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FACULDADES INTEGRADAS DO EXTREMO SUL DA BAHIA CURSO DE DIREITO DAMIANA GOMES LACERDA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA: BUSCA DE ALTERNATIVAS PARA A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA Eunápolis - Bahia 2017 DAMIANA GOMES LACERDA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA: BUSCA DE ALTERNATIVAS PARA A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdades Integradas do Extremo Sul da Bahia, como requisito para obtenção do grau em Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Msc. Thaís Prestes Veras Eunápolis - Bahia 2017 DAMIANA GOMES LACERDA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA: BUSCA DE ALTERNATIVAS PARA A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdades Integradas do Extremo Sul da Bahia, como requisito para obtenção do grau em Bacharel em Direito. Aprovada em ______ de _______________ de ______. Banca Examinadora: ______________________________________________ Prof. Msc. Orientadora: Tais Prestes Veras ______________________________________________ Professor (a) examinador (a) ______________________________________________ Professor (a) examinador (a) Aos meus pais e minha irmã que sempre estiveram ao meu lado, me apoiando em todos os momentos. À minha tia Aurita por ter me incentivado a continuar sempre. À todas as pessoas que fazem parte da minha vida e foram minhas inspirações. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus pela força, coragem e resiliência que me sustentou durante toda a caminhada para a conclusão desse sonho e colocou anjos na minha vida quando mais precisei de ajuda. À minha orientadora, professora Msc. Thaís Prestes Veras, por ter aceitado meu projeto e colaborado nessa caminhada, me ajudando a crescer e ampliando os meus horizontes. Aos meus pais, Maria Dajuda e Joaquim, que dedicaram parte de suas vidas com minha criação e educação. E que hoje, continuam a fornecer apoio e carinho incondicionais. Obrigada por tudo! Agradeço também a Daniele, minha irmã que com seu jeito de ser esteve ao meu lado nas horas em que precisei. A minha tia Aurita, que confiou na minha capacidade de continuar e que nessa jornada me incentivou a manter o foco independente das dificuldades que eu encontrasse em meu caminho, pela dedicação, inúmeros conselhos e carinho destinados a mim. As crianças da minha vida, que indiretamente me incentivaram a fazer esse trabalho com um tema visando a proteção delas. Aos meus amigos, por aguentarem minhas oscilações de humor, pelos momentos de descontração nesse período de TCC e pelo apoio e crença que tiveram em mim. Aos colegas pelas partilhas e pelo companheirismo durante essa aventura em busca do saber. Ao Projeto Ampare, na pessoa do Pastor Edgar, por todo o apoio e colaboração para realização da minha pesquisa. A todos, muito obrigada! “Não existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como esta trata as suas crianças.” Nelson Mandela RESUMO O presente trabalho pauta-se numa busca de alternativa para a prevenção e redução de danos da violência contra as crianças, na qual analisa as leis acerca da proteção da criança, sobretudo no que tange aos seus direitos. Desta feita, é importante evidenciar o que é violência no âmbito familiar, o que é o âmbito familiar, a cronologia e importância das garantias em nossa legislação e os mecanismos contemporâneos de combate a violência doméstica infantil. O problema em questão consiste em investigar: “O que está sendo implantado a fim de reduzir e prevenir a Violência Intrafamiliar Infantil?”. O objetivo geral é analisar a violência intrafamiliar contra a criança e a prevenção e diminuição da Violência Infantil no núcleo familiar, praticada pelos pais e responsáveis dos menores tendo como objeto de pesquisa as doutrinas e teses. E como objetivos específicos: Verificar o que diz a legislação, sobre elementos que garantem que o menor não sofra Violência Infantil; Analisar como o Estado está buscando a erradicação da violência contra criança; Relacionar os conceitos jurídicos que conceituam a Violência Infantil; Definir juridicamente a responsabilidade da família como um dever a ser exercido pelos responsáveis pelo menor; e por fim apresentar os principais órgãos jurídicos e pacificadores que atuam no combate, prevenção e diminuição da violência infantil. A proposta de pesquisa aqui apresentada, será baseada na construção doutrinária e normativa. A pesquisa bibliográfica utilizada são artigos jurídicos, doutrinários, revistas jurídicas, normas constitucionais e infraconstitucionais e apesar de não ser um trabalho com pesquisa de campo, para demonstrar o que está sendo implantado na região, foi realizada uma entrevista com o Projeto Ampare. Palavras-Chaves: Criança; Violência Infantil; Afirmação de Direito; Violência intrafamiliar; LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS AMPARE Projeto de Abrigamento Infantil ART Artigo CAP’s Centro de Atenção Psicosocial CC Código Civil CF Constituição Federal CP Código Penal DSD Depoimento Sem Dano ECA Estatuto da Criança e do Adolescente ONU Organização das Nações Unidas PL Projeto de Lei PSF Posto de Saúde da Família PT Partido do Trabalhadores RS Rio Grande do Sul UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9 1. LEITURA INTERDISCIPLINAR DA INFÂNCIA .................................................... 10 1.1 CONCEITO DE INFÂNCIA .................................................................................. 10 1.2 DAS IDADES PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO ......................................... 13 2. DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS................................................................. 15 2.1 PODER FAMILIAR .............................................................................................. 15 2.2 DOS MAUS TRATOS E FORMAS DE VIOLÊNCIA ............................................ 20 2.2.1 Violência Física .............................................................................................. 22 2.2.2 Violência Sexual Intrafamiliar ........................................................................ 23 2.2.3 Violência Psicológica ..................................................................................... 24 2.2.4 Negligência ..................................................................................................... 26 3. CRONOLOGIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO REFERENTE A INFÂNCIA .... 27 3.1 CRONOLOGIA DA LEI ........................................................................................ 27 3.2 ECA E O NOVO PARADIGMA DA PROTEÇÃO INTEGRAL .............................. 29 3.3 ASPECTOS CONSTITUCIONALISTAS.............................................................. 31 3.4 LEI DA MENINO BERNARDO ............................................................................ 32 4.0 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS REFERENTES A CRIANÇAS VITIMADAS .................................................................................................................................. 34 4.1 DEPOIMENTO SEM DANO ................................................................................ 34 4.2 PROJETO AMPARE ........................................................................................... 36 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 40 ANEXO I.................................................................................................................... 48 9 INTRODUÇÃO O presente tema despertou interesse, uma vez que as violências familiares contra crianças são tão frequentes e devastadoras. A situação, além de comovente, desafia a busca de alternativas para prevenir e auxiliar as vítimas. Percebe-se que é um tema sobre o qual não há uma verdade imutável. Considerando que o ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza a proteção em rede e que toda a sociedade faz parte dessa rede, tanto os cidadãos como o Estado não devem deixar passar desapercebidas as situações que rompem com os direitos das crianças. O não enfrentamento tanto teórico quanto prático da violência intrafamiliar contribui com a naturalização da violência que por vezes acontece por motivos fúteis A proposta de pesquisa aqui apresentada, será baseada na construção doutrinária, jurisprudencial e normativa, sendo analisada a fenomenologia da violência doméstica contra a criança. A pesquisa bibliográfica utilizada são artigos jurídicos, doutrinários, revistas jurídicas, jurisprudência, normas constitucionais e infraconstitucionais e entrevista com o Projeto Ampare, que serão os métodos de procedimentos específicos do trabalho em questão. A organização da escrita deste trabalho monográfico busca no primeiro capítulo fazer uma leitura interdisciplinar da temática infância, com foco na concepção dos termos “infância” e “criança” e nas idades para o ordenamento jurídico. No capítulo dois será feita uma análise sobre a fenomenologia da violência contra criança, por meio da conceituação e histórico do instituto do poder familiar e a naturalização dos maus tratos em muitas famílias e de quais maneiras elas se manifestam O terceiro capítulo traz toda a cronologia do ordenamento jurídico referente a criança, desde o Estado sem legislação no que refere ao tema, até o advento da constituição cidadã, do Estatuto da criança e do Adolescente e da Lei da Palmada. O capítulo final encerra o presente trabalho, trazendo as questões contemporâneas referentes as crianças vitimadas com enfoque no projeto do Depoimento Especial – Depoimento Sem Dano – e no Projeto Ampare, que acolhe crianças que tiveram seus direitos desrespeitados. 