. O projeto final de um historiador não seria, portanto, a mera descrição ou narração dos fatos, como no modelo de Varnhagen, mas a identificação de certa “lógica” do passado. Observe-se, por exemplo, um trecho do índice da obra “História do Brasil”, de Varnhagen. É possível perceber que não há recortes temporais, busca por causas ou construção de um entendimento mais abrangente além dos fatos. Há, no máximo, temas. – 135 – O início de uma historiagrafia brasileira Figura 7 - Trecho do índice da “História do Brasil” de Francisco Varnhagen. Fonte. VARNHAGEN, 1854, p. 624. Os eventos históricos da obra são centrados em acontecimentos que se sucedem ininterruptamente e que poderiam ser transformados em manche- tes de jornal: são pouco mais que fatos, datas e descrições. Não há análises amplas, busca pela compreensão de períodos e muito menos – para utili- zarmos a expressão de Capistrano – a busca pela identificação de qualquer rationale, qualquer razão ou lógica nos períodos. Convém dizer que esse era o objetivo de Varnhagen, e não o resultado aleatório de seu esforço. Logo no começo de sua obra, ele estabelece que a restrição às análises e a preocupação com a mera descrição dos fatos estavam entre seus primeiros objetivos. Igualmente nos esforçamos por não ser pródigos nas narrações, nem pretensiosos nos juízos e análise dos acontecimentos; pondo o maior empenho em comemorar (...) os fatos mais importantes, e esme- rando-nos em os descrever com a maior exatidão possível. (VARH- NAGEN, 1854, p. XII) Apenas a título de comparação, atualmente historiadoras e historiadores agrupam a história em períodos justamente por considerarem que há, dentro de certos recortes temporais, identidades que podem ser identificadas. É por isso que temos condições de denominar períodos como “Renascimento”, ou “Antigo Egito”. No caso da história do Brasil, a divisão mais tradicional é a política: Colônia, Império, República Velha, Vargas, República Populista, Teorias da História – 136 – Ditadura, República Nova, sendo que esses recortes podem sofrer subdivi- sões. Outras periodizações são possíveis, a depender da perspectiva histórica adotada: divisões econômicas são diferentes das culturais e ambas das religio- sas, por exemplo. O objetivo de Capistrano com a adoção de uma visão teórica que ser- visse para analisar a história do Brasil era o de evitar o modelo narrativo e minimamente analítico de Varnhagen (um tipo de texto que Capistrano descrevia como sendo feito de “quadros de ferro”). A função do historiador- -arquiteto imaginado seria, assim, a de identificar o significado do passado. Em outras palavras, por que os acontecimentos tomaram certo rumo espe- cífico? Quais foram as forças motrizes? Quem seriam os agentes históricos? Responder a tais perguntas, construindo uma síntese que concordasse com os fatos empíricos, seria o real objetivo dos historiadores. Capistrano esforçou-se em identificar os significados no passado do Brasil. Isso pode ser visto, por exemplo, na maneira como dividiu a história nacional em certos períodos, dentro de sua cronologia: 2 1500-1614, seria a época chamada “transoceânica”, marcada pela dependência em relação a Portugal; 2 1614-1700, época de migração interna e movimento, com surgi- mento de conflitos entre os habitantes locais e os europeus. 2 1700-1750, seria um período de exploração do interior, e de aumento da importação de escravos. 2 1750-1808 é marcado pela consolidação do sistema colonial, com aumento da exploração e diminuição das liberdades locais, o que amplia a animosidade em relação aos portugueses. 2 1808-1850 caracteriza-se pela desintegração do sistema colonial, e é o período em que o Brasil teria se tornado uma Nação. Essa cronologia, ainda que não tenha persistido entre historiadores, demonstra a preocupação em construir uma análise mais profunda da histó- ria do Brasil, agrupando períodos que entendia terem certa identidade, em um esforço para identificar um sentido para o processo histórico do Brasil. – 137 – O início de uma historiagrafia brasileira Há uma diferença clara entre Varnhagen e Capistrano: para o primeiro, os fatos são a história em si; ele pretende, com cuidado aos detalhes e um dis- curso lacônico, reconstruir a verdade do passado. Em outras palavras, passado = história. E não é dessa forma que Capistrano a compreende: para ele, a fun- ção do historiador não está simplesmente em narrar o que aconteceu, mas em elaborar determinada análise que acredita científica sobre o passado. A histó- ria, então, passa a ser o entendimento do historiador sobre o que aconteceu, e seu trabalho refere-se à busca por seu significado. Trata-se de uma criação mental, uma abstração do “arquiteto-historiador” de Capistrano, consequên- cia da utilização de certa teoria. Aqui, passado ≠ história. A presença de sua teoria sobre a formação do povo brasileiro e da cons- tituição de sua nacionalidade – a interiorização da colonização teria gerado um distanciamento da influência metropolitana sobre a população local e, por conseguinte, um sentido de identidade próprio – fez com que Capistrano compreendesse a história do Brasil de uma perspectiva original. Ao invés de voltar sua atenção para as relações com Portugal, procurou analisar o interior do País; entendeu a importância dos bandeirantes não apenas por conta de suas lutas para a manutenção do estatuto colonial (ao destruir Palmares), mas devido a suas ações de exploração do território; diferentemente de Var- nhagen, que se concentrava nas instituições oficiais, Capistrano centrou-se nas ações espontâneas daquelas populações que viviam à margem do mundo institucional e oficial. O Brasil de Capistrano não era apenas o branco des- cendente de europeus, como em Varnhagen; mas também o de “mazombos, moleques, caboclos, mulatos, mamelucos”. Em certo momento, Capistrano chegou a considerar a criação de um grupo de estudos para que pudesse exploraros temas que, importantes, não estavam sendo analisados pela historiografia do período. Em carta de 1883, ele revela alguns detalhes desse grupo de estudos: Há que intitular-se Clube Taques, em honra de Taques Paes Leme5, e deve ocupar-se quase que exclusivamente das bandeiras e bandeiran- 5 Pedro Taques de Almeida Pais Leme (1714-1777) foi um militar e genealogista bra- sileiro. Escreveu sobre a história da Capitania de São Vicente (que se tornou, posteriormente, São Paulo) e de algumas de suas famílias. Teorias da História – 138 – tes, caminhos antigos, meios de transporte e história econômica do Brasil (apud OLIVEIRA, 2006, p. 39). É por isso que não deixa de ser irônico o fato de que, no famoso necrológio que tanto citamos, Capistrano se refira a Varnhagen como “deste- mido bandeirante à busca de mina de ouro da verdade”. Silvio Romero e Capistrano de Abreu: a importância da teoria A influência que a utilização de determinada teoria bem como a busca por significados para o passado exercem sobre histo- riadores pode ser analisada por um segundo exemplo. Silvio Romero (1851-1914) foi um pensador brasileiro que acreditava ter encontrado, nas teorias europeias a respeito da ideia biológica de “raça”, as razões que explicariam o atraso nacional. Para Romero, “o que quer que notardes de diverso entre o brasileiro e o seu ascendente europeu, atribui-o em sua máxima parte ao preto” (ROMERO, 1880, p. 27). Ou seja, defendia que era a presença do negro na sociedade que explicaria a ausência de desenvolvimento nacional. Trata-se de uma concepção comum do período, fundada na ideia de raça, e defendia que o negro estava em um estágio de desen- volvimento inferior ao branco no processo de evolução. Daí que sua presença em grande quantidade no Brasil provocaria o atraso nacional, o que só seria resolvido após um processo de “branqueamento” da sociedade brasileira. Romero tomava, assim, determinada teoria sobra o desen- volvimento humano, e a utilizava para interpretar a situação do Brasil no período. Ele acreditava descobrir, na biologia, o significado específico da história do Brasil. Tratava-se, aliás, de uma concepção tão comum no início do século XX, que apa- rece como tema principal de uma das mais famosas pinturas produzidas no Brasil. – 139 – O início de uma historiagrafia brasileira Figura 8 - “A redenção de Cam”. Fonte: Modesto Brocos. A redençãode Cam. 1895. Intitulada “A redenção de Cam”, a pintura foi produzida por Modesto Brocos, em 1895, quando o artista morava no Bra- sil. Por que esse título? Porque, segundo a Bíblia, Cam teria visto a nudez de seu pai, Noé, e por isso Cam e todos seus descendentes foram amaldiçoados. No texto bíblico não há qualquer menção à cor da pele, mas criou-se, dentro do cris- tianismo, uma tradição de identificar os negros africanos como os descendentes de Cam – e por isso, também amaldiçoados a se tornarem escravos. O que o quadro está tentando mos- trar é a “redenção”, de Cam: ou seja, a mãe negra gera uma filha mulata; e essa, por sua vez, gera uma criança branca. A senhora, à esquerda, estaria agradecendo aos céus por- que, em duas gerações, sua família estaria “embranquecida” e, Teorias da História – 140 – assim, livre da suposta maldição. Esse quadro é uma represen- tação visual das mesmas ideias defendidas por Silvio Romero, e contém, por isso, certa concepção histórica. Também a ima- gem presume que a presença dos negros seriam a causa dos problemas brasileiros e, por isso, todos ficariam felizes com a família que se tornava “branca”. Assim o escritor Olavo Bilac afirmou ao ver a tela: “A filha da velha preta está meio lavada da maldição secular: já não tem na pele a lúgubre cor da noite, mas a cor indecisa de um crepúsculo. (...) Vede a aurora criança como sorri e fulgura, no colo da mulata – aurora filha do dilúvio, neta da noite... Cam está redimido!” (BILAC, 1895, p. 1). O desenvolvimento social aqui é entendido do ponto de vista biológico, baseado na ideia – que sabemos hoje totalmente equivocada – das diferenças raciais. Capistrano de Abreu, por sua vez, contestava essa explica- ção. Para ele, as razões do atraso brasileiro podiam ser encon- tradas na história: nas dificuldades dos colonos em relação ao ambiente natural do Brasil, nos problemas com a expansão da colonização, nas dificuldades de comunicação entre os vários locais. Mas não em ideias de raça. Porque a natureza não deixava desenvolverem-se as funções, porque a ataraxia6 das funções trouxe a atrofia do organismo – é fácil demonstrar. O que é difícil é explicar estes fatos pelo cruzamento com o preto (ABREU, 1976, p. 19). Qual a diferença entre as duas concepções? Os dados da realidade. São os fatos históricos, evidenciados em documen- tos, que dão suporte a uma concepção teórica e desconsi- deram outra. Ainda que a tese de Capistrano sobre a cons- tituição do Brasil a partir de sua interiorização seja vista por historiadoras e historiadores de hoje como incompleta (por conta de seu determinismo geográfico, por exemplo), sem dúvida está mais de acordo com as evidências documentais 6 Apatia. – 141 – O início de uma historiagrafia brasileira do que a de Sílvio Romero, que não possuía comprovação factual e não era mais do que simples preconceito fundado em discursos médicos e biológicos. No Capítulo 1, demos alguns exemplos de como a teoria, de uma maneira geral, influencia a análise histórica: como é pela teoria que busca- mos causas, construímos temporalidades, elaboramos conceitos, analisamos a realidade. O pensamento histórico de Capistrano nos permite ampliar aquela ideia, demonstrando como determinada teoria afeta a compreensão sobre o passado, a atenção para com os documentos e sua análise. As fontes primárias sobre as bandeiras ou todas as que tratam da inte- riorização do Brasil não fornecem, por si mesmas, qualquer explicação sobre a formação do Brasil ou a constituição de um sentimento (ainda que inci- piente) de nacionalidade. Quem constrói essa interpretação é a historiadora ou o historiador, por meio da teoria. Foi a concepção teórica que permitiu que Capistrano elaborasse um entendimento do processo de desenvolvimento do Brasil a partir da massa de documentos que conseguiu coletar. Assim, se a palavra teoria pode ser definida como uma elaboração abstrata e sistemática que busca dar conta dos dados empíricos, Capistrano nos dá exemplo do que poderíamos dominar de uma grande teoria (DAVIDSON, 2010): a busca por uma interpretação global de todo um processo histórico. Capistrano construiu essa teoria: acreditava que o processo de interiori- zação do Brasil, ignorado por historiadores até aquele momento, explicava a especificidade da população brasileira, a organização de manifestações locais contra a Metrópole, e a construção gradual de um sentimento nacionalista. Uma concepção teórica construída nem antes nem depois do contato com as fontes, mas em diálogo com elas: cada nova ideia direcionava certa leitura das fontes, cada novo dado aperfeiçoava o modelo teórico. Foi assim que Capis- trano modificou de forma sensível os objetos de estudo e as análises realizadas sobre o Brasil até então. De posse de uma teoria, historiadores privilegiam documentos, adotam perspectivas, buscam determinadas respostas e desconsideram, como não importantes ou irrelevantes, certas questões. Em resumo, pode-se dizer que a presença de uma grande teoria direciona o olhar, participa da seleção de fon- Teorias da História – 142 – tes e da construção de análises. A comparação entre formas diferentes de se pensar e fazer história é ainda mais instrutiva: a teoria permitiu a Capistrano sair da pura empiria, além da narrativa simples e linear de Varnhagen, e bus- car construir um significado para a trajetória históricabrasileira por meio de certa organização do passado. Saiba mais O maior problema relacionado ao uso de grandes teorias ocorre quando essas se sobrepõem aos fatos. Ou seja, quando não há diá- logo entre teoria e fontes primárias, mas um monólogo: a concepção teórica é tida como verdadeira e são selecionados apenas os fatos que a comprovem. Todos os dados que a desmentem são desconsiderados por princípio, e rotulados como falsos. Esse comportamento, obvia- mente, não gera conhecimento, e apenas reforça determinada ideolo- gia. O marxismo ortodoxo (estudaremos o marxismo com mais detalhes no Capítulo 8. Em geral, o marxismo não é assim tão simplista; estamos nos referindo, aqui, a um tipo específico: o marxismo ortodoxo, ou mesmo vulgar.), por exemplo, considerava que a cultura, a religião, ou as leis não tinham razões próprias de existência, mas eram derivadas exclusivamente das forças econômicas – e não importava o quanto os fatos desmentissem essa crença. Tomada como verdade, os fatos que a desmentiam eram vistos como irregularidades e ignorados. Exemplo semelhante é o da chamada teoria queer: trata-se de uma concepção filosófica, surgida nos Estados Unidos no fim do século XX, que se preocupa especialmente com as identidades de gênero em nossa socie- dade, ou seja, como as pessoas são definidas e definem a si mesmas como mulher, homem, transexual, travesti, intersex (pessoas que nas- cem sem uma clara anatomia sexual, o que impede que sejam fácil ou claramente definidas como “homens” ou “mulheres”.), assexual, entre outros rótulos. Para esse corpo teórico, a biologia não teria qualquer influência na formação dos gêneros, apenas a cultura: partindo dessa premissa, considera por princípio como equivocados quaisquer dados empíricos que a desmintam. – 143 – O início de uma historiagrafia brasileira Da teoria à prática Em seu famoso e influente texto de 1843, “Como de deve escrever a história do Brasil”, premiado pelo IHGB, von Martius afirmava que toda história que fosse escrita sobre o Brasil deveria considerar “os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem”, que para eles seriam o indígena, o branco europeu e o negro africano: Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular. (MARTIUS, 