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1
1
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL
DE BELO HORIZONTE:
O Cotidiano de uma Utopia
1ª edição
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE2
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
Secretaria Municipal de Saúde
Fernando Damata Pimentel
Prefeito
Helvécio Miranda Magalhães Júnior
Secretário Municipal de Saúde
Maria do Carmo
Secretária Municipal Adjunta de Saúde
Sônia Gesteira e Matos
Gerente de Assistência
Miriam Nadim Abou-Yd
Políbio de Campos Souza
Rosemeire Silva
Coordenação de Saúde Mental
Organização: Kelly Nilo, Maria Auxiliadora Barros Morais, Maria Betânia de Lima Guimarães, Maria
Eliza Vasconcelos, Maria Tereza Granha Nogueira, Miriam Abou-Yd.
Revisão ortográfica: Cybele Maria de Souza
Ilustração da capa: “Mandala” Ronaldo C. de Oliveira (C.C. Carlos Prates)
Diagramação e impressão: Staff Art Marketing e Eventos . www.staffart.com.br
Distribuição e Informações: Secretaria Municipal de Saúde - Coordenação de Saúde Mental
Av. Afonso Pena, 2336 - 5º andar - CEP 30130-007 - Tel: (31) 3277-7793 - e-mail: smental@pbh.gov.br
N695p Política de Saúde Mental de Belo Horizonte: o cotidiano de uma utopia / Kelly
Nilo; Maria Auxiliadora Barros Morais; Maria Betânia de Lima Guimarães; Maria Eliza
Vasconcelos; Maria Tereza Granha Nogueira; Miriam Abou-Yd.(Org.) — Belo Horizonte:
Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, 2008.
258p.
Inclui bibliografia
1.Sistema Unico de Saúde 2. Saúde Mental 3. Programa Saúde da Família 4.
Portadores de Sofrimento Mental
I. NILO,Kelly II. MORAIS, Maria Auxiliadora Barros de III. GUIMARÃES,
Maria Betânia de Limas IV. VASCONCELOS, Maria Eliza V. NOGUEIRA,
Tereza Granha VI. ABOU-YD, Mirim VII. Belo Horizonte-(MG) Secretaria
Municipal de Saúde VIII. Título.
 CDD: 362
3
APRESENTAÇÃO
Secretário Municipal de Saúde de Belo Horizonte
PREFÁCIO
Comissão Organizadora
INTRODUÇÃO
Coordenação de Saúde Mental
CAPÍTULO I - CONSTRUINDO CAMINHOS EM REDE
A Saúde Mental na Atenção Básica de Saúde:
Uma Parceria com as Equipes de Saúde da Família
Saúde Mental e PSF: Testemunho de Um Trabalho Conjunto
Uma Clínica Possível em Saúde Mental
PSF e Saúde Mental: Compartilhando Histórias
Integração do Programa Saúde da Família com o Programa de
Saúde Mental em um Centro de Saúde de Belo Horizonte
A Interface Saúde Mental, Programa de Saúde da Família e
Cersam na Área de Abrangência do Centro de Saúde Tupi
Paisagens Humanas, Paisagens Urbanas
7
9
11
17
27
SUMÁRIO
31
35
39
53
59
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE4
Uma Corrente Sem Quebra
A Criança e o Adolescente: Experiências da Atenção Básica
Yuri, “Uma Criança Problema?”:
Uma Interface entre a Saúde Mental e a Educação
A Experiência da Equipe Complementar de Atenção à
Saúde Mental da Criança e do Adolescente: Um Novo Olhar
Intervenção a Tempo e Tempo de Invenções:
A Clínica com Bebês e seus Pais na Saúde Mental
CAPÍTULO II - ACOLHENDO O QUE TRANSBORDA
Novos Caminhos
Resposta à Crise: A Experiência de Belo Horizonte
Ao Estrangeiro da Razão: Hospitalidade Incondicional
Os Auxiliares de Enfermagem e a Rede de Saúde Mental
de Belo Horizonte
CAPÍTULO III - EXTENDENDO A REDE
A Linha e a Letra
Centros de Convivência: Novos Contornos na Cidade
111
129
135
159
161
103
69
75
85
93
67
5
Residências Terapêuticas: O Percurso de Belo Horizonte
A Política Pública de Inserção Produtiva: Afirmação de um Projeto
Projeto Arte da Saúde: Ateliê de Cidadania
A Supervisão na Rede Pública de Saúde Mental
O Planejamento como Subsídio para Organização dos
Serviços Substitutivos no SUS/BH
CAPÍTULO IV - CONQUISTANDO A CIDADE
A Saúde Mental na Atenção ao Louco Infrator
Uma Vizinhança, Uma Parceria: Construções Urbanas
Acompanhamento Terapêutico: Redescobrindo a Vida
Fórum Mineiro de Saúde Mental: a Alegria e a
Coragem de se Fazer Política
Loucura e Cidadania
Suricato: Um Mosaico de Sonhos
A Loucura e a Rua: O Desafio de Pensar Uma Outra Cidade
167
173
177
183
187
199
207
215
221
229
235
237
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE6
Múltiplas Dobras: População de Rua e Políticas Públicas
Eu Odeio Carnaval! (Mas Amo a Luta Antimanicomial!)
243
251
7
APRESENTAÇÃO
O Sistema Único de Saúde, audácia reivindicada pela sociedade brasileira
no bojo da luta pela democracia, mais que estabelecer um direito, criou uma
marca. Desde sua instituição em 1988 (há apenas duas décadas!), a saúde transpõe,
em passos firmes e seguidos, o fosso que separa os bens coletivos dos objetos
de consumo, ganhando consistência e visibilidade como um dos instrumentos
mais potentes na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática,
ao mesmo tempo em que altera geografias e modos de viver, alcançando
existências que a exclusão tornava anônimas e invisíveis.
Dores e sofrimentos que a sociedade não via, seja por desconhecimento
ou por negligência, ganham rosto, nome e história, tornam-se uma questão pública
e enquanto tal interpelam gestores e cidadãos e, mais, exigem solução. Foi assim
com os portadores de sofrimento mental, sujeitos que a ciência e a política pública
condenaram à não-existência e à humilhante condição de exilado da cidadania.
O manicômio, ou melhor, o hospital psiquiátrico, nome “moderno” de um mesmo
modo de exclusão, seus muros e interditos, são o real obstáculo ao exercício da
cidadania do portador de sofrimento mental, mas sobretudo, o impedimento
real para o fluir da vida destas pessoas.
A experiência nos autoriza, nos dá liberdade e segurança para afirmar
nosso repúdio à exclusão; testemunhamos o antes e o depois de uma condição
social; conhecemos o interior e os efeitos de duas práticas, a do hospício e a da
rede de serviços substitutivos. É do privilegiado lugar de profissional de saúde,
mas também como gestor da política de saúde e de saúde mental que, sem medo
de errar, declaramos, fazendo coro com os usuários: hospício para nós, nunca
mais! Interessa-nos produzir mais que cuidado em saúde, a ousadia de poder
inventar a saúde como uma prática, como um sistema público, que seja capaz de
assistir e aliviar a dor dos sujeitos, ajudando-os a descobrir o seu modo de “gastar
a vida”, de consumirem-se no combustível que nos move: nosso desejo de viver,
de descobrir o singular de nossa condição humana, ao mesmo tempo em que
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE8
nos inserimos em um coletivo e nos tornamos cidadãos de um país.
A saúde mental é, dentro do SUS, uma rica fonte de experimentação e
descobertas. Gestores, trabalhadores e usuários desvelam parte do que a sociedade
escondia entre grades e muros, discursos e práticas que, se ainda e infelizmente,
encontram acolhida, não se justificam, na medida em que, partem do pressuposto
da sujeição, tornando arbitrário, coercitivo e ilegítimo o poder de quem cuida
sobre quem é cuidado.
A paixão que nos move, um dos ingredientes que sustenta nosso ato de
decisão, nos leva a arriscar, inventar o que não se encontrava previsto pela cultura,
nos leva ao encontro de situações que nos desafiam. Angustiamo-nos ao sermos
confrontados por limites impostos pela complexidade de alguns casos, para os
quais os recursos, a princípio, revelam-se insuficientes, por um lado, mas que
por outro, fomenta em nós o desejo de criar, de inventar, de ousar pensar,
recriando o mundo e seu sentido. Os portadores de sofrimento mental ensinam-
nos que, muito além da razão e sua norma, seus limites, a vida se faz criação e
beleza, quando substituímos contenções por laços de solidariedade e inclusão.
Nos múltiplos territórios da desinstitucionalização criados em Belo
Horizonte: Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM), Centros de
Convivência, Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Saúde com suas
Equipes de SaúdeMental e de Saúde da Família, Equipes Complementares,
Projeto Arte da Saúde, nos recém inaugurados CERSAMi e CERSAM-ad, assim
como o SAMU, o Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP), a Incubadora de
Empreendimentos Solidários, e todos os demais pontos da rede de saúde, o que
encontramos e que a cidade já experimenta e compartilha é o colorido do viver.
Há o cinza da dor, mas também, todas as cores da alegria, em suas mais diferentes
tonalidades, indicando a variedade do sentir, do modo de expressão de cada um
e de suas escolhas.
Este livro confirma, em cada um de seus textos, o que acabo de concluir.
E mais que revelar o cotidiano de uma utopia, vale dizer, a da sociedade sem
manicômios, orientação que a política escolhe e sustenta, destaca a singularidade,
o jeito e a potência dos que a fazem real, os trabalhadores de saúde mental. Ao
lado dos usuários e suas famílias, protagonistas deste novo modo de tratar a
loucura, os trabalhadores legam, através do seu fazer, um ensinamento à cidade.
Escolher a inclusão, opondo-se firmemente às opções de banimento, transforma
a sociedade, sem dúvida alguma, e radicalmente a nós mesmos. Tornamo-nos
distintos, fazemos história. A melhor, a mais alegre e viva história.
