Buscar

A ORIGEM DO TALIBA

Prévia do material em texto

A origem do Talibã 
 
“Logo após concluir a criação do mundo, Deus deparou-se com uma enorme quantidade de 
restos. Eram pedregulhos soltos, de vários tamanhos e que não encaixavam com nada. Deus 
empurrou aquelas sobras despejando-as num canto do mundo. Com isto, criou o Afeganistão.” 
(Mito pashtun explicativo da origem do Afeganistão) 
 
Os ingleses da era colonial os chamavam coletivamente de pathans. Segundo eles, uma 
raça guerreira irredutível e obstinada que habitava as áreas do norte do Raj indiano e o remoto 
Afeganistão. Hoje em dia, quando designados deste modo, geralmente reagem de forma 
indignada. O nome correto é pashtun. Muçulmanos sunitas devotos, faladores da língua pashto e 
que se gabam descender dos filhos de Qais, um dos companheiros de Maomé, o mensageiro de 
Deus, integrante da comunidade islâmica original. Em nossos dias, os pashtun representam o 
maior grupo étnico do Afeganistão, alcançando aproximadamente 44% da população. Suas 
tribos espalham-se pelas áreas do sul do país, com concentrações em torno da cidade de 
Kandahar. Os pashtun vivem ainda em grande número no visinho Paquistão – especialmente na 
Província da Fronteira Noroeste, no Vaziristão e no Baluchistão. Bastante inclinados à carreira 
das armas, soldados de origem pashtun representam 20% das Forças Armadas do Paquistão. 
Os pashtun configuram também o maior grupo tribal do mundo. As tribos pashtun do 
Afeganistão se dividem em dois grandes ramos: os Ghilzai e os Abdali – que após o século XVIII 
trocaram sua designação de Abdali para Durrani. Adotaram o nome do mais importante rei da 
história do Afeganistão, Ahmad Shah Durrani. Em 1747, o conselho das tribos pashtun, a Loya 
Jirga – escolheu Durrani, do ramo Abdali, para o cargo de rei. Diz o mito que a principal razão que 
pesou para a seleção de Durrani foi o fato dele manter-se em silêncio ao longo de todo o 
encontro. Enquanto vários chefes tribais enalteciam suas próprias qualidades, Durrani quedava-
se impassível e discreto. Parecia desinteressado do assunto e enfadado com toda aquela 
arenga. Um dos líderes da Jirga, impressionado por tal comportamento, ergueu-se e sugeriu o 
nome de Durrani para o posto. Afirmou que o mesmo possuía dois importantes predicados para o 
exercício do cargo: era modesto e jamais falava demais. Assim, aclamado pelos líderes 
convencidos por aqueles argumentos, Durrani, sempre em silêncio, assentiu e tornou-se rei. 
Durrani falava pouco e fazia muito. Revelou-se um chefe guerreiro de fibra, bem ao gosto 
dos líderes tribais que o elegeram. Durante o seu reinado, consolidou a primazia pashtun em 
todo o Afeganistão, combateu e derrotou os exércitos da Confederação dos Mahrattas na Índia, 
impôs o controle pashtun sobre a Caxemira e seus domínios alcançaram as fraldas das 
montanhas do Tibete. Quando morreu, seu corpo foi sepultado numa mesquita situada na cidade 
de Kandahar. Nos anos que se seguiram, a mesquita converteu-se em lugar de peregrinação dos 
pashtun que devotamente oravam em torno da tumba de Durrani, Os resultados das proezas de 
Durrani se desfizeram pouco depois de sua morte. Mas a impressão deixada foi duradoura. Para 
muitos, os tempos de Durrani marcaram a era do ouro dos pashtun. 
No século XIX, enquanto os ingleses consolidavam seu poderio no Subcontinente 
Indiano, os russos avançavam céleres pela Ásia Central. Direta ou indiretamente os dois impérios 
se digladiavam. Além da Ásia Central, os russos lançavam olhares gordos na direção dos 
despojos do combalido Império Otomano. Queriam a Criméia, o domínio dos Estreitos e 
Istambul. Os ingleses criavam-lhes toda a sorte de empecilhos. Os russos respondiam 
fomentando encrencas na Índia Britânica. No meio da bulha, quedava-se o Afeganistão. 
