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A origem do Talibã “Logo após concluir a criação do mundo, Deus deparou-se com uma enorme quantidade de restos. Eram pedregulhos soltos, de vários tamanhos e que não encaixavam com nada. Deus empurrou aquelas sobras despejando-as num canto do mundo. Com isto, criou o Afeganistão.” (Mito pashtun explicativo da origem do Afeganistão) Os ingleses da era colonial os chamavam coletivamente de pathans. Segundo eles, uma raça guerreira irredutível e obstinada que habitava as áreas do norte do Raj indiano e o remoto Afeganistão. Hoje em dia, quando designados deste modo, geralmente reagem de forma indignada. O nome correto é pashtun. Muçulmanos sunitas devotos, faladores da língua pashto e que se gabam descender dos filhos de Qais, um dos companheiros de Maomé, o mensageiro de Deus, integrante da comunidade islâmica original. Em nossos dias, os pashtun representam o maior grupo étnico do Afeganistão, alcançando aproximadamente 44% da população. Suas tribos espalham-se pelas áreas do sul do país, com concentrações em torno da cidade de Kandahar. Os pashtun vivem ainda em grande número no visinho Paquistão – especialmente na Província da Fronteira Noroeste, no Vaziristão e no Baluchistão. Bastante inclinados à carreira das armas, soldados de origem pashtun representam 20% das Forças Armadas do Paquistão. Os pashtun configuram também o maior grupo tribal do mundo. As tribos pashtun do Afeganistão se dividem em dois grandes ramos: os Ghilzai e os Abdali – que após o século XVIII trocaram sua designação de Abdali para Durrani. Adotaram o nome do mais importante rei da história do Afeganistão, Ahmad Shah Durrani. Em 1747, o conselho das tribos pashtun, a Loya Jirga – escolheu Durrani, do ramo Abdali, para o cargo de rei. Diz o mito que a principal razão que pesou para a seleção de Durrani foi o fato dele manter-se em silêncio ao longo de todo o encontro. Enquanto vários chefes tribais enalteciam suas próprias qualidades, Durrani quedava- se impassível e discreto. Parecia desinteressado do assunto e enfadado com toda aquela arenga. Um dos líderes da Jirga, impressionado por tal comportamento, ergueu-se e sugeriu o nome de Durrani para o posto. Afirmou que o mesmo possuía dois importantes predicados para o exercício do cargo: era modesto e jamais falava demais. Assim, aclamado pelos líderes convencidos por aqueles argumentos, Durrani, sempre em silêncio, assentiu e tornou-se rei. Durrani falava pouco e fazia muito. Revelou-se um chefe guerreiro de fibra, bem ao gosto dos líderes tribais que o elegeram. Durante o seu reinado, consolidou a primazia pashtun em todo o Afeganistão, combateu e derrotou os exércitos da Confederação dos Mahrattas na Índia, impôs o controle pashtun sobre a Caxemira e seus domínios alcançaram as fraldas das montanhas do Tibete. Quando morreu, seu corpo foi sepultado numa mesquita situada na cidade de Kandahar. Nos anos que se seguiram, a mesquita converteu-se em lugar de peregrinação dos pashtun que devotamente oravam em torno da tumba de Durrani, Os resultados das proezas de Durrani se desfizeram pouco depois de sua morte. Mas a impressão deixada foi duradoura. Para muitos, os tempos de Durrani marcaram a era do ouro dos pashtun. No século XIX, enquanto os ingleses consolidavam seu poderio no Subcontinente Indiano, os russos avançavam céleres pela Ásia Central. Direta ou indiretamente os dois impérios se digladiavam. Além da Ásia Central, os russos lançavam olhares gordos na direção dos despojos do combalido Império Otomano. Queriam a Criméia, o domínio dos Estreitos e Istambul. Os ingleses criavam-lhes toda a sorte de empecilhos. Os russos respondiam fomentando encrencas na Índia Britânica. No meio da bulha, quedava-se o Afeganistão. Ao tutelar as áreas do norte do Subcontinente Indiano, os ingleses dividiram os velhos territórios das tribos pashtun. Parte deles vivia governando o próprio nariz no Afeganistão enquanto a outra parte passaria a existir sob a égide da Pax Britannica. Os pashtun dificilmente se