Helvécio Miranda Magalhães Júnior
Secretário Municipal de Saúde de Belo Horizonte
9
PREFÁCIO
Estamos em festa! Orgulhosas, estamos comemorando os 15 anos da
Política de Saúde Mental de Belo Horizonte (1993-2008), e foi pensando nessa
conquista, tão cara para nós, que aceitamos o convite da Coordenação de Saúde
Mental para participar da Comissão Editorial deste livro. Constituímos um
coletivo, formado por pessoas de diferentes dispositivos da Saúde Mental de
Belo Horizonte: trabalhadores e gestores, dos Centros de Convivência,
CERSAMs, Centros de Saúde e nível central. Cada um desses locais e cada uma
de nós, em conjunto com os demais que se encontram no espaço da cidade,
formam a rede de serviços e ações que nos permitem dispensar o recurso ao
hospital psiquiátrico e garantir aos nossos usuários, tão orgulhosos quanto nós,
o direito à liberdade e cidadania.
Os atores dessa Política têm construído, ao longo dos anos, a possibilidade
concreta de inserção da loucura no território de Belo Horizonte. Sabemos dos
desafios que se apresentam e das conquistas alcançadas. Gostaríamos, aqui, de
parabenizar a todos, profissionais, gestores, usuários, familiares e parceiros, que
transformaram em realidade o que há tão pouco tempo era apenas sonho.
Este livro, assim como a nossa Política, é o testemunho de um trabalho
feito por muitos, e reúne depoimentos de seus protagonistas, assim como as
produções artísticas dos usuários e suas falas, refletindo a pluralidade baseada
em uma mesma orientação ética. Os textos apresentados trazem na sua estrutura
as diretrizes e o percurso que a este projeto são inerentes, divididos em quatro
eixos:
Construindo Caminhos em Rede - Traz a fértil e bela experiência dos
profissionais de Saúde Mental dos Centros de Saúde e os do Programa Saúde da
Família, numa parceria que muito tem ensinado e potencializado o cuidado a
nosso usuário.
Acolhendo o que Transborda - Vem nos apresentar a face da urgência e
da crise e seus ousados locais de acolhimento, tão necessários para fazer frente
“A liberdade é só presente,
 não promete pro futuro
 não comete ter saudade”
 Tom Zé
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE10
aos hospitais psiquiátricos. Belo Horizonte tem de fato cumprido sua missão de
substituir os manicômios e isso só é possível porque, estrategicamente, incluiu o
atendimento à crise como sua prioridade política.
Estendendo a rede - Reflete toda a riqueza dos dispositivos que
possibilitam o encontro dos usuários com a arte, com o trabalho cooperado,
com o habitar/morar, enquanto direitos inalienáveis do cidadão e dos espaços
de planejamento e reflexão tão importantes na realização de nosso trabalho.
Conquistando a Cidade - Traz o depoimento e posição de nossos
diversos parceiros, artífices de uma Belo Horizonte sem manicômios, e faz um
registro do vigor da intersetorialidade da Política de Saúde Mental com os vários
segmentos da sociedade.
Por fim, muitas e gratas foram as surpresas com os trabalhos recebidos,
mas nem todos puderam ser contemplados. Agradecemos a todos aqueles que,
em suas generosas contribuições, responderam ao convite.
Essa edição revela a construção de uma Política sólida, consistente,
corajosa, que aceita os preceitos e desafios da Reforma Psiquiátrica, construindo
verdadeiramente “Uma Sociedade sem Manicômios”. Convidamos você, leitor,
a mergulhar em meio à beleza das cores, à leveza dos poemas e na profundidade
dos textos.
Comissão Organizadora
Kelly Nilo
Psicóloga do Cersam Barreiro e Centro de Saúde Lindéia.
Maria Auxiliadora Barros Morais
Psicóloga do Cersam Noroeste e Centro de Saúde Jardim Montanhês.
Maria Betânia de Lima Guimarães
Terapeuta Ocupacional. Gerente do Centro de Convivência Providência.
Maria Eliza Vasconcelos
Farmacêutica. Gerente do Centro de Convivência Carlos Prates.
Maria Tereza Granha Nogueira
Psicóloga do Cersam Venda Nova e membro da Coordenação de Saúde Mental.
Miriam Nadim Abou-Yd
Psiquiatra, Psicóloga, Coordenadora de Saúde Mental.
11
INTRODUÇÃO
Para perguntas plurais, respostas sempre singulares. Uma para cada um,
uma a cada vez. Efeito sensível do que uma cidade pode oferecer a seus habitantes
ou àqueles que chegam, seja este um estrangeiro ou alguém que retorna do exílio,
ou ainda um nativo que chega após uma longa viagem. Para cada um, a cidade
tem como desafio mostrar-se única; ao olhar de cada um deles, deve revelar-se
outra e ao mesmo tempo, a mesma, fazendo fluir por meio do emaranhado de
suas redes, a vida e os sonhos que cada um traz, bem como seus medos e
frustrações.
Em seus pontos de ancoragem, naquilo que oferece de si, a cidade cria as
condições para a invenção dos diferentes mundos que a constituem e a tornam
possível como o lugar de habitação do humano. Nem mera arquitetura ou
delimitação geográfica. O traçado urbano se desenha e se conforma nos caminhos
feitos por seus habitantes, que conduzem uns ao encontro de outros. Mas também
pelo arranjo que cada um inventa e tece todos os dias na solidão de suas fantasias
ou em empreendimentos coletivos. Invenção humana – a cidade – permite aos
homens se inventarem como sujeitos dentro de um contorno que margeia suas
existências e inscreve suas histórias.
Desde seu início, em 1993, a Política de Saúde Mental de Belo Horizonte
definiu como um de seus objetivos o diálogo com a cidade, formulando estratégias
e criando dispositivos capazes de sustentar a presença pública e digna do portador
de sofrimento mental. Fazer caber a loucura na cidade tem sido um de seus
pontos de orientação que se contrapõe à lógica anterior, a do manicômio, aquela
que separa, exclui e condena alguns a viverem fora da cultura. Por meio de arranjos
sempre criativos e singulares, confronta a anulação e a homogeneização,
inscrevendo a diferença como um direito de cada homem ao mesmo tempo em
que integra e participa da construção da saúde como um direito.
O Sistema Único de Saúde, seu pilar, é uma construção ousada, democrática
e recente na história da sociedade brasileira. Um direito de cidadania, agenciador
“De uma cidade,
não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas,
 mas a resposta que dá às nossas perguntas.
Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder,
como Tebas na boca da Esfinge.”
(As cidades Invisíveis- Italo Calvino)
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE12
de processos que contribuem para a construção de novos modos de viver, de
cuidar e se relacionar com o corpo, com o outro e com a cidade. Um processo de
transformação que afeta a existência dos sujeitos e altera a geografia do lugar em
que estes vivem.
A capacidadetransformadora de uma política de saúde encontra na Saúde
Mental, talvez, sua maior evidência, na medida em que esta, quando levada a
sério, quando tomada em sua radicalidade, é capaz de mudar o cenário e subverter
o traçado único pela pluralidade de caminhos, cuidando, porém, de não confundir
pluralidade com ecletismo. Não se trata, para esta política, de associar caminhos
de orientações distintas; nem tampouco se admite a conjugação de rotas opostas,
mas de acolher e oferecer percursos que conduzam sempre à inclusão de todos.
Numa publicação anterior que registra um momento da história de
construção do SUS-BH: “Sistema Único de Saúde, Reescrevendo o Público”
encontra-se a afirmação das intenções da Política de Saúde Mental de Belo
Horizonte: substituir o hospital psiquiátrico e incluir na cidade o portador de
sofrimento mental. O artigo “A cidade e a Loucura – Entrelaces” registra as
concepções e os princípios que fundamentam a política e orientam os serviços,
as expectativas para o futuro que o aguardava, além de testemunhar o esforço e
a valorização dada ao trabalho de reflexão e sistematização de um conhecimento
originado pela prática. Um marco, cuja clareza contribui na elucidação de dúvidas
e na formulação de novas propostas.
Em quinze anos de percurso, a Política de Saúde Mental de Belo Horizonte,
em meio a avanços e recuos, vem construindo uma das mais ousadas experiências
de Reforma Psiquiátrica no país, ao articular dois objetivos estratégicos: a
implantação de uma rede de serviços substitutiva e a desativação de leitos
psiquiátricos, metas que possibilitaram, no decorrer destes anos, o fechamento
expressivo de 1.600 leitos e de dois hospitais psiquiátricos. Igualmente expressiva
é sua rede: são sete Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM), todos
funcionando 24 horas (CAPS III), nove Centros de Convivência, 58 Equipes de
Saúde Mental nos Centros de Saúde, dez Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRT), um Serviço de Urgência Psiquiátrica Noturna, a Incubadora de
Empreendimentos Econômicos Solidários e nove Equipes Complementares de
Atenção à Criança e ao Adolescente. Estes dispositivos contam com a parceria
de dois importantes recursos da Rede de Saúde que são o SAMU e as Equipes de
Saúde da Família, num total de 508 em toda a cidade. Passarão, em breve, a
integrar a rede e suprimir duas de suas deficiências, o CERSAM-ad (para os
usuários de álcool e outras drogas) e o CERSAMi (para a clientela infanto-juvenil).
Duas novas dezenas de Serviços Residenciais Terapêuticos serão criados
como medida imprescindível ao fechamento de mais um hospital psiquiátrico: a
Clínica Nossa Senhora de Lourdes. A rede de atenção à criança e ao adolescente
13
também será ampliada, com a expansão do “Arte da Saúde” para todas as
regionais, respondendo de forma criativa e inclusiva às demandas e embaraços
dos “pequenos sujeitos”.
A continuidade de um percurso contribui, sem dúvida, para seu avanço.
Ainda assim, seria ingênuo pensar e afirmar que o mesmo ocorreu sempre em
condições iguais ou favoráveis. Recuos e avanços fazem parte de todo processo
histórico e não foi diferente com a Política de Saúde Mental de Belo Horizonte.