Ao tutelar as áreas do norte do Subcontinente Indiano, os ingleses dividiram os velhos 
territórios das tribos pashtun. Parte deles vivia governando o próprio nariz no Afeganistão 
enquanto a outra parte passaria a existir sob a égide da Pax Britannica. Os pashtun dificilmente 
se conformariam com isto. Como era possível que estrangeiros infiéis se metessem em seus 
negócios? Os pashtun eram divididos em ramos, os ramos eram divididos em tribos, as tribos 
eram divididas em clãs – denominados khels – e todos obedeciam o pashtunwali – o código de 
conduta reconhecido pelas tribos. O pashtunwali regulava as disputas ligadas aos assuntos mais 
importantes da vida: zar, zam e zamin – isto é, ouro, mulheres e terras. Pelo código, um pashtun 
que se sentisse ofendido, podia buscar uma satisfação de sangue, o badal. A família e o clã 
viam-se obrigados a prestar solidariedade ao membro que exigia o reparo de sua honra. Só as 
crianças, as mulheres e os hóspedes estavam livres do badal. Assim, os clãs frequentemente 
envolviam-se em rixas violentas, que persistiam por longo tempo, alimentadas pela necessidade 
da satisfação da honra, pelo badal. 
Os ingleses, naturalmente, tentavam limitar ou eliminar as rixas nas terras sob a sua 
tutela. Queriam impor a ordem – um tipo de ordem totalmente estranha aos usos das tribos. Os 
pashtun resistiam invariavelmente a tal interferência nas suas tradições. Os russos se 
aproveitaram disso. Forneciam dinheiro e armas no suporte dos levantes pashtun. O 
desassossego inglês era infindável. Tropas foram estacionadas permanentemente nas regiões do 
Raj habitadas pelos pashtun. Mas de nada adiantava tentar enquadrar apenas os clãs que viviam 
em território britânico. Os bandos de guerreiros, quando viam-se em apuros, simplesmente 
cruzavam a fronteira e entravam no Afeganistão. Lá, sempre contavam com o santuário garantido 
por seus parentes. Pashtunwali e badal como de hábito . Por duas vezes os ingleses tentaram 
resolver de uma vez por todas a encrenca afegã e tornar o país um Estado amigável e dócil 
governado por um rajá ou marajá paralisado pela engorda dos subsídios britânicos. Duas 
Guerras Afegãs – 1839/1842, 1878 /1880 – duas derrotas inglesas. 
O resultado de tais reveses foi um modus vivendi inusitado para os organizados ingleses. 
Dentro dos territórios do Raj, os pashtun viveriam deixados em paz cuidando de seus negócios.1 
De vez em quando, expedições militares percorriam as áreas tribais em força recolhendo armas e 
munições. A fronteira com o Afeganistão seria permanentemente vigiada, com destaque para a 
principal via de acesso, o famoso Passo Khyber. O Exército Anglo-Indiano procurava assim filtrar 
o ir e vir na fronteira e conter o contrabando. Porém, o cimo dos penhascos íngremes que 
cercavam o Passo Khyber era território dominado pelos indóceis pashtun da tribo dos Afridis. Os 
governos britânicos procuravam manter os Afridis sossegados por meio da distribuição de 
estipêndios regulares aos diversos khels da tribo. Porém, no momento em que a dinheirama por 
alguma razão secava, as guarnições do Exército Anglo-Indiano e as caravanas que cruzavam o 
passo voltavam a ser alvejadas por atiradores Afridis que nunca dormiam na pontaria. A criativa 
exploração dos negócios de transporte e manutenção do Passo Khyber tornara-se um modo de 
vida para muitos Afridis. 
 
O fim da monarquia e o Jihad contra os soviéticos. 
No ano de 1973, por meio de um golpe palaciano, o rei pashtun do Afeganistão, Zahir 
Shah foi derrubado do poder por um parente e a república foi instaurada no país. Assim, durante 
a república a influência soviética se intensificou no Afeganistão, culminando com a invasão em 
dezembro de 1978. 
No Afeganistão, golpes palacianos e invasores conquistando Kabul, na verdade, são 
capazes de resolver quem possui o controle da cidade-capital e, rigorosamente, mais nada. 