conformariam com isto. Como era possível que estrangeiros infiéis se metessem em seus negócios? Os pashtun eram divididos em ramos, os ramos eram divididos em tribos, as tribos eram divididas em clãs – denominados khels – e todos obedeciam o pashtunwali – o código de conduta reconhecido pelas tribos. O pashtunwali regulava as disputas ligadas aos assuntos mais importantes da vida: zar, zam e zamin – isto é, ouro, mulheres e terras. Pelo código, um pashtun que se sentisse ofendido, podia buscar uma satisfação de sangue, o badal. A família e o clã viam-se obrigados a prestar solidariedade ao membro que exigia o reparo de sua honra. Só as crianças, as mulheres e os hóspedes estavam livres do badal. Assim, os clãs frequentemente envolviam-se em rixas violentas, que persistiam por longo tempo, alimentadas pela necessidade da satisfação da honra, pelo badal. Os ingleses, naturalmente, tentavam limitar ou eliminar as rixas nas terras sob a sua tutela. Queriam impor a ordem – um tipo de ordem totalmente estranha aos usos das tribos. Os pashtun resistiam invariavelmente a tal interferência nas suas tradições. Os russos se aproveitaram disso. Forneciam dinheiro e armas no suporte dos levantes pashtun. O desassossego inglês era infindável. Tropas foram estacionadas permanentemente nas regiões do Raj habitadas pelos pashtun. Mas de nada adiantava tentar enquadrar apenas os clãs que viviam em território britânico. Os bandos de guerreiros, quando viam-se em apuros, simplesmente cruzavam a fronteira e entravam no Afeganistão. Lá, sempre contavam com o santuário garantido por seus parentes. Pashtunwali e badal como de hábito . Por duas vezes os ingleses tentaram resolver de uma vez por todas a encrenca afegã e tornar o país um Estado amigável e dócil governado por um rajá ou marajá paralisado pela engorda dos subsídios britânicos. Duas Guerras Afegãs – 1839/1842, 1878 /1880 – duas derrotas inglesas. O resultado de tais reveses foi um modus vivendi inusitado para os organizados ingleses. Dentro dos territórios do Raj, os pashtun viveriam deixados em paz cuidando de seus negócios.1 De vez em quando, expedições militares percorriam as áreas tribais em força recolhendo armas e munições. A fronteira com o Afeganistão seria permanentemente vigiada, com destaque para a principal via de acesso, o famoso Passo Khyber. O Exército Anglo-Indiano procurava assim filtrar o ir e vir na fronteira e conter o contrabando. Porém, o cimo dos penhascos íngremes que cercavam o Passo Khyber era território dominado pelos indóceis pashtun da tribo dos Afridis. Os governos britânicos procuravam manter os Afridis sossegados por meio da distribuição de estipêndios regulares aos diversos khels da tribo. Porém, no momento em que a dinheirama por alguma razão secava, as guarnições do Exército Anglo-Indiano e as caravanas que cruzavam o passo voltavam a ser alvejadas por atiradores Afridis que nunca dormiam na pontaria. A criativa exploração dos negócios de transporte e manutenção do Passo Khyber tornara-se um modo de vida para muitos Afridis. O fim da monarquia e o Jihad contra os soviéticos. No ano de 1973, por meio de um golpe palaciano, o rei pashtun do Afeganistão, Zahir Shah foi derrubado do poder por um parente e a república foi instaurada no país. Assim, durante a república a influência soviética se intensificou no Afeganistão, culminando com a invasão em dezembro de 1978. No Afeganistão, golpes palacianos e invasores conquistando Kabul, na verdade, são capazes de resolver quem possui o controle da cidade-capital e, rigorosamente, mais nada. Quanto ao resto do país a história é muito diferente. Os vários grupos étnicos zelavam por manter omáximo possível de autonomia. Os mais importantes, além dos pashtun, são os tadjiques – 1 Tudo indica que tal estado de coisas se mantém em nossos dias. Os territórios pashtun fora do Afeganistão pertencem ao Paquistão. Contudo, nas denominadas “Áreas Tribais” o governo paquistanês não exerce sua autoridade soberana plenamente. aproximadamente 26%, os hazaras – 9,3%, os