Ao primeiro momento de impulso e introdução desta política, sucederam-se
outros, onde a construção prosseguia, apontando contudo para uma direção
distinta da que lhe deu origem. Um terceiro tempo então se fez necessário. Uma
escanção, um intervalo de tempo para refletir e construir saídas: assim foi o
início do ano de 2003, momento do debate e construção de estratégias necessárias
para retomar princípios, avaliar a prática, recompor serviços e equipes, e criar
novos dispositivos de modo a possibilitar a superação de impasses e dificuldades
experimentadas pelos trabalhadores e usuários no cotidiano da experiência.
Várias intervenções foram propostas e a maioria foi plenamente realizada.
Das mais sutis – a reformulação do modo de funcionamento dos SRTs, por
exemplo, às mais evidentes, como a implantação do Serviço de Urgência
Psiquiátrica Noturna e da Hospitalidade Noturna ou a criação de uma Política
de Inclusão Produtiva, a Incubadora, um único propósito: a reafirmação da
ética antimanicomial como diretriz da política e a articulação do trabalho em
rede.
Rede – como conceito e materialidade – tece e possibilita um acontecimento
novo na cultura, que é a inclusão da loucura na cidade e na cidadania. Na
sustentação desta idéia e desta prática destaca-se, viva e nitidamente, o desejo
decidido daqueles que emprestam seus corpos para substituir os muros e as
grades e inventam novos modos de cuidar: os trabalhadores de Saúde Mental,
sujeitos que se fazem endereço e referenciam os novos percursos dos portadores
de sofrimento mental. Causados pelo desejo de fazer diferente, perseguem em
sua prática a construção da utopia de uma sociedade sem manicômios. Ao seu lado, e
como novos parceiros da loucura, encontram-se os ACS (Agentes Comunitários
de Saúde), autorizados pela política, bem como pelo desejo de cada um, a
participar da experiência de cuidado com a loucura na cidade; assim como os
auxiliares de enfermagem que abdicam da condição de executores da ordem e
agentes do silenciamento, passando a ocupar um novo lugar, de onde podem
dizer da ruidosa alegria do trânsito entre os loucos e do protagonismo que
sustentam no cotidiano dos CERSAMs e Centros de Saúde. Encontram-se ainda
os cuidadores dos SRTs, os médicos generalistas e enfermeiros das Equipes de
Saúde da Família e o SAMU, sujeitos até há pouco, estranhos à Saúde Mental,
hoje dialogam com os ditos loucos, com a política e a cidade. Os supervisores
INTRODUÇÃO
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE14
clínicos, sensível presença e parte desta rede, testemunham as dimensões de um
trabalho feito por muitos sob uma mesma orientação ética que abre espaço para
manifestação do sujeito. Como efeito e compromisso desta política, portadores
de sofrimento mental se fazem empreendedores e contam sobre os modos de
fazer caber seu corpo e seu ritmo no mundo do trabalho. Enfim, múltiplos
discursos se articulam e contam sobre uma experiência viva, um trabalho em
ato.
Rica, plural e decidida, a rede, pelo seu trabalho, compõe-se destes variados
recursos e outros a serem inventados, no momento em que uma questão exigir
uma solução ainda não existente. Uma rede, portanto, inconclusa e parcial que
se expande para fazer caber a todos, um de cada modo e vez, abrindo espaço
para as singulares invenções de mundo, na mesma medida em que recusa a
massificação e a ditadura do modelo único, a imposição da norma.
Este livro, pequeno objeto portátil da cultura, ao ser manuseado, lido,
ambiciona colocar em circulação estes discursos, transmitindo a alegria,
inquietação e prazer que fez surgir seus escritos, respondendo a múltiplas questões
de modos singulares, para sujeitos que as façam no singular de uma experiência
qualquer com a loucura ou do convívio com um portador de sofrimento mental.
Que de página a página se destaquem palavras que possam margear novas
experiências de cidadania, para loucos e não loucos. Seguindo o desejo de Carlos
Drummond de Andrade, possamos, no devir da cidade futura, da Belo Horizonte
do amanhã, construir “uma pátria sem fronteiras, uma cidade sem portas. De
casas sem armadilhas. Um jeito só de viver. Mas nesse jeito, a variedade. A
multiplicidade toda que há dentro de cada um. Esse país não é meu. Mas ele será
um dia, o país de todo homem”. Conclusão de um diagnóstico e desejo de um
novo futuro: que em seu devir a cidade ofereça aos estrangeiros da razão,
hospitalidade incondicional.
Miriam Nadim Abou-Yd
Rosemeire Aparecida Silva
Políbio de Campos Souza
Coordenação de Saúde Mental
SMSA/SUS-BH
15
CAPÍTULO I
CONSTRUINDO CAMINHOS EM REDE
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE16
O QUE PASSA NA MINHA CABEÇA?
Uma garrafa rotulada
Um baseado da pesada
Uma pedrabem fumada
Uma carreira esticada
Uma agulha afiada
Uma loucura inconformada
Uma cuca embaraçada
Uma mulher linda, nua, desejada
Um sexo sem freada
Não
O que passa na minha cabeça é você, divindade
Ronaldo Xavier da Cruz
Centro de Convivência Carlos Prates.
17
A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE:
UMA PARCERIA COM AS EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA
INTRODUÇÃO
Nos últimos quinze anos, o mapa da assistência à Saúde Mental no
município de Belo Horizonte ganhou uma nova configuração. Pautados numa
lógica que visa a desmontar as práticas sociais e institucionais que excluem e
segregam a loucura, os princípios e diretrizes da Política de Saúde Mental da
Secretaria Municipal de Saúde têm como estratégia a desinstitucionalização por
meio do tratamento dos portadores de sofrimento mental grave e persistente em
uma rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. A implantação e a
ampliação dessa rede, composta por instâncias de cuidado articuladas entre si e
conectadas com a vida da cidade, criaram um novo fluxo no atendimento: as
Equipes de Saúde Mental em Centros de Saúde para o acompanhamento e a
sustentação de projetos terapêuticos singulares e territorializados; os CERSAMs
(Centro de Referência em Saúde Mental) para situações de crise; os Centros de
Convivência, para o resgate de laços sociais; os Serviços Residenciais Terapêuticos
para a reabilitação civil de egressos de internações de longa permanência e as
Equipes Complementares para dar suporte ao atendimento da Criança e do
Adolescente. Embora tenham missões específicas, as equipes de saúde dos
diferentes equipamentos que compõem a Rede visam oferecer um projeto
terapêutico complexo e contínuo, integral e singularizado, considerando tanto
as ações relativas à clínica do sujeito quanto aquelas relativas à sua habilitação e
a sua inserção no mundo do trabalho e da cultura. Esse processo, que é clínico,
político e social, inclui atores de diferentes setores da administração pública e da
sociedade civil.
AS EQUIPES DE SAÚDE MENTAL EM CENTROS DE SAÚDE
Diferente dos serviços prestados pelos CERSAMs, Centros de Convivência
e Moradias Terapêuticas, a lotação de Equipes de Saúde Mental na Atenção
Ercilia Gama de Oliveira*
* Psicóloga no Centro de Saúde Alcides Lins, técnica da Atenção à Saúde no Distrito Sanitário Nordeste.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE18
Básica não é uma novidade. Em julho de 1985 (antes da municipalização dos
serviços de saúde, ocorrida em 1991), equipes compostas por um psiquiatra, um
psicólogo e um assistente social foram lotadas em alguns Centros de Saúde de
Belo Horizonte, para o atendimento de portadores de sofrimento mental e
egressos de hospitais psiquiátricos. Nesta época, além da preocupação que havia
com a qualidade da assistência nos hospitais psiquiátricos públicos, as políticas
municipais e estaduais de Saúde Mental preconizavam a ampliação do atendimento
na Rede Básica com o intuito de evitar a expansão da Rede Privada, que detinha
a maior parte dos leitos psiquiátricos, custeados pelos cofres públicos. Entretanto,
as avaliações que se fizeram dessa primeira tentativa de enfrentar os problemas
decorrentes da hospitalização psiquiátrica, após alguns anos de sua
implementação, mostraram que a ampliação da Rede ambulatorial para o
atendimento em Saúde Mental não causou qualquer impacto sobre o número de
internações. As equipes dos Centros de Saúde não assumiam de maneira
significativa o atendimento à clientela psiquiátrica, que apresentava risco de entrar
no circuito da hospitalização e, ao mesmo tempo, criavam uma nova clientela
que se estendia desde as crianças com problemas escolares e mulheres infelizes
pelas precárias condições de vida, aos pacientes com graves problemas sociais,
entre outros.1 Uma forte associação entre enfermidade, médico e hospital era
reforçada pela precariedade da oferta de serviços isolados da Rede Básica e pela
falta de um planejamento de ações específicas para os egressos, tornando a
referência hospitalar mais segura para o paciente.2
1 No Centro de Saúde Alcides Lins, tivemos a oportunidade de fazer essa pesquisa para um trabalho final da
disciplina “Planejamento e Elaboração de Programas”, ministrada no curso de “Saúde Mental em Saúde
Pública”, realizado pela Escola de Saúde de Minas Gerais (ESMIG), nos anos de 1986 e 1987. A partir do
levantamento de 281 cadastros (de pacientes atendidos no período de julho de 1985, quando chegamos no Centro
de Saúde, até dezembro de 1987, época da realização da pesquisa), verificamos que dos 18% dos atendimentos
do posto eram feitos pela equipe de Saúde Mental, dos quais, 11,4% eram crianças encaminhadas das escolas e
68% eram mulheres incluídas numa faixa etária de 23 a 60 anos, neuróticas e poliqueixosas, com problemas
sociais acentuados (baixa renda, pouca perspectiva de vida, baixa escolaridade, sem um espaço para trocas
culturais e sem iniciativa para criá-los). No que concernia à prioridade do Programa, verificamos que dos 281
cadastros, 16% eram psicóticos, 24,9% eram egressos, sendo que apenas 11,7% chegaram encaminhados dos
hospitais psiquiátricos.