Quanto ao resto do país a história é muito diferente. Os vários grupos étnicos zelavam por manter 
omáximo possível de autonomia. Os mais importantes, além dos pashtun, são os tadjiques – 
 
1 Tudo indica que tal estado de coisas se mantém em nossos dias. Os territórios pashtun fora do 
Afeganistão pertencem ao Paquistão. Contudo, nas denominadas “Áreas Tribais” o governo paquistanês 
não exerce sua autoridade soberana plenamente. 
aproximadamente 26%, os hazaras – 9,3%, os uzbeques – 8,7% e os turcomenos – 3,3%. 
Existem ainda pelo menos mais três grupos étnicos – os aimaks, os baluches e os nuristanis, mas 
nenhum deles alcança 1% da população.2 
Os tadjiques são muçulmanos sunitas que falam uma língua derivada do farsi – o idioma 
persa – chamada dari. Tradicionalmente a etnia tadjique forneceu os mais importantes 
intelectuais, não só do Afeganistão, mas de toda a Ásia Central. A história dourada dos 
esplendores das altaneiras cidades de Samarcanda e Bukara foi uma saga artística e intelectual 
basicamente vanguardeada pelos tadjiques. Assim sendo, o dari é uma espécie de língua franca 
e elegante naquelas plagas. As concentrações do povo tadjique situam-se no norte do 
Afeganistão, sendo que algumas de suas comunidades se espalham pelo oeste do país. Muito 
embora Kabul seja a capital, a cidade mais intelectualizada e cosmopolita do Afeganistão é 
Herat, no oeste – povoada fundamentalmente pelos tadjiques. 
Durante a invasão soviética, os tadjiques pegaram em armas e aderiram ao chamado do 
Jihad. De seu povo saiu o mais talentoso comandante militar dos mudjahedeen, Ahmad Shah 
Massoud, o “Leão do Panjshir”. Massoud foi aluno de um Liceu francês e estudante de 
engenharia. Era um homem muito articulado que falava fluentemente o dari, o urdu, o pashto, o 
híndi e o francês. Saia-se muito bem em inglês também. Durante a guerra contra os soviéticos, 
defendeu com sucesso o Vale do Panjshir, sua terra natal, ao norte de Kabul. Sovou os 
comunistas e ganhou reputação. O Irã, temeroso da consolidação do poder russo no Afeganistão, 
enviou armas e equipamento para as tropas de Massoud. Em 1989 as forças soviéticas retiram-
se do Afeganistão. Três anos depois, Massoud e seus tadjiques, aliados aos uzbeques 
conquistaram Kabul derrubando o que restava do regime comunista aliado aos soviéticos. 
A religiosidade de Massoud era genuína e foi a fonte de sua adesão à luta contra os 
soviéticos. No campo da reconstrução nacional, os tadjiques de Massoud sonhavam com um 
novo governo afegão que contasse com os representantes de todas as etnias do país. Não 
concordavam com a repetição de uma mera hegemonia pashtun e desconfiavam da interferência 
paquistanesa e da presença no país dos jihadistas árabes – ambos preferencialmente apoiavam 
ou combatiam ao lado dos grupos mudjahedeen pashtun. 
Os hazaras, muçulmanos xiitas, descendem de uma combinação entre as linhagens 
mongol e tibetana. Vivem no centro do país e por muito tempo foram tratados quase como párias 
 
2 Ver: SELLIER, Jean et SELLIER, André. Atlas des peuples D`Orient. Paris, La Découverte, 2002. 
pelos demais grupos étnicos. Em parte por causa de sua adesão ao xiismo, em parte devido a seu 
aspecto físico muito particular que não se assemelha com o das demais etnias afegãs. Durante o 
Jihad contra a URSS, os hazaras organizaram uma milícia liderada por Karim Khalili. 