10 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA: BUSCA DE ALTERNATIVAS PARA A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA 1. LEITURA INTERDISCIPLINAR DA INFÂNCIA 1.1 CONCEITO DE INFÂNCIA Para Kramer (1996) apesar da figura da criança existir desde o início da humanidade, a noção de infância é “produto de evolução da história das sociedades, e o olhar sobre a criança e sua valorização na sociedade não ocorreram sempre da mesma maneira, mas, sim, de acordo com a organização de cada sociedade e as estruturas econômicas e sociais em vigor”. O conceito do termo criança assim como conhecemos hoje, “sujeitos, credores de direito” (AMARO, 2014), é decorrente de uma evolução histórica que acompanha as condições socioculturais, econômicas, geográficas e até mesmo as idiossincrasssias individuais. Consequentemente é errôneo acreditar que as crianças da atualidade são idênticas as do século passado e que serão exatamente semelhantes às que virão nos séculos seguintes. Segundo o historiador Ariès (1981) "na sociedade medieval a criança a partir do momento em que passava a agir sem solicitude de sua mãe, ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes". Na visão deste, até a Idade Média e durante ela não existia o sentimento de infância, as crianças eram vistas e tratadas como adultos em miniaturas que desempenhavam alguns dos papeis e comportamentos dos adultos, não havia uma distinção do que era adequado e inadequado para as crianças. Contrapondo a ideologia de Ariès, Heywood (2004) defende que mesmo que as crianças como tais não recebessem tempo e atenção, havia uma ideia de infância presente na Idade Medieval. Ao mesmo tempo apresenta a tese de que a Igreja já se preocupava com a educação de crianças, colocadas ao serviço do monastério. Já no século XII, assegura o estudioso, é possível encontramos indícios de um investimento social e psicológico nas crianças. Nos séculos XVI e XVII já existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das dos adultos. 11 A transição de adulto em miniatura na Idade Média para a criança cidadã na Contemporaneidade, se deu por meio de muitas lutas e percalços, mesmo na primeira idade as crianças recebiam afeto e cuidados superficiais, que poderiam ser facilmente substituídos: Contudo, um sentimento superficial da criança a que chamei de ‘paparicação’ era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com as crianças pequenas como um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato. (ARIÈS, 2006) Quando não eram vistos como mini adultos, as crianças eram vistas como espelhos que absorvem os reflexos dos adultos e depois quando se tornam adultos refletem os que lhes foram ensinados quando pequenos, assim como leciona Caldeira “no lugar de procurar entender e aceitar as diferenças e semelhanças das crianças, a originalidade de seu pensamento, pensava-se nelas como páginas em branco a serem preenchidas preparadas para a vida adulta”. A Idade Moderna se difere dos períodos subsequentes em relação à criança, com a introdução da escolarização no século XVIII que altera, e muito, o conceito de infância existente no mundo, o que não significa uma melhora imediata dessa sua condição. A criança, antes esquecida, agora é lembrada, mas ainda de maneira distinta às suas necessidades, inerentes a sua condição de ser em desenvolvimento. (VERONESE, 2013) Porém, com o estopim da Revolução Industrial o sentimento de infância retrocedeu, e a criança passou a ser vista com outros olhares, que visavam explora- las nas fábricas por serem mãos de obras com baixo custo. Além da exploração ressurge a desigualdade social, pois os filhos de burguesas mantiveram o status de criança, enquanto os de baixa renda eram obrigados a trabalharem para ajudar no sustento da família, não tendo tempo para diversão e lazer. Seus direitos básicos como ser criança lhe é tirado, sobrando os deveres de pessoas adultas. A criança ganha outra dimensão. Anteriormente desprezada e insignificante, passa a ser concebida como uma produtiva força de trabalho. Pela sua natureza minoritária e frágil, é largamente explorada nas frentes de trabalho, sendo submetida a jornadas intensivas com 12 remunerações significativamente inferioresàs dos homens. (HABERMANS, apud VERONESE, 2013) O sentimento de infância ressurgiu aos poucos e timidamente entre os anos de 1850 a 1950, porém, foi na década de 50 que houve um grande salto no que diz respeito à infância e no desenvolvimento das ciências humanas, bem como um grande interesse na compreensão dessa fase da vida humana chamada “infância”. Assim, as crianças pouco a pouco foram retiradas das fábricas e novamente inseridas em contextos que promovem a aprendizagem sistematizada, pois a escola é lugar ideal para estes atos e propósitos. Com a consolidação do protótipo de família em fins do século XIX, a responsabilidade dos genitores passou a assegurar mais responsabilidade com o bem estar da criança, garantindo os direitos que lhes assistem e maiores cuidado físicos. A noção de infância, agora, passa pelo crivo dos conceitos técnicos e científicos. Essa analise e respaldada e analisada a luz da Psicologia da Sociologia, da Medicina, dentre outros campos do saber, passando a emitir um parecer cientifico a respeito dessa fase da vida humana, adquirindo estas constatações uma maior respeitabilidade frente à sociedade. (CORDEIRO; COELHO, 2007) A sociedade contemporânea desenvolveu uma concepção de infância instituída tanto pelo Estado moderno quanto pelas teorias psicológicas do desenvolvimento, em que a criança é vista como um “ainda não’. Esta moratória infantil remete a criança para o lugar de objeto em um processo macrossocial encaminhado a uma futura sociedade ideal. Nos últimos anos, tem surgido uma preocupação com a participação da criança nos programas e intervenções psicossociais. Efetivar essa participação implica um outro modo de conceitualização da infância, em que a criança é potencializada como agente de instituição e transformação da sociedade em que está inserida (ANDRADE, 1998). Hoje, a criança é vista como um valor em si, amada, desejada, protegida, e é considerada no tempo presente, e não mais como uma promessa para o futuro (BELLONI, 2009), mas até conquistarem o status de titulares de direitos e obrigações próprios da condição de pessoa em peculiar condição de desenvolvimento que ostentam, deram-se muitas lutas e debates. (SARAIVA, 2009) O como a infância é entendida atualmente é mostrado no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998), que vem afirmar que “a criança 13 como todo ser humano, é um sujeito social e histórico e faz parte de uma organização familiar que está inserida em uma sociedade, com uma determinada cultura, em um determinado momento histórico”. 