2 Em uma pesquisa realizada nos meses de julho/92 a janeiro/93 sobre os pacientes do Distrito Sanitário
Nordeste que chegavam nas urgências dos hospitais psiquiáticos públicos de Belo Horizonte, verificou-se que
63% dos que chegavam ao Instituto Raul Soares e 73,2% daqueles que chegavam ao Hospital Galba Veloso
não estavam em tratamento ambulatorial. Os dados mostraram também que dentre os encaminhamentos feitos
pela equipe desses hospitais, após a conduta tomada no ambulatório de urgência ou a internação, o mais comum
era o encaminhamento para o ambulatório do próprio hospital. Apenas 4,7% no IRS e 7% no HGV eram
encaminhados aos Centros de Saúde do Distrito, o que demonstrava a falta de integração desses serviços (Cf.
19A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE
Nos últimos quinze anos, as ações das equipes de Saúde Mental dos Centros
de Saúde deixaram de ser concebidas como táticas isoladas de enfrentamento
das práticas segregadoras da loucura e o fato de estarem inseridas numa Rede
fez retornar questões sobre o processo de trabalho dessas equipes. A priorização
do atendimento ao portador de sofrimento mental grave e persistente, o
planejamento de ações específicas para os egressos, a integração com os outros
equipamentos da Rede, a sustentação da clínica, enfim. Essas e outras questões
passaram a ser trabalhadas nas reuniões distritais e, posteriormente, nas
supervisões clínicas, para que o Projeto assumido pela Secretaria Municipal de
Saúde pudesse ser sustentado.
AS EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA ENTRAM EM CENA
A implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) em fevereiro de
2002, imprimiu uma nova dinâmica no trabalho das Equipes de Saúde Mental.
No segundo semestre de 2002 foram formados colegiados, fóruns e oficinas de
discussão, incluindo trabalhadores desde o nível central até a ponta, para pensar
um processo de trabalho das equipes de Saúde Mental, tendo em vista a
integração/interface com as equipes de Saúde da Família.
No Distrito Sanitário Nordeste de Belo Horizonte, as primeiras reuniões
entre as Equipes de Saúde Mental (ESM) e de Saúde da Família (ESF) aconteceram
em dezembro de 2002, promovidas pela ESM do Centro de Saúde Alcides Lins,3
em sua microrregião. Pôde-se constatar que questões partiam de ambos os lados.
A Equipe de Saúde Mental, por um lado, temia que o modelo assistencial do
Programa de Saúde da Família, centrado na lógica da vigilância à saúde e da
qualidade de vida, levasse a um aumento da demanda de uma clientela não
priorizada pelo Projeto, reforçando essa indefinição.4 Já as Equipes de Saúde da
Família, por outro lado, achavam-se despreparadas para o atendimento dos
portadores de sofrimento mental. Diante dessa situação verificou-se a necessidade
de incrementar discussões sobre como promover aintegração do Projeto de
GRECO, M. G. Aplicação de um método de planejamento local para a inclusão da clientela psiquiátrica nas
prioridades de Atenção á saúde no Distrito Sanitário Nordeste de Belo Horizonte. 1994. Monografia (Curso e
Especialização em Saúde Mental) Belo Horizonte: ESMIG.
3 Desde a implantação das Equipes de Saúde da Família, no primeiro semestre de 2002, a Equipe de Saúde
Mental do CS Alcides Lins referencia 15 Equipes em sua microrregião: cinco no CS Alcides Lins, quatro no
CS Gentil Gomes, três no CS Cidade Ozanan e três no CS Cachoeirinha.
4 Pelo fato de estarem num equipamento que é a porta de entrada do sistema de saúde que, por sua vez, recebe as
diferentes demandas em estado bruto, o estabelecimento de prioridades no atendimento pelas Equipes de Saúde
Mental das Unidades Básicas sempre implicou um cuidadoso trabalho de escuta. Sendo assim, dizer que a
prioridade dessas equipes consiste no atendimento de psicóticos, egressos e neuróticos graves não é suficiente,
sobretudo quando sabemos o tamanho da brecha que se abre sob o rótulo de “neuróticos graves”.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE20
Saúde Mental e do Programa de Saúde da Família.5
Com base na experiência vivida nesse processo no C.S. Alcides Lins e nas
diversas discussões nas reuniões do Distrito Sanitário Nordeste, chegou-se a um
consenso de que essa integração é uma estratégia de grande importância para a
sustentação das prioridades do Projeto de Saúde Mental da cidade. Hoje, segundo
táticas diferentes, apropriadas à realidade de cada Equipe de Saúde Mental, ela
acontece nos seis Centros de Saúde Referência do Distrito, em que participam
também técnicos do CERSAM.
ACOLHIMENTO: UM TRABALHO MULTIDISCIPLINAR
A construção de um caso clínico na saúde pública é feita a partir da prática
de muitos e ela começa no acolhimento, na porta de entrada do serviço.
Partindo do pressuposto de que toda a população (criança, adolescente e
adulto) deve ser acolhida e referenciada por uma Equipe de Saúde da Família,
também o paciente referido como sendo da Saúde Mental deve entrar na Rede
de Saúde por esta Equipe. No Centro de Saúde Alcides Lins, todos os casos são
recebidos no acolhimento das equipes de Saúde da Família, exceto aqueles de
pacientes egressos do CERSAM e dos hospitais psiquiátricos, em condição de
alta, que por meio de um contato telefônico são diretamente agendados para um
dos profissionais da Equipe de Saúde Mental que, por sua vez, responsabilizar-
se-á pelo contato com a Equipe de Saúde da Família. A Equipe de Saúde Mental
fará um trabalho de parceria com estas equipes sempre que for solicitada. Além
de uma parceria pontual, no momento mesmo do acolhimento, a agenda dos
profissionais psi está aberta diariamente para receber casos encaminhados pelas
Equipes de Saúde da Família devidamente referenciados.
Entendemos o acolhimento como a porta de entrada de uma linha de
cuidados sistematizada de acordo com as necessidades do paciente. As respostas
disponíveis e proporcionáveis pelos membros da equipe da Unidade de Saúde
são, geralmente, hierarquizadas de acordo com o seu grau de complexidade, e a
escuta no acolhimento deve ser capaz de conjugar a natureza do problema
apresentado com os critérios de prioridade para atendimento imediato ou
programado, somados e ponderados com critérios de complexidade e
competência das diferentes respostas disponíveis.6
Cabe ressaltar, e isso é especialmente importante no acolhimento dos
5 Em setembro de 2004 foi realizado pela Secretaria Municipal de Saúde um Seminário da Atenção Básica do
Município, que foi uma oportunidade de avaliar as primeiras tentativas desse trabalho integrado, possibilitando
ampliar as perspectivas, evidenciar os nós críticos, bem como apontar sugestões para a construção deste trabalho
conjunto a partir das particularidades das experiências apresentadas.
6 Cf. ALEIXO, J. L. M. in: Porta(s) de entrada do sistema de saúde: acolhimento ou recepção acolhedora. Belo
Horizonte, 1999 (mimeo).
21A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE
pacientes da Saúde Mental, que o grau de complexidade das respostas disponíveis
em um Serviço de Saúde não se confunde com o grau de resolutividade que
pode ser alcançado. Iniciativas simples e pontuais realizadas durante o
acolhimento podem ser muito eficazes. Consideramos que o acolhimento não
se reduz a um primeiro encontro com o paciente e nem que ele tenha que ser
realizado por um único profissional. Um retorno poderá ser agendado para
melhor apreciação do caso e/ou um outro profissional poderá ser convidado a
dar o seu parecer.
Segundo o relato de alguns colegas que fazem o acolhimento, ocorre,
freqüentemente, a demanda de um atendimento especializado, alegando-se que
o enfermeiro ou auxiliar de saúde não estão aptos para fazê-lo. Como sabemos,
a superação do paradigma que supõe o saber médico como hegemônico não
acontece de uma hora para outra e exige uma mudança na posição de todos os
sujeitos que alimentam a linha de cuidados: profissionais e usuários. Ademais, o
trabalho multidisciplinar realizado pela parceria entre as equipes de Saúde da
Família e de Saúde Mental, no qual estamos apostando, não busca enfatizar o
grau de complexidade das respostas disponíveis, mas “alargar competências
comuns, desmontando e reorganizando poderes e saberes estabelecidos”.7 Nessa
linha de cuidados, todos são convocados a contribuir na montagem de um projeto
terapêutico, que supõe atos variados no contexto de uma estratégia global em
que “a utilidade e o valor relativo dos saberes e ações particulares são norteados
e organizados pelas necessidades múltiplas dos nossos pacientes”.8
O que vem coroar esse processo é o vínculo que se estabelece entre o
profissional (ou profissionais) e o paciente, o que será fundamental para o
tratamento. De um lado, o voto de confiança depositado pelo paciente no
profissional que o referencia; de outro, o convite para que o paciente participe
da cena dos cuidados, sustentando sua posição de sujeito responsável pelo seu
estado de saúde.
REUNIÕES COM AS EQUIPES DA MICRORREGIÃO E
SUPERVISÃO CLÍNICA
As Equipes de Saúde da Família, porta de entrada dos serviços de saúde,
são também responsáveis pelo acolhimento e condução dos casos não priorizados
pelo Projeto de Saúde Mental, bem como daqueles que no momento se encontram
estabilizados. A Equipe de Saúde Mental, lotada no Centro de Saúde, referencia
as Equipes de Saúde da Família do território adscrito. Ser referência para um
determinado território não é algo que se impõe pela força do espaço geográfico
7 Cf. SAÚDE Mental na Assistência Básica, julho de 2003 (mimeo).
8 Ibidem.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE22
simplesmente. Entendemos que uma referência é construída e legitimada pelo
efeito de seus atos no território. Este, por sua vez, é constituído por ações
coletivas que precisam ser identificadas para que haja o reconhecimento de
parcerias e resistências, bem como para que sejam ampliadas oportunidades e
detectados recursos disponíveis na região para a realização de ações voltadas
para a promoção da saúde. Para isso, dependemos de um estreitamento de laços
entre os diferentes atores do processo, tanto aqueles da saúde quanto de outros
setores da sociedade. Nas reuniões com a microrregião, trabalhadores da Saúde
Mental e da Saúde da Família vão construir conjuntamente um trabalho territorial:
agendar visitas domiciliares, decidir pela busca de parcerias com outras instituições,
esclarecer as competências e prioridades dos outros equipamentos da Rede de
Saúde Mental, divulgar fluxos etc. É também o momento para construir
conjuntamente projetos terapêuticos, discutir o manejo de psicofármacos, definir
estratégias e condutas que minimizem a demanda de benzodiazepínicos, bem
como de esclarecer critérios de prioridade e protocolos de encaminhamento e
agendamento. No Centro de Saúde Alcides Lins,a equipe de Saúde Mental tem-
se responsabilizado pelo agendamento destas reuniões com as equipes da área
de abrangência, embora já houvesse casos em que a realização de uma ou outra
reunião partiu da iniciativa das equipes de Saúde da Família.