Os uzbeques formam um povo que, no que tange à arte guerreira é temido em toda a Ásia 
Central. Combatem de forma pertinaz, impiedosa e ousada. São muçulmanos sunitas de fala 
turca. No Jihad contra a URSS formaram suas próprias milícias que envergavam uma tradição de 
ter guerreado contra os russos desde os tempos do czarismo e contra os comunistas desde os 
tempos da Revolução Bolchevique. O Exército Soviético, durante a ocupação do Afeganistão, 
transferiu para o país unidades de combate uzbeques originárias da República Socialista 
Soviética do Uzbequistão. Após a retirada soviética, muitos dos uzbeques não-afegãos 
continuaram no Afeganistão, pois não desejavam parar de guerrear. Mudaram de lado e 
aderiram à milícia uzbeque liderada pelo general Rashid Dostum. Como foi dito antes, aliados 
aos tadjiques, a milícia uzbeque de Dostum assumiu o controle de Kabul. Com a posse da capital 
e formando um novo governo provisório, imaginava-se que poderiam negociar a partir de uma 
posição de força com os líderes pashtun. 
Um dos problemas é que as tropas uzbeques e tadjiques portaram-se muito mal logo que 
tomaram a cidade. Saques foram promovidos, mulheres atacadas, prisioneiros eram executados 
sumariamente e pashtun da capital foram perseguidos, roubados e às vezes assassinados. O 
outro problema consistia na ação das forças políticas e das rivalidades das potências daquela 
região do mundo. O governo indiano não assistiria impassível ao aumento da influência 
paquistanesa no Afeganistão. Assim, passou a apoiar os tadjiques de Massoud – que contavam 
também com o suporte iraniano – e os uzbeques de Dostum. Era a resposta indiana à parceria 
paquistanesa-pashtun. 
Quanto aos pashtun, o seu posicionamento geográfico concentrado no sul do país 
privou-os de um naco na partilha do poder em Kabul. O perigo era que pela primeira vez, desde 
os tempos de Emir Durrani, os pashtun encontravam-se alijados do centro do poder. Ao saberem 
das notícias relativas à perseguição contra os pashtun de Kabul movida pelos tadjiques e 
uzbeques, imediatamente apontaram suas armas contra os donos do poder provisório. O Jihad 
contra os comunistas convertia-se em nova guerra civil. Na época do Jihad anti-soviético, os 
pashtun formaram uma grande quantidade de milícias mudjahedeen. A mais importante delas 
era liderada pelo general Gulbuddin Hekmatyar, um membro da tribo Kharoti do ramo Ghilzai. A 
força de Hekmatyar era provida pelo Paquistão. Durante quase todo o período do Jihad, 
Hekmatyar foi considerado “a menina dos olhos” do ISI – Inter-service Inteligence – o todo-
poderoso sistema de inteligência do Exército Paquistanês. Boa parte da ajuda americana para os 
freedon-fighters do Afeganistão intermediada pelo ISI era despejada na milícia de Hekmatyar. 
Portadora de recursos desta monta, a milícia de Hekmatyar, porém, atuava de forma 
menos formidável do que deveria. Para uns, era porque os rapazes do general Hekmatyar 
entretinham-se mais no ato de tirotear contra outros grupos afegãos do que combater os russos. 
Para outros, o problema era que na sua senda em direção ao poder, Hekmatyar entendia como 
justo o desvio de parcela dos recursos para si próprio. Em resumo, Hekmatyar não se 
apresentava como uma liderança confiável sequer aos olhos dos pashtun. 
Desse modo, o sul do Afeganistão foi tomado por uma enorme quantidade de milicianos 
pashtun bem armados e valentões. Combatiam entre si pela posse dos vilarejos, aeroportos, 
depósitos de víveres e por tudo que podia resultar em alguma vantagem. Esqueceram de suas 
obrigações em proteger o povo, oprimindo-o cruelmente. De forma gaiata, apossavam-se 
arbitrariamente do zar, zam e zamin. Continuavam a ostentar o glorioso título de mudjahedeen, 
mas esqueceram-se lamentavelmente do Islã. Alguém logo iria se encarregar da tarefa de 
ensiná-los a pararem de esquecer. 
 
O Talibã 
“Nós combatemos muçulmanos que agem errado. Como poderíamos permanecer 
quietos quando assistíamos crimes sendo cometidos contra as mulheres e os pobres?” (Frase 
explicativa das motivações para a formação do Talibã proferida pelo mullah Mohammed Omar, 
no melhor estilo Robin Hood). 