1844, p. 381) Para von Martius, essas três “raças” não contribuíram igualmente para o desenvolvimento do Brasil. O mais importante teria sido o “Português que, como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu naquele desenvolvimento”; e “tanto os indígenas, como os negros, reagiram sobre a raça predominante”. Essa forma de interpretação da história do Brasil foi muito influente: o próprio Capistrano utilizou-a como referência a seus estudos sobe a formação da população nacional, e o modelo rapidamente foi incorporado pelos livros didáticos de História. Até os anos 1980 – quase um século e meio após a publicação original do texto de von Martius –, era possível encontrar versões dessa concepção em livros didáticos de História. Figura 9 - Na contracapa de um livro de história do Brasil de 1968, para o antigo segundo grau (hoje ensino médio), aparece evidenciada a presença das “três raças” que teriam formado o Brasil. O branco, simbolizado pelo bandeirante, aparece à frente. Fonte: SILVA, 1968. Fonte: Wikimedia Commons. Teorias da História – 144 – Por que essa interpretação histórica é considerada, nos dias de hoje, ultrapassada? Por várias razões: era baseada em uma ideia de raça que hoje sabemos não ter base científica; defendia que um grupo era superior aos demais, e os pensava como homogêneos7; desconsiderava os vários movimen- tos migratórios da história do Brasil; pensava em contribuições de cada grupo como meras curiosidades folclóricas. E nos livros de História da atualidade, esse modelo ainda persiste? Leia, a seguir, um trecho da Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. Você acredita que esses conteúdos obrigatórios são semelhantes ou dife- rentes daqueles propostos por von Martius? Procure analisar as maneiras pelas quais os livros didáticos de história, na atualidade, representam os diversos grupos étnicos na formação da sociedade brasileira e compare com o modelo defendido por von Martius e pelo IHGB no século XIX. Quais são as seme- lhanças entre os dois modelos? Quais são as diferenças? E, após essa pesquisa, uma pergunta para ajudar você a pensar teorica- mente sobre esse conteúdo: que grande teoria está por trás de cada uma dessas propostas de história do Brasil? Síntese Vimos, neste capítulo, como a concepção teórica influencia na forma como historiadores compreendem e analisam os eventos históricos. A partir 7 Não existe “o” indígena, “o” africano ou “o” europeu. Cada um desses grupos pode ser subdividido em muitos grupos menores, com crenças, visões de mundo e costumes absolu- tamente diferentes entre si. – 145 – O início de uma historiagrafia brasileira de uma análise dos modelos construídos, em primeiro lugar, pelo IHGB e por Varnhagen e, em segundo, por Capistrano de Abreu, observamos como dife- rentes visões a respeito da relação entre teoria, fatos e documentos geraram compreensões contrastantes sobre a história do Brasil. Atividades 1. Pedro Américo, pintor conhecido especialmente por ter produzido o quadro “Independência ou morte” em finais do século XIX, no qual procurou retratar o momento em que D. Pedro declarava a Independência do Brasil, salientou, em texto em que analisava a própria obra, as dificuldades que um artista tinha para restaurar mentalmente, e revestir das aparências materiais do real, todas as particularidades de um acontecimento que passou-se há mais de meio século; principalmente quando não nos foi ele transmitido por contemporâneos hábeis na arte de observar e descrever. Porém, complementou Américo que a realidade inspira, e não escraviza o pintor. Inspira-o aquilo que ela encerra digno de ser oferecido à contemplação pública, mas não o escraviza o quanto encobre contrário aos desígnios da arte, os quais muitas vezes coincidem com os desígnios da história. (apud OLI- VEIRA, C. (Org.). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp, 1999. p. 13-4) Sobre a relação existente entre a arte e a construção de uma história do Brasil no século XIX, é correto afirmar: a) Dentro da concepção cientificista do século XIX, era fundamental que os artistas procurassem representar, em suas pinturas, os mais precisos detalhes dos eventos do passado. b) O objetivo dos artistas não era recriar os fatos exatamente como ocorreram, mas criar determinado sentimento de patriotismo a partir de sua representação idealizada. c) A arte não mantém qualquer relação com a história, pois não tra- tam dos mesmos objetos, não influenciam as mesmas pessoas, e não são tratadas dentro das mesmas instituições. Teorias da História – 146 – d) Os livros didáticos de História do começo do século XIX influen- ciaram os artistas brasileiros, que passaram a criar pinturas idealiza- das de eventos históricos. e) Os principaishistoriadores brasileiros do século XIX, Francisco Varnhagen e Capistrano de Abreu, também pintores, produziram imagens populares sobre fatos históricos do Brasil. 2. Em carta ao jornalista e historiador Januário da Cunha Barbosa, datada de 1839, o também historiador Francisco Adolfo de Var- nhagen assim afirmava: os arquivos e bibliotecas da Europa, especialmente os de Portugal, contêm tão ricos e preciosos manuscritos sobre o Império, que muito conviria ao Instituto tomar providências, para os possuir por cópia. Sobre este assunto devia talvez intervir o governo, que devendo ali- mentar o espirito de nacionalidade, deve ter presente que são a pri- meira base talvez desta, a história e o conhecimento do país natal. (apud CÉZAR, T. Varnhagen em movimento. Topoi, v. 8, n. 15, jul.- -dez. 2007, p. 169) Sobre a importância do documento histórico nas pesquisas de Var- nhagen, é correto afirmar: a) Inspirado em Michelet, Varnhagen não via necessidade de se sub- meter às regras científicas de comprovação histórica. b) Ao contrário de Capistrano de Abreu, Varnhagen acreditava que a análise era mais importante que o fato histórico. c) Varnhagen pensava a história à maneira de Ranke, ou seja, partia de discussões teóricas antes de consultar as fontes. d) Varnhagen acreditava que os documentos eram importantes para a história, embora não os utilizasse para produzir suas obras. e) Para Varnhagen, a correta identificação de um fato era fundamental à obtenção da verdade em história, daí sua atenção aos documentos. 3. O historiador Sérgio Buarque de Holanda assim afirmou sobre as diferenças existentes nas obras de Capistrano de Abreu e Francisco Adolfo de Varnhagen: – 147 – O início de uma historiagrafia brasileira Assim é que às guerras flamengas8, por exemplo, um dos temas dile- tos de antigos historiadores, [Capistrano] consagra apenas trinta e poucas páginas, contra mais de cem devotadas ao povoamento do sertão; quase o inverso da proporção relativa que têm essas matérias na primeira edição da História geral de Varnhagen (HOLANDA, 2010, p. 67). A partir desse trecho e comparando-se os trabalhos de Varnhagen e Capistrano de Abreu, é correto dizer: a) tanto Varnhagen quando Capistrano eram metódicos, isso é, com- preendiam a história como resultante de leis gerais que poderiam ser obtidas a partir da análise das fontes históricas. b) enquanto Varnhagen voltava seu interesse para Portugal e via o Bra- sil como descendente da Europa, Capistrano buscava na interiori- zação do País a origem de um sentimento nacional. c) se, para Varnhagen, a história era uma ciência, para Capistrano, era uma atividade que se aproximava da arte, pois teria como objetivo comover o leitor, e não aborrecê-lo com descrições. d) tanto Varnhagen quando Capistrano procuraram construir teorias amplas de interpretação histórica da formação do Brasil, e valoriza- vam os chamados movimentos nativistas. e) para Varnhagen, a história não precisava ser escrita a partir de docu- mentos históricos, algo que foi modificado com a preocupação científica nos trabalhos de Capistrano de Abreu. 4. A respeito do uso da teoria para o entendimento da história, é cor- reto afirmar: a) A teoria não deve estar presente nos textos históricos, pois prejudi- cam a análise das fontes primárias. b) A teoria deve se sobrepor aos fatos obtidos pelas fontes, pois pre- tende oferecer uma análise ampla sobre a história. c) A teoria pode dirigir a atenção dos historiadores em direção às fon- tes primárias, bem como na análise dos dados. 8 Guerra contra os holandeses que invadiram o nordeste do Brasil no século XVII. Teorias da História – 148 – d) Denomina-se “empirista” todo trabalho histórico que diminui a importância das fontes, e valoriza as análises teóricas. e) As teorias são próprias de disciplinas como filosofia e sociologia, e não fazem parte do trabalho histórico. 6 As inovações teóricas da escola dos Annales Desde o final do século XIX, e especialmente nas primei- ras décadas do século XX, diversas foram as censuras, na Europa e nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil, ao modelo tradicional de se pensar a história. Particularmente na França, os historiado- res ligados à escola Metódica conviviam com críticas em relação à estreiteza de sua concepção histórica, que excluía a maior parte das pessoas, dos temas e mesmo dos documentos. Entre vários movi- mentos inovadores nas maneiras de se pensar os estudos históricos, destacaremos, neste capítulo, a chamada escola francesa dos Anna- les e suas importantes contribuições teóricas relacionadas a temas, abordagens, metodologias e temáticas. Trata-se de uma concepção histórica especialmente importante, também devido a sua influên- cia nos estudos históricos no Brasil, ainda nos dias de hoje. Teorias da História – 150 – 6.1 A contestação ao modelo tradicional Em 1903, o sociólogo francês François Simiand (1873-1935) publicou o texto “Método histórico e ciência social”, que gerou repercussões impor- tantes entre os historiadores metódicos – então dominantes na historiografia francesa –, bem como entre seus críticos. Nele, Simiand procurou demonstrar como os princípios teóricos e metodológicos de Charles Seignobos, o maior representante da chamada escola metódica, não permitiam que a história se tornasse efetivamente uma ciência. Simiand atacou o que denominou famosamente de “os três ídolos da tribo dos historiadores” do período: 1. O “ídolo político”, ou seja, o estudo dominante da história política, dos fatos políticos, das guerras, etc..., que chega a dar a esses aconte- cimentos uma importância exagerada [...]. 2. O “ídolo individual”, o arraigado hábito de conceber a história como uma história dos indivíduos [...]. 3. O “ídolo cronológico”, ou seja, o hábito de se perder em estudos de origens, de pesquisas de diversidades particulares, em lugar de estu- dar e de compreender, antes de mais nada, o tipo normal, buscando- -o e determinando-o na sociedade e na época em que se encontra (SIMIAND, 2003, p. 199-200). Dois desses “ídolos” já foram estudados no capítulo 4: o ídolo político, ou seja, a fixação em temas políticos, únicos considerados próprios à história; e o ídolo individual, que transferia aos desejos dos “grandes homens” a razão para modificações em instituições ou países. Sobre o “ídolo cronológico”, cabe um detalhamento adicional: tratava-se, segundo Simiand, da insistên- cia dos historiadores do período de buscar discutir apenas o excepcional, o diferente, o extraordinário, deixando de analisar o que seria, efetivamente, o mais comum, normal, e socialmente aceito dentro de um período histórico. Refere-se a um equívoco, aliás, do qual não estão imunes mesmo historiado- ras e historiadores da atualidade: ainda é possível identificar trabalhos que confundem a descoberta da origem de um evento, com sua explicação. Por exemplo, é possível entender muito sobre o Renascimento se estudarmos as concepções de Petrarca – um dos iniciadores do movimento. Mas encontrar essa origem não explica o que foi o Renascimento em si, e muito menos esclarece as razões que levaram as concepções humanistas a se difundirem – 151 – As inovações teóricas da escola dos Annales na Europa, a ponto de se tornar um movimento intelectual influente que durou séculos. As críticas de Simiand tinham um ponto de partida bem específico: estavam ligadas às concepções sociológicas difundidas pelo francês Émile Durkheim (1858-1917), que pretendia criar um tipo de conhecimento sobre as sociedades humanas que fosse efetivamente rigoroso e científico. A defini- ção precisa de conceitos, a busca pela essência das instituições e a criação de leis sociológicas eram algumas das preocupações dessa sociologia científica que, para Simiand, não encontrava qualquer correspondêncianos estudos históricos do período. Porém, ainda que tenha protagonizado um importante debate, não partiram apenas de Simiand críticas às limitações daquele modelo histórico tradicional. Desde o final do século XIX, historiadores de diferentes países começaram a construir as bases de uma história social, que passava gradual- mente a ser vista como mais abrangente e mais relevante que as antigas pre- ocupações metódicas. E não se pode esquecer que, mesmo no Brasil, Capis- trano de Abreu já defendia novas concepções históricas que ultrapassassem as narrativas de heróis e guerras, tão caras a Varnhagen. Aliás, assim como Simiand, Capistrano era um leitor e admirador dos trabalhos de Durkheim. Definindo conceitos: HISTÓRIA SOCIAL Define-se história social como a história do povo comum, de suas cren- ças e condições de vida. Trata-se de uma definição bastante abrangente porque diversos países acabaram por construir tradições específicas em relação a ela. Surgiu inicialmente como uma forma de se contrapor aos princípios, objetivos e métodos restritos da história tradicional. Dos vários movimentos de crítica ao modelo tradicional de se pensar história, um dos mais influentes, particularmente no Brasil, foi o da escola dos Annales, surgido na França, nas primeiras décadas do século XX. Refor- çando a influência francesa na historiografia nacional que, como vimos, já era forte desde o século XIX, as formas de se pensar métodos, temporalidades, documentos, abordagens dos historiadores de Annales acabaram sendo ado- tadas no Brasil, especialmente a partir dos anos de 1980. Teorias da História – 152 – Cabe aqui uma observação semelhante à que foi feita no capítulo em que estudamos os metódicos: ainda que a escola de Annales seja realmente impor- tante, pois apresentou inovações teóricas e metodológicas utilizadas ainda hoje por várias historiadoras e historiadores, trata-se, fundamentalmente, de um movimento francês e que acabou se tornando muito presente no Brasil. Na verdade, historiadores como Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, entre tantos outros, acabaram por se tor- nar ícones nos cursos universitários brasileiros de história. E, em alguns casos, perigosamente transformados em ortodoxia: ou seja, contestar seu pensa- mento pode ser visto, em certos momentos, como uma espécie de heresia. Em resumo, Annales não foi a única escola histórica, e os franceses os únicos histo- riadores, a criticar o modelo tradicional, a construir propostas alternativas, ou a desenvolver novos métodos e abordagens. Dialogou com um sem-número de propostas e ideias, desde as últimas décadas do século XIX. Entretanto, sem dúvida, foi a que mais impactou a historiografia nacional. 