Nesse processo, a participação dos profissionais do PSF nas supervisões
clínicas mensais, onde é feita uma interlocução com a psicanálise, passa a constituir
um espaço de construção de projetos terapêuticos, de esclarecimento de
diagnósticos, de orientação sobre o manejo de casos de difícil condução. Esse
espaço, que consideramos privilegiado no que toca à questão da formação,
possibilita ainda, a partir da particularidade de cada caso, reconhecer aquilo que
é paradigmático de uma estrutura clínica, o que auxilia na condução do tratamento
de um sujeito, seja na Clínica Médica, na Saúde Mental ou no momento do
acolhimento.
No que toca a atenção à Saúde Mental da criança e do adolescente, cabe
ressaltar o papel do Fórum da Criança e do Adolescente. Na Regional Nordeste,
as reuniões são mensais e, atualmente, contam com a participação de
representantes de diferentes setores da administração pública (Saúde, Educação,
diferentes Programas da Assistência Social, Conselho Tutelar, Promotoria de
Justiça da Infância e Juventude etc) e da Sociedade Civil. Desde o início de 2006,
foi proposto um novo formato para as reuniões, que têm sido temáticas,
reservando a discussão mais exaustiva de casos específicos para Grupos de
Trabalho eleitos de acordo com o caso (considerando a área de abrangência, o
foco do problema levantado e os atores envolvidos).
23A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE
RESULTADOS
Antes da implantação do Projeto de Saúde Mental de Belo Horizonte, as
únicas referências para pacientes graves ou em crise eram os hospitais
psiquiátricos. Desde a implantação do Projeto em 1993, foram fechados 1.600
dos 2.100 leitos existentes para portadores de sofrimento mental. Hoje esses
pacientes estão sendo cada vez mais absorvidos pela rede substitutiva aos hospitais
psiquiátricos. Para o atendimento desses casos na rede substitutiva houve a
necessidade de desenvolvimento de uma parceria com o Programa de Saúde da
Família, uma vez que ele representa a porta de entrada dos serviços de saúde.
Pode-se observar como resultado desse trabalho que a parceria ESM/
ESF tem permitido uma captação mais rápida do portador de sofrimento mental
grave pela Rede de serviços substitutivos, diminuindo o número de atendimentos
de casos agudos em hospitais psiquiátricos públicos.
A organização do fluxo de atendimento da Saúde Mental, no contexto
dessa parceria, monta uma linha de cuidados em que todos são convocados,
inclusive o paciente, a contribuir na construção de um projeto terapêutico,
fundamentado no vínculo estabelecido entre o paciente e a Rede que o referencia.
Verifica-se uma melhora na relação entre os usuários e os diferentes serviços da
rede, permitindo um avanço na qualidade do atendimento e uma maior facilidade
de acesso do portador de sofrimento mental grave às agendas da Equipe de
Saúde Mental da Rede Básica, já que a agenda desses profissionais pode
permanecer aberta para receber casos novos. Além disso, a participação do
CERSAM Nordeste nas reuniões da microrregião facilitou o balizamento das
prioridades do Projeto de Saúde Mental com as ESF, contribuindo para maior
responsabilização e clareza nos encaminhamentos.
Considerando que os usuários crônicos de benzodiazepínicos e
antidepressivos formavam um contingente muito expressivo nas agendas dos
profissionais da Saúde Mental, foram buscadas e inventadas estratégias e condutas
visando a minimizar essa demanda. A responsabilização do PSF por estes usuários
não só tornou mais ágil o acesso do paciente grave, quando necessário, à Saúde
Mental, como também impôs um desafio à clínica médica tradicional, que passou
a ter que buscar outras saídas. Por meio de uma variada gama de ações – festas,
debates, hortas comunitárias, tardes culturais, oficinas de artesanato, coral, escola
de samba – criaram-se várias atividades coletivas. Este movimento em direção à
cultura, fortalecido pelo decisivo lugar de destaque ocupado pelo Centro de
Convivência na Rede, como potente equipamento de promoção da saúde e de
inclusão social dos portadores de sofrimento mental grave e persistente, dá um
perfil singular e um eixo de sustentação à parceria PSF/Saúde Mental, tal como
vem ocorrendo no Distrito Nordeste de Belo Horizonte.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE24
FACILITADORES E DIFICULTADORES DO TRABALHO
A parceria ESM/PSF tem sido facilitada pelas ações empreendidas pela
Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde. Cabe ressaltar
sua participação nas reuniões distritais, a promoção de seminários temáticos e a
oferta mensal de um curso de capacitação em Saúde Mental para generalistas e
enfermeiros, estendido recentemente para outros profissionais da saúde. O apoio
do Distrito facilita essa parceria, buscando o envolvimento de todas as gerências
das UBS com o Projeto de Saúde Mental, participando das reuniões das
microrregiões, redefinindo metas a partir do levantamento do perfil de
atendimento dos profissionais da Saúde Mental, organizando cronogramas,
promovendo encontros etc.
A maior integração entre os hospitais psiquiátricos públicos e a Rede de
Atenção à Saúde tem favorecido a continuidade no tratamento dos casos graves.
O Hospital Galba Veloso tem encaminhado mensalmente ao Distrito uma
listagem dos nomes dos pacientes que chegaram na urgência (< 24 horas ou
internação) bem como a conduta adotada pela equipe hospitalar, facilitando a
rápida captação desses pacientes pela Rede Básica, que tem realizado a busca
ativa. Também o agendamento com as Equipes de Saúde Mental referência dos
egressos em situação de alta hospitalar, por meio de um contato telefônico prévio
com o Distrito, tem contribuído para a continuidade do tratamento do portador
de sofrimento mental na Rede básica, evitando novas internações.
Entre os aspectos dificultadores do trabalho integrado ESF/ESM,
ressaltamos a mudança de paradigma no modelo assistencial. A mudança de um
modelo curativista centrado na figura do médico para um modelo que enfatiza o
trabalho em equipe e a vigilância à saúde, representa um desafio e um aprendizado
tanto para as equipes de saúde, que tem que assumir uma nova postura perante
o paciente, quanto para o usuário que é convidado a sustentar uma posição na
cena dos cuidados com a saúde.
A carência de recursos humanos no Distrito Sanitário Nordeste é um
outro dificultador para o desenvolvimento das ações integradas das equipes.
Atualmente, 16% das Equipes de Saúde da Família não contam com o médico
generalista e as Equipes de Saúde Mental de dois Centros de Saúde esperam, há
dois anos, o profissional psiquiatra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A não-responsabilização do conjunto da população pelos portadores de
sofrimento mental, construída historicamente com a entrada dos saberes da
psiquiatria e da psicologia, volta à pauta nas reuniões distritais de Saúde Mental,
na supervisão clínica de casos de pacientes psicóticos atendidos pelos médicos
generalistas, enfermeiros e agentes comunitários, na construção compartilhada
25
de projetos terapêuticos, no convívio diário da sociedade com esses pacientes,
que agora voltam a circular pelas ruas da cidade. O portador de sofrimento
mental deixou de ser um problema exclusivo do profissional psi. O Projeto de
Saúde Mental, sustentado pela Rede de Serviços de Saúde Mental em parceria
com as Equipes de Saúde da Família, tem incrementado e ampliado as ações na
Rede Básica, contribuindo para uma mudança da posição ética e política dos
profissionais em relação a esse paciente. Nesse sentido, a parceria que se busca
desenvolver entre as Equipes de Saúde Mental e de Saúde da Família baseia-se
numa concepção de saúde marcada pela constanteinterlocução com a cultura,
que faz, tanto do PSF quanto da Saúde Mental, não apenas cuidadores ou
terapeutas no sentido estrito, mas agentes sociais que buscam formas diferentes
de relação e convívio com a população referenciada.
A SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE26
27
SAÚDE MENTAL E PSF: TESTEMUNHO DE
UM TRABALHO CONJUNTO
Em agosto de 2004, uma Equipe de Saúde Mental com dois psicólogos e
um psiquiatra se estabeleceu no Centro de Saúde Lindéia, que pertence ao Distrito
Sanitário Barreiro. Até então, a população referenciada por ela e pelas unidades
Regina e Itaipu era atendida no Centro de Saúde Tirol.
Momento peculiar aquele, em que mudanças administrativas e, por
conseqüência, de processo de trabalho estavam fervilhando nas três unidades.
Esse novo grupo de trabalhadores tenta se instalar e se localizar diante dos
acontecimentos. Aliás sua chegada era mais um acontecimento...
Mudanças são habitualmente encaradas com dificuldades porque apontam
para o inesperado, o que está fora do planejado, do combinado. Situações assim
exigem muitas vezes reposicionamentos subjetivos, o que não é sempre fácil.
Fácil é continuar tudo como sempre foi, embora o preço muitas vezes seja a
mortificação das pessoas, dos relacionamentos.
A chegada, portanto, desses profissionais criou a expectativa de que todos
os problemas relacionados a qualquer sofrimento psíquico da população assistida
seriam resolvidos. Mas não foi bem assim...
O que Freud chamou de mal-estar da civilização está radicalmente associado
à condição humana. Sofremos porque somos, e sabemos que somos, incompletos,
imperfeitos e finitos. Ou em termos freudianos, sofremos por causa da castração.
Desconstruir essa demanda não foi tarefa fácil. Trabalhar com uma
prioridade: os psicóticos e neuróticos graves, num Sistema Único de Saúde que
tem como princípio a universalidade foi, por vezes, embaraçoso...