 
Talib significa “estudante do Islã”. Talibã é o plural de talib. Dizem no Afeganistão que o 
iniciador do movimento Talibã foi o mullah Mohammed Omar – que continua emnossos dias 
liderando o movimento. Omar nasceu em 1959 em Nadesh, um vilarejo próximo a Kandahar. 
Pertencia a uma família pobre integrante da tribo Hotak do ramo Ghilzai. Seu pai morreu 
prematuramente e Omar cedo assumiu o sustento da família. Tal qual seus parentes, Omar 
trabalhou nos campos e estudou numa pequena escola islâmica – uma madrassa – próxima a 
seu vilarejo. Identificou-se fervorosamente com a religião, decorando com afinco passagens e 
mais passagens do Corão. Ao alcançar a idade adulta, Omar resolveu tornar-se um mullah e 
abriu uma pequena madrassa. No final do ano de 1978, com a invasão soviética, Omar aderiu ao 
Jihad. Combateu pela milícia do partido Khali Hizb-e-Islammi sob o comando de Nek 
Mohammed. Durante o Jihad, Omar foi ferido quatro vezes, perdendo um olho e alguns dedos das 
mãos. Em seu grupo de combate, destacou-se como um exímio artilheiro de RPG – arma lança-
foguetes anti-carro de projeto russo, que devido à razoável leveza e facilidade de uso caiu no 
gosto dos guerrilheiros do mundo inteiro. As obrigações do Jihad não impediram Omar de 
contrair matrimônio. Hoje em dia sabe-se que no total possui três esposas e cinco filhos. 
Com a expulsão dos soviéticos, Omar retomou integralmente às suas obrigações como 
mullah. Para os pashtun de sua região, as marcas de guerra que exibia no corpo eram prova 
inequívoca da intensidade de sua fé. Segundo esse modo de pensar, a perda de um olho em prol 
da causa de Deus valia mais do que uma sofisticada erudição. Contudo o rumo dos 
acontecimentos chamaria Omar novamente às armas. 
A história mais difundida sobre a origem do Talibã conta que em meados do ano de 
1994, vizinhos da aldeia de Singesar procuraram Omar para pedir conselho sobre o que fazer em 
face a um grave acontecimento. Nos vilarejos pashtun do Afeganistão, esse é um serviço 
constantemente solicitado aos mullahs devotos – prestar conselho. O grave acontecimento era 
que duas adolescentes haviam sido raptadas por um grupo de mujahedeen locais. Suas cabeças 
foram raspadas e as moças foram levadas para um campo militar controlado pelos raptores para 
serem estupradas. De acordo com a história, Omar não deu conselho, resolveu agir. Era um 
veterano do Jihad, e muitos de seus talibã eram tão veteranos quanto ele. Reuniu por volta de 
trinta talibã de sua madrassa e dezesseis armas. Liderando o grupo, atacou de surpresa o campo 
dos raptores, resgatou as meninas e, carregando o chefe capturado para um dos vilarejos, 
enforcou-o no alto do cano do canhão de um tanque para que todos vissem. Ao tomarem o 
campo militar, Omar e seus talibã apossaram-se de farta quantidade de armas e munições. 
Alguns meses depois, dois comandantes de mudjahedeen enfrentaram-se na disputa pela posse 
de um menino que desejavam sodomizar. Na luta que se seguiu, nos bairros da cidade de 
Kandahar, vários civis foram mortos. O grupo Talibã de Omar resolveu interferir na refrega. A 
ordem foi restaurada, o menino libertado e muitos dos mudjahedeen receberam aquilo que 
começara a se tornar a punição de praxe: foram enforcados no alto do cano dos canhões dos 
tanques. Daí para frente, o Talibã passou a ser regularmente requisitado para mediar disputas 
locais. O prestígio de Omar crescia, pois prontificava-se a agir sem exigir qualquer recompensa. 
Porém, às pessoas que lhe pediam ajuda, determinava que ajustassem as suas vidas aos 
padrões daquilo que ele e seus talibã imaginavam ser a conduta muçulmana correta. 
 
 
O Talibã e o Paquistão. 