1.2 DAS IDADES PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO O século XX foi o cenário mais importante para a infância brasileira no que se refere à legislação, pois surgiram três leis essenciais que buscaram atender à realidade da infância brasileira: o Código de Menores de 1927, o Código de Menores de 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Josiane Petry Veronese fazendo um estudo dos conceitos de Áries, faz uma divisão das idades de um ser humano na Idade Média: A divisão das idades fica evidente na baixa Idade Média, período em que monges eruditos criam um conceito próprio. A primeira idade é a infância, oriunda da palavra francesa enfant (não falante), é a idade em que crescem os dentes, indo do nascimento até aproximadamente os sete anos de idade. A segunda é denominada de pueritia, não muito diferente da primeira, na maioria das vezes confundida com ela, vai dos sete até os quatorze anos. A terceira idade é a adolescência, cuja característica é o seu rápido crescimento, considerada uma idade de desenvolvimento e de procriação, compreende dos quatorze até os vinte e oito anos, podendo estender-se até os 30 ou 35 anos. A quarta é a juventude, “meio das idades”, fase em que a pessoa se encontra na plenitude de suas forças, rompendo de vez com a infância, essa idade dura até os quarenta e cinco ou cinquenta anos de idade. Depois se segue a senectude e, por último, a velhice, a qual dura até os setenta anos (ARIÈS apud VERONESE, 2013) O Código da República, Decreto nº. 847, de 11 de outubro de 1890, foi o primeiro da República e que além da idade adotava a Teoria da Ação com Discernimento, mas: (...) declarou a irresponsabilidade de pleno direito dos menores de 9 anos; ordenou que os menores de 9 a 14 anos que agissem com discernimento fossem recolhidos a estabelecimento disciplinar industrial pelo tempo que o juiz determinasse, não podendo exceder à idade de 17 anos; tornou obrigatório e não apenas facultativo que se impusessem aos maiores de 14 anos e menores de 17 anos as penas de cumplicidade e manteve a atenuante da menoridade. (PEREIRA, 1996) 14 Atualmente a legislação traduz o conceito de criança e adolescência cronologicamente, para o Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei no 8.069/90, “criança e a pessoa que possui idade inferior a 12 anos completos e os adolescentes se enquadram na faixa etária entre 12 e 18 anos de idade”, ressaltando, no Parágrafo Único de seu art. 2º, que “nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto as pessoas entre 18 e 21 anos de idade.” (BRASIL, 1990) Para Digiácomo (2017) o conceito de criança para o ECA é legal e estritamente objetivo, sendo certo que outras ciências, como a psicologia e a pedagogia, podem adotar parâmetros etários diversos. De acordo com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989: “criança e todo ser humano menor de 18 anos”. Na área internacional, por exemplo, toda pessoa com idade inferior a 18 (dezoito) anos é considerada criança, e esta é uma das diretrizes, ideologicamente, orientada pela centralidade da pessoa humana como núcleo irredutível de preocupação de toda norma jurídico-legal. (RAMIDOFF, 2009) Independentemente da idade cronológica utilizada para distingui-los, “tanto criança quanto adolescente são indivíduos com condições de receber cuidados pessoais.” (COSTA, 1993) 15 2. DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS 2.1 PODER FAMILIAR Poder familiar é a nova designação adotada pelo código civil de 2002, para se referir ao que era conhecido como pátrio poder, termo advindo do direito romano: pater protesta: poder absoluto e inquestionável auferido ao chefe da organização familiar de governar os filhos da maneira que ele quisesse. No sistema primitivo, o poder de gerir a entidade familiar era conferido exclusivamente ao “varão”, este tinha todo o domínio sobre a vida dos filhos e da esposa. Dentre os direitos, o pai tinha a permissão de vender, expor, matar ou trocar os filhos. Este tinha mais direitos dos que deveres. Já os filhos não poderiam expressar as suas vontades, pois eram vistos como bens do chefe de família. (VERONESE, 2005) Mesmo após a vigência do código civil de 1916 continuou a existir a integral autonomia dos pais (em especial do pai) sobre a vida dos filhos, assim com leciona Dias (2016): O Código Civil de 1916 assegurava o pátrio poder exclusivamente ao marido como cabeça do casal, chefe da sociedade conjugal. Na sua falta ou impedimento é que a chefia da sociedade conjugal passava à mulher, que assumia o exercício do pátrio poder dos filhos. Tão perversa era a discriminação que, vindo a viúva a casar novamente, perdia o pátrio poder com relação aos filhos, independentemente da idade dos mesmos. Só quando enviuvava novamente é que recuperava o pátrio poder (CC/1916 393). O Estatuto da Mulher Casada (L 4.121/62), ao alterar o Código Civil de 1916, assegurou o pátrio poder a ambos os pais, que era exercido pelo marido com a colaboração da mulher. No caso de divergênciaentre os genitores, prevalecia a vontade do pai, podendo a mãe socorrer-se da justiça. Sob a égide do Código Civil de 1916, a figura materna tinha apena o poder de colaboração na gerencia dos filhos, o “pátrio poder” ainda era exclusivo da figura paterna. A mulher só poderia exercer esse direito na falta ou impedimento do marido. Esse cenário de autoridade paterna exacerbada só começou a ganhar novos contornos a partir da Lei 4.121/1962 (Estatuto da Mulher Casada), que delegou a execução do pátrio poder ao pai e a mãe. Mas mesmo assim, de maneira velada, o 16 pai ainda detinha a superioridade nas decisões, pois em divergência com a mãe, predominava o desejo dele, restando a ela procurar apoio no judiciário. A grande alteração nessas relações ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que que em seu artigo 5º concedeu tratamento isonômico ao homem e à mulher. Ao assegurar-lhes iguais direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (CF 226 § 5.º), outorgou a ambos o desempenho do poder familiar com relação aos filhos comuns. (DIAS, 2016) Para Trindade e Bahiano (2006) com a linha evolutiva de novos modelos de relacionamento, a Constituição Federal de 1988 veio ampliar o conceito de família, legitimando as diversas formas de uniões existentes no Brasil a noção de chefia familiar (pátrio poder) foi abolida e determinada a igualdade de direitos e deveres para homens e mulheres, abrindo as portas, pela primeira vez, à concepção da criança como sujeito particular de direitos a partir da doutrina da proteção integral. Em 1990 no contexto de evolução das relações familiares, a legislação nacional foi alterada com a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), “que acolheu o direito da criança e do adolescente de serem criados e educados no seio da família (art. 19) e estabeleceu os deveres dos pais em relação aos filhos menores” (TRINDADE e BAHIANO, 2006). Com relação ao pátrio poder, o artigo 21 do ECA dispõe que: O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurada a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. (BRASIL, 1990) Com o advento do ECA, a noção de domínio foi substituída por proteção, os pais adquiriram deveres em relação a educação e criação dos filhos, a maioria dos direitos que os pais tinham foram suprimidos, assim com a soberania paterna que ainda estava implícita, e caso descumprissem com essas obrigações, estariam violando preceitos constitucionais. Para Kumpel (2015), apesar das alterações normativas, contudo, não modificaram o nomen juris do instituto, o que ocorreu apenas com o advento do Código Civil de 2002. Ainda assim, já era reconhecida pela doutrina a necessidade de mudar o termo, sendo utilizado de forma conjunta às expressões "pátrio poder", 17 "poder parental", "pátrio dever", dentre outros.”. Essa alteração terminológica teve por objetivo acompanhar o disposto na Constituição Federal, no sentido de igualar homens e mulheres ao mesmo patamar, retirando a terminologia pátrio, por ser referir ao pai e incluindo “familiar”, para englobar ambos. Porém, apesar dessa mudança, o assunto ainda recebe muitas críticas, tendo em vista que a expressão “poder” permanece, assim como preconiza Rodrigues (2004) “pecou gravemente ao se preocupar mais em retirar da expressão a palavra "pátrio" do que incluir o seu real conteúdo, que, antes de um poder, representa obrigação dos pais, e não da família, como o nome sugere”. Poder familiar nas atuais legislações nada mais é do que a gama de direito e deveres inerentes aos pais (pai e mãe), quanto aos seus filhos. Dessa maneira Gonçalves (2012) doutrina que o poder familiar “é representado por um conjunto de regras que englobam direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos menores”. Na mesma linha Nader (2010) conceitua “Poder familiar é o instituto de ordem pública que atribui aos pais a função de criar, prover a educação de filhos menores não emancipados e administrar seus eventuais bens” Rosa (2015) esclarece que poder familiar é “um caminho de mão dupla, pois impõe deveres e reconhece direitos, não se podendo ignorar que ser exercício se concentra, exclusivamente, no interesse do filho.” Diante dos conceitos absorve-se que poder familiar é pautado principalmente em deveres e funções dos pais com a melhor criação dos filhos que são crianças ou adolescentes. Deveres que são enumerados na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil de 2002. O art. 227, da C.F., dispõe que é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade máxima, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de salvaguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (VERONESE, 1994) Já o Código Civil menciona os seguintes deveres e direitos dos pais e filhos: 18 Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (BRASIL, 2002) Nota-se que a Constituição atribuiu responsabilidades apenas aos pais, sendo os filhos os únicos titulares dos direitos, já o Código conferiu direitos e deveres tanto para os pais quanto para os filhos. Apesar de terem redações diferentes, a finalidade das legislações vigentes é una, proteger os menores e zelar pelo