Mas já que tudo era novo – em termos da história da assistência da saúde
no Brasil, o SUS é muito novo, novíssimo é o PSF – o trabalho conjunto Equipe
de Saúde Mental e Equipe de Saúde da Família estava começando. Era
indispensável inventar uma forma de trabalhar conjuntamente. A desospitalização
Kelly Nilo*
* Psicóloga do Cersam Barreiro e do Centro de Saúde Lindéia.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE28
psiquiátrica é uma realidade tão inexorável como o fortalecimento da atenção
básica na saúde pública. Duas tendências globais, duas diretrizes políticas, dois
motivos para esse grupo de trabalhadores se entenderem.
Na construção dessa história, a ferramenta utilizada sempre foi o diálogo,
a interlocução, a troca. Encontros formais mensais e outros ocasionais no
corredor, no refeitório, na porta do consultório, na recepção. Conversas
inicialmente ásperas que o tempo e a história suavizaram.
Com a adoção do conceito ampliado de saúde as demandas que chegam
para uma equipe de profissionais de saúde da família são múltiplas e complexas.
Complexificou-se a oferta, o mesmo ocorreu com a demanda. A conduta médica
que até há pouco tempo se resumia a quase exclusivamente medicação e/ou
pedidos de exames agora se multiplicam. E é importante lembrar que não é mais
só o médico o único responsável pela saúde de um cidadão. O enfermeiro, o
auxiliar de enfermagem e especialmente a figura inovadora do Agente
Comunitário de Saúde (ACS) são fundamentais para a assistência básica em saúde.
Portanto, com a chegada da Equipe de Saúde Mental criou-se a expectativa
de que ela poderia responder por uma série de demandas que expressam o
sofrimento psíquico da população e que não há um remédio específico que cure.
No início, os encontros tinham apenas um objetivo: “passar o caso”.
Encaminhar aquele que sofre de males não-orgânicos para aquele que estudou e
aprendeu a lidar com os males psíquicos. Estava ali colocada a divisão de tarefas.
E outro princípio do SUS ameaçado: a integralidade. Mente e corpo inconciliáveis.
Desconsiderado o ser integral. Era importante desfazer esse abismo, afinar os
instrumentos, porque o motivo para o trabalho conjunto era também um só: o
paciente, o usuário, o sujeito. Seja qual for a forma de tratamento, sabemos que
ele é indivisível, único, particular...
Mas quem entra e quem não entra? Quem “passa”? Esse era o grande
embaraço no início. Quanto aos psicóticos não ficavam dúvidas, mas e em relação
aos neuróticos graves? O que caracteriza uma neurose grave? A gravidade de
um ato como uma tentativa de auto-extermínio? Todas as tentativas de auto-
extermínio refletem um adoecimento psíquico grave? Ou seria importante saber
como esse fato se processou? O que o sujeito que o cometeu pensa sobre o que
fez? Em que condições fez o que fez? Qual era a intenção no momento, se fez
outras vezes... Estandardizar uma conduta única para todos os casos de tentativa
de auto-extermínio, luto, uso de drogas, rompimentos afetivos, fracasso escolar
era o que havia de mais distante para uma assistência efetiva em saúde mental. E
o pior era desconsiderar os recursos pessoais e comunitários de quem passa por
dificuldades sérias, mas transitórias.
Necessário era desfazer a idéia de que estar com um psicólogo ou psiquiatra
era a conduta única e possível para todo aquele que sofre de um mal não orgânico.
29
Ou seja, medicalizar ou psicologizar o sofrimento humano.
Nesse percurso algumas construções foram realizadas conjuntamente.
Muitas vezes o melhor para aquele que sofreu uma grande perda é deixá-lo
seguir sua vida, apontando recursos que o sujeito já conta com eles, mesmo sem
saber. Em algumas situações o sofrimento é o do profissional que escuta. É o
não suportar a angústia do outro que faz surgir a necessidade de uma conduta,
uma ação, ou uma atuação para fugir da situação. Que fazer terapia não é uma
“terapia” no sentido lúdico da palavra, ao contrário, é penoso, e muitas vezes
caro porque requer retificações subjetivas que o sujeito não está disposto a bancar.
Que manter-se no trabalho, na escola, preservando os laços afetivos e sociais
são bons índices de que o sujeito diante do inusitado da vida está respondendo
bem e provavelmente se recuperará do golpe. Que colocá-lo em um tratamento
psi pode comprometer esses laços e principalmente sua autoconfiança em
atravessar as intempéries da vida.
Em relação aos psicóticos outros foram os aprendizados. A equipe ficou
um ano sem psiquiatra. E nesse período os generalistas se viram forçados a
acompanhá-los, garantindo o uso da medicação prescrita. As reuniões
continuaram a acontecer, prova de que não era uma reunião de médicos e, sim,
de profissionais responsáveis pela assistência de uma determinada população.
Em muitos casos o generalista iniciou e continuou o tratamento. Desmistificando
a idéia de que aos loucos, o psiquiatra, a medicação. E quando a equipe foi
recomposta pelo psiquiatra alguns generalistas ponderaram que não era preciso
“repassar” o paciente para a psiquiatria: eles dariam conta de continuar
conduzindo os casos.
É claro que isso não significa que a equipe pode ficar bem sem um
psiquiatra. Constatou-se a melhoria da qualidade do serviço com a presença
deste profissional. Os generalistas ficam mais seguros para conduzir os casos,
quando podem trocar informações, orientações e sugestões com esse profissional.
E em muitos outros, a complexidade do caso pedia um acompanhamento mais
criterioso, uma abordagem mais específica, ou seja, a condução do psiquiatra.
Mas, nesse período de um ano, pouco se recorreu ao Cersam para esses pacientes
acompanhados pelos generalistas e psicólogos, mostrando mais uma vez que à
loucura não cabe exclusivamente um saber.
Aprendeu-se também que falas como “paciente psiquiátrico” ou “da saúde
mental” só elucidam a exclusão que, durante tantos anos, vitimou esses sujeitos.
Que o louco tem um corpo e por vezes está aí a causa do seu adoecimento,e que
por isso não tem sentido segregá-lo a só tratar-se com psicólogos e psiquiatras.
Descobriu-se o quanto um ACS pode contribuir no tratamento de um
portador de sofrimento mental com seu interesse por ele, com visitas que,
discutidas antes e depois com a Equipe de Saúde Mental, não seriam invasivas,
SAÚDE MENTAL E PSF: TESTEMUNHO DE UM TRABALHO CONJUNTO
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE30
seriam uma presença tolerável para aqueles mais resistentes a irem ao Centro de
Saúde, acompanhando sua medicação, colhendo informações com a família sobre
o estado do paciente.
O momento, hoje, é de construção do caso. A intenção é saber quem está
por detrás daquele relato, o sujeito, sua história, suas particularidades. O que
um encontro com um profissional da saúde mental, seja para tratar, orientar,
acolher poderá beneficiá-lo.
E o trabalho conjunto extrapolou a construção de casos...
Tentativas bem-sucedidas de grupos operativos com a participação do
médico generalista com algumas pacientes “viciadas” em benzodiazepínicos
propiciaram um momento de reflexão sobre o remédio que buscavam de fato e
para que mal. E os efeitos dessa bengala imaginária.
O “acolhimento compartilhado” momento em que um profissional da
Saúde Mental com um enfermeiro da Equipe de Saúde da Família entrevista um
usuário que representa a demanda (dele ou do profissional) de tratar-se com um
psiquiatra ou psicólogo. Alguém que independente de dar início a um tratamento
ou não poderia de qualquer forma se beneficiar de uma escuta mais aprofundada.
O que perguntar, quando se calar, o que valorizar na fala do outro foram saberes
transmitidos muito mais no fazer do que por meio de teorizações complexas e
muitas vezes inalcançáveis.
A equipe também participa do colegiado gestor, da comissão local de saúde,
o que faz dela não um apêndice, mas um grupo atuante nas questões relevantes
da unidade que sabe de sua importância e do papel que desempenha na
integralidade das ações de saúde.
Fato esse decisivo para que os demais profissionais passassem a ver essa
equipe como parceiros e não estrangeiros que teriam o poder de decidir sobre a
oportunidade de alguém estar em tratamento psicológico ou psiquiátrico ou
não... Isso fez toda a diferença!!!
31
UMA CLÍNICA POSSÍVEL EM SAÚDE MENTAL
Em tempos tão difíceis, alegra-me poder falar do desejo que sustenta um
trabalho e também de esperança, no sentido que nos ensina Sônia Viegas: “Ter
esperança é apostar em alguém ou em algo, mesmo sem previsão objetiva possível
de que o que esperamos acontecerá”.
 Há 16 anos, estou na Prefeitura de Belo Horizonte trabalhando na sua
maior regional – a Noroeste –, desde o início numa Unidade Básica de grande
complexidade – o Centro de Saúde Jardim Montanhês e, há 4 anos também no
CERSAM do mesmo Distrito Sanitário.
 Durante todo este tempo, tive oportunidade de acolher centenas, milhares
de pessoas – cada uma trazendo sua singularidade. Tenho, portanto, experiência
em Saúde Mental desde antes da implantação do Programa de Saúde da Família,
cuja estratégia de atendimento trouxe mudanças em nossa prática clínica.
 Hoje, os Centros de Saúde estão estruturados em equipes constituídas
por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes de saúde que
atendem famílias de determinada área de abrangência e têm a Saúde Mental
como apoio matricial.
 No mesmo “barco”, na mesma Rede, estamos todos: Centros de Saúde,
CERSAM, Centros de Convivência e CERSAMi. O que nos torna parceiros é a
constante “tessitura” desta Rede, ou seja, toda uma linha de cuidados para nossos
pacientes, que culmina no que chamamos de Projeto Terapêutico.
 Qual a clínica possível nesta “travessia” mar adentro?
 Atualmente, nós, profissionais da Saúde Mental, temos trabalhado com
as Equipes do Programa de Saúde da Família numa delicada e rica construção,
que implica em abrirmos mão da arrogância, da hegemonia de um saber sobre
os demais e numa aposta na parceria interdisciplinar.