No ano de 1993, estava no comando do governo do Paquistão a primeira ministra 
Benazir Bhutto. Dois anos antes, a URSS implodira e as repúblicas soviéticas da Ásia Central 
tornaram-se independentes. Para o Paquistão, uma ampla oportunidade se abria. Havia chance 
de estabelecer sólidos laços comerciais e de criar uma rede de influência política paquistanesa 
que envolvesse todas as novas repúblicas independentes, solidamente muçulmanas assim como 
o Paquistão. Os novos países procuravam libertar-se da dependência russa e diversificar suas 
relações com o exterior. O Paquistão deveria tentar com afinco assumir o papel de principal elo 
de ligação entre a Ásia Central e o resto do mundo. A ministra sonhava com uma hegemonia 
paquistanesa. 
A principal via de comunicação terrestre entre as novas repúblicas e o Paquistão 
atravessava necessariamente o Afeganistão. Desde o período soviético, caminhões cuja 
propriedade pertencia à máfia de contrabandistas paquistaneses, faziam o transporte de 
mercadorias ilegais usando o eixo de rodovias norte, tendo como ponto de partida a cidade 
paquistanesa de Peshawar, entrando no Afeganistão até Kabul, dali alcançando a cidade de 
Mazar-i-Charif e então a fronteira do Turcomenistão. Tudo dependia da distribuição de propinas 
para as autoridades soviéticas e assim a coisa fluía. 
Mas nos anos 90, o Afeganistão caíra na guerra civil e a rota do norte era controlada 
pelos não confiáveis tadjiques, uzbeques e hazaras. Os pashtun pertencentes ao governo 
paquistanês imaginaram o uso de uma rota alternativa, pelo sul, atravessando, na maior parte, 
aéreas dominadas pelos pashtun. A via começava em Quetta no Paquistão, passando por 
Kandahar, Herat e dali chegando ao Turcomenistão. Havia, contudo, dois problemas: o primeiro 
era que Herat ficava numa região dominada pelos tadjiques. O segundo era que boa parte da 
estrada era controlada por diferentes bandos de mudjahedeen pashtun que cobravam pedágios 
dos caminhões e frequentemente assaltavam as mercadorias e matavam os motoristas. Tudo 
indicava que recorrer ao velho aliado Gulbuddin Hekmatyar não iria adiantar muito. Parte das 
tropas de sua milícia mantinha postos de pedágio e abusavam dos motoristas. Além disso, as 
autoridades internacionais convenceram-se que Hekmatyar, além de comandar um bando de 
saqueadores da pior espécie, era responsável por cometer crimes de guerra durante o conflito 
civil afegão. Não seria uma boa idéia para o Paquistão a confirmação cabal de uma coisa que 
todos já sabiam: a associação entre o governo daquele país e Hekmatyar. Melhor então era a 
postura de manter tais relações em discreto banho-maria. 
Na busca de novos aliados dentro do Afeganistão, de preferência pashtun, o ISI ouvira 
falar do Talibã. Negociações diretas foram abertas entre o serviço de inteligência paquistanês e a 
liderança do movimento. Um primeiro passo, um flerte de abertura. Ao mesmo tempo, garantir 
boas relações com o Talibã parecia ser uma medida interessante, especialmente tendo em vista 
o que se passava dentro do Paquistão. Ao longo do Jihad contra os soviéticos e durante a guerra 
civil que se sucedeu, grande quantidade de pashtun fugiram do Afeganistão e se instalaram em 
campos de refugiados dentro do Paquistão. Estamos falando de um número que oscilava entre 
um milhão e meio a dois milhões de pessoas. Muitos dos homens mantinham-se em permanente 
vai-e-vem cruzando a fronteira para tomar parte no Jihad ou mesmo, depois, na guerra civil. Os 
campos eram mantidos pela ajuda arrecadada pela ONU, pelo próprio Paquistão, ONGs 
internacionais do Ocidente e por doações de diversos governos. No último item dos doadores, 
destacavam-se organizações humanitárias muçulmanas sustentadas pelo governo da Arábia 
Saudita. 
Nos campos residiam milhares de crianças das tribos pashtun afegãs. Essas crianças 
foram separadas de sua terra natal, das tradições de seus khels e vida tribal. Eram os “filhos do 
Jihad”. Se estivessem no Afeganistão, durante toda a meninice, teriam sido educadas 
fundamentalmente pelas mulheres da família que transmitiriam para elas a cultura ancestral. 
Mas nos campos, a responsabilidade pela educação das crianças foi assumida pelas madrassasfinanciadas pelo dinheiro da caridade saudita. Antes de mais nada, nas madrassas, os meninos 
eram separados das meninas. Mesmo o convívio com as mães era intensamente reduzido. As 
mulheres adultas dedicavam-se em cuidar das crianças de colo, procurar incessantemente 
comida ou simplesmente sucumbiam à dureza da vida nos campos e pereciam. No final das 
contas, tudo o que os meninos sabiam sobre as mulheres era resultado daquilo que lhes era 
contado pelos mullahs. 
As madrassas financiadas pelos sauditas eram dirigidas por mullahs dotados de parca 
sofisticação, similar a do mullah Mohammed Omar, o líder do Talibã. Transmitiam uma versão do 
Islã que, na opinião de estudiosos muçulmanos de outros lugares era tosca e simplificada. 
Muitas vezes a Shariah – a lei muçulmana – tinha o seu conteúdo entremeado por superficiais 
interpretações do pashtunwali. Na tradição dos pashtun enraizados em suas tribos, as primeiras 
noções do pashtunwali eram transmitidas para as crianças pelas mulheres. Nos campos os 
meninos só tinham acesso à versão simplória e distorcida dos mullahs intelectualmente 
limitados. 
Os textos religiosos a serem estudados nas madrassas dos campos de refugiados, 
refletiam a versão do Islã wahabita, uma interpretação da religião extremamente rigorosa 
professada pelos sauditas. Nas madrassas, como por encanto, as velhas canções das tribos, os 
usos ancestrais e a própria vida sedimentada na forte solidariedade familiar foi fenecendo nas 
mentes dos meninos. O passado da família, do khel e da tribo foi substituído por um passado 
que os avós e os pais dos garotos jamais viveram. Um novo passado imaginado pelos mullahs 
incultos que tinha como base uma comunidade islâmica original totalmente inventada. Os 
veneráveis campeões das tribos, cujas proezas confirmavam os ditames morais do pashtunwali, 
deram lugar aos combatentes do Jihad que seguiam os preceitos wahabitas. O talib das 
madrassas dos campos ia se tornando um tipo de estudante muito específico - um recruta para o 
movimento Talibã do mullah Omar. 
 
Galgando o poder 
“ Nós pegamos em armas para alcançar os objetivos do Jihad afegão e salvar nosso 
próprio povo de sofrimentos maiores nas mãos dos auto-proclamados mudjahedeen. Nós temos 
fé completa em Deus, o todo-poderoso. Jamais esquecemos disso. Ele pode nos abençoar com a 
vitória ou nos punir com a derrota.” (Declaração do mullah Omar para um jornal paquistanês). 
 
Os arranjos entre o Talibã e o Paquistão avançaram pelo ano de 1994. Os sauditas logo 
concretizaram seu entusiasmo pelo movimento mandando dinheiro e fornecendo o tipo de carro 
de combate preferido nas guerras do Afeganistão contemporâneo: centenas pick-ups de marca 
japonesa 4X4. Restava saber se o Talibã seria capaz de limpar as estradas e proteger os 
comboios de caminhões paquistaneses. No mês de outubro daquele ano, o ISI transmitiu ao 
Talibã uma informação quanto a existência de um grande depósito de armas e munições 
fornecidas aos mudjahedeen de Hekmatyar pelo Paquistão na localidade de Spin Baldak. O 
Talibã atacou o posto capturando armas e munições suficientes para equipar dez mil homens. Na 
mesma época, as companhias de transporte do Paquistão, por conta própria, ofereceram ao 
Talibã um polpudo estipêndio regular, dezoito mil Kalashnikovs, algumas peças de artilharia, 
munição e vários veículos militares no caso do Talibã se comprometer com a abertura das 
estradas. 
Em 29 de outubro de 1994, os paquistaneses organizaram um grande teste. Um 
comboio de oitenta caminhões dirigidos por motoristas que haviam pertencido ao exército foi 
enviado para cruzar a rota do sul. No comboio viajava o comandante do ISI na região, o coronel 
Imam. Ao atingir Takht-e-Pul, uma área que fica a trinta quilômetros de Kandahar, próxima ao 
aeroporto, o comboio foi detido por forças lideradas pelos senhores da guerra Amir Lalai, Mansur 
Achakzai e Ustad Halim. Os comandantes queriam dinheiro e uma parte das mercadorias. 