princípio da Proteção Integral, seja ela física, mental, espiritual, moral ou social. Assim como ensina Dias (2016) a autoridade familiar faz parte do estado das pessoas e por isso não pode ser alienado nem renunciado, delegado ou substabelecido: O poder familiar é irrenunciável, intransferível, inalienável e imprescritível. Decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal e da socioafetiva. As obrigações que dele fluem são personalíssimas. Como os pais não podem renunciar aos filhos, os encargos que derivam da paternidade também não podem ser transferidos ou alienados. Nula é a renúncia ao poder familiar, sendo possível somente delegar a terceiros o seu exercício, preferencialmente a um membro da família. É crime entregar filho a pessoa inidônea (CP 245). Além das características supramencionadas, outra peculiaridade desse instituto é que ele não é exclusivo para os pais biológicos, é aplicado também nas relações 19 advindas de adoção ou de socioafetividade. E qualquer ato que viole as suascaracterísticas são considerados nulos. O poder familiar poderá cessar pela extinção, suspensão ou perda. A extinção pode se dá por três vias: por fato natural (Art. 1.635, inc, I e III CC/02); por ato voluntário (Art. 1.635, inc, II e IV CC/02) e por sentença judicial (Art. 1.635, V CC/02); Conforme o Código Civil as hipóteses de exclusão são: Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638. (BRASIL, 2002) Já as hipóteses de suspensão não são claras e enumeradas pelo Código Civil, mas mesmo assim há previsão no artigo 1.637: Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. (BRASIL, 2002) Diferentemente da exclusão, a suspensão é a alternativa menos gravosa de perda de poder, tanto que tem pode ser sujeita a revisão: A suspensão ou destituição do poder familiar constituem, assim, sanções aplicadas aos pais pela infração ao dever genérico de exercerem o poder parental de acordo com regras estabelecidas pelo legislador, e visam atender ao maior interesse do menor. A nosso ver, tais sanções têm menos um intuito punitivo aos pais do que o de preservar o interesse dos filhos, afastando-os da nociva influência daqueles. (RODRIGUES, 2004) Essa suspensão pode ocorrer em relação a um único filho, deixando os outros com os pais, ou em relação à toda prole. Ela pode ser parcial ou total. Na parcial o 20 pai ou a mãe é privado de alguns direitos, já na suspensão total o pai ou a mãe é privado de todos os direitos que decorrem do poder familiar. (LÔBO, 2009) Como caracteriza Dias (2016) perda do poder familiar “é uma sanção imposta por sentença judicial, enquanto a extinção ocorre pela morte, emancipação ou extinção do sujeito passivo. Assim, há impropriedade terminológica na lei que utiliza indistintamente as duas expressões. A perda do poder familiar é sanção de maior alcance e corresponde à infringência de um dever mais relevante, sendo medida imperativa, e não facultativa.” Dispõe o artigo 1638 do Código Civil: Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - Praticar atos contrários à moral e os bons costumes; IV - Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo. (BRASIL, 2002) A perda do poder familiar, visa a proteção das crianças e adolescentes que estão em situação de risco. As causas de destituição “decorre de faltas graves, que configuram inclusive ilícitos penais.” (GONÇALVES, 2012) 2.2 DOS MAUS TRATOS E FORMAS DE VIOLÊNCIA Atualmente vivemos numa sociedade permeada por violência e maus tratos contra crianças, diariamente os meios de comunicações transmitem um bombardeio de casos violentos, mas esse fenômeno não é uma consequência do corpo social contemporâneo. (HAYECK, 2009) Veronese e Costa (2006) num exercício de conceituação, explicam que: A palavra violência vem do termo latino vis, que significa força. Assim, violência é abuso da força, usar de violência é agir sobre alguém ou fazê-lo agir contra sua vontade, empregando a força ou a intimidação. É forçar, obrigar. É também brutalidade: força brutal para submeter alguém. É sevícia e mau-trato, quando se trata de violência psíquica e moral. É cólera, fúria, irascibilidade, quando se trata de uma disposição natural à expressão brutal dos sentimentos. É furor, quando significa o caráter daquilo que produz efeitos brutais. Tem se 21 como seus contrários a calma, a doçura, a medida, a temperança e a paz A violência infantil brasileira surgiu junto com o descobrimento do Brasil, pois quando os colonizadores se instalaram na colônia, os nativos não aplicavam castigos físicos em suas crianças, mas com a chegada dos Jesuítas, que acreditavam que o melhor caminho para a educação era por meio da violência, foi implantado castigos físicos e psicológicos. (DOURADO; FERNANDEZ, 1989). Quando se fala em família é recorrente imaginar uma instituição tida como sagrada, protegida pela privacidade. Essa instituição é o primeiro referencial para o desenvolvimento da criança, é nela que a criança aprende a amar, a odiar, a competir, a lutar e a defender-se. Mas é também na família que as maiores violências contra a infância são praticadas: A violência doméstica é um fenômeno complexo em que suas causas são múltiplas e de difícil definição, suas consequências são devastadoras para as crianças e adolescentes, definidas como ações hostis: A violência doméstica contra crianças e adolescentes representam todo o ato ou omissão praticados por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e adolescentes que, sendo capaz de causar dano sexual e psicológico á vitima; implica de um lado uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e de outro uma coisificação da infância, isto é uma negação do direito que as crianças e adolescentes tem de ser tratados como sujeitos e pessoas em condições peculiares de desenvolvimento. (GUERRA, 1998) Nessa mesma linha Amaro (2015) considera mau-trato ou abuso como todo tipo de: Negligência, tortura, pressão psicológica, coação, humilhação, punição cruel, privação de liberdade, trabalho infantil perigoso, ilegal ou insalubre, estimulação sexual, exploração sexual (prostituição infantil), realização ou tentativa de penetrações sexuais (oral, anal ou genital). A relação entre um adulto e uma criança amplamente desproporcional, trata-se de pessoas com diferentes circunstancias e diferentes poderes. Nesse contexto como bem afirma Souza (2002), “a violência contra crianças é sempre uma covardia. O maltrato, em qualquer forma, é sempre um abuso de poder do mais forte contra o mais fraco. Afinal, a criança é (sempre mais) frágil, em seu desenvolvimento, e totalmente dependente.” 22 Não há como definir ao certo a causa e ocorrência da violência dentro do grupo familiar, tendo em vista que pode ser influenciada não apenas pelas características de cada membro, como também a estrutura familiar. (Assembleia Geral das Nações Unidas, 2006) As consequências da violência intrafamiliar podem se manifestar de várias maneiras, influência o psicológico e o físico da criança: Algumas crianças ficam paralisadas, perplexas diante da violência sofrida. Outras reagem, emitindo sinais de sintomas: tristeza profunda, enurese noturna, roubo, pânico, conduta oposta a sua habitual (apatia ou agitação, medo ou agressividade), irritabilidade, instabilidade emocional, isolamento dos colegas e amigos, indisposição excessiva diante de atividades de sua preferência e regressão na escola (AMARO apud AMARO, 2014) Violência intrafamiliar infantil é tida por muitos, como agressão física,” sabe-se que os maus tratos á infância refere-se não só a violência física” (AMARO, 2014) podendo ser definida em quatro âmbitos diferentes: violência física, psicológica, sexual e negligência. Apesar da possibilidade de elenca-las, é impossível de ordená- las em grau de gravidade, pois não existe violência mais e menos gravosa, independente da tipologia elas geram efeitos e sofrimentos em iguaisníveis de dor, para Pires e Miyazaki (2005) “definir diferentes tipos de violência ou maus-tratos é apenas uma forma didática de compreender o problema, que muitas vezes ocorre de forma dinâmica e simultânea”. Já Ruth Gauer (1999) aborda a violência, qualificando-a de outras formas: “a institucional, como uma característica do Estado; anômica, como delinquência; banal, como algo inerente à sociedade; interna, aquela que desagrega todo um sistema de sentidos e de valores no palco universal; a violência que decorre da fome, chaga social que macula a sociedade contemporânea”. 2.2.1 Violência Física O conceito de violência física foi sofrendo alterações ao longo do tempo, e se moldando ao contexto social de cada época. Mas sempre teve a conotação de impor autoridade e medo através da força, mesmo que as vezes disfarçada como proteção e meio de educação. 