 Nossa microárea é constituída de três Centros de Saúde: Jardim
Maria Auxiliadora Barros Morais*
* Psicóloga do Centro de Saúde Jardim Montanhês e CERSAM Noroeste.
“O correr da vida embrulha tudo: a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta: o que
ela quer da gente é coragem.”
(Guimarães Rosa – Grande Sertão Veredas)
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE32
Montanhês, São José e Jardim Alvorada, com 2 Equipes de Saúde Mental
compostas de quatro psicólogos e uma assistente social. Há mais de dois anos
não contamos com a presença do profissional psiquiatra, o que não tem impedido
a discussão e condução de casos e nem tem resultado em mais encaminhamentos
dos mesmos ao CERSAM, pelo contrário, no momento, verificamos que esta
microárea tem o menor número de pacientes em permanência-dia.1
Os profissionais do Programa de Saúde da Família têm sustentado o
acompanhamento de casos e, quando necessário, têm referenciado os mesmos
às equipes de Saúde Mental, com encaminhamentos adequados e precisos.
 Os generalistas e enfermeiros, particularmente os que pertencem ao
Centro de Saúde Jardim Alvorada, têm participado ativamente das reuniões de
microárea e das supervisões clínicas, o que tem possibilitado uma interlocução
fecunda e uma relação de mútua confiança.
 O que nos sustenta é o nosso desejo, para além da burocracia, do maior
ou menor empenho de gerências, da organização de agendas, de reuniões
marcadas para o ano em curso.
 Procuramos oferecer a quem nos procura uma escuta do mal-estar que o
traz a nós. Ainda que seja mais uma mulher, entre tantas, na maioria das vezes,
donas-de-casa insatisfeitas com sua vida, queremos tornar possível o aparecimento
de sua singularidade.
 Entendemos que nossa função não é corrigir, adaptar ou consolar, pois
não pretendemos anestesiar a dor que vem da alma, mas permitir que o sujeito
entre em contato com ela, a fim de produzir algo novo.
 Não oferecemos a cura no sentido de supressão de sintomas, não
prometemos e nem damos garantia, a não ser a de sustentarmos uma escuta que
possibilite ao outro encontrar saídas, viver de modo mais criativo, construir,
afinal, um sentido para sua vida.
 “A cura é um conceito discutível, quando se trata da dimensão psíquica.
Ela significa muito mais aprender a lidar com problemas do que querer resolvê-
los de forma definitiva”. (Inez Lemos)
Parece-me, então, ser possível uma clínica de Saúde Mental que é a da
escuta de cada um, o que não é exclusividade dos profissionais “psi”, mas de
todos os que acolhem alguém que está sofrendo ou que demande algo.
Trata-se de uma clínica a ser inventada a cada dia, a cada acolhimento, que
não se deixa engolir pela voracidade da demanda pública, sobretudo à de
medicação, mas que tem como direção de tratamento o rigor de uma ética que se
dispõe a escutar o caso a caso.
1 Este texto foi escrito em março de 2007, em momento anterior à chegada do novo psiquiatra no Centro de
Saúde Jardim Montanhês.
33UMA CLÍNICA POSSÍVEL EM SAÚDE MENTAL
 Portanto, é fundamental sairmos do automatismo, do imperativo da pressa
e da “resolutividade” e nos abrirmos para o inédito, contemplando a radical
alteridade do outro.
 É necessário, cada vez mais, qualificarmos nossa escuta, fazendo da
demanda que não cessa uma pergunta do sujeito sobre si mesmo.
 Em nosso horizonte, colocamos uma atenção básica em que todos os
profissionais se apropriem da Saúde Mental; que a loucura possa transitar entre
nós, que a tristeza não seja chamada de depressão, que os lutos sejam vividos
sem medicação e que aqueles de quem cuidamos tornem-se responsáveis pelo
seu próprio destino.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LOBOSQUE, Ana Marta. Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos.
São Paulo: Hucitec, 1999.
A CONDUÇÃO do Tratamento em Saúde Mental. SIRIMIM, jan./abr. de 2004.
DISPOSITIVOS deTratamento em Saúde Mental na Rede Pública: Construindo
um Projeto (Núcleo Pró-Formação e Pesquisa do CERSAM Barreiro) - Gestão
1995
VASCONCELOS, Rosa Maria. Referências... Um tear na rede. SIRIMIM , out./
dez. 2005.
LEMOS, Inez. A dor que vem da alma. Estado de Minas, Caderno Pensar, 6 maio
2006.
VIEGAS, Sônia. Carta às filhas. Belo Horizonte, fev. 1983.
CARVALHO, Frederico Zeymer Feu de. A clínica do CERSAM (texto redigido
por ocasião do primeiro aniversário do CERSAM Leste de Belo Horizonte).
Metipolá, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 1998.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão veredas. 32. imp., São Paulo: Nova Fronteira,
1988.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE34
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PSF E SAÚDE MENTAL: COMPARTILHANDO HISTÓRIAS
No nosso dia-a-dia no Centro de Saúde, deparamo-nos com toda sorte de
queixas, demandas e necessidades. Com a D. Maria, que vem controlar sua pressão,
vem a solicitação de receita de Diazepan, que faz uso há mais de 20 anos, e já
nem se lembra mais porque começou; com o Sr. José, que vem procurar um
pouco de alívio para sua falta de ar, vem o pedido desesperado de ajuda para
dormir, coisa que, segundo ele, já nem sabe o que é faz tempo; com a Sra.
Imaculada, que há 2 dias perdeu o filho “matado a tiros, por engano, ele tinha
acabado de sair da escola, à noitinha, e foi confundido com um outro sujeito, na
frente do Posto”, vem o desespero, a agonia, a tristeza e a inconformidade que
nenhuma letra será capaz de descrever e definir; com a D. Josefina, preocupada
com o seu diabetes “que não tem jeito, dotora, desse açúcar no sangue baixar,
acho que isso é coisa posta”, vem o desalento de ter sido abandonada jovem
ainda, por quem foi o primeiro grande amor da sua vida, com os filhos todos
pequenos pra criar, sozinha, com a força e o suor do seu corpo apenas, que
reclama “eu nunca fui amada na vida...”, e que apesar de tudo, ainda espera viver
um grande amor “quero me casar na igreja, com véu, grinalda e tudo..”; com a
D. Terezinha vem as lágrimas e a confidência de ter sido abandonada pelos
filhos, está morando sozinha, já bem idosa, com dificuldade pra andar e cuidar
de si própria, “estou à míngua ... a gente fica doida pros filhos crescerem, e
quando eles crescem e vão embora é uma saudade...” e de seus olhos caem
alguns pingos salgados de amargura e de solidão; com o Josivaldo, moço ainda,
na cadeira de rodas, desde o início da sua mocidade, “foi tiro, dotora,..... dos 22
amigos que tinha de criança, só dois viraram trabalhador, o resto tudo bandido”,
vem a denúncia da falta de condições básicas para sobrevivência na qual vivem
muitos e desabafa que jovens aos 12, 13 ou 14 anos, mesmo de famílias com
firmes princípios éticos e morais, em um ambiente de criminalidade e miséria,
Rosânia Aparecida da Silva*
* Médica Generalista do Centro de Saúde Pedreira Prado Lopes.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE36
ausência de muito do que é primordial para uma vida de cidadania, muito
dificilmente não seriam seduzidos pelo crime; com a D. Marcilene vem dores
múltiplas, “dói tudo, da pontinha do pé ao final do fio do cabelo”, vem as dores
do corpo para dar visibilidade às dores da vida; e vem também aquela moça
gritando, dizendo alto que estão querendo matá-la, que ela está ouvindo vozes
dizendo isso. Ela olha para os que esperam na recepção e esboça investir-se
contra eles porque a estão olhando, e ela chora, e ao mesmo tempo ri, e quer
rasgar papéis da mesa, e diz que a polícia invadiu sua casa, e ela está inconformada,
e vem dividir a sua dor conosco, a dor que a descompensou, a dor que a desatinou
e também vem o que implora “essa cachaça tá acabando com a minha vida, com
o meu emprego, a minha família, me dá um remédio para tirar este maldito
vício...eu já não agüento mais, já fiz de tudo...mas não tenho forças pra parar”.
E são tantas dores, tantos pedidos de ajuda, tantas demandas para as quais
não sabemos, nem de longe, onde encontrar saídas; mas também não precisa,
muitos já sabem da sua missão de encontrar os próprios caminhos, eles querem
ser ouvidos, compartilhar vivências, experiências, histórias. No fundo, eles querem
ser tratados como gente, pessoas completas, que sentem dor na carne e na alma
também, eles querem, além da receita que muitas vezes lhes fazem calar a boca
para encurtar a consulta porque a fila está grande ou é preciso cumprir uma
produção, uma oportunidade de se expressarem enquanto cidadãos, gente de
direito e desejos.
Naturalmente os assuntos da saúde mental misturam-se à rotina e à prática
da equipe. Mesmo que alguém não esteja enxergando, não goste ou não queira,
a integração saúde mental e saúde da família vem acontecendo, sorrateiramente,
na área de abrangência, no nosso encontro diário com o usuário, que teima em
nos dizer todo dia, que corpo, mente e alma não existem separados, que não tem
como “tratar” das suas partes sem considerar e dar ouvidos a esse todo, que é
ele, pessoa inteira, e que insiste em se pronunciar, em pedir ajuda para os vários
trabalhadores da saúde, que consigo e a comunidade são responsáveis pela saúde
dele.
Nós, profissionais do Centro de Saúde Pedreira Prado Lopes, não obstante
nossa necessidade diuturna de aperfeiçoamento, característica de qualquer ser
humano não alienado no seu tempo, temos nos esforçado para acolher com
dignidade e humanização as pessoas que nos procuram, cada um cumprindo
seu papel, obviamente, com envolvimento diferenciado, ditado pelas afinidades
e o que cada qual está disposto e pode doar de si. Um elo companheiro e
acalentador tem sido a assistente social da unidade, aberta às necessidades de
escuta e afeto dos usuários e nossas, pois nos deliciamos, mas também sofremos
com o nosso fazer em saúde.