uzbeques – 8,7% e os turcomenos – 3,3%. Existem ainda pelo menos mais três grupos étnicos – os aimaks, os baluches e os nuristanis, mas nenhum deles alcança 1% da população.2 Os tadjiques são muçulmanos sunitas que falam uma língua derivada do farsi – o idioma persa – chamada dari. Tradicionalmente a etnia tadjique forneceu os mais importantes intelectuais, não só do Afeganistão, mas de toda a Ásia Central. A história dourada dos esplendores das altaneiras cidades de Samarcanda e Bukara foi uma saga artística e intelectual basicamente vanguardeada pelos tadjiques. Assim sendo, o dari é uma espécie de língua franca e elegante naquelas plagas. As concentrações do povo tadjique situam-se no norte do Afeganistão, sendo que algumas de suas comunidades se espalham pelo oeste do país. Muito embora Kabul seja a capital, a cidade mais intelectualizada e cosmopolita do Afeganistão é Herat, no oeste – povoada fundamentalmente pelos tadjiques. Durante a invasão soviética, os tadjiques pegaram em armas e aderiram ao chamado do Jihad. De seu povo saiu o mais talentoso comandante militar dos mudjahedeen, Ahmad Shah Massoud, o “Leão do Panjshir”. Massoud foi aluno de um Liceu francês e estudante de engenharia. Era um homem muito articulado que falava fluentemente o dari, o urdu, o pashto, o híndi e o francês. Saia-se muito bem em inglês também. Durante a guerra contra os soviéticos, defendeu com sucesso o Vale do Panjshir, sua terra natal, ao norte de Kabul. Sovou os comunistas e ganhou reputação. O Irã, temeroso da consolidação do poder russo no Afeganistão, enviou armas e equipamento para as tropas de Massoud. Em 1989 as forças soviéticas retiram- se do Afeganistão. Três anos depois, Massoud e seus tadjiques, aliados aos uzbeques conquistaram Kabul derrubando o que restava do regime comunista aliado aos soviéticos. A religiosidade de Massoud era genuína e foi a fonte de sua adesão à luta contra os soviéticos. No campo da reconstrução nacional, os tadjiques de Massoud sonhavam com um novo governo afegão que contasse com os representantes de todas as etnias do país. Não concordavam com a repetição de uma mera hegemonia pashtun e desconfiavam da interferência paquistanesa e da presença no país dos jihadistas árabes – ambos preferencialmente apoiavam ou combatiam ao lado dos grupos mudjahedeen pashtun. Os hazaras, muçulmanos xiitas, descendem de uma combinação entre as linhagens mongol e tibetana. Vivem no centro do país e por muito tempo foram tratados quase como párias 2 Ver: SELLIER, Jean et SELLIER, André. Atlas des peuples D`Orient. Paris, La Découverte, 2002. pelos demais grupos étnicos. Em parte por causa de sua adesão ao xiismo, em parte devido a seu aspecto físico muito particular que não se assemelha com o das demais etnias afegãs. Durante o Jihad contra a URSS, os hazaras organizaram uma milícia liderada por Karim Khalili. Os uzbeques formam um povo que, no que tange à arte guerreira é temido em toda a Ásia Central. Combatem de forma pertinaz, impiedosa e ousada. São muçulmanos sunitas de fala turca. No Jihad contra a URSS formaram suas próprias milícias que envergavam uma tradição de ter guerreado contra os russos desde os tempos do czarismo e contra os comunistas desde os tempos da Revolução Bolchevique. O Exército Soviético, durante a ocupação do Afeganistão, transferiu para o país unidades de combate uzbeques originárias da República Socialista Soviética do Uzbequistão. Após a retirada soviética, muitos dos uzbeques não-afegãos continuaram no Afeganistão, pois não desejavam parar de guerrear. Mudaram de lado e aderiram à milícia uzbeque liderada pelo general Rashid Dostum. Como foi dito antes, aliados aos tadjiques, a milícia uzbeque de Dostum assumiu o controle de Kabul. Com a posse da capital e formando um novo governo provisório, imaginava-se que poderiam negociar a partir de uma posição de força com os líderes pashtun. Um dos problemas é que as tropas uzbeques e tadjiques portaram-se muito mal logo que tomaram a cidade. Saques foram promovidos, mulheres atacadas, prisioneiros