Desejavam ainda que o Paquistão parasse de apoiar o Talibã. 
Em face ao problema, o governo do Paquistão elaborou três opções para liberar o 
comboio: a) enviar o Grupo de Serviços Especiais – a força de comandos do Exército 
Paquistanês; b) ordenar que uma tropa de pára-quedistas saltasse na área; c) solicitar que o 
Talibã resgatasse o comboio. 
Como se tratava de um teste, a terceira opção foi escolhida. No dia 3 de novembro, o 
Talibã atacou e liberou o comboio. Mansur Achakzai foi caçado deserto adentro, capturado e 
executado juntamente com dez guarda-costas. Desnecessário dizer que seu cadáver foi atado 
pelo pescoço no alto do cano de um canhão, etc, etc. Na mesma noite, o Talibã moveu-se contra 
Kandahar e atacou as forças do principal comandante da cidade, o mullah Naquib. Em poucas 
horas seus dois mil e quinhentos homens se renderam. O Talibã capturou uma substancial 
quantidade de veículos, armas e munições. Apossaram-se ainda de seis caças MIG-21 e seis 
helicópteros de transporte. Graças ao estímulo paquistanês e saudita, o Talibã tornara-se dono 
da segunda maior cidade do Afeganistão, Kandahar e assumira o controle do coração do país 
dos pashtun. 
Em dezembro de 1994, aproximadamente doze mil rapazes afegãos e paquistaneses da 
etnia pashtun, oriundos de madrassas situadas na Província da Fronteira Noroeste e no 
Baluchistão, portando documentos fornecidos pelo governo paquistanês, cruzaram a fronteira 
para se unir ao Talibã em Kandahar. No ano seguinte, o Conselho de Segurança da ONU declarou 
que o Talibã representava uma força que poderia restaurar a ordem no Afeganistão. O serviço de 
inteligência dos Estados Unidos – a CIA – pensava a mesma coisa. Recebida na Casa Branca e 
indagada pelo presidente Bill Clinton quanto ao envolvimento paquistanês com o Talibã, a 
primeira ministra Benazir Bhutto negou peremptoriamente qualquer ligação e afirmou que o 
Talibã era um assunto exclusivamente afegão. 
Uma vez em Kandahar, o Talibã imediatamente declarou a imposição de sua versão 
muito particular da Shariah. Todos os homens deviam andar com a cabeça coberta e deixar 
crescer a barba. O teatro e o cinema foram proibidos. Nada de música nas rádios ou na tv. Nada 
de competições esportivas em lugar nenhum. Quanto às mulheres, a ordem era para que 
sumissem, isto é, abandonassem seus empregos, ficassem em casa, e no caso de terem de 
circular nas ruas, deviam cobrir o corpo inteiro com as burkhas. 
A conquista de Kandahar foi apenas o primeiro passo. Com suporte saudita e 
paquistanês, o Talibã marcharia adiante. Em Kandahar, reuniu-se a Shura – conselho – do 
Talibã. Os conselheiros ratificaram o nome do Mullah Mohammed Omar como líder supremo. 
Para o Talibã a escolha de Omar não se justificava nem pelo fato dele ser um grande orador, nem 
porque ele fosse um excepcional líder militar. Nas reuniões da Shura, o mullah Omar raramente 
fala, e na luta, sempre cedeu à liderança aos chefes militarmente mais talentosos. O mullah 
Omar foi escolhido em virtude de sua devoção. 
Em termos políticos, à sua maneira, o Talibã perseguiu um objetivo revestido de palavras 
corânicas, mas essencialmente movido por fortes resquícios de interesse tribal: avançar sobre 
Kabul, deslocar os tadjiques e os uzbeques do poder e restaurar a supremacia pashtun em todo o 
país. Para a concretização do projeto, o Talibã, sem sequer esboçar um tímido “obrigado”, 
continuaria a aceitar a ajuda dos amigos. Para alguns desses amigos mais generosos, estenderia 
até as obrigações de hospitalidade do pashtunwali. Essa é a lógica explicativa do vínculo entre o 
Talibã e Osama Bin Laden.

Continue navegando