Trabalhamos na perspectiva de oferecer à pessoa o cuidado que ela
37PSF E SAÚDE MENTAL: COMPARTILHANDO HISTÓRIAS
necessita, seja no âmbito do Centro de Saúde e das nossas competências ou
extramuros, acionando o trabalho de outros atores da rede de saúde e de ajuda,
porque concebemos rede como suporte para o usuário e para o trabalhador,
envolvendo outros parceiros, algumas vezes até de outros setores.
Temos conseguido, apesar de alguns dissabores, dividir responsabilidades,
discutir caminhos e projetos terapêuticos coletivamente, dentro e fora da unidade.
Estamos inseridos em um modelo de referenciamento de três Centros de Saúde
para uma Equipe de Saúde Mental, composta por um psiquiatra, quase sempre
sem lotação, e duas psicólogas, que muito têm contribuído no nosso aprender-
fazer em serviço. A lacuna do psiquiatra da Equipe de Saúde Mental de referência,
algumas vezes insubstituível, tem sido solidariamente preenchida pela parceria
com muitos profissionais do CERSAM, aqui também com o papel de atender
prioritariamente às crises e aos casos graves. Eles têm-se desdobrado, para
juntamente conosco, à medida do possível, construirmos alguns dos laços
imprescindíveis desta rede.
Seja por telefone, por discussões presenciais de casos no CERSAM ou em
nossa unidade de Saúde, ou por visitas domiciliares envolvendo as Equipes do
Saúde da Família e da Saúde Mental, estamos construindo, no exercício de nossas
atividades, um saber que se qualifica e amplia a cada dia, na perspectiva única e
coletiva de atender melhor o nosso usuário.
Obviamente, há muitas faltas, muitas ausências, muitos caminhos por
percorrer, muitas parcerias a serem fortalecidas, construídas, muita gente ainda
a ser envolvida, muitos de nós a serem esculpidos, brotados, crescidos, muitas
arestas a serem acertadas. Em nenhum caminho há só flores. O desafio maior é
roçar de dentro de nós possíveis espinhos do não-querer, do não se envolver, do
não se implicar, do não se dispor em construir juntos e, principalmente, o da
desesperança. E seguir viagem....
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE38
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INTEGRAÇÃO DO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA COM
O PROGRAMA DE SAÚDE MENTAL EMUM CENTRO DE
SAÚDE DE BELO HORIZONTE
Guilherme Cunha Ribeiro*
Andréia Maria Ribeiro Alonso**
Maria Aparecida das Graças Pedroso Pinto***
Sílvia Catarina Patrocínio de Oliveira****
INTRODUÇÃO
Iniciamos nossa reflexão sobre a integração entre os Programas de Saúde
da Família (PSF) e de Saúde Mental (PSM) lembrando que, na história, a loucura
era considerada como o estranho, o desconhecido. Freqüentemente, os loucos
eram asilados e segregados, o que conduziu à formação dos manicômios,
instituições que tinham mais por objetivo a exclusão do que o tratamento, com
os loucos tomados como o suporte visível do mal.
O progresso científico nos tratamentos psiquiátricos foram acompanhados,
principalmente nas últimas décadas do século XX, do intenso trabalho de incluir
os portadores de sofrimento mental na sociedade. Os programas de
desospitalização e uma visão do doente mental como sujeito em sua comunidade
e não como objeto de exclusão estão associados à Reforma Psiquiátrica,
movimento ainda em andamento.
A orientação de oferecer o atendimento aos portadores de sofrimento
mental próximo ao local de residência dos usuários, dando continuidade ao
programa de desospitalização, nos conduz a criar novas formas de atendimento.
A partir daí, a integração entre as equipes do PSF e de Saúde Mental em um
* Psiquiatra do CS Santa Inês, Psicanalista membro correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise,
seção Minas Gerais.
** Gerente do Centro de Saúde Santa Inês.
*** Psicóloga do CS Santa Inês.
**** Médica generalista do Programa de Saúde da Família do CS Santa Inês.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE40
Centro de Saúde se tornou um dos mecanismos que poderão viabilizar o
atendimento de qualidade em saúde mental.
Para descrevermos nossa experiência de integração entre PSF e PSM na
atenção básica à saúde é interessante situarmos características demográficas
situacionais da área de abrangência onde atuamos.
A região Leste de Belo Horizonte se caracteriza pela existência de grandes
diferenças na situação socioeconômica e educacional da sua população. Convivem
nessa região realidades sociais que se aproximam às condições de vida da
população da Bélgica e, também, realidades sociais nas quais a população vive
privações socioeconômicas e educacionais semelhantes à do Norte da África.
O bairro Santa Inês é considerado de classe média, com cerca de 14 mil
habitantes. Quando aplicamos os critérios de risco à população da área de
abrangência do Centro de Saúde Santa Inês (CSSI), encontramos 35% da mesma
em situação socioeconômica de médio risco, os outros 65% estão em situação
de baixo risco. Observa-se grande número de idosos, representando 25 a 30%
da população da área de abrangência.
HISTÓRICO
O PSF foi implantado no CSSI em 2002, quando foram designadas duas
Equipes de Saúde da Família (ESF) para atuarem nas áreas de população de
médio risco social. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) já
havia sido implantado no CSSI desde 2001. A população de baixo risco social
continuou sendo atendida no CSSI pelos profissionais da unidade que não haviam
aderido ao PSF e também pelos profissionais do PSF, contudo, fora de uma
relação de responsabilização.
No final de 2003 e início de 2004, esta incômoda situação acabou, quando
o PSF foi estendido a toda a população da área de abrangência. As duas equipes
iniciais se reorganizaram para atender 100% da área de abrangência do CSSI.
Assim toda a assistência básica à saúde passou a ser realizada pela estratégia do
PSF, tendo como apoio uma equipe composta por dois pediatras, um clínico,
um ginecologista com atuação completa e outro com meio horário, uma
enfermeira, seis auxiliares de enfermagem, dois auxiliares administrativos e uma
Equipe de Saúde Mental composta por um psiquiatra e uma psicóloga, uma
equipe de saúde bucal composta por um dentista e uma auxiliar de higiene dental,
e a gerente da unidade.
O PSF E A COMUNIDADE
O PSF, desde seu início, contou com o apoio irrestrito da comunidade
por meio das associações e instituições que atuam na área de abrangência do
CSSI. A população já se fazia representar na unidade de saúde por meio da
41INTEGRAÇÃO DO PSF COM O PSM EM UM CENTRO DE SAÚDE
comissão local de saúde, que se tornou mais forte com a implantação do PSF. A
população da área de abrangência é muito exigente, com grande capacidade de
reivindicação, porém muito receptiva e sempre atende prontamente a todos os
chamados do CSSI. O CSSI tem uma grande credibilidade na sua comunidade.
Um exemplo pode ser dado quando analisamos os pacientes acamados e
domiciliados, apesar de 50% dos mesmos possuírem convênios de saúde, eles
não abrem mão do atendimento realizado pelas ESF e pelos profissionais do
Centro de Saúde.
INÍCIO DA INTEGRAÇÃO PSF E PSM
Com a implantação do PSF passamos a conhecer melhor nosso usuário,
no seu cotidiano e na sua família. Os usuários passaram a ser atendidos
percebendo-se melhor suas dificuldades e angústias. Em 2003, os profissionais
do PSF já sentiam uma necessidade de fazer uma integração maior com a Equipe
Saúde Mental. Obedecendo à orientação da Secretaria Municipal de Saúde (SMS)
foi iniciado o processo de integração.
A Equipe de Saúde Mental recebe os casos encaminhados pelos
profissionais da unidade de saúde, casos egressos de instituições psiquiátricas e
casos encaminhados pelos CERSAMs. A orientação da Coordenação de Saúde
Mental da Secretaria Municipal de Saúde para o trabalho dessas equipes em
unidades básicas é de privilegiar os casos de psicose e de neuroses graves. A
equipe do PSF recebe todo o tipo de demanda de atendimento a partir da
população e procura filtrar quais os casos serão encaminhados para a Equipe de
Saúde Mental. Ficou claro durante as reuniões que uma parcela da população,
que tem queixas relacionadas à saúde mental, já chega à unidade de saúde
solicitando uma medicação específica, em geral uma medicação antidepressiva
ou um ansiolítico e hipnótico. Outra parcela da população apresenta queixas
que conduzem aos diagnósticos de distúrbios ou doenças mentais, dados pela
equipe do PSF. Cabe à equipe do PSF decidir se encaminha para a Equipe de
Saúde Mental ou se assume a responsabilidade de tratar esses casos.
Constatou-se que as duas opções conduziam a entraves que não resolviam
o problema da demanda excessiva. Encaminhar para a Saúde Mental os casos
que não se enquadravam naqueles que deveriam ser privilegiados, seja para a
psicologia ou para a psiquiatria, gerava uma tendência a psicologizar ou
psiquiatrizar as queixas, normatizando o sintoma de acordo com os critérios
burocráticos de diagnóstico, que encontram seu melhor exemplo nos manuais
diagnósticos baseados no DSM e no CID. A resposta simples da demanda por
parte da equipe do PSF, utilizando esses manuais diagnósticos, conduziu ao
excesso de medicações prescritas e, naturalmente, a um aumento da demanda,
pois os usuários reconheciam ali a possibilidade de resposta a seu pedido.
POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL DE BELO HORIZONTE42
Para lidar com os entraves surgidos, organizamos o trabalho de integração
por meio de reuniões para discussão de casos de pacientes portadores de
sofrimento mental. Essa era, inicialmente, a principal forma de integração, sem
protocolos e metas definidas pelos programas. Com o tempo surgiram questões
relacionadas aos profissionais e as angústias e dificuldades de lidar com o
sofrimento mental. Outras demandas surgidas a partir do atendimento foram
colocadas pelos profissionais do PSF, demandas essas acolhidas pela Equipe de
Saúde Mental. Um dos principais problemas existentes por parte dos usuários
foi a demanda abusiva de medicações com tranqüilizantes. Durante o nosso
percurso também se observou grande dificuldade de se lidar com os familiares
dos acometidos pelo sofrimento mental. De acordo com os problemas surgidos
foram selecionados textos para discussão,

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