6.2 A primeira geração dos Annales A escola dos Annales recebeu esse nome em razão da fundação, em 1929, da revista “Annales d’histoire économique et sociale” (Anais de história econômica e social), pelos historiadores franceses Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956). Centrados no pensamento de seus dois fun- dadores – a chamada “primeira geração” dessa escola –, os artigos da revista destacaram-se por se opor à história narrativa própria dos metódicos, e defen- diam a redução dos temas políticos, além de incentivarem a abordagens que seriam próprias de uma história social. O principal objetivo da escola dos Annales não era o de meramente subs- tituir o interesse do pensamento histórico tradicional na política por outros temas. Mais do que isso, pensavam em elaborar uma “história total”, ou seja, construir explicações históricas que pudessem unir política, economia, cul- tura, demografia, entre vários outros elementos que compõem as sociedades. Seus métodos e objetivos se solidificaram em propostas mais coerentes apenas após vários anos de tentativas e abordagens, dentro de um ambiente social europeu que convivia com uma questão política bastante grave: a Segunda Guerra Mundial. – 153 – As inovações teóricas da escola dos Annales 6.2.1 Marc Bloch Filho de um professor de história Antiga e aluno de Charles Seignobos, Marc Bloch estudou história e geografia na faculdade antes de passar um ano na Alemanha, onde entrou em contato com pensadores que buscavam aliar o estudo da economia aos demais aspectos da sociedade. Alistou-se no exército em razão da Primeira Guerra Mundial (alcançando o posto de capitão), e seguiu a carreira universitária como professor de história durante o período entreguerras. É nesse momento que sua carreira se tornou especialmente pro- dutiva, pois foi um período em que não apenas publicou suas principais obras como, em conjunto com o amigo Febvre, lançou a revista dos Annales. Sua carreira, porém, tomou um rumo dramático com o início da Segunda Guerra Mundial: retornando ao exército, viu seu país ser invadido pelos alemães; e, por ter ascendência judia, acabou perseguido pelas políticas nazistas do governo de Vichy. Membro atuante da resistência francesa, foi capturado pela Gestapo – a polícia secreta do regime nazista –, torturado e fuzilado em 1944. Saiba mais Após ser invadida, a França assinou um armistício com a Alemanha em 1940. Segundo os termos desse acordo, uma parte da França ficaria sob ocupação militar nazista, tendo como capital Paris; e outra, com capital em Vichy, teria uma relativa autonomia, embora devesse colaborar com orientações e desejos políticos dos alemães. Devido a sua antiga experiência militar e seu nacionalismo, Bloch passou a participar da resistência francesa – nome que se deu aos diversos e esparsos grupos de resistência ao exército invasor. Foi justamente por ser um membro ativo e localmente importante da resistência que Bloch foi capturado quando vivia em Lyon, cidade que, à época, estava sob a administração do governo colaboracionista de Vichy. É curioso perceber como uma pessoa que viveu tão intimamente eventos políticos foi, ao mesmo tempo, um dos maiores promotores de uma reno- vação na historiografia francesa que criticava justamente a centralidade dos estudos políticos na história. Em sua obra “Os reis taumaturgos”, publicada originalmente em 1924, Bloch demonstrava como um tema, que a princípio Teorias da História – 154 – seria absolutamente político – a percepção da população a respeito de seus reis –, podia ser abordado por meio de perspectivas não políticas. Nessa obra, Bloch analisou a crença popular dos poderes supostamente miraculosos dos reis feudais da França e Inglaterra, que se manifestavam especialmente após sua coroação, e seriam capazes de curar doenças, especialmente a escrófula1. Mais do que compreender a efetividade médica desse toque, Bloch procurou analisar como, mesmo diante de evidências de que a cura não havia ocorrido, a crença no poder curativo real persistia. Tratou-se de uma primeira obra em que Bloch se utilizou de um conceito que seria fundamental para a escola dos Annales: o de mentalidades coletivas, ou seja, das concepções culturais, particularmente duradouras e comparti- lhada entre os membros de uma sociedade, que participavam do entendi- mento e da organização do mundo. Tratava-se, também, de um estudo que já apresentava algumas das principais características de Bloch como pesquisa- dor: a busca pela compreensão de uma sociedade a partir da análise de longos períodos, investigando estruturas que construíam padrões a serem entendidos pelo historiador. Uma segunda obra de fôlego de Bloch, e que merece destaque, é “A sociedade feudal”, publicada na década de 1930. Além de manter as caracte- rísticas de busca por identidades dos períodos históricos, e centrando-se em longas durações, Bloch demonstrou mais claramente sua intenção de cons- truir uma “história total” da estrutura feudal europeia. Eu dei o exemplo de algo [...] que eu escolhi chamar de “dissecaçãode uma estrutura social”. [...] Se meu trabalho é verdadeiramente ori- ginal em um aspecto, então na minha opinião sua originalidade se baseia em ambos desses esforços: análise estrutural e a incorporação de experiências comparativas (BLOCH, apud SCHÖTTLER, 2001, p. 1.259). Outra obra que pode ser destacada é “Apologia da história”, bastante popular entre estudantes universitários brasileiros ainda nos dias de hoje. Foi escrita a partir de suas memórias e experiências, pois, uma vez que foi pro- duzida durante a Segunda Guerra, Bloch não dispunha de uma biblioteca. Pensada para ser um manual introdutório aos estudos históricos, é uma obra relativamente curta, escrita em estilo informal, e ainda hoje uma das mais 1 Trata-se de um inchaço nos gânglios do pescoço, causado pela tuberculose. – 155 – As inovações teóricas da escola dos Annales influentes referências em temas teóricos e metodológicos sobre os estudos históricos. Trata-se de um trabalho, porém, incompleto, interrompido devido à morte do autor. O livro é dividido em cinco capítulos e trata das relações dos estudos históricos com a sociedade, bem como discute a importância social da disci- plina. Para Bloch, a história se tratava não de “uma ciência em marcha”, mas de “uma ciência na infância”. Sendo alguém inovador em relação às formas de se pensar e pesquisar história, salientar a infância da disciplina significava para Bloch destacar a importância de seus posicionamentos nas maneiras de se pensar as fontes, o tempo, as relações entre as pessoas e a sociedade. Nesse livro, Bloch apresentou, ainda, sua concepção sobre a abordagem documental, destacando a relação de diálogo que existe entre historiador e documento: “os documentos e os testemunhos só falam quando sabemos interrogá-los”, afirmou. Buscou, por fim, analisar as maneiras pelas quais os historiadores trabalhavam com os conteúdos adquiridos pela pesquisa. Par- tindo de uma questão ética – julgar ou compreender o passado? – debateu a importância do rigor na construção de classificações, de uso dos termos, conceitos e a necessidade do estabelecimento de recortes temporais. O conceito de mentalidades Marc Bloch, com seu livro “Os reis taumaturgos”, foi o primeiro historiador dos Annales a realizar uma “história das mentalida- des” – abordagem tão cara àquela escola histórica – embora ele mesmo não utilizasse o termo “mentalidades”. Tratava-se de um campo de estudos históricos que se destacou pela investiga- ção das crenças e atitudes das pessoas comuns do passado em relação a temas como vida e morte, concepções sobre a família, crenças religiosas, ou a própria sexualidade. Sendo utilizado pelos historiadores de Annales especialmente a partir dos anos 1960, o conceito de “mentalidades” nunca foi muito bem definido. De uma forma geral, pode ser apre- sentado como as crenças, saberes e visões de mundo que Teorias da História – 156 – seriam dominados por uma pessoa comum de determinada época; teriam, além disso, uma significativa duração temporal e, por isso, seriam de difícil – ou, ao menos, lenta – modi- ficação. Um exemplo comum de “mentalidades” são o das concepções religiosas. Contrastando com a concepção histórica tradicional que se centrava nos aspectos políticos, a ideia de mentalidades permitia analisar e descrever elementos da realidade que, até então, não haviam sido estudados historicamente. Podem ser citados como exemplos a pesquisa de Lucien Febvre sobre a ideia de “ateísmo” no século XVI, em seu estudo sobre Rabelais2; de Philippe Ariès (1914-1984), que estudou as per- cepções sociais sobre a morte, além da constituição das ideias sobre a família, no ocidente europeu; ou de Le Roy Ladurie que, em sua obra “Montaillou” (LADURIE, 1986), dedicou- -se a analisar as mentalidades coletivas dos habitantes de uma vila medieval. Bastante influente entre os anos 1960 a 80, o conceito foi gradualmente caindo em desuso, sendo substituído por outras abordagens, como a história da vida privada e, particular- mente, pela história cultural.. Historiografia e Teoria: O método da Escola de Annales Marc Bloch e Lucien Febvre não possuíam uma concepção solidificada de seu modelo histórico quando fundaram a revista dos Annales em 1929. Contrapondo-se a concepções inicialmente genéricas, como crítica à centrali- dade da política e à presença da narrativa na história tradicional, novas ideias foram sendo desenvolvidas, e apresentadas tanto em artigos quanto em livros. Foi apenas em 1937, em texto publicado na própria revista, que Bloch des- creveu as bases teóricas de suas ideias sobre a história. 2 Febvre utilizou-se de um conceito semelhante ao de “mentalidades”: o de “utensila- gem mental”, que veremos com mais detalhes ainda neste capítulo. – 157 – As inovações teóricas da escola dos Annales Deste trecho, vamos analisar, com mais cuidado, quatro pontos que revelam algumas das concepções teóricas sobre a história defendidas pela escola de Annales. 2 1. A história total e a interdisciplinaridade: Um historiador que frequentasse os seminários promovidos por Leopold Ranke, ou utilizasse o manual escrito por Langlois e Seignobos (você pode relembrar esses assuntos consultando o capítulo 4), certamente teria formação nas denominadas “ciências auxiliares”: conjuntos de saberes que colaborariam com dados e informações para que os historiadores construíssem sua narrativa. Porém, não havia, ou era muito limitada, a contribuição real de outros campos de conheci- mento na construção de explicações históricas. Um texto histórico dentro do modelo tradicional era formado basicamente pelos fatos, organizados segundo o julgamento do historiador. Inicialmente para Bloch e Febvre e, a seguir, para os demais his- toriadores ligados à escola de Annales, o objetivo de construir uma história que fosse total exigia uma real colaboração entre disciplinas diferentes: daí a necessidade da interdisciplinaridade. Certamente Bloch aproveitou-se muito de sua experiência na Ale- manha para unir conhecimentos econômicos a seus estudos histó- ricos; mas, além desses, foram adicionados estudos antropológicos e sociológicos, análises demográficas e linguísticas, concepções geográficas e psicológicas: “historiadores, sejam geógrafos. Sejam juristas, também, e sociólogos, e psicólogos” (FEBVRE, 1989, p. 40), conclamava Lucien Febvre, já nos anos 1930. Todos os Teorias da História – 158 – ramos do conhecimento poderiam ser úteis para aprofundar o conhecimento histórico. 2 2. A crítica à narrativa: diante de um modelo de história fac- tual, como era o caso da história tradicional ou metódica, a única forma de se apresentar os resultados da pesquisa era por meio da narrativa simples e linear. Sucediam-se fatos, datas e detalhes das ações, especialmente dos “grandes homens”, em textos com análises minimizadas, como bem recomendava sua concepção de objetividade científica. Contra a ideia de que a história possuiria um enredo, os historiado- res de Annales propuseram novas abordagens que visavam diminuir, quando não anular, a relevância da narrativa dentro dos estudos históricos. Entre outras metodologias, buscaram a análise de dife- rentes temporalidades (algo que veremos com mais detalhes ainda neste capítulo); desenvolveram análises contextuais que recorta- vam períodos significativos de tempo, analisando-os em conjunto; e, principalmente, construíram um modelo histórico no qual, em vez de lançarem-se à busca aleatória por fatos, preocupavam-se em resolver questionamentos que eram propriamente históricos. A ampliação do conceito de fonte his- tórica Vimos que, para os historiadores metódicos e historicistas, a concepção de fonte primária (ou documento histórico) era bastante restrita. Sendo o Estado e suas instituições seus prin- cipais focosde interesse, seriam obviamente os documentos oficiais e escritos – próprios da burocracia institucional – aque- les que tinham a preferência dos historiadores. Ao buscarem uma mudança no conceito de história, os his- toriadores da escola de Annales também promoveram uma modificação na ideia de fonte: afinal, se a história deveria se preocupar com uma “história total”, seria lógico assumir que – 159 – As inovações teóricas da escola dos Annales todos os elementos que fizessem parte da existência humana, materiais ou não, poderiam ser considerados fontes históricas. De fato, a escola dos Annales difundiu uma concepção muito mais ampla de documento histórico que aquela uti- lizada pela chamada história tradicional: dos maiores aos menores objetos, dos mais aos menos duradores, dos mate- riais aos imateriais, toda parte da realidade que molda e é moldada pela experiência humana tem a possibilidade de se tornar um documento histórico. Trata-se de uma concepção ainda utilizada na atualidade. É interessante perceber como essa nova compreensão do que seriam os documentos alia-se à busca pela interdiscipli- naridade em estudos históricos. Afinal, não é possível que historiadoras e historiadores possuam formação adequada em todos os elementos que fazem e fizeram parte da vida das pessoas. Assim, a escrita da história, tematicamente cada vez mais ampla, passou a exigir também a cooperação com outros ramos do conhecimento para que se tornasse possível seu estudo e sua compreensão.. 2 3. A pesquisa histórica fundamentada em questões: em uma coleção de quadrinhos publicada originalmente em 1979, Pateta, o personagem da Disney, assumia o papel de personagens famosos, tanto da história quanto da literatura. Em uma de suas aventuras, tornou-se o Dr. Frankenstein, algo que acabou por deixar Mickey Mouse muito incomodado, diante dos mistérios que cercavam as pesquisas. Dirigindo-se ao Pateta/Frankenstein, Mickey, em deter- minado momento, exclamou: “estou farto disso, doutor”. Afinal, ele não estava entendendo que experiências eram aquelas. Assim, exigiu: “quero algumas respostas, e quero já!” (Pateta..., 2011, p. 26). A discussão continuou dessa forma: Teorias da História – 160 – Figura 1 – Pateta faz história como Dr. Frankenstein. Fonte: Pateta..., 2011, p. 26. O método de pesquisa de muitos historiadores tradicionais pode, com algum exagero, ser comparado a maneira como Pateta “respondeu” a Mickey. Afinal, aqueles historiadores, pesquisando em fontes, chegavam a determi- nados dados que não eram, efetivamente, respostas a quaisquer questões previamente formuladas. E não se pode negar que alcançaram resultados importantes, considerando-se que eles também não sabiam as perguntas. Na verdade, sequer pensavam precisar delas, pois acreditavam que os fatos his- tóricos estavam, objetivamente, presentes nos documentos, e seria preciso apenas identificá-los. Uma concepção oposta à que surge com os historiadores de Annales, que passaram a afirmar a necessidade de partir de “questões suficientemente pre- cisas” antes de iniciar efetivamente a pesquisa. Dizendo-se, de outra maneira: diante de dúvidas ou questões, utilizavam-se das fontes para respondê-las. Essa era a ideia de uma “história problema”, ou seja, a noção de que as fontes primárias só responderiam às perguntas que fossem elaboradas previamente pela historiadora ou pelo historiador. Assim, Lucien Febvre conclamou os historiadores de seu tempo a tra- balharem, eles também, com questões a serem respondidas historicamente: Peço aos historiadores, quando vão ao trabalho, que não o façam como se fossem de encontro a Magendie: Magendie, mestre de Claude Ber- nard, precursor da fisiologia, que sentia tanto prazer em deambular, com as mãos nos bolsos, através de fatos raros e curiosos e, como o trapeiro – assim dizia ele –, através dos objetos. Eu lhes peço para ir ao trabalho como Claude Bernard, com uma boa hipótese em mente. E que jamais se comportem alegremente como colecionadores de fatos, como antes, quando bancavam os caçadores de fatos às margens do – 161 – As inovações teóricas da escola dos Annales Sena. Que nos deem uma História, não uma Historia automática, mas, sim, problemática (FEBVRE, 2011, p. 84). 