23 Corresponde ao uso de força física no relacionamento com a criança ou o adolescente por parte de seus pais ou por quem exerce autoridade no âmbito familiar. Esta relação de força baseia-se no poder disciplinador do adulto e na desigualdade adulto-criança. (BRASIL, 1993) Deste modo entende-se que qualquer tentativa ou consumação de impor dor e sofrimento físico na criança por meio de força, instrumentos ou tipo de armas que possam causar lesões internas e/ou externas é considerada violência física. O grau da violência física varia consideravelmente, de beliscões e tapas até agressões que conduzem à morte. As agressões mais frequentes incluem tapas, beliscões, chineladas, puxões de orelha, chutes, cintadas, murros, queimaduras com água quente, brasa de cigarro e ferro elétrico, intoxicação com psicofármacos, sufocação, mutilação e espancamentos. (BACKES DL, 1999) Segundo dados apresentados pela Unicef (2015), a violência física acontece com regularidade no ambiente familiar, embasada no discurso de correção e punição contra a criança. Assim, dentre os motivos mais recorrentes de violência física que ocorre com os menores, aponta-se: a crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e uma forma de demonstrar amor, zelo e cuidado; os pais e responsáveis enxergam a criança como um objeto de sua propriedade e não como um sujeito de direitos; a baixa resistência ao stress do agressor que projeta seu cansaço e problemas pessoais nos filhos e demais dependentes como exemplos de problemas pessoais, o desemprego, dívidas, desentendimento conjugal, o uso indevido de drogas e o abuso de álcool, reproduzir nos filhos o mesmo quadro vitimizador da sua própria violência e frustrações, fanatismo religioso, problemas psicológicos, psiquiátricos etc. Toda agressão, por mais singular e esporádica que seja é injustificada e sempre deixa consequências prejudiciais, pois violência física afeta o ser total da criança. 2.2.2 Violência Sexual Intrafamiliar 24 Talvez uma das formas mais brutais, a violência sexual é uma violação de direitos, uma rede que envolver poder/autoridade e sexo, gerando medo e pânico na criança. É qualquer tipo de ato abusivo a sexualidade do menor. Veronese (2012) explica: O conceito de violência sexual deve ser entendido de forma ampla, para que se possa abarcar o problema em todas as suas dimensões e em toda a sua realidade. O abuso sexual deve ser compreendido como um ato que circunscreve entre uma multiplicidade de condutas aparentemente “insignificantes”, que vão desde um simples manuseio até praticas sexuais, impostas e não consentidas, incluindo ou não a penetração coital, como, por exemplo, atos humilhantes como penetração de objetos, sadomasoquismo, etc. Dessa forma, o “abuso sexual” é o envolvimento de uma criança imatura em seu desenvolvimento em atividades sexuais que ela não compreende verdadeiramente, para as quais não está apta à dar seu consentimento informado, ou que violam os tabus sociais e familiares. Fica claro que a violência sexual não é uma prática única, nela podendo se inserir a violência física e a psicológica, fazendo com que exista dinâmica que gera uma sorte de “enfeitiçamento” que mantém a criança vitimizada como que “seqüestrada” e envolvida em uma armadilha da qual não pode e nem sabe como se livrar. (FURNISSS, PERRONE e NANNINI, apud FALEIROS e FALEIROS, 2008) Segundo Pfeiffer (2005) o agressor aproveita da confiança que tem com a criança ou adolescente para se aproximar e agir de forma que a vítima acha inicialmente que é demonstração de carinho e de interesse. O jovem se sente privilegiado pela atenção recebida. Com o aumento dos atos abusivos, que se tornam mais frequentes e violentos, a criança se sente insegura e em dúvida. Ao perceber que a criança está despertando para o significado do abuso, o agressor vira o jogo, colocando a culpa nela por ter aceitado seus carinhos. O abuso sexual incestuoso geralmente espelha uma dinâmica familiar desestabilizada e, veladamente ou não, envolve as outras pessoas da unidade familiar, de uma maneira ou outra, não apenas o abusador e a vítima. O abuso deve ser avaliado de forma mais ampla, olhando outros aspectos afetivos da família (COHEN, 1993) 2.2.3 Violência Psicológica 25 A violência psicológica está presente em todos as outras formas de violência, por não deixar marcas físicas é mais difícil de ser identificada. Forma de violência muito mascarada em suas intenções, pois não deixa marcas físicas. Geralmente acompanha todos os outros tipos de violência, tendo em vista o fato de a vítima ser coisificada por outrem, quando os seus direitos são violados. Esta ocorre quando um adulto deprecia constantemente a criança ou o adolescente bloqueia seus esforços de auto-aceitação e causa-lhe grande sofrimento mental. Ameaças de abandono, condutas de rejeição, atitudes de depreciação, discriminação desrespeito, punição exageradas, submissão da criança ou do adolescente a situações vexatórias e que tolhem a liberdade de expressão, sobrecarregam a criança ou adolescente com responsabilidade que não são dele. (ROLIM apud ORGANIZAÇÃO TERRA DOS HOMENS, 2000) Trindade (2013), adotou o mesmo conceito de violência psicológica descrita na Lei Maria da Penha: a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; Souza (2001) aponta que geralmente os pais e ou/responsáveis usam de artimanhas para depreciar a criança, através de castigos, de imposição, de medo como ("dorme, senão a bruxa te pega"), ameaças que não serão cumpridas, porém que vem a desproteger a criança. É importante que as pessoas que lidam com crianças ainda em tenra idade, passem para ela o sentimento de ser amada, pois este sentimento é a base para o desenvolvimento sadio. Não é raro que a vítima tenha uma imagem deteriorada de si mesma, com baixa estima ou depressão. Pode tornar-se também extremamente ansiosa ou negligente consigo, apresentando comportamentos de desatenção, alucinatórios e estranhos, vindo até a perder a pulsão de vida e a energia que caracterizam uma criança. Às vezes, a violência psicológica pode levar ao suicídio, quando as exigências ou o abandono se tornam insuportáveis. Como uma forma de crueldade mental, pode estar associada ou combinada com a violênciasexual e com a violência física. (FALEIROS; FALEIROS, 2008) 26 Apesar de ser uma violência que não deixa marcas no corpo, deixa no psicológico, podendo ir de uma criança tímida a um suicida. 2.2.4 Negligência Diferentemente de outra forma de violência, essa não ocorre por uma ação, esse tipo é decorrente de uma omissão. A violência por negligência relaciona-se ao abandono, ou seja, quando o outro, pelo descuido, pelo desamor, rompe o laço amoroso mostrando o desejo de destruição. Segundo Veronese (2006), define-se a negligência como sendo: A omissão dos responsáveis em garantir cuidados e satisfação das necessidades da criança e adolescente sejam elas primárias, secundárias, terciárias. Cada um dos níveis de necessidades não satisfeitos determina sérias consequências no desenvolvimento da criança e adolescente. Não é considerado negligência a omissão resultante de situações que fogem ao controle da família. Berlini (2014) aponta outro fator caracterizado como negligência é a rejeição, que pode começar até antes da criança nascer, mesmo que embora muitos casos decorram da falta de condições financeiras e problemas sociais, a negligência precoce decorre muito mais da rejeição que o pai ou a mãe sente com relação à criança ou adolescente, agindo dessa forma como maneira de vingar a existência indesejada daquele filho. A negligência é um tipo de indiferença (intencional ou não) pelas necessidades interiores e exteriores da criança. 27 3. CRONOLOGIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO REFERENTE A INFÂNCIA 3.1 CRONOLOGIA DA LEI Soares (2005) alega que a tarefa de atribuir direitos à criança tem sido um longo e, muitas vezes, tortuoso caminho, quer devido à lenta consciencialização da sociedade acerca de tal necessidade, quer devido às dificuldades que se colocam à interpretação e aplicação de direitos para as crianças em contextos culturais diversos e em épocas históricas distintas. As marcas iniciais que dizem respeito ao sentimento infantil aconteceram no fim do século XVI e, especialmente no século XVII, todavia de uma maneira mais imperceptível e catastrófica. A criança era vista por muitos de famílias ricas como o centro das atenções e lhes sendo permitido tudo que quisesse fazer e quando pobres, passavam pelo completo desprezo. Após este contexto, no final do século XIX e início do XX foi que houve o surgimento de programas oficiais assistencialistas ao menor (ROBERTI JUNIOR, 2012). É a partir do século XVI que se iniciam as mudanças mais significativas, que viriam a alterar a posição e estatuto das crianças relativamente aos adultos. Atitudes associadas à sobrevivência, proteção e educação das crianças, que, gradualmente se foram fortalecendo durante os séculos XVII e XVIII, começaram a permitir delinear um espaço social especial destinado às crianças, no qual é já possível salvaguardar algumas das suas necessidades e direitos. (SOARES, 1997) A condição da criança, como prioridade absoluta e sujeito de direitos, é proclamada com a Declaração Universal dos Direitos da Criança em 1959, que no sétimo de seus princípios estabelece: A criança tem direito a receber educação escolar, a qual será gratuita e obrigatória, ao menos nas etapas elementares. Dar-se-á à criança uma educação que favoreça sua cultura geral e lhe permita – em condições de igualdade de oportunidades – desenvolver suas aptidões e sua individualidade, seu senso de responsabilidade social e moral. Chegando a ser um membro útil à sociedade. 28 Bastos (2012) informa que só alguns anos mais tarde, especificamente em 1989, e sob influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, das Regras de Beijing, das Diretrizes de Riad, dos Princípios Sociais e Jurídicos Aplicáveis à Proteção e Bem- Estar das Crianças, com Especial Referência à Adoção e Colocação Familiar nos Planos Nacional e Internacional e da Declaração sobre Proteção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência ou de Conflito Armado, a Organização das Nações Unidas aprovou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), consagrando direitos relativos à infância que até então não eram considerados, e compreendendo as crianças e adolescentes como pessoas em processo de desenvolvimento. O Brasil ratificou a Convenção logo em 1989, momento em que o país tratava de remover o entulho autoritário de anos de ditadura militar, acolhendo-a com grande entusiasmo. O cumprimento integral das disposições da Convenção exigiria uma ação integrada e integradora por parte do Estado e da sociedade civil, tanto no âmbito das políticas sociais universais, como no dos programas dirigidos aos grupos vulneráveis; tanto no campo de uma ação codificadora destinada à adequação das leis nacionais aos preceitos da Convenção, quanto no de uma ação concreta de políticas sociais. (MARCÍLIO, 1998) Consoante Quadros citando Shecaira, a Convenção é o tratado de direitos humanos que teve a mais rápida e ampla aceitação da história e que, por seu caráter de norma internacional, obrigou os Estados a observarem suas disposições e assegurarem a sua aplicação a toda criança sujeita a sua jurisdição, promovendo as ações necessárias para garantir sua proteção e adaptarem sua legislação. (SHECAIRA, apud QUADROS, 2008) Ademais, por ser pautada no conceito do interesse superior da criança, engloba todo o elenco dos direitos humanos e reconhece à criança direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, o que faz com que a criança abandone seu papel anterior passivo e passe a assumir um papel ativo, transformando-se num verdadeiro sujeito de direitos. (SHECAIRA, apud QUADROS, 2008) Em 2010 a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lançou um livro (Direitos humanos de crianças e adolescentes: 20 anos do Estatuto) comemorativo aos 20 anos de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente, no 29 qual foi traçada uma linha do tempo com os principais documentos e marcos internacionais e nacionais que regulam a proteção e promoção desses direitos infanto- juvenis. No entendimento Shecaira (2008) e Sposato (2006) as legislações brasileiras sobre a temática da infância e da juventude podem ser divididas em três fases: a primeira, de caráter penal indiferenciado, a segunda, de caráter tutelar e, finalmente a terceira, garantista (ou protetiva), que está expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente. 3.2 ECA E O NOVO PARADIGMA DA PROTEÇÃO INTEGRAL Para acompanhar todo o contexto protetivo e garantista dos direitos da criança na nova ordem constitucional, imperativo se fez a revisão da legislação infraconstitucional, a qual deveria encontrar-se adequada aos princípios da dignidade da pessoa humana, da prioridade absoluta à infância e do interesse maior da criança. Desse modo, em 13 de julho de 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069), que elevou as crianças e os adolescentes à condição de sujeitos de direitos. A partir de então, “a violação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes acarreta na negação da própria dignidade da pessoa humana” (AZAMBUJA, 2011, p.49). O Estatuto da Criança e do Adolescente reconheceu como criança todo ser de até 12 anos. Estabeleceu direitos as crianças e adolescentes e determinou dever de cuidado não apenas por parte dos familiares, mas do Estado e de toda sociedade, mais do que nunca evidenciou a importância da infância e do desenvolvimento da criança e do jovem e do resguardo que todos devemos ter para protegê-los.Seribeli (2008) analisa que o Estatuto gerou mudanças relevantes na gestão política no que concerne ao atendimento da infância e do adolescente. Seus dispositivos foram formulados para coibir a prática de violência em suas diferentes e insifilizatórias variações, por meio da prevenção, da fiscalização e até mesmo para situações de extrema gravidade – o afastamento das crianças do ambiente 30 ameaçador. É nesse sentido que agem os Conselhos Tutelares – órgão criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Apesar de ainda ter muito a acrescentar nessa seara, o caráter garantista do Estatuto da Criança e do Adolescente, é de opinião da maioria, assim como preconiza a própria UNICEF (2015) “o então novo marco legal traduziu os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, e serviu de referência para a América Latina por sua coerência com os direitos humanos, com o respeito ao desenvolvimento de crianças e adolescentes e pelo compromisso em tratar a infância com prioridade absoluta.” O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda prevê que, caso haja suspeição ou ainda que seja confirmado maus-tratos, faz-se obrigatória a denúncia ao Conselho Tutelar a respeito da localização, sem detrimento de distintas providências judiciais. Em caso de não haver Conselho Tutelar, a denúncia poderá ser realizada à Promotoria de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude e à Vara da Infância e da Juventude. (CORDEIRO, 2006) O ECA tem a composição de três garantias assim com a dispõe Saraiva (2003), sendo elas: a) O Sistema Primário, que dá conta das Políticas Públicas de Atendimento a crianças e adolescentes (especialmente os arts. 4º e 85/87); b) O Sistema Secundário, que trata das medidas de proteção dirigidas a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, não autores de atos infracionais, de natureza preventiva, ou seja, crianças e adolescentes enquanto vítimas, enquanto violados em seus direitos fundamentais (especialmente arts. 98 e 101); c) O Sistema Terciário, que trata das medidas socioeducativas, aplicáveis a adolescentes em conflito com a Lei, autores de atos infracionais, ou seja, quando passam à condição de vitimizadores (especialmente os arts. 103 e 112). Deste modo, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado embasado na doutrina da proteção integral, elencada no art. 1º do ECA, em que afirma: “esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Isto é, baseando-se no princípio do melhor interesse da criança, o Estado brasileiro tem o dever de garantir as necessidades da pessoa em desenvolvimento, velando por seu direito à vida, saúde, educação, convivência, lazer, liberdade, profissionalização entre outros: 31 A proteção integral se baseia, fundamentalmente, no princípio do melhor interesse da criança, critério consagrado no direito comparado e revelado nas expressões the best interest of the child do direito norte- americano e no kindswohl do direito germânico. Trata-se da chamada regra de ouro do Direito do Menor, atual Direito da Criança e do Adolescente, acolhida na jurisprudência de diferentes países. Pode-se proclamar que os interesses da criança e do adolescente, considerados como sujeitos de direitos, são superiores porque a família, a sociedade e o Estado, todos estão compelidos a protegê-los, tendo em conta a sua peculiar condição de pessoa em formação e desenvolvimento. (COSTA, 2004) O ECA para Amaro (2014), garante as crianças e adolescentes o reconhecimento dos direitos e garantias sociais, mediante os quais passam a ser atendidos e respeitados, não mais como clientes, menores ou objetos de tutela, mas como sujeitos, credores de direito. 