eram executados sumariamente e pashtun da capital foram perseguidos, roubados e às vezes assassinados. O outro problema consistia na ação das forças políticas e das rivalidades das potências daquela região do mundo. O governo indiano não assistiria impassível ao aumento da influência paquistanesa no Afeganistão. Assim, passou a apoiar os tadjiques de Massoud – que contavam também com o suporte iraniano – e os uzbeques de Dostum. Era a resposta indiana à parceria paquistanesa-pashtun. Quanto aos pashtun, o seu posicionamento geográfico concentrado no sul do país privou-os de um naco na partilha do poder em Kabul. O perigo era que pela primeira vez, desde os tempos de Emir Durrani, os pashtun encontravam-se alijados do centro do poder. Ao saberem das notícias relativas à perseguição contra os pashtun de Kabul movida pelos tadjiques e uzbeques, imediatamente apontaram suas armas contra os donos do poder provisório. O Jihad contra os comunistas convertia-se em nova guerra civil. Na época do Jihad anti-soviético, os pashtun formaram uma grande quantidade de milícias mudjahedeen. A mais importante delas era liderada pelo general Gulbuddin Hekmatyar, um membro da tribo Kharoti do ramo Ghilzai. A força de Hekmatyar era provida pelo Paquistão. Durante quase todo o período do Jihad, Hekmatyar foi considerado “a menina dos olhos” do ISI – Inter-service Inteligence – o todo- poderoso sistema de inteligência do Exército Paquistanês. Boa parte da ajuda americana para os freedon-fighters do Afeganistão intermediada pelo ISI era despejada na milícia de Hekmatyar. Portadora de recursos desta monta, a milícia de Hekmatyar, porém, atuava de forma menos formidável do que deveria. Para uns, era porque os rapazes do general Hekmatyar entretinham-se mais no ato de tirotear contra outros grupos afegãos do que combater os russos. Para outros, o problema era que na sua senda em direção ao poder, Hekmatyar entendia como justo o desvio de parcela dos recursos para si próprio. Em resumo, Hekmatyar não se apresentava como uma liderança confiável sequer aos olhos dos pashtun. Desse modo, o sul do Afeganistão foi tomado por uma enorme quantidade de milicianos pashtun bem armados e valentões. Combatiam entre si pela posse dos vilarejos, aeroportos, depósitos de víveres e por tudo que podia resultar em alguma vantagem. Esqueceram de suas obrigações em proteger o povo, oprimindo-o cruelmente. De forma gaiata, apossavam-se arbitrariamente do zar, zam e zamin. Continuavam a ostentar o glorioso título de mudjahedeen, mas esqueceram-se lamentavelmente do Islã. Alguém logo iria se encarregar da tarefa de ensiná-los a pararem de esquecer. O Talibã “Nós combatemos muçulmanos que agem errado. Como poderíamos permanecer quietos quando assistíamos crimes sendo cometidos contra as mulheres e os pobres?” (Frase explicativa das motivações para a formação do Talibã proferida pelo mullah Mohammed Omar, no melhor estilo Robin Hood). Talib significa “estudante do Islã”. Talibã é o plural de talib. Dizem no Afeganistão que o iniciador do movimento Talibã foi o mullah Mohammed Omar – que continua emnossos dias liderando o movimento. Omar nasceu em 1959 em Nadesh, um vilarejo próximo a Kandahar. Pertencia a uma família pobre integrante da tribo Hotak do ramo Ghilzai. Seu pai morreu prematuramente e Omar cedo assumiu o sustento da família. Tal qual seus parentes, Omar trabalhou nos campos e estudou numa pequena escola islâmica – uma madrassa – próxima a seu vilarejo. Identificou-se fervorosamente com a religião, decorando com afinco passagens e mais passagens do Corão. Ao alcançar a idade adulta, Omar resolveu tornar-se um mullah e abriu uma pequena madrassa. No final do ano de 1978, com a invasão soviética, Omar aderiu ao Jihad. Combateu pela milícia do partido Khali Hizb-e-Islammi sob o comando de Nek Mohammed. Durante o Jihad, Omar foi ferido quatro vezes, perdendo um olho e alguns dedos das mãos. Em seu grupo de combate, destacou-se como um exímio artilheiro de RPG – arma lança- foguetes anti-carro de projeto russo, que