2 4. A realidade concreta e os fenômenos profundos: foi outro expoente da escola dos Annales, Fernand Braudel (1902-1985), que afirmou que os acontecimentos – aqueles mesmos que eram centrais no modelo histórico tradicional –, seriam, na verdade, a parte menos importante da história. Braudel seguia, aqui, a orien- tação de outros historiadores de Annales, em considerar que eram mais significativas, do ponto de vista histórico, as condicionantes sociais, as permanências (especialmente as de longa duração) e as estruturas. De fato, quando Bloch afirmou buscar os “fenôme- nos mais profundos” da história, pretendeu retirar a primazia dos “grandes homens” como agentes históricos. As causas dos aconte- cimentos não estariam nas decisões repentinas e altamente parti- culares de imperadores, reis, ou generais, mas em contextos mais amplos e profundos. Quando Bloch, por exemplo, estudou a longa permanência na crença do poder divino dos reis, estava analisando a persistência de uma ideia ao longo de vários séculos. Uma abordagem que não seria possível se fosse utilizado o modelo centrado no “acontecimento”, próprio dos metódicos. Afirmar simplesmente que, no século XII, os súditos de Henrique II da Inglaterra acreditavam no poder mila- groso do toque régio (como faria um historiador tradicional), não permitiria qualquer entendimento do fenômeno, e, sem qualquer contexto, tornava-se apenas mera curiosidade. Inserida, porém, dentro da mentalidade da Europa feudal, como fez Bloch, a ação real ganhou determinado significado e historicidade. Saiba mais Nos anos 1960 e 1970, historiadores herdeiros da escola de Anna- les dedicaram-se a buscar os “fenômenos mais profundos” de outra maneira. Mantendo ainda sua atenção para com a análise de longos períodos, utilizaram-se extensivamente das técnicas de quantificação e serialização para construir explicações históricas: dados demográficos, econômicos e sociais eram organizados em tabelas, decodificados e Teorias da História – 162 – analisados. A difusão da informática entusiasmou ainda mais esses historiadores, pois acreditaram na possibilidade de construir, efetiva- mente, um conhecimento que fosse objetivo e verificável, como eram os resultados obtidos pelas ciências naturais, particularmente a física. Le Roy Ladurie chegou a afirmar, em finais dos anos 1960, que “o historiador de amanhã será programador ou não será”. Essa técnica histórica fundada nas análises econômicas e na serialização, praticada por historiadores que desejavam ser denominados “cientistas” e que afirmavam possuir seus próprios “laboratórios” de história, acabou se desgastando ainda em finais dos anos de 1970. Figura 2 – Tempos de vida de Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel. Fonte: Elaborado pelo autor. 6.2.2 Lucien Febvre A formação de Febvre foi semelhante à de Bloch em vários aspectos. Também filho de um estudioso – seu pai era filólogo –, estudou história e geografia em seu curso superior, além de ter servido ao exército por quatro anos, em razão da Primeira Guerra Mundial. Conheceu Marc Bloch quando ambos trabalhavam na Universidade de Estrasburgo, momento em que ini- ciaram sua parceria. Pode-se sintetizar a influência de Febvre em relação à escola dos Annales em dois campos diversos. No primeiro, enquanto pesquisador que, influen- ciado pelas ideias modernistas das primeiras décadas do século XX, trouxe à história discussões sobre psicologia, cultura, filologia e geografia, integrando esses conhecimentos a seus objetos de estudo. No segundo, enquantorespon- sável pela institucionalização dos preceitos e métodos de Annales nos estudos históricos franceses. – 163 – As inovações teóricas da escola dos Annales O Febvre pesquisador se destacou, especialmente, pelo aperfeiçoamento e uso da ideia de mentalidades em sua pesquisa – ainda que, como foi dito anteriormente, não utilizasse especificamente esse termo, e sim o de “uten- silagem mental”. Bem ao espírito da história problema, sua principal obra, “O problema da incredulidade no século XVI”, de 1942, procurou respon- der a uma questão: seria possível que o pensador humanista francês Rabelais (nascido entre 1483 e 1494 e falecido em 1553) fosse ateu? Essa hipótese era algo em que acreditavam muitos pensadores, especialmente a partir do século XIX, quando analisavam as fortes críticas à religião presentes em obras como “Gargântua” e “Pantagruel”. Febvre procurou demonstrar que não seria possível, para as pessoas da região e período em que viveu Rabelais, conceber a ideia de inexistência de Deus. Em uma sociedade profundamente religiosa, não havia condições – utensílios – mentais para pensar a completa descrença, ou o ateísmo. Assim, concluiu que existiam barreiras mentais, diferentes usos para as palavras, ausência de conceitos à disposição de Rabelais e de seus contemporâneos e que, em seu conjunto, impediam que eles fossem ateus, da mesma forma que esse termo era entendido no século XIX e XX. Houve, posteriormente, críticas de outros historiadores às suas conclu- sões. Não apenas Febvre generalizou as formas como as pessoas pensavam – eram os “homens do século XVI” –, homogeneizando diferenças sociais, etárias, de gênero etc., bem como se sabe que, no mesmo período, outras pessoas haviam declarado ser, efetivamente, descrentes da existência de uma Providência divina (BENTLEY, 2006). Porém, ainda que possua problemas, a obra de Febvre mantém seus méritos por construir uma explicação his- tórica sobre um personagem específico, buscando recuperar, na medida da possibilidade das fontes, quais eram seus saberes e crenças. Além disso, sua abordagem destacou os cuidados que os historiadores deveriam ter em relação ao anacronismo, que, para Febvre, era o pior pecado de sua profissão. Afinal, quando se afirmava que Rabelais era ateu, corria-se o risco de imputar a um personagem do passado, um conceito próprio do presente. Para evitar tais erros, seria tarefa dos historiadores reconstruir o sentido dos conceitos como eram pensados originalmente no passado: não se trata de ler um texto do século XVI com os olhos do século XX e de lançar gritos de assombro, declarando que esse texto é escan- Teorias da História – 164 – daloso – enquanto uma só coisa é escandalosa, o esquecimento do pequeno fato de que a mesma proposição, articulada por um homem de 1538 e depois por um homem de 1938, não produz o mesmo som. E de que todo um trabalho deve ser feito, um trabalho considerável e dos mais delicados, se se quiser devolver às palavras que cremos com- preender sem mais investigações o sentido especial que tinham para aqueles mesmos que as pronunciaram há quatro séculos (FEBVRE 2009, p. 181-2). O segundo Febvre – o responsável pela ampliação institucional dos Annales – foi aquele que, após a morte de Marc Bloch, continuou a defesa e difusão de seu projeto conjunto de história. Em 1946 alterou o título da revista para “Annales. Économies, Sociétés, Civilisations”, buscando tanto enfatizar o caráter interdisciplinar da publicação quanto construir uma “ciên- cia dos homens”, unificada, e que integrasse vários ramos do conhecimento. O reconhecimento da importância dos Annales em relação à história se refletiu também em sua institucionalização. Febvre participou da fundação e direção de cursos universitários em estabelecimentos importantes, como a “École Pratique des Hautes Études”; participou da organização de textos históricos para a Unesco e fez com que seus discípulos assumissem cargos relevantes em instituições educacionais e de pesquisa (BURKE, 1992). Ao final da Segunda Guerra, aquela concepção de história que tinha se iniciado por rejeição às concepções estabelecidas acabou por se tornar, ela mesma, dominante, sendo que a revista dos Annales “transformou-se no órgão oficial de uma igreja ortodoxa” (BURKE, 1992, p. 30). Se a ascensão das ideias de Annales a um posto de proeminência den- tro dos estudos históricos deveu-se às ações políticas de seus membros, não se podem esquecer os embates propriamente intelectuais. Foram de Febvre alguns dos textos mais incisivos defendendo a concepção de história dos Annales e criticando o modelo tradicional até então predominante na França (que ele denominava de história “historizante”). Nesses artigos, não apenas eram questionados assuntos como as concepções de narrativa, centralidade na política, ou ingenuidade investigativa dos historiadores tradicionais, mas havia também a preocupação de estabelecer os fundamentos teóricos de uma determinada concepção teórica de história, dos quais decorreram importantes princípios metodológicos até hoje relevantes. – 165 – As inovações teóricas da escola dos Annales Historiografia e Teoria: A ideia de fato histórico Para os historiadores tradicionais, o fato histórico era quase que um “não problema”, ou seja, não era algo que possuísse quaisquer dificuldades em ser identificado e não parecia carregar implicações teóricas mais sérias. Após as importantes críticas internas e externas das fontes, as informações contidas em um determinado documento histórico, e que foram definidas como ver- dadeiras, seriam consideradas automaticamente “fatos históricos”. Esses exis- tiriam à revelia da atuação dos historiadores. Febvre criticou essa concepção ingênua. Que colocam vocês atrás dessa pequena palavra “fato”? Pensam acaso que eles são dados à história como realidades substanciais, que o tempo escondeu de modo mais ou menos profundo, e que se deve simplesmente desenterrar, limpar e apresentar à luz do dia aos nossos contemporâneos? (FEBVRE, 1978, p. 105) Febvre criticava, aqui, justamente a concepção tradicional de pensar o fato histórico como se tivesse uma existência em si; ou seja, como se fosse uma “coisa” que pudesse ser desenterrada. E continuou: Um historiador que se recusa a pensar sobre o fato humano, um his- toriador que professa a submissão pura e simples a esses fatos, como se não fossem de sua fabricação, como se não tivesses sido escolhidos por ele, previamente, em todos os sentidos da palavra “escolhido” (e eles não podem deixar de ser escolhidos por ele) – é uma ajuda técnica. Que pode aliás ser excelente. Mas não é um historiador (FEBVRE, 1978, p. 106). Dentro da concepção de Febvre e dos Annales, e que historiadoras e historiadores ainda hoje utilizam, um fato não existe sem uma fabricação, ou seja, sem uma intervenção direta dos pesquisadores. Não existem em si mesmos, não esperam ser descobertos. Ao contrário: concordando com a concepção de uma história-problema, os fatos são respostas, encontradas nos documentos, para questões a serem solucionadas na pesquisa. Analisando um exemplo concreto, podemos ver como ocorre essa inter- ferência: em um documento do século IV d.C., escrito em grego e encon- trado na localidade de Oxirrinco, no Egito, uma mulher (cujo nome não foi registrado) acusou o marido de maus-tratos. Teorias da História – 166 – A respeito de todos os insultos lançados por ele contra mim. Ele tran- cou seus próprios escravos e os meus com minhas filhas adotivas [...] por sete dias em seus aposentos, tendo insultado seus escravos e meu escravo Zoe e quase matado eles com agressões, e ele colocou fogo em minhas filhas adotivas, e deixou-as quase nuas, o que é contrá- rio às leis. [...] [Posteriormente] ele jurou na presença de bispos e de seus próprios irmãos:“De agora em diante eu não esconderei todas as minhas chaves dela [...]; eu irei parar e não a insultarei”. [...] [Mas,] quando eu havia ido à Igreja em Sambato, ele me trancou para fora, dizendo “Por que você foi para a igreja?” [...] Deus sabe que isso é verdade (Acusação contra o marido, Papyri.info, s/d). Quais “fatos históricos” existem nesse texto? Isso dependerá dos interesses e dos objetivos da historiadora e do historiador. Uma pesquisa que procure entender o papel da mulher no Egito romano irá ter como fatos a atuação dela na defesa das filhas, dos escravos e de si mesma, quando apelou para a ordem legal existente em sua comunidade. Um estudioso das práticas religiosas destacará a participação dos bispos e da igreja no controle e normalização das relações sociais, inclusive familiares. Para um especialista em legislação antiga, serão fatos: a forma como o registro foi feito, os detalhes da queixa e as pessoas responsáveis que foram chamadas para auxiliar a solucionar o conflito. Portanto, a partir de diferentes problemas, surgem diferentes leituras dos documentos e, consequentemente, diferentes fatos. Não existiam pre- viamente: foram “fabricados” em diálogo com os interesses de cada pesquisa. 6.3 A segunda geração dos Annales: Fernand Braudel Com Fernand Braudel, a escola dos Annales solidificou sua influência na França e, cada vez mais, em outros países, como foi o caso do próprio Brasil. Mas, ao mesmo tempo, Braudel foi o autor de pensamentos originais a respeito da história, particularmente em relação às diferentes temporalidades nos estudos históricos, em ideias que foram desenvolvidas especialmente em seu livro “O Mediterrâneo”. Braudel teve uma formação tradicional em escolas parisienses, até o final de sua formação acadêmica na Sorbonne, em 1923, como estudante de his- tória. Foi lecionar na Universidade da Argélia, o que lhe permitiu conhecer – 167 – As inovações teóricas da escola dos Annales mais sobre o Mar Mediterrâneo e as diferentes populações e culturas que o cercavam, iniciando uma pesquisa que originou sua obra mais conhecida. No início dos anos 1930, veio ao Brasil para lecionar história, participando da montagem e inauguração da Universidade de São Paulo (USP), ajudando a reforçar uma relação nacional com a cultura francesa, que já era forte desde o século XIX. De fato, se pensarmos no desenvolvimento nacional do ensino escolar da disciplina de história, sabemos que desde meados do século XIX o modelo francês exerceu uma influência profunda nos temas, conteúdos e métodos de ensino histórico escolar, inclusive com a adoção (e, posteriormente, inspira- ção) de manuais franceses para alunos brasileiros. Essa relação com a intelec- tualidade francesa se ampliou no início do século XX, por meio de uma série de incentivos governamentais de ambos os países. Entre vários projetos conjuntos, o mais ambicioso foi o da criação de uma universidade paulista: tendo o Brasil já uma tradição de filiação aos valores acadêmicos franceses e estando fortalecidas as relações culturais no início do século XX, teve-se como resultado que os cursos de ciências humanas criados na nova universidade acabaram sendo ocupados por pensadores ligados ao pensa- mento francês. Vieram ao Brasil jovens intelectuais, com ou sem experiência no ensino, para inaugurar e lecionar nos novos cursos. Alguns dos professores aca- baram se tornando referências intelectuais importantes, como foram os casos de Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e, o próprio Fernand Braudel. É possível perguntar: por que a influência da escola dos Annales só se concretizou no Brasil na década de 1980, se um personagem importante como Braudel lecionou na USP entre 1934 e 1937? Porque, na verdade, o que conhecemos como pensamento de “Annales” foi construído ao longo do tempo e como resultado de esforços contínuos de vários pesquisadores. A revista que originou o que seria uma específica escola de pensamento his- tórico tinha sido fundada há apenas cinco anos, quando Braudel chegou ao Brasil; e foi no mesmo ano de sua volta a Paris que foi publicado o texto de Bloch, no qual definia os princípios teóricos de seu pensamento histórico. Assim, e ainda que Braudel tenha deixado influências importantes no país, deve-se lembrar que era um pesquisador ainda em formação. De sua relação com o pensamento nacional e a prática histórica, portanto, pode-se dizer que tanto influenciou quanto foi influenciado. Teorias da História – 168 – Pouco tempo após Braudel retornar à Europa, foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial. Obrigado a se alistar, foi capturado em 1940 pelos alemães e, mesmo prisioneiro, desenvolveu a escrita de sua obra mais influente, “O Mediterrâneo”, em que analisou, como define o próprio subtítulo do livro, o mundo mediterrânico na época de Filipe II da Espanha (1527-1598). Pos- teriormente afirmou: “foi em cativeiro que eu escrevi esse enorme trabalho que Lucien Febvre recebeu, caderno de notas por caderno de notas” (apud HUGHES-WARRINGTON, 2008, p. 20). Braudel valeu-se muito de sua própria memória para a produção do livro, embora, eventualmente, fosse-lhe permitido consultar bibliotecas municipais. A concepção histórica de Braudel aliava-se àquela que estava sendo cons- truída pela escola de Annales. Considerava, por exemplo, que a história tra- dicional, inclusive a de Leopold von Ranke, preocupava-se com as questões menos importantes do passado. Notai que essa história-narração tem sempre a pretensão de dizer “as coisas como elas se passaram realmente”3. Ranke acreditou profunda- mente nessa palavra quando a pronunciou. Na realidade, ela se apre- senta como uma interpretação, a seu modo dissimulada, como uma autêntica filosofia da história. Para ela, a vida dos homens é dominada por acidentes dramáticos (BRAUDEL, 1978, p. 24). O que Braudel estava condenando, nesse trecho, era a perspectiva histó- rica que se fixava nos acontecimentos – naqueles pequenos eventos, ligados a uma data específica e que, para historiadores tradicionais, formavam a his- tória. Ou seja, apenas as ações heroicas, audaciosas, impactantes e dignas de serem noticiadas comporiam o enredo desse modelo de pensamento. Uma concepção que Braudel comparou à luz dos vagalumes: Guardei a lembrança, uma noite, perto da Bahia, de ter sido envol- vido por um fogo de artifício de pirilampos fosforescentes; suas luzes pálidas reluziam, se extinguiam, brilhavam de novo, sem romper a noite com verdadeiras claridades. Assim são os acontecimentos: para além de seu clarão, a obscuridade permanece vitoriosa (BRAUDEL, 1978, p. 23). Para Braudel, eram os elementos profundos e estruturais que seriam, realmente, os aspectos importantes na escrita da história. Seriam as condições 3 No Capítulo 4, traduzimos a famosa expressão de Ranke como “a história como realmente aconteceu”. – 169 – As inovações teóricas da escola dos Annales contextuais, originadas séculos, ou mesmo milênios, antes da vida das pessoas, os principais elementos com os quais os historiadores deveriam se ocupar. Historiografia e Teoria: As três temporalidades O aspecto mais inovador da obra “O Mediterrâneo”, de Braudel, foi sua análise de diferentes temporalidades para compreender um determinado con- texto histórico. Aplicando, em seu livro, sua concepção de que o importante eram os contextos e as estruturas profundas que moldavam as sociedades, o autor pretendeu demonstrar como a história dos acontecimentos – a histoire événementielle – seria consequência de causas anteriores que não poderiam ser conduzidas ou modificadas pelas ações individuais. Em cada uma das três partes em que o livro foi dividido, foi analisada uma diferente temporalidade, partindo-se da mais longa até alcançar a mais curta; dos maiores aos menores tempos. Vamos acompanhar como Braudelapresentou cada uma dessas diferentes partes: A primeira [parte do livro] põe em questão uma história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca; uma história lenta no seu transcorrer e a transformar-se (BRAUDEL, 1978, p. 13). Trata-se da chamada “longa duração”, ou tempo geográfico, na qual Braudel apresentou as características naturais do Mar Mediterrâneo e como condicionaram as estruturas econômicas e sociais das sociedades que o cer- cavam. As montanhas, por exemplo, foram analisadas considerando-se o impacto que produziram na economia, e o próprio mar pela maneira como participou da estruturação das culturas (CHENG, 2012). Tratava-se de um tempo histórico, portanto, que comportava milênios. Acima dessa história imóvel, uma história, lentamente ritmada, dir- -se-ia de bom grado, não fosse a expressão desviada de seu sentido pleno, uma história social, a dos grupos e dos agrupamentos. Como é que essas ondas do fundo levantam o conjunto da vida mediterrânea? Eis o que me perguntei na segunda parte de meu livro, estudando sucessivamente as economias e os Estados, as sociedades, as civiliza- ções [...] (BRAUDEL, 1978, p. 14). A metáfora das ondas é significativa: Braudel via as civilizações como resultado de forças profundas, analisadas na primeira parte da obra. Aqui, nesse tempo social, ele se dedicou a analisar os amplos contextos, as estruturas Teorias da História – 170 – sociais, em uma abordagem que envolvia períodos de séculos. Mais específica que a primeira parte, essa segunda era, de toda forma, ainda mais ampla que a temporalidade da história tradicional, centrada no evento. Terceira parte, enfim, a da história tradicional, se quisermos, da histó- ria à dimensão não do homem, mas do indivíduo, a história ocorren- cial: uma agitação de superfície, as ondas que as marés elevam em seu poderoso movimento. Uma história com oscilações breves, rápidas, nervosas (BRAUDEL, 1978, p. 14). Continuando com sua metáfora do mar, o nível dos acontecimentos – central dentro do modelo tradicional – eram as últimas ondas que chegavam à praia. “Uma agitação de superfície”: para Braudel, esse tempo individual era o menos importante para os estudos históricos. Afinal, poderiam ser dramá- ticos e apaixonantes, mas seus eventos pouco revelavam o que era essencial sobre as pessoas e suas sociedades. Para compreender essa temporalização escalonada da história dentro do modelo de Braudel, é interessante uma comparação com a concepção tradi- cional do tempo linear restrito ao acontecimento. A escola histórica tradicional trabalhava com um tempo linear, em que os acontecimentos eram organizados na ordem em que ocorreram. Assim, um modelo genérico de sua compreensão de temporalidade poderia ser represen- tado da seguinte forma. Figura 3 – Linha do tempo. Fonte: Elaborado pelo autor. Trata-se de uma linha do tempo, em que acontecimentos políticos, usu- almente produzidos pelos personagens considerados historicamente impor- tantes, eram apresentados de forma sequencial e linear. A concepção tradicio- nal de temporalidade histórica resume-se, basicamente, a esse esquema. Tal modelo fazia parte da concepção braudeliana de temporalidade. Em seu esquema, referia-se à história dos acontecimentos, que tomou a terceira e – 171 – As inovações teóricas da escola dos Annales última parte de sua obra, e abrangia um período de cerca de meio século. Não se distinguia, fundamentalmente, do modelo tradicional. Figura 4 – História do acontecimento ou curta duração. Fonte: Elaborado pelo autor. Para Braudel, porém, esse era apenas um dos tempos possíveis para a his- tória. Essa perspectiva sobre o acontecimento estava inserida em outra mais ampla, uma abordagem social, que foi analisada em períodos que podiam atingir vários séculos, e que foi estudada na segunda parte de seu livro. A curta duração dos acontecimentos tem sua importância diminuída quando inserida na linha do tempo dessa história social. Figura 5 – História social e história do acontecimento. Fonte: elaborado pelo autor; as setas não estão em escala. A própria história social, porém, é devedora de um modelo ainda mais amplo e profundo: a história do tempo geográfico, a longa duração. A própria história social tem sua relevância reduzida, quando inserida e comparada a esse período mais amplo de análise. Figura 6 – A longa duração, a história social e a história do acontecimento. Fonte: Elaborado pelo autor; as setas não estão em escala. Teorias da História – 172 – Repare que, dentro desse amplo período, a história dos acontecimentos não seria mais do que apenas um ponto, o que evidenciava que, apesar de dra- máticos, representavam eventos que não teriam influência na temporalidade mais ampla da história. Esse complexo modelo das três temporalidades criado por Braudel pro- duziu grandes impactos nos estudos históricos. Sem dúvida, solidificou a con- cepção de que a história possuía temporalidades diferentes e que, nesse sen- tido, poderia ser escrita sob diferentes perspectivas, das análises mais amplas às mais específicas e pontuais. Não foram muitos, porém, os que seguiram o modelo de Braudel. O gigantesco esforço com o qual construiu o seu trabalho foi muito restrita- mente imitado devido às imensas dificuldades de sua reprodução. Além disso, as críticas braudelianas à relevância do acontecimento devem ser relativizadas: o tempo da curta duração e do acontecimento não é necessariamente pouco influente ou dispensável. Na verdade, o que historiadoras e historiadores percebem hoje é que as diferentes abordagens temporais devem ser pensadas de acordo com cada objeto de pesquisa. Uma história das ações da perseguição política durante o regime militar brasileiro, por exemplo, irá utilizar modelos temporais diferentes dos de uma análise histórica sobre o desenvolvimento do cristianismo no Brasil. A “Nova” história – ou terceira gera- ção de Annales A denominada terceira geração dos Annales se estabeleceu a partir dos anos 1970, com a influência de historiadores como Jacques Le Goff (1924-2014) e Pierre Nora (nascido em 1931). Além de reforçarem sua presença institucional, esses e outros “novos historiadores” procuraram desenvolver ainda mais os campos de atuação e as metodologias históricas. Além disso, esses historiadores fizeram com que suas obras, ainda que produzidas dentro das regras acadêmicas, alcançassem – 173 – As inovações teóricas da escola dos Annales importante sucesso editorial. Um dos documentos mais importantes de seu pensamento his- tórico é a coleção “Faire de l’histoire”, produzido por Le Goff e lançado em 1974. Influenciados pelas novas discussões teó- ricas surgidas após a Segunda Guerra, e particularmente pelo movimento de maio de 1968 na França, historiadores ligados a essas novas concepções de Annales defendiam que a história deveria se ocupar de “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”, defendendo o que concebiam como uma renovação historiográfica. Ainda bastante influentes nos dias de hoje, as concepções teóricas da nova história conduziram a uma fragmentação temática, criando o que o historiador François Dosse (nascido em 1950) denominou de “história em migalhas”, ou seja, uma preocupação com temas cada vez menores, mais específicos e particulares. Da teoria à prática Dois importantes nomes das ciências humanas, e que coincidentemente participaram da “missão francesa” ao Brasil para a fundação da USP, envol- veram-se em um debate significativo, a partir do final dos anos 1950, sobre a possibilidade do conhecimento histórico. O primeiro foi o belga Claude Lévi-Strauss (1908-2009), importante antropólogo cujos trabalhos influen- ciaram fortemente as ciências humanas a partir de meados do século XX; o segundo foi o historiadorFernand Braudel. Em que consistiu esse debate? Lévi-Strauss, buscando defender o próprio método de pesquisa antropológica que ajudou a desenvolver – a chamada antropologia estrutural – afirmou que a história não produzia um conheci- mento efetivo ou científico. Para ele: 2 os historiadores inventavam os fatos, recolhendo dados das fontes, sem objetividade; Teorias da História – 174 – 2 ao construírem explicações, historiadores deviam escolher entre explicar bem ou apresentar todos os dados, o que comprometia o resultado de suas pesquisas; 2 não existia um desenvolvimento contínuo da história desde a Antiguidade até nossos dias, e essa continuidade era uma inven- ção de historiadores; 2 análises contraditórias poderiam ser ambas tomadas como verdadei- ras em história, pois o que valeria é a interpretação do historiador; 2 a história se preocupava com os fatos quando, na verdade, deveria se ocupar da estrutura profunda que molda as sociedades (LÉVI- -STRAUSS, 2003). O que você acha dessas críticas? Você acredita que são válidas? Como você, enquanto historiadora ou historiador, as responderia? Para Fernand Braudel, as críticas de Lévi-Strauss não tinham funda- mento e se baseavam em uma concepção equivocada de história. Afinal, a história não trabalhava somente com a mudança rápida dos eventos e dos acontecimentos e nem apenas com os períodos longos, de mudança lenta. Quem escolhia entre um ou outro seria justamente Lévi-Strauss, que estudava apenas a “estrutura”, ou seja, as regras culturais da sociedade que não se modi- ficam (ou o faziam muito vagarosamente) ao longo do tempo. Para Braudel, o método histórico lidava igualmente com os fenômenos de longa e os de curta duração. Na verdade, ambos os tempos participavam das explicações históricas, e não se poderia tomar um sem o outro. Toda ciência humana, afirmava, deveria considerar essa dupla temporalidade dos acontecimentos humanos: as ações individuais dialogando com forças mais profundas, historicamente mais duradoras (BRAUDEL, 1978). E então, como você se posiciona diante desse debate? Assim como fize- mos no capítulo 1 – quando discutimos as concepções aristotélicas de his- tória – agora é importante que você estruture sua posição no debate entre Lévi-Strauss e Braudel. Com qual pensador você se alinha? Você acredita que ambos têm alguma razão em seus argumentos? No que você concorda ou discorda de ambos? – 175 – As inovações teóricas da escola dos Annales Procure desenvolver um pequeno parágrafo elaborando seu raciocínio a partir das maneiras pelas quais você compreende a ação dos historiadores e a possibilidade de produção de um conhecimento histórico. Síntese Neste capítulo analisamos as maneiras pelas quais a escola dos Annales participou do questionamento aos modelos tradicionais – tanto metódicos quanto historicistas – de se compreender a história. E que, dentro desse pro- cesso, formulou novas concepções sobre o tratamento dado aos documentos, a importância da problematização na abordagem das fontes, a possibilidade de consulta a uma multiplicidade de documentos históricos, o uso de diferen- tes temporalidades para análise dos eventos. Concepções que influenciaram fortemente a produção historiográfica, inclusive a brasileira, desde as últimas décadas do século XX. Atividades 1. Leia com atenção ao texto a seguir, que trata de Marc Bloch e Lucien Febvre, historiadores franceses que fundaram a escola histó- rica dos Annales. O movimento dos Annales, em sua primeira geração, contou com dois líderes: Lucien Febvre, um especialista no século XVI, e o medie- valista Marc Bloch. Embora fossem muito parecidos na maneira de abordar os problemas da história, diferiam bastante em seu com- portamento. Febvre, oito anos mais velho, era expansivo, veemente e combativo, com uma tendência a zangar-se quando contrariado por seus colegas; Bloch, ao contrário, era sereno, irônico e lacônico, demonstrando um amor quase inglês por qualificações e juízos reti- centes (BURKE, 1992, p. 16). A respeito da concepção história da escola dos Annales, é cor- reto afirmar: a) Caracterizou-se pelo repúdio ao modelo tradicional, com a adoção de um modelo de história-problema, diversidade de fontes e abor- dagens metodológicas. Teorias da História – 176 – b) Deu continuidade ao modelo de história política centrada na atua- ção dos reis e imperadores, como mostra o livro “Os reis taumatur- gos”, de Marc Bloch. c) Considerava que a curta duração era a temporalidade própria das ações históricas, pois é quando ocorriam as ações dramáticas, carac- terísticas das vidas humanas. d) Utilizou-se do conceito de raça como forma de representar a supe- rioridade histórica europeia, e particularmente francesa, sobre a de outros povos. e) Surgiu na Universidade de São Paulo, USP, nos anos 1930, quando, após sua fundação, recebeu como professor o historiador francês Fernand Braudel. 