3.3 ASPECTOS CONSTITUCIONALISTAS A Constituição brasileira foi responsável pela redemocratização do Brasil e apresentou muitos avanços – em termos políticos e na perspectiva de direitos – na vida social do país; conseguiu consagrar novas formas de democracia direta, com atuação/ participação popular; garantiu autonomia aos municípios; e reconheceu novos sujeitos de direitos. (LIMA e VERONESE, 2012) Somente com a Constituição de 1988, a Doutrina da Proteção Integral consagrou-se no ordenamento jurídico brasileiro e contempla uma nova forma de proteção compartilhada entre a família, o Estado e a sociedade, o que elucida o artigo 227 da nossa Carta Magna, nos seguintes termos: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988) Ao analisar o referido artigo, percebe-se que é dever de todos – família, sociedade e Estado – assegurar à criança e ao adolescente – o direito à vida, à saúde, 32 à educação, à alimentação, dentre outros, além de ser obrigação de todos – família, sociedade e Estado – de colocá-las a salvo de toda forma de discriminação e exploração especificamente. Assim, as crianças não podem ser exploradas, devendo ser protegidas de toda forma de discriminação e maus-tratos: A Constituição de 1988 posicionou a crianças e o adolescente à condição de titulares autônomos de interesses juridicamente tuteláveis, assegurando-lhes, com absoluta prioridade em atenção à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, direitos fundamentais, como vida, saúde, educação, dentre outros. (CABRERA, 2006) Acerca dessa nova teoria jurídico-protetiva transdisciplinar, Ramidoff (2007) afirma que é extremamente necessário que haja um reordenamento estratégico no campo das políticas públicas capazes de incluir as crianças, os adolescentes e suas famílias no alcance da real satisfação dos seus direitos fundamentais. Em síntese, no que tange à infância e a juventude, a igualdade será atingida por meio do tratamento diferenciado, reconhecendo-se a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento ao se aplicar a regra de se “tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” que permite compensar as desigualdades; ou seja, às crianças e adolescentes não se pode aplicar as medidas cabíveis aos adultos. (SHECAIRA, 2008) 3.4 LEI DA MENINO BERNARDO A Lei n. 13.010/14 que recebeu a alcunha de “Lei da Palmada”, mas foi sancionada com o nome de Lei Menino Bernardo, alterou a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Base da Educação). 33 Ao analisar a lei em comento, percebe-se que o seu teor não distingue muito do que já era adotado pelo Estatuto da Criança e do adolescente, a nova legislação tem apenas o caráter complementar, visando trazer maior conscientização aos cidadãos - Estado, pais e sociedade - acerca da necessidade urgente de guardar e respeitar as crianças e adolescentes. A lei da palmada aprofunda mais a concepção de violência doméstica contra criança, ao tipificar o castigo físico – considerado moderado e aceito pela sociedade, também como violação dos direitos da infância. A deputada Teresa Surita, relatora do projeto da Lei da Palmada, em entrevista à Revista Crescer, esclarece a necessidade de sua criação: Essa é uma lei educativa. O nosso objetivo maior é a mudança dos valores da sociedadeporque o Brasil tem a cultura do bater. Na década de 50, as crianças e adolescentes apanharam muito. Existia a palmatória na escola, o castigo de ajoelhar no milho, que, felizmente, foram se transformando. Hoje, a família não admite que ninguém bata. A babá não pode bater nem a escola, mas os pais querem ter esse direito porque acham que a surra ou a palmada vão educar, mas já está comprovado de que bater não educa. Não existe palmada pedagógica. Quando você agride uma criança, está causando medo, não reflexão, muito menos educação. Se você for em qualquer pronto- socorro ou em delegacias, vai se deparar com casos de violência em crianças. Em casos como esses, os pais agressores serão encaminhados para assistência psicológica e psiquiátrica. [...] Essa preocupação cabe ao Estado porque têm crianças que morrem por maus-tratos e agressão. Mas tudo começa com a palmada. A maioria dos Conselhos Tutelares não dá continuidade para casos de violência. Nós estamos trabalhando na reeducação da sociedade, na mudança de cultura. Estima-se uma mudança cultural através de denúncias de violência contra o infante, contando com testemunhos de terceiros, como vizinhos, parentes, funcionários, assistentes sociais que certifiquem o castigo corporal e que tenham intenção de denunciar o responsável ao Conselho Tutelar. Ressalta-se que as punições de casos de violência mais grave já estão abarcados no Código Penal e no próprio ECA, haja vista, que o propósito da lei em comento é a elaboração de campanhas educativas destinadas a conscientizar o público sobre a ilicitude do uso da violência contra criança e adolescente, ainda que sob a alegação de propósitos pedagógicos. (QUADROS, 2015) 34 4.0 QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS REFERENTES A CRIANÇAS VITIMADAS 4.1 DEPOIMENTO SEM DANO O chamado Depoimento Especial, também conhecido como Depoimento Sem Dano (DSD) é um projeto do Rio Grande do Sul, que posteriormente foi transformado em projeto de lei (PL 7.524/2006), pela deputada Maria do Rosário, PT/RS e no dia 04 de abril de 2017 (lei nº 13.431) foi sancionado pelo presidente Michel Temer. O sistema de escuta judicial, chamado “Depoimento Sem Dano”, trabalha com a Polícia, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Poder Judiciário e com um serviço técnico especializado, que faz a ouvida da criança/adolescente em um espaço próprio, protegido e especialmente projetado para o delicado momento do depoimento infanto- juvenil. O trabalho dessas pessoas é esclarecer se fatos investigados pela justiça ocorreram ou não, no que eles se constituem, se são ou não reprováveis ao olhar da lei, bem como quem os praticou. O DSD é comprometido em dar efetividade ao direito que toda criança/adolescente tem de esclarecer ao sistema de justiça, com suas próprias palavras, fatos que lhe dizem respeito - Convenção Internacional dos Direitos da Criança, art. 12 -, valorizando este momento, tornando adequada e positiva a intervenção judicial. (JUNIOR E CEZAR, 2009) Um dos grandes defensores desse método de depoimento é Trindade (2011), que acredita que apesar do sistema ter leis de proteção à criança as executam de maneira que a revitimize: A doutrina da proteção integral é plenamente incompatível com instrumentos jurídicos que visem a revitimização da criança e do adolescente. Ainda que não se tenham dados rigorosamente confiável a respeito, não é raro que uma criança, pretensamente vítima de abuso, seja ouvida diversas vezes sobre o mesmo fato: pelo Conselho Tutelar, pelo serviço de orientação da Escola, pela Delegacia de Polícia, pelo Ministério Público, pelas avaliações psicológicas e periciais e, finalmente, em juízo. A multiplicidade dessas oitivas, sem dúvida nenhuma fragiliza a prova, revitimizando a criança e favorecendo a absolvição pelas contradições existentes entre os múltiplos depoimentos. O programa do Depoimento com Redução de Dano, ainda que passível de muitas 35 críticas, tem sido uma das alternativas apresentadas para diminuir o sofrimento da vítima. A fim de diminuir o número de oitivas e incorrer em fragilização da prova e revitimização da criança, o depoimento, desse modo, é dividido de forma dinâmica em três etapas que consistem exatamente no acolhimento inicial, no depoimento ou inquirição e no acolhimento final e encaminhamentos. (FURNISS, 1993) Por conta da impossibilidade de desprezo dos princípios norteadores do processo penal, considera-se que o projeto Depoimento Sem Dano “não introduz um novo procedimento na justiça brasileira, já que apenas modifica a forma de conduzir a inquirição de crianças”. Acerca do procedimento Leite (2008), demonstra que: Iniciada a audiência, o depoimento transcorre de acordo com a normativa processual, ou seja, primeiramente o Juiz faz as perguntas e, em seguida, as partes formulam as perguntas, as quais, uma vez deferidas pelo Juiz, são por este formuladas ao depoente. Neste caso, o juiz o faz indiretamente, já que dirige as perguntas ao profissional que está com um ponto de escuta e este, por sua vez, repassa à vítima, adequando-a ao vocabulário desta, o que [...] se torna possível pela capacitação técnica. No mesmo seguimento, Jorge Trindade (2009), apresenta a dinâmica do Depoimento Especial: Para os profissionais do direito que têm a missão de julgar, pode ficar a dúvida se os sinais percebidos – as provas – são mesmo indicadores suficientes do abuso. A questão, de fato, é muito complexa e, como já referido, envolve segredos e violações. Na produção da prova, que dificilmente é material, torna-se claro que o recurso ao uso da avaliação psicológica é fundamental, pois ela viabiliza um conhecimento mais abrangente da violência e suas repercussões na criança. Os psicólogos têm um conhecimento específico que possibilita encaminhar de forma adequada os procedimentos que envolvem a criança vítima de abuso. Eles também podem contribuir para o exame da credibilidade do depoimento, evitando que a criança tenha que ser ouvida muitas vezes e em diferentes esferas (delegacia policial, conselho tutelar, Ministério Público e Juízo). Ademais, é útil, nesses casos, avaliar o abusador e estimar a sua capacidade de reincidir ou de se recuperar. A inovação trazida à tona pela lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017 é a operacionalização da coleta do depoimento, visto que passaria a ser realizado por técnicos com formações diferenciadas, não diretamente pelo Juiz ou demais 36 operadores do direito. Em prosseguimento, (LUMATTI, 2012) afirma que o Depoimento Sem Dano emerge com a função de minimizar os efeitos traumáticos da “exposição e repetição demasiada da criança e adolescente aos trâmites judiciais necessários à condenação do agressor”. 