devido à razoável leveza e facilidade de uso caiu no gosto dos guerrilheiros do mundo inteiro. As obrigações do Jihad não impediram Omar de contrair matrimônio. Hoje em dia sabe-se que no total possui três esposas e cinco filhos. Com a expulsão dos soviéticos, Omar retomou integralmente às suas obrigações como mullah. Para os pashtun de sua região, as marcas de guerra que exibia no corpo eram prova inequívoca da intensidade de sua fé. Segundo esse modo de pensar, a perda de um olho em prol da causa de Deus valia mais do que uma sofisticada erudição. Contudo o rumo dos acontecimentos chamaria Omar novamente às armas. A história mais difundida sobre a origem do Talibã conta que em meados do ano de 1994, vizinhos da aldeia de Singesar procuraram Omar para pedir conselho sobre o que fazer em face a um grave acontecimento. Nos vilarejos pashtun do Afeganistão, esse é um serviço constantemente solicitado aos mullahs devotos – prestar conselho. O grave acontecimento era que duas adolescentes haviam sido raptadas por um grupo de mujahedeen locais. Suas cabeças foram raspadas e as moças foram levadas para um campo militar controlado pelos raptores para serem estupradas. De acordo com a história, Omar não deu conselho, resolveu agir. Era um veterano do Jihad, e muitos de seus talibã eram tão veteranos quanto ele. Reuniu por volta de trinta talibã de sua madrassa e dezesseis armas. Liderando o grupo, atacou de surpresa o campo dos raptores, resgatou as meninas e, carregando o chefe capturado para um dos vilarejos, enforcou-o no alto do cano do canhão de um tanque para que todos vissem. Ao tomarem o campo militar, Omar e seus talibã apossaram-se de farta quantidade de armas e munições. Alguns meses depois, dois comandantes de mudjahedeen enfrentaram-se na disputa pela posse de um menino que desejavam sodomizar. Na luta que se seguiu, nos bairros da cidade de Kandahar, vários civis foram mortos. O grupo Talibã de Omar resolveu interferir na refrega. A ordem foi restaurada, o menino libertado e muitos dos mudjahedeen receberam aquilo que começara a se tornar a punição de praxe: foram enforcados no alto do cano dos canhões dos tanques. Daí para frente, o Talibã passou a ser regularmente requisitado para mediar disputas locais. O prestígio de Omar crescia, pois prontificava-se a agir sem exigir qualquer recompensa. Porém, às pessoas que lhe pediam ajuda, determinava que ajustassem as suas vidas aos padrões daquilo que ele e seus talibã imaginavam ser a conduta muçulmana correta. O Talibã e o Paquistão. No ano de 1993, estava no comando do governo do Paquistão a primeira ministra Benazir Bhutto. Dois anos antes, a URSS implodira e as repúblicas soviéticas da Ásia Central tornaram-se independentes. Para o Paquistão, uma ampla oportunidade se abria. Havia chance de estabelecer sólidos laços comerciais e de criar uma rede de influência política paquistanesa que envolvesse todas as novas repúblicas independentes, solidamente muçulmanas assim como o Paquistão. Os novos países procuravam libertar-se da dependência russa e diversificar suas relações com o exterior. O Paquistão deveria tentar com afinco assumir o papel de principal elo de ligação entre a Ásia Central e o resto do mundo. A ministra sonhava com uma hegemonia paquistanesa. A principal via de comunicação terrestre entre as novas repúblicas e o Paquistão atravessava necessariamente o Afeganistão. Desde o período soviético, caminhões cuja propriedade pertencia à máfia de contrabandistas paquistaneses, faziam o transporte de mercadorias ilegais usando o eixo de rodovias norte, tendo como ponto de partida a cidade paquistanesa de Peshawar, entrando no Afeganistão até Kabul, dali alcançando a cidade de Mazar-i-Charif e então a fronteira do Turcomenistão. Tudo dependia da distribuição de propinas para as autoridades soviéticas e assim a coisa fluía. Mas nos anos 90, o Afeganistão caíra na guerra civil e a rota do norte era controlada pelos não confiáveis tadjiques, uzbeques e hazaras. Os pashtun pertencentes ao governo paquistanês