2. O texto a seguir foi retirado da obra “Os reis taumaturgos”, de Marc Bloch, um dos fundadores da escola de Annales. Leia-o com atenção. Os reis da França e da Inglaterra puderam tornar-se médicos milagro- sos porque já eram, havia muito tempo, personagens sagradas: “o rei é santo; é o ungido do Senhor”, dizia Pierre de Blois, a fim de justifi- car as virtudes taumatúrgicas de seu monarca, Henrique II. Portanto, convém primeiro indicar de que modo o caráter sagrado da realeza veio a ser reconhecido (BLOCH, 1999, p. 70). A respeito da concepção de história de Bloch, e que se vê refletida nessa obra, é correto afirmar: a) Bloch construiu uma análise política em que diminuiu a importân- cia da economia e enfatizou as ações e desejos individuais dos reis enquanto agentes históricos. b) Nessa obra, Bloch explicava a crença no poder curativo dos reis a partir da psicologia, mostrando como era resultante de determi- nada histeria coletiva. c) A ideia do livro era apresentar um estudo de longa duração, a par- tir do tempo geográfico, para análise do poder dos reis feudais da França e Inglaterra. – 177 – As inovações teóricas da escola dos Annales d) Tratou-se da última obra de Bloch em que ele se utilizou de méto- dos da história tradicional, como a temporalidade linear, o foco na política e o uso da narrativa. e) Bloch construiu um estudo em que procurou inserir as crenças nas capacidades miraculosas dos reis feudais no contexto social e men- tal do período. 3. Friedrich Nietzsche (1844-1900) não foi um historiador, mas um filósofo alemão do século XIX. Suas reflexões tornaram-se bas- tante importantes para as ciências humanas, especialmente no século XX. Leia com atenção o trecho abaixo e, a seguir, faça o que se pede. Os operários que acumulam e selecionam os materiais da história [...] jamais se tornarão grandes historiadores; não se deve também confundi-los com esses últimos, mas vê-los como auxiliares e operá- rios necessários a serviço do mestre de obras (NIETZSCHE, 2005, p. 127). Em relação ao método de trabalho dos historiadores do século XIX e XX, pode-se comparar o raciocínio de Nietzsche com o método: a) Dos historiadores tradicionais, que viam os fatos como dados prontos que deveriam ser extraídos dos documentos e transfor- mados em história. b) Da história de Heródoto e Tucídides, que viam no testemunho das pessoas de seu tempo o caminho para a obtenção de verdades sobre o passado. c) Da história cristã medieval, que buscava justificar o cristianismo com o apelo às concepções deterministas presentes na Bíblia. d) Utilizado por historiadores como Capistrano de Abreu, que procuraram incluir concepções teóricas e analíticas no pensa- mento histórico. e) Dos historiadores da denominada escola dos Annales, devido à sua busca por acumular dados sem possuir, previamente, questões queordenassem a pesquisa. Teorias da História – 178 – 4. É correto dizer, a respeito das diferentes temporalidades utilizadas pelo historiador Fernand Braudel em sua obra “O Mediterrâneo”: a) Utilizou-se de três temporalidades diferentes, partindo de um tempo longo, próprio da geografia, até alcançar o tempo curto, da história do acontecimento. b) Utilizou-se de um sem-número de concepções temporais diferen- tes, o que lhe rendeu críticas devido a inconsistências em relação à sua metodologia. c) Partiu de uma concepção tradicional de tempo histórico, listando eventos de forma sequencial e linear, semelhante aos historiadores dos Annales. d) Centrou-se na chamada longa duração, ou seja, na busca pelo estudo das ações dos indivíduos , dentro de contextos sociais e polí- ticos específicos. e) Foram abandonadas pelos historiadores, que atualmente não utili- zam diferentes temporalidades para analisar temas históricos, ape- nas o modelo cronológico e linear. 7 Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil Uma das características da abordagem histórica é a possibi- lidade de explicar o presente a partir do passado. Nos anos 1930, o Brasil era um país em transição: das concepções patriarcais e agrá- rias, pareciam surgir instituições, modelos culturais, processos de urbanização e modificações políticas que indicavam um abandono de tradições construídas ainda no período colonial. Como, porém, explicar essas mudanças? Como construir interpretações que permi- tissem compreender a situação social e cultural do Brasil, naquele momento, em comparação com outros países? A busca pela ela- boração de uma grande síntese explicativa, a partir da história, foi objetivo de vários pensadores das primeiras décadas do século XX. Neste capítulo, iremos nos dedicar às obras e ao pensamento de três deles – Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre – que procuraram, particularmente nas origens coloniais do país, identificar um sentido para o processo histórico nacional. Teorias da História – 180 – 7.1 Os estudos sobre o Brasil nos anos 1930 “Numa terra radiosa vive um povo triste” (PRADO, 1928, p. 10). Assim começava o longo ensaio publicado, em 1928, pelo mecenas1 e escri- tor Paulo Prado, readaptando, para o cenário brasileiro, um pensamento oriundo da Antiguidade: “post coitum, animal triste”, ou traduzindo do latim, após o coito, [todo] animal entristece. Fazia parte de sua tentativa, adotando uma perspectiva sem dúvida original, de tentar descrever o cará- ter do povo brasileiro: A história do Brasil é o desenvolvimento desordenado dessas obses- sões subjugando o espírito e o corpo de suas vítimas. Para o erotismo exagerado contribuíram como cúmplices – já dissemos – três fatores: o clima, a terra, a mulher indígena ou a escrava africana. Na terra virgem tudo incitava ao culto do vício sexual... Desses excessos de vida sensual ficaram traços indeléveis no caráter brasileiro (PRADO, 1928, p. 10). O raciocínio de Prado era de que o Brasil seria formado por um povo entristecido pela luxúria, e isso teria influenciado a sociedade brasileira como um todo, o que, em parte, explicava a situação de atraso, os problemas sociais e a aparente dificuldade do país em se tornar, efetivamente, “moderno”. Segundo seu raciocínio, a luxúria teria deixado “traços indeléveis” na popula- ção e isso teria afetado, inclusive, a inteligência de seus indivíduos. O texto de Paulo Prado foi produzido em um momento em que a intelectualidade brasileira procurava explicações para a realidade social e cultural do Brasil. Tratava-se, afinal, de um período de importantes mudan- ças culturais, econômicas e políticas. Foi nessa ocasião, por exemplo, que a influência de movimentos artísticos de vanguarda, de origem especialmente europeia, incentivou o desenvolvimento do modernismo no país. Impac- tando das artes aos comportamentos, o pensamento modernista estimulou a busca por aquelas que seriam as características específicas do Brasil, as razões para os costumes da população e as formas características de suas instituições. Prado, aliás, não foi apenas um dos pensadores desse movi- mento, como ajudou, pessoalmente, a financiar eventos modernistas, como a Semana de Arte Moderna de 1922. 1 Indivíduo rico que patrocina um campo do saber ou das artes. – 181 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil Saiba mais Ocorrida entre 11 e 18 de fevereiro de 1922 em São Paulo, a Semana de Arte Moderna, foi um marco do movimento modernista brasileiro. Dedicada a diferentes artes – música, pintura, literatura, escultura – sintetizou e divulgou experimentações estéticas de artistas nacionais, influenciados por movimentos europeus de vanguarda. Participaram do evento personagens como Mário de Andrade, Menotti Del Pic- chia, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos e Oswald de Andrade, que acabaram, ao longo do século XX, tornando-se referências nas artes brasileiras. Toda essa atmosfera de mudanças foi acentuada pela política. Em 1930 iniciou-se a chamada “Era Vargas”, após um golpe de Estado que colocou fim à República Velha. A ascensão de Getúlio Vargas que, em seu primeiro momento, permaneceu na presidência até 1945, refletiu uma alteração na configuração do poder a níveis regional e nacional, levando a uma modifica- ção na estrutura política do país. O Brasil parecia estar, nitidamente, em transformação. O caráter e o sen- tido dessa transição, porém, não estavam claros, e pensadores, utilizando-se das mais diferentes abordagens, procuraram, cada um a seu modo, respon- der a questões que pareciam especialmente importantes para compreender a realidade nacional: como o Brasil estava situado, social e culturalmente, em comparação aos demais países do ocidente? O que explicaria o atraso nacio- nal, quando contrastado com nações que haviam iniciado sua colonização em época semelhante, como os Estados Unidos? A característica miscigenação da população brasileira contribuía para a situação social que o país se encontrava naquelas primeiras décadas do século XX? O que era próprio, característico e determinante para o Brasil ser, enfim, Brasil? De certa forma, o primeiro pensador a buscar construir uma explicação abrangente para a realidade nacional, recorrendo particularmente à histó- ria, foi Von Martius, ainda no século XIX. Nos anos 1930, porém, surgiram novas abordagens, que se caracterizaram por seu aprofundamento teórico na busca por identificar o sentido tomado para o desenvolvimento do país. Teorias da História – 182 – Nesse momento, três autores se destacaram e, ainda que não fossem todos historiadores, tinham em comum a adoção da abordagem nitidamente histó- rica: voltando ao passado, e particularmente à colonização, pensaram encon- trar explicações para o que se pode denominar de caráter tanto do Brasil e de suas instituições, quanto de sua população. Trata-se de Sérgio Buarque de Holanda, com a obra “Raízes do Brasil”, publicada em 1936; Caio Prado Jr., com as obras “Evolução política do Brasil”, lançada em 1933, e “Formação do Brasil contemporâneo”, em 1942; e Gilberto Freyre, com “Casa Grande & Senzala”, de 1933. Ainda que possuíssem abordagens bastante diferentes, o que unia esses pesquisadores era o desejo de pensar o Brasil amplamente, procurando encon- trar, por meio da história, explicações para a realidade do país como a conhe- ciam. Interpretando o desenvolvimento nacional a partir de modelos teóricos importados, caracterizaram-se pela busca de construção de sínteses analíticas. Produziram, assim, trabalhos que acabaram se tornando clássicos e referências importantes aos estudos históricos brasileiros. 7.2 Sérgio Buarque de Holanda Nascido em 1902, em São Paulo, Sérgio Buarque de Holanda escre- veu desde jovem para revistas e jornais paulistas, colaborando inclusivecom publicações ligadas ao movimento modernista como “Klaxon” e “Estética” (da qual, aliás, foi um dos fundadores). Aproximou-se muito lentamente dos estudos históricos, e sua formação específica veio como Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1929, morou e trabalhou na Alemanha, o que permi- tiu um contato com pensadores locais que influenciaram seu pensamento e cujas teorias contribuíram para formar as bases de seu livro mais conhecido, “Raízes do Brasil”. Dirigiu a produção da coleção “História da civilização bra- sileira”, entre 1960 e 1972, foi professor universitário, e continuou, durante toda sua vida, produzindo obras históricas importantes, como “Monções” ou “Visão do Paraíso”. É, ainda hoje, um dos mais importantes historiado- res brasileiros, particularmente devido ao livro que publicou quando tinha pouco menos de 30 anos. “Raízes do Brasil” é uma obra relativamente curta, considerando-se seu ambicioso objetivo – uma edição bastante popular no mercado livreiro, conta – 183 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil com aproximadamente 220 páginas. Sua intenção é compreender as caracte- rísticas do Estado e do povo brasileiros a partir da análise de sua história e, especialmente, da especificidade da colonização do país: A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências (HOLANDA, 2006, p. 19). Buarque buscou descrever como, essencialmente, a implementação de modos de pensar e governar característicos dos portugueses resultou em um modelo social que produziu, tanto nas instituições, quanto no próprio com- portamento dos brasileiros, resultados que podem ser definidos como contra- ditórios e problemáticos. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas insti- tuições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra (HOLANDA, 2006, p. 19). Esse “desterro” teria sido o resultado da soma, segundo Buarque, de uma determinada cultura lusitana às condições existentes para o processo colo- nial. Não que faltasse aos portugueses a capacidade de adaptação a condições adversas; na verdade, quando iniciaram a colonização do Brasil, no século XVI, já eram experientes colonizadores e haviam aprendido a se relacionar com diferentes sociedades e culturas para levar adiante seus empreendimentos econômicos e sociais. O que teria ocorrido, segundo Buarque, é que exata- mente essa sua experiência no contato com realidades diferentes da sua teria criado, nos portugueses, uma determinada maneira plástica de encarar a rea- lidade, que acabaram transplantadas para as instituições brasileiras. Exatamente por ser um povo acostumado à expansão marítima e à busca por riqueza em regiões bastante distantes de seu mundo natal, teria se desen- volvido entre os portugueses uma valorização do desempenho individual e uma crença na possibilidade da mobilidade social. A partir de uma “ética da aventura”, acreditavam possível o enriquecimento e a ascensão social. Embora essas ideias fossem úteis para quem procurasse ter sucesso em terras estranhas, seriam nocivas – acreditava Buarque – a uma determinada moral do traba- lho. Ao valorizarem a aventura, os portugueses desvalorizavam a atividade rotineira; e desvalorizando esse tipo de trabalho, desvalorizava-se, também, a busca pela construção de instituições que visassem o bem-estar comum. Teorias da História – 184 – Essa cultura da personalidade [...] parece constituir o traço mais deci- sivo na evolução da gente hispânica, desde os tempos imemoriais. Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que atri- buem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos seus semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacio- nal (HOLANDA, 2006, p. 20). Isso teria gerado, como uma primeira consequência importante para expli- car o Brasil, a ausência de uma coesão nacional. Afinal, a estrutura administra- tiva implementada pelos portugueses, por um lado, e a valorização do indiví- duo (e não da comunidade), por outro, teriam construído instituições que não eram voltadas ao desenvolvimento da vida comunitária. Esses fatores teriam sido acentuados por outra característica nacional, encontrada também no Brasil Colônia: a importância da família patriarcal e de suas formas de sociabilidade. Define-se “família patriarcal” como aquela composta não apenas pelos membros de sangue, mas também por agregados, empregados, indivíduos ligados por sistemas de compadrio e que teriam como chefe, um pai (o patriarca), que atuava como líder de um clã. Segundo afirmou Buarque, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respei- tabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolí- tica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família (HOLANDA, 2006, p. 20). Observe como se repete o modelo de raciocínio de Buarque: o autor toma determinada característica específica que ele identifica nos indivíduos e generaliza para toda sociedade. Assim, se os portugueses valorizavam a ousa- dia e o individualismo, as instituições do Brasil refletiriam essa característica; se a organização familiar era patriarcal, o patriarcalismo teria sido difundido na sociedade como um todo. Estendido a todo Estado, significou a presença do mandonismo político e das relações pessoais, ao contrário da impessoali- dade, que seria de se esperar de uma instituição pública. Dessa forma, construiu-se no Brasil, segundo Buarque, uma confusão entre o que era público e o que era privado; o que era próprio da sociedade e o que era característico da família. Os negócios do Estado passaram, por essa razão, a ser administrados como se fossem extensão das relações familia- – 185 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil res. Foi, aliás, desenvolvendo esse raciocínio, que Sérgio Buarque de Holanda desenvolveu o tipo ideal do “homem cordial”, um dos mais conhecidos concei- tos presentes em sua obra. Mas, antes, cabe a pergunta: o que é um “tipo ideal”? Saiba mais “Tipos ideais” era como o sociólogo alemão Max Weber (1864- 1920) denominava os conceitos que utilizava para analisar a reali- dade. Eram “ideais” porque pertenciam ao mundo das ideias: esta- beleciam elementos que seriam próprios aos fenômenos estudados, ainda que, no mundo real, pudessem não possuir todas essas caracte- rísticas. Tratava-se, assim, de abstrações utilizadas para tornar possível o recorte e a análise da realidade. Desse modo, Buarque inicia sua definição de “homem cordial”: Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização ocidental será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza2 no trato, a hospitalidade, a generosi- dade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, represen- tam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriar- cal (HOLANDA, 2006, p. 161). Para Buarque, essa cordialidade, que seria um traço do brasileiro, era uma continuidade dos modos de relacionamentos próprios da estrutura patriarcal. Assim, construir um relacionamento cordial com outras pessoas não teria ficado, para o brasileiro, algo restrito apenas ao ambiente familiar, mas teria se difundido socialmente enquanto uma prática de convívio, uma forma de sociabilidade. O objetivode Buarque, porém, não era o de elogiar o caráter nacional, ou de presumir que esse aspecto afável do brasileiro fosse motivo de superio- ridade ou orgulho patrióticos. Na verdade, o “homem cordial” é aquele que trata as questões públicas – por exemplo, governamentais – como extensão das questões particulares. A “cordialidade”, portanto, torna-se um elemento 2 Qualidade daquilo que é afável, cândido. Teorias da História – 186 – presente nas instituições brasileiras como um todo, gerando uma confusão entre aquilo que é público e o que é privado. Para Buarque, o brasileiro, devido a todas essas características, não seria capaz de construir uma diferen- ciação entre aquilo que é individual do que é coletivo. E, em sendo assim, também em assuntos relacionados ao Estado – que exigiriam, teoricamente, impessoalidade e objetividade – permaneceu a presença do sentimento, da amizade, das relações afetuosas, enfim, da cordialidade. Como a colonização portuguesa teria valorizado o emocional sobre o racional, não teriam existido as bases para a construção de um Estado que fosse impessoal, o que era característico dos países considerados, à época, “modernos”. Pelo contrário: no Brasil, os padrões de convívio privado foram estendidos à vida pública. Isso teria gerado como consequência um enfraque- cimento das instituições. É importante destacar como o pensamento de Buarque foi influen- ciado pelo historicismo alemão, que vimos nascer com Herder e se desen- volver com Ranke: um dos objetivos de “Raízes do Brasil” foi, também, compreender o caráter específico do Brasil e dos brasileiros, ou seja, identi- ficar os elementos que tornava o país absolutamente único, em uma análise que é própria dos historicistas. Um último ponto a se destacar no pensamento de Buarque, apresentado em “Raízes do Brasil”, é que a plasticidade social e cultural dos portugueses teria sido capaz, também, de se deixar influenciar culturalmente pela presença dos negros africanos, trazidos à força para serem escravizados no Brasil: o escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o subs- tituísse pelo combustível. [...] Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer ideia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação (HOLANDA, 2006, p. 47). 7.3 Caio Prado Jr. Começando a discutir o pensamento de Prado Jr., vamos comparar sua análise sobre a influência cultural negra e indígena no Brasil com a última citação de Sérgio Buarque de Holanda que vimos anteriormente: – 187 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula. Não que deixasse de concor- rer, e muito, para a nossa “cultura”, [...] mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue [...]. O cabedal de cultura que traz consigo é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. Age mais como fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe (PRADO Jr., 1971, p. 31). Comparando os dois autores, fica evidente que Prado Jr. e Buarque che- gam a conclusões bastante diferentes sobre a participação dos negros africanos na formação da sociedade brasileira. Isso ocorre porque os autores trabalha- ram a partir de diferentes perspectivas, o que gerou explicações contrastan- tes sobre o mesmo fenômeno. Enquanto Buarque utilizou-se de métodos e conceitos extraídos da sociologia do período, como a ideia de “tipos ideais”, Prado Jr. partiu de concepções marxistas. Estudaremos os detalhes do pensamento marxista, tão importante para os estudos históricos, no próximo capítulo. Entretanto, devemos entender alguns de seus elementos para compreendermos o raciocínio de Prado Jr. já presente em “Evolução política do Brasil”, porém mais amadurecido em “Formação do Brasil Contemporâneo”. Para Caio Prado Jr., o aspecto mais importante de uma sociedade era a sua economia. A partir das condições econômicas – da maneira pela qual era produzida a riqueza – ficavam determinados os demais elementos sociais, como a legislação e a organização das instituições. Segundo esse raciocínio, mesmo características culturais acabavam sendo determinadas pela econo- mia, e isso incluiria, por exemplo, a integração dos negros escravizados na sociedade brasileira. Assim, enquanto Buarque via a colonização como um empreendimento social, político e cultural, Prado Jr. a analisava a partir de uma perspectiva econômica, na qual a escravidão desempenhava um papel importante. No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colo- nização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial [...] destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele expli- Teorias da História – 188 – cará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos (PRADO JR., 1971. p. 31). O que definia o processo de colonização para Prado Jr. seria, portanto, seu caráter comercial, que seria definidor das maneiras pelas quais os portu- gueses construiriam, no Brasil, as instituições coloniais, e como seria formada a organização social. É por essa perspectiva que Prado Jr. observava a ques- tão da escravidão: se o historiador partia do pressuposto de que a economia definia as relações sociais, é de se imaginar que ele interpretava o processo de escravidão como totalmente dominado aos desejos dos senhores escravocra- tas. Concluía, assim, que o escravo não possuía qualquer autonomia, capaci- dade de resistência, ou influência social, por mínimas que fossem. O Brasil já nascia, portanto, enquanto uma região dependente, produtora de produtos primários para a exportação a Portugal e, dessa característica básica, todos os demais elementos sociais e políticos tornavam-se decorrentes. É por isso que no Brasil teriam predominado os latifúndios – pois era a maneira mais lucrativa de se produzir em grandes quantidades –, insistido na monocultura – em que era escolhido o produto que tivesse um mercado mais promissor na Europa –, e no trabalho escravo – a mão de obra menos custosa disponível gerava mais lucro, além de que seu comércio gerava dividendos a Portugal. A importância que tomou o sistema patriarcal no Brasil Colônia é também explicada por esse modelo de análise: sendo as grandes propriedades rurais os centros produtores de riqueza, seus senhores acabavam se destacando enquanto figuras políticas poderosas, em torno dos quais as comunidades locais se estru- turavam. Em síntese: quem dominava a riqueza, detinha o poder. Estariam nas questões econômicas, portanto, nas razões pelas quais o processo de colonização se deu no Brasil, o “sentido” histórico do país: Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo (PRADO Jr., 1971, p. 14). E foi na busca da identificação desse sentido que Caio Prado Jr. desen- volveu e difundiu uma das mais conhecidas interpretações históricas da his- toriografia nacional, e que visava dar conta dos desenvolvimentos históricos tomados pelos diversos países americanos. Tratava-se da classificação de tipos diferentes de colonização: as de “povoamento” e as de “exploração”. – 189 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil Segundo Prado Jr., as colônias de povoamento– aquelas que teriam se desenvolvido especialmente nos Estados Unidos – não teriam nada de inte- ressante a ser explorado economicamente. Estando em regiões de clima tem- perado, e em não existindo metais preciosos que pudessem ser imediatamente aproveitados, não possuíam quaisquer produtos primários cuja exploração rendesse lucros aos países europeus. Nada que fosse, em outras palavras, comercialmente valioso. Dessa maneira, essas regiões não foram colonizadas pela busca de ganhos econômicos, mas por razões de outra ordem. Se se povoou essa área temperada, o que, aliás, só ocorreu depois do séc. XVII, foi por circunstâncias muito especiais. É a situação interna da Europa, em particular da Inglaterra, as suas lutas político-religiosas que desviam para a América as atenções de populações que não se sentem à vontade e vão procurar ali abrigo e paz para suas convicções (PRADO JR., 1971. p. 20). E esse motivo original de povoamento impulsionou a organização de uma sociedade que procurou reproduzir o modo de vida de suas regiões de origem. O que resultará deste povoamento, realizado com tal espírito e num meio físico muito aproximado do da Europa, será naturalmente uma sociedade que embora com caracteres próprios, terá semelhança pro- nunciada com a do continente de onde se origina. Será pouco mais que um simples prolongamento dele (PRADO JR., 1971. p. 21). As “colônias de exploração”, por outro lado, das quais o Brasil era um dos maiores exemplos, atraíram a atenção dos países europeus por apresen- tarem potencial para aproveitamento econômico. Estando em regiões tropi- cais e subtropicais, produziam produtos primários altamente lucrativos no comércio europeu. Seu sentido de colonização, portanto, seria o da busca pelo máximo ganho econômico, fato que teria determinado as características das instituições aqui criadas. Em primeiro lugar, as condições naturais, tão diferentes do habitat de origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como simples povoador, da categoria daquele que procura a zona temperada (PRADO JR., 1971. p. 21). Em sendo marxista, portanto, Prado Jr. observou na constituição mate- rial da sociedade colonial do Brasil parte das causas dos problemas institucio- nais e sociais que, nos anos 30 e 40 – quando escreveu suas principais obras – identificava como sendo os mais relevantes. Para ele, nascer enquanto uma colônia de exploração teria definido, em vários sentidos, o Brasil: Teorias da História – 190 – Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodão, e em seguida café, para o comér- cio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a econo- mia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país (PRADO JR., 1971. p. 25-6). É importante destacar que essa explicação, ainda que interessante e ins- tigadora, não é mais aceita como válida por historiadoras e historiadores da atualidade. Ainda que tenha se tornado bastante popular, eventualmente ainda aparecendo inclusive em materiais didáticos, não consegue comportar a grande quantidade de exceções e especificidades. Se toda explicação é, em algum sen- tido, uma simplificação, a síntese construída por Prado Jr. acabou se mostrando por demais simplista para dar conta da realidade que procurou analisar. Figura 1- Tempos de vida de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., e Gilberto Freyre. Fonte: Elaborado pelo autor. 7.4 Gilberto Freyre Leia com atenção o trecho abaixo, extraído de um livro didático de his- tória para o antigo ensino ginasial (atual 6º ao 9º anos) e publicado em 1968. Depois da Guerra do Paraguai, muitos senhores libertaram seus escra- vos, porque achavam que era justa a causa abolicionista. Quanto ao tratamento que no Brasil se dispensava aos negros, era em geral mais humano que nos outros países. A prática da religião católica pelos proprietários muito contribuiu para esse tratamento, evitando que os escravos sofressem castigos cruéis e permitindo o seu descanso nos domingos e nos muitos dias santos. Por isso, quando foi feita a aboli- ção, muitos escravos preferiram ficar nas fazendas trabalhando com seus antigos senhores (HERMIDA, 1968, p. 266-7). – 191 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil Não há praticamente nada de verdadeiro nesse trecho, embora defenda uma ideia que se tornou comum em boa parte do século XX, no Brasil: de que o país, independentemente de seu passado escravocrata, teria se consti- tuído como uma “democracia racial”, um local em que pessoas de diferentes etnias conviveriam em paz, sem racismos ou preconceitos. Mito que começou a ser construído ainda no século XIX, ganhou impulso nas primeiras décadas do XX, mas recebeu sua formulação acadêmica mais rigorosa e importante com a obra “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre. No entanto, seria injusto reduzir o livro de Freyre apenas a esse tema. De fato, apesar de todos os seus defeitos, a obra procurou apresentar uma inter- pretação do Brasil a partir de suas origens coloniais, construindo um modelo explicativo que se difundiu pela sociedade brasileira (atingindo, como vimos anteriormente, inclusive os livros didáticos). Influente ainda nos dias de hoje, “Casa Grande & Senzala” apresentou inovações importantes para a histo- riografia e sociologia nacionais, e é uma das mais importantes obras sobre o período colonial brasileiro. Nascido em 1900, no Recife, Gilberto Freyre publicou sua obra-prima com apenas 33 anos. Sua análise foi bastante influenciada por seus estudos na Univer- sidade de Columbia, nos Estados Unidos, onde conheceu o trabalho do antropó- logo Franz Boas (1858-1942) e, particularmente, seu conceito de “cultura”. Saiba mais Falamos rapidamente sobre Franz Boas no capítulo 3: esse pesqui- sador teuto-americano (relativo à Alemanha e à América (espe- cialmente dos Estados Unidos)) foi personagem importante no desenvolvimento do conceito antropológico de cultura. Ainda nas primeiras décadas do século XX, era muito comum que as diferenças entre sociedades fossem pensadas em termos de raça – ou seja, a diversidade humana era compreendida a partir de características que seriam biológicas. Boas, a partir de estudos em comunidades ditas tra- dicionais, desenvolveu a noção de que o que diferenciaria os grupos humanos estaria, na verdade, a sua cultura: seriam, assim, culturais e não biológicas as maneiras pelas quais construíam a própria realidade, suas crenças, hábitos e formas de pensar e agir no mundo. Teorias da História – 192 – Assim afirmou Freyre: Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a dis- criminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influ- ências sociais, de herança cultural e de meio (FREYRE, 2005, p. 31). De fato, diferentemente dos estudos que existiam até aquele momento, Gilberto Freyre analisou os contatos entre diferentes povos, dentro do pro- cesso de colonização brasileiro, pela perspectiva da cultura. Não via, portanto, o contato entre brancos, negros e mulatos sob o prisma da superioridade ou inferioridade biológicas, mas pela ideia de que cada grupo trazia suas próprias crenças e modos de vida, que moldariam e seriam moldados pelos contatos com os demais. Ainda que o trabalho de Freyre fosse fundado na sociologia e na antro- pologia, construiu uma interpretaçãodo Brasil que era essencialmente histó- rica. Pois, assim como Prado Jr. e Buarque, também Freyre buscou no passado colonial identificar quais foram as condições que teriam organizado e defi- nido a sociedade brasileira. Parte de seu raciocínio assemelha-se ao de Sérgio Buarque de Holanda. Freyre também partiu da experiência portuguesa em colonizações anteriores, embora tenha se aprofundado nessa questão. Para ele, seria possível inclusive construir uma teoria, que denominou de luso-tropicalismo, pressupondo a especial capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos. O objetivo dos estudos luso-tropicais era identificar semelhanças nos projetos coloniais lusitanos em diferentes partes do mundo. A plasticidade portuguesa em se adaptar aos mais diferentes ambientes foi, para Freyre, uma das razões que teriam estimulado, no Brasil, o surgi- mento da miscigenação, ou seja, da mistura entre indivíduos de “raças” dife- rentes (e, aqui, ele ainda está repercutindo von Martius). A sociedade brasi- leira teria se desenvolvido “menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso des- dobrado em sistema de profilaxia social e política” (FREYRE, 2005, p. 65). Sem uma ideia de raça, defendia Freyre, as relações entre indivíduos de origens tão diferentes seriam construídas pela convivência doméstica. – 193 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil Assim, ainda portugueses, indígenas e negros vivessem em uma socie- dade escravocrata, o contato próximo teria enfraquecido o surgimento de conflitos fundamentais, amainando o caráter intrinsecamente violento da escravidão. Não é à toa, aliás, que o título de seu livro tem o carac- terístico “&”: tinha como objetivo destacar que os habitantes da casa grande não estavam separados da senzala, mas encontravam-se de alguma forma unidos, sendo um espaço complementar ao outro. A casa grande & a senzala formariam, assim, um conjunto que, apesar das diferenças sociais evidentes, não estava totalmente dividido. E como elemento cen- tral dessa suposta união estava a família patriarcal, fundamento da socia- bilidade brasileira. Na análise de Freyre, portanto, teria existido no Brasil uma escravidão “suave”, abrandada pelo comportamento facilmente moldável dos portugue- ses, pelo convívio integrador no ambiente doméstico e pela sensualidade, pró- pria do período. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações – as dos brancos com as mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” e, no maior número de casos, de senhores desabu- sados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala (FREYRE, 2005, p. 46). Essas “zonas de confraternização”, como se pode constatar pelo trecho acima, eram sexuais. Freyre tem uma frase bastante citada – “O Brasil parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado” (FREYRE, 2005, p. 110) – em que faz um divertido jogo de palavras entre a sífilis e a civilização, desta- cando a importância que as práticas eróticas tiveram na construção das rela- ções sociais. Ainda que nada nos documentos históricos sustente sua tese da “sifilização” antes da “civilização”, era ideia de Freyre que o contato íntimo, sensual, teria contribuído diretamente para a criação do que seria denomi- nado (não por ele, mas por outros) de “democracia racial”. Afinal defendia que, desde o período colonial, o branco e o negro não eram estranhos um ao outro, inclusive intimamente. Vencia-se, pela libido, a distância que existia entre a senzala e a casa grande. Teorias da História – 194 – Tratam-se de afirmações desprovidas de fundamento factual. A violência foi característica do sistema escravocrata brasileiro, e o que Gilberto Freyre define metaforicamente como aproximações eróticas, definiríamos hoje uti- lizando o termo “estupro” (ainda que se deva cuidar com o anacronismo), e a sociedade brasileira, desde o período colonial, em nenhum momento pode ser definida como isenta de preconceitos ou racismo. Ao contrário, a divisão social brasileira se estruturou, profundamente, também a partir de diferencia- ções baseadas em cor da pele. Ainda que essas observações sejam fundamentais, não podemos ignorar as importantes inovações e influências do trabalho de Freyre, notadamente para os estudos históricos. Em primeiro lugar, sua originalidade de unir os estudos históricos à ideia de cultura, algo que se tornaria comum entre his- toriadores somente décadas após a publicação de seu livro. Por comparação, a revista dos Annales havia começado suas atividades em 1929 (o livro de Freyre é de 1933) e seria apenas ao longo de anos que desenvolveu um con- ceito semelhante – o de mentalidades. Uma segunda novidade do trabalho de Freyre, ligada, aliás, à sua pers- pectiva cultural, estava no uso de fontes históricas: seu estudo, por não ser uma análise meramente política como era característico da dominante his- tória tradicional de então, utilizou-se de notícias de jornais, mudanças na moda, receitas culinárias e análises arquitetônicas para construir modelos explicativos em conjunção a estudos sobre o clima, os recursos naturais, as questões econômicas e sociais. Ainda que não fosse seu objetivo construir uma “história total”, sem dúvida ampliou o tipo de análise histórica que era realizada no período. Historiografia e Teoria: O que é “explicar” em história? Entre os vários pontos em comum a Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre, destaca-se a elaboração de explicações históricas sobre a situação do Brasil no período em que viviam. Todos os três retornaram ao passado e, mais particularmente, ao período colonial, buscando recons- truir o processo que teria formado as instituições, as características culturais e as formas de sociabilidade que seriam, a seu ver, propriamente brasileiras. Buscar no passado respostas para explicar a realidade do presente é a principal característica do pensamento histórico. Isso dito, fica a questão: O – 195 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil que é “explicar”, em história? Como historiadoras e historiadores constroem modelos explicativos para os eventos que estudam? Cada objeto de pesquisa tem suas próprias peculiaridades. Não apenas referem-se a períodos e locais específicos, mas possuem fontes, causalidades, sujeitos, questões sociais que demandarão modelos explicativos particulares. Em síntese, cada problema histórico exige explicações próprias. Assim, os itens apresentados a seguir referem-se às questões mais comuns e recorrentes que envolvem as explicações em história. Explicar significa inserir o evento em um contexto mais amplo. E isso implica, basicamente, duas coisas: inserir adequadamente seu objeto de pesquisa em sua época e realizar o adequado debate com a historiografia dis- ponível sobre o tema. A inserção contextual de seu objeto de pesquisa na própria época e con- dições históricas é parte importante do processo explicativo. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, procurou explicar um específico dado da realidade – o modelo de família patriarcal no Brasil – inserindo-o em um contexto mais amplo: a característica portuguesa de valorização da ousadia e da individua- lidade, gerando um sistema social em que foi acentuada a relação de mando de um sobre os demais, mesmo no ambiente familiar. Sem essa inserção em eventos e contextos abrangente, o evento histórico não pode compreendido de forma efetivamentehistórica, pois passa a ser tratado como se estivesse isolado, desligado do próprio período. Um segundo exemplo: não se pode compreender a viagem de Pedro Álvares Cabral, em 1500, se o evento não for inserido em vários contextos mais amplos: o processo de expansão marítima portuguesa; a tecnologia própria da navegação do período; o desejo religioso de expansão da cristandade; a busca por aproveitamento mercantilista de pro- dutos exóticos, entre outros, com os quais aquele acontecimento particular pode e deve ser relacionado. Deve-se, ao mesmo tempo, realizar essa inserção dentro da historiografia já existente sobre o tema. Explicar se torna, também, um diálogo com obras de historiadoras e historiadores: como seu tema se relaciona com o que já foi escrito? Em quais aspectos está confirmando ou refutando o conhecimento existente? Faz-se necessário, assim, identificar em qual ponto exato o seu objeto de pesquisa se encontra dentro da rede de conhecimentos históricos que já foi produzida. Teorias da História – 196 – Explicar significa identificar as causas, das mais imediatas às mais estruturais. Já discutimos anteriormente o tema da causalidade, mas convém deixar claro que faz parte da explicação organizar as causas em uma síntese coerente, diferenciando, claramente, as causas estruturais das mais imediatas. A explicação deve estar adequada aos fatos presentes nos documen- tos. De certa maneira, todos os três autores analisados neste capítulo, em algum momento, falham nessa exigência. Vamos tomar, por exemplo, o argu- mento de Prado Jr. sobre o fato de que os escravos, por serem o elo mais subjugado dentro do sistema econômico colonial, não teriam tido condições de exercer qualquer influência sobre a formação cultural no Brasil: ainda que possua uma determinada lógica interna dentro de seu argumento (se a economia determina a cultura, aqueles mais fracos no processo de produ- ção não impactarão culturalmente), o fato – literalmente – é que as pessoas que vieram da África e foram escravizadas, do século XVI ao XIX, exerceram profunda influência sobre a sociedade e cultura nacionais. O argumento de Prado Jr., assim, torna-se inválido por não concordar com o que afirmam os documentos históricos. A teoria, como o marxismo utilizado por Prado Jr., é fundamental para organizar o pensamento e auxiliar no processo de análise e conclusões. Traba- lhos históricos sem teoria, já o dissemos em outro momento, são ingênuos e tendem a cair em erros analíticos sérios. Mas cair no erro oposto é tão ruim quanto: não se pode ignorar a realidade para apenas louvar a teoria. Quando os fatos são selecionados para que se adaptem a uma resposta teórica já dada antecipadamente, saímos da história e entramos na ideologia, ou mesmo na crença. As evidências são sempre mais importantes. A explicação é probabilística. Não que haja qualquer obrigação em conhecer estatística (de toda forma, não faz nenhum mal estudá-la), mas deve-se saber que a inserção dentro de contextos mais amplos, a identificação das causas e a relação com os fatos documentados não gera uma explicação definitiva, mas apenas provável. Tudo sempre poderia ter ocorrido de forma diferente. Deve-se sempre construir os modelos explicativos deixando claro que, dadas as condições conhecidas, o evento estudado provavelmente teria ocorrido como ocorreu. Caso contrário, cai-se no determinismo, e não há história quando se afirma que os eventos irão necessariamente ocorrer, não importando como ajam os indivíduos. – 197 – Buarque, Prado, Freyre: explicando o Brasil A explicação deve sempre ser coerente com as ações das pessoas. Segundo Buarque, o modelo de família patriarcal construído no Brasil levou a uma fraca separação entre o público e o privado. Deve-se ter claro, porém, que a “família patriarcal”, em si, não faz nada. Afinal, não é um indivíduo (é um conceito), que não tem vontades próprias, não age, não influencia. São as pessoas que, efetivamente, realizam as ações e tomam decisões. Mas é bastante comum nos estudos históricos antropomorfizarmos instituições: afirmar que, por exemplo, a inflação estimulou conflitos sociais no Brasil dos anos 1950; ou que a cultura divulgou ideias libertárias na França do século XVIII. Isso é comum e não há problemas maiores. Contanto que seja sempre possível descobrir como as pessoas agiram para que, por exemplo, o processo inflacionário gerasse conflitos sociais. Não são válidas as explicações históricas que sejam incoerentes às formas de as pessoas pensarem e agirem. Identificar a origem não é explicar. Esse é outro erro presente, de uma forma ou de outra, nos três autores deste capítulo. Buarque, por exemplo, acreditava que o português, por estar submetido a uma ética da aventura, desenvolveu no Brasil uma cultura personalista que teria sido estendida às instituições do país. A suposta identificação de uma suposta origem para o evento – a pre- sença da ética da aventura entre os portugueses – foi tomada pela explicação de por que as instituições e sociabilidade brasileiras, ainda nos anos 1930 (quando foi publicado “Raízes do Brasil”), eram personalistas. Porém, trata- -se de uma explicação claramente insuficiente. Por que o personalismo con- tinuou? Que eventos, forças, ou condicionantes propiciaram sua ampliação e difusão? Como eventos iniciados no século XVI teriam seguido, praticamente sem alteração, até o século XX? As razões pelas quais um evento ou processo histórico começa não são as mesmas pelas quais continua. Identificar a origem, portanto, não é explicar. Em seu livro “Brasil, mito fundador e sociedade autoritária”, a filósofa Marilena Chauí demonstra uma forma bastante comum que esse erro toma ainda nos dias de hoje: tomar o significado original de uma palavra, pela explicação de sua essência. Antes da invenção histórica da nação, como algo político ou Estado- -nação, os termos políticos empregados eram “povo” (a que já nos referimos) e “pátria”. Esta palavra também deriva de um vocábulo Teorias da História – 198 – latino, pater, pai. [...] Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe, isto é, plantações, gado, edifícios (“pai” é o dono do patrimonium), e o senhor, cuja vontade pessoal é lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domínio (casa, em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa é o dominium) (CHAUÍ, 2001, p. 12). Nesse caso, identificar o significado original de uma palavra passa a ser confundido por sua explicação. Não é. A explicação deve partir das premissas à conclusão. Para a história tradicional, não havia propriamente explicações, mas apenas narrativas. As análises eram raras (pois analisar significava, para eles, não ser objetivo), e o texto ficava restrito à apresentação dos eventos em ordem cronológica, costu- rados pelos poucos argumentos do historiador. Na atualidade, porém, a realização de uma devida explicação histórica depende do estabelecimento de análises que sejam explicativas. Para isso, devem ser construídas conclusões. E como são construídas essas conclusões? Organizando, logicamente, premissas históricas, por meio da confrontação de uma afirmação geral (um dado teórico, por exemplo), com os dados obti- dos junto às fontes. Esquematicamente, seria assim: Premissa 1 Lei geral, ou princípio teórico (ambos fundados na história), ou conclusão parcial da pesquisa. Premissa 2 Dados das fontes sobre os quais se quer construir uma análise. Conclusão Resultado da análise, que deve ser consequência das premissas. Primeiro exemplo: nos anos 1930 e 40, à época em que escreveu suas principais obras, Caio Prado Jr. acreditava nas teorias raciais de origem bio- lógica, que afirmavam que determinadas “raças” eram superiores a outras3. Essa