4.2 PROJETO AMPARE O Ampare é uma instituição de abrigamento infantil, não governamental mantido exclusivamente por meio de doações, que acolhe, cuida e educa crianças e adolescentes com idades de 0 a 18 anos. Teve sua origem no ano de 2011, no Município de Santa Cruz Cabrália – Bahia, quando o pastor Otto Saffran foi procurado pelo Poder Judiciário do Município de Porto Seguro - Bahia, mais precisamente a Vara da infância e da Juventude, para suprir uma demanda de acolhimento de várias crianças e adolescentes que se encontravam em um abrigo irregular que fora fechado devido a ocorrência de um incêndio, nas dependências do mesmo. A finalidade da instituição é prestar serviços de acolhimento provisório, no modelo “abrigo institucional”, para crianças e adolescentes de ambos os sexos, de 0 a 18 anos, afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva de abrigo (ECA Art. 101). De acordo, com o Pastor Edgar, responsável pela Unidade de PortoSeguro, os objetivos do Ampare são: • Prestar serviços de acolhimento a crianças e adolescentes de 0 a 18 anos, em situação de abandono ou cujas famílias ou responsáveis encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir as suas funções de cuidado e proteção até que sejam viabilizados retorno à família de origem prioritariamente ou, na impossibilidade, à família substituta; • Assegurar as crianças e adolescentes os seus direitos estabelecidos nos art. 90 a 94 da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e Adolescente; • Promover e estimular o desenvolvimento do pleno exercício da cidadania, bem como resgate socioeconômico dos segurados excluídos da sociedade. Atualmente, em 2017, o projeto conta com duas unidades de atendimento localizadas uma no Município de Porto Seguro e a outra em Santa Cruz Cabrália, com estrutura para atender até vinte crianças e adolescentes cada. Atualmente são 37 atendidas 3 crianças e 9 adolescentes em Porto Seguro e 7 crianças e 8 adolescentes em Santa Cruz Cabrália. O acompanhamento das crianças e adolescentes é iniciado logo no ato de recebimento da criança/adolescente, onde é observada a demanda com relação à alimentação, existência traços de violência sofrida, e verificada também a condição de saúde da mesma, em seguida é gerado um Plano Individual de Atendimento onde constarão todos os dados fornecidos pela porta de entrada do mesmo (Conselho Tutela ou Vara da Infância), em seguida é feita a matrícula escolar na rede pública da localidade, colocada todas as vacinas em dia, atendimento feito pelo PSF (Posto de Saúde da Família) local, e em casos necessários atendimento feito pelo CAP’s IA do Município. Durante os anos de funcionamento a instituição já recebeu tanto, casos de crianças que foram entregues pelos familiares para adoção, quanto casos de vítimas da violência intrafamiliar que teve intervenção estatal para resguardar os seus direitos, de acordo com o responsável pelo Ampare de Porto Seguro normalmente as crianças que são entregues voluntariamente já foram maltratadas. Além desses, existem também casos de falecimento dos genitores, porém em menor número. O tempo de abrigamento está relacionado à possibilidade ou não de reintegração à família de origem ou família extensa ou ainda família substituta (adoção), sendo o tempo de acordo com resolução judicial, existem casos no Ampare que a criança completou a maioridade e continuou no abrigo como voluntário. Quase todos os acolhidos sofreram a total quebra de direitos através de todos os tipos de violência, apesar de receber crianças que sofreram diversas formas de maus-tratos, os casos de violência sexual existem em menor escala. No passado teve o caso de duas irmãs, uma de oito anos e outra de nove, que eram vendidas como prostitutas para que os pais pudessem satisfazer seus vícios, hoje estas meninas já se encontram adotadas e vivem em uma família feliz e bem estruturada, esqueceram seu passado e vivem uma vida normal. Também, existem os casos de algumas crianças que chegaram desenganadas pela medicina, se recuperaram e estão em lares adotivos e vivem bem. Um dos casos mais chocantes que o Ampare já presenciou foi de uma criança de apenas seis meses chegou com uma costela quebrada, órgãos internos machucados, desnutrição em último grau, o médico que o 38 atendeu lhe deu apenas cinco dias de vida, hoje ele tem três anos. Em suma, todos os casos de atendimento da instituição têm um histórico de violência. 39 CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa analisou a fenomenologia da violência doméstica contra criança, tendo como foco principal o estudo da legislação, em especial a brasileira, no que tange a prevenção e redução a pratica da violência infantil por meio da Proteção Integral à criança vítima de todos os tipos de violência demonstrando que é perfeitamente possível preservar os direitos e garantias fundamentais asseguradas a criança. É notável que a legislação no ordenamento jurídico brasileiro em prol da proteção da criança, já teve significativos avanços. A noção de criança objeto foi perdendo lugar, no decorrer dos últimos séculos, para a concepção de criança, sujeito de direitos e que tem todas as suas garantias resguardadas nos diplomas legais. Salienta-se que a mudança principal no que diz respeito ao assunto, ocorreu com o advento da constituição Federal de 1988, que foi de grande relevância no ordenamento jurídico, que anteriormente, tinha como enfoque o abandono e isolamento das crianças, não havia garantia aos direitos fundamentais. Essa alteração de concepção ao olhar para a infância, veio com a Constituição cidadã e posteriormente o Estatuto da Criança e do adolescente, que também adotou a Proteção Integral, que melhor garante a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes. A pesquisa também demonstrou que tanto em âmbito nacional quanto regional, estão sempre surgindo mecanismos coibidores de violência, que buscam proteger as crianças em situações de maus-tratos e amparar e resguardar aquelas que sofreram algum tipo de violência. Para que esse fenômeno da violência seja removido, é necessário que todos os setores da sociedade, mobilizem-se, com um objetivo, que supere o individualizado. Toda a sociedade deve está comprometida em promover e empreender uma mudança cultural em médio e longo prazo. Os princípios de uma educação saudável e não violenta devem ser cada vez mais incentivados e disseminados. 40 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARO, Sarita. Crianças vítimas de violência: das sombras do sofrimento á genealogia a resistência. Uma nova teoria científica. Porto Alegre: 2014. ANDRADE, A. A criança na sociedade contemporânea: Do “ainda não” ao cidadão em exercício. Revista Psicologia, Reflexão e Crítica, v. 11, n. 1, 1998. ÁRIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ______. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006. Assembleia Geral das Nações Unidas. Um fim à violência infantil. 23 de agosto de 2006. Disponível em <https://www.unicef.org/brazil/pt/Estudo_PSP_Portugues.pdf>. Acesso em 04 de setembro de 2017 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Inquirição da criança vítima de violência sexual: proteção ou violação de direitos?. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. AZEVEDO, Maria A. Guerra, Viviane Azevedo (org.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1998. Backes DL. Indicadores de maus-tratos em crianças e adolescentes para uso na prática de enfermagem. Porto Alegre: Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 1999. Disponível em: <http://www.pericias-forenses.com.br/indic.htm>. Acesso em 04 de setembro de 2017 BASTOS, Angélica Barroso. Direitos humanos das crianças e adolescentes: as contribuições do Estatuto da Criança e do Adolescente para a efetivação dos direitos humanos infanto-juvenis. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Belo Horizonte, 2012 BELLONI, M. L. O que é sociologia da infância. Campinas. Autores Associados, 2009. BERLINI, Luciana Fernandes. Lei da Palmada: Uma análise civil sobre a Violência Doméstica Infantil. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. 41 BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para a educação infantil / Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, 1998. ______.
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