imaginaram o uso de uma rota alternativa, pelo sul, atravessando, na maior parte, aéreas dominadas pelos pashtun. A via começava em Quetta no Paquistão, passando por Kandahar, Herat e dali chegando ao Turcomenistão. Havia, contudo, dois problemas: o primeiro era que Herat ficava numa região dominada pelos tadjiques. O segundo era que boa parte da estrada era controlada por diferentes bandos de mudjahedeen pashtun que cobravam pedágios dos caminhões e frequentemente assaltavam as mercadorias e matavam os motoristas. Tudo indicava que recorrer ao velho aliado Gulbuddin Hekmatyar não iria adiantar muito. Parte das tropas de sua milícia mantinha postos de pedágio e abusavam dos motoristas. Além disso, as autoridades internacionais convenceram-se que Hekmatyar, além de comandar um bando de saqueadores da pior espécie, era responsável por cometer crimes de guerra durante o conflito civil afegão. Não seria uma boa idéia para o Paquistão a confirmação cabal de uma coisa que todos já sabiam: a associação entre o governo daquele país e Hekmatyar. Melhor então era a postura de manter tais relações em discreto banho-maria. Na busca de novos aliados dentro do Afeganistão, de preferência pashtun, o ISI ouvira falar do Talibã. Negociações diretas foram abertas entre o serviço de inteligência paquistanês e a liderança do movimento. Um primeiro passo, um flerte de abertura. Ao mesmo tempo, garantir boas relações com o Talibã parecia ser uma medida interessante, especialmente tendo em vista o que se passava dentro do Paquistão. Ao longo do Jihad contra os soviéticos e durante a guerra civil que se sucedeu, grande quantidade de pashtun fugiram do Afeganistão e se instalaram em campos de refugiados dentro do Paquistão. Estamos falando de um número que oscilava entre um milhão e meio a dois milhões de pessoas. Muitos dos homens mantinham-se em permanente vai-e-vem cruzando a fronteira para tomar parte no Jihad ou mesmo, depois, na guerra civil. Os campos eram mantidos pela ajuda arrecadada pela ONU, pelo próprio Paquistão, ONGs internacionais do Ocidente e por doações de diversos governos. No último item dos doadores, destacavam-se organizações humanitárias muçulmanas sustentadas pelo governo da Arábia Saudita. Nos campos residiam milhares de crianças das tribos pashtun afegãs. Essas crianças foram separadas de sua terra natal, das tradições de seus khels e vida tribal. Eram os “filhos do Jihad”. Se estivessem no Afeganistão, durante toda a meninice, teriam sido educadas fundamentalmente pelas mulheres da família que transmitiriam para elas a cultura ancestral. Mas nos campos, a responsabilidade pela educação das crianças foi assumida pelas madrassasfinanciadas pelo dinheiro da caridade saudita. Antes de mais nada, nas madrassas, os meninos eram separados das meninas. Mesmo o convívio com as mães era intensamente reduzido. As mulheres adultas dedicavam-se em cuidar das crianças de colo, procurar incessantemente comida ou simplesmente sucumbiam à dureza da vida nos campos e pereciam. No final das contas, tudo o que os meninos sabiam sobre as mulheres era resultado daquilo que lhes era contado pelos mullahs. As madrassas financiadas pelos sauditas eram dirigidas por mullahs dotados de parca sofisticação, similar a do mullah Mohammed Omar, o líder do Talibã. Transmitiam uma versão do Islã que, na opinião de estudiosos muçulmanos de outros lugares era tosca e simplificada. Muitas vezes a Shariah – a lei muçulmana – tinha o seu conteúdo entremeado por superficiais interpretações do pashtunwali. Na tradição dos pashtun enraizados em suas tribos, as primeiras noções do pashtunwali eram transmitidas para as crianças pelas mulheres. Nos campos os meninos só tinham acesso à versão simplória e distorcida dos mullahs intelectualmente limitados. Os textos religiosos a serem estudados nas madrassas dos campos de refugiados, refletiam a versão do Islã wahabita, uma interpretação da religião extremamente rigorosa professada pelos sauditas. Nas madrassas, como por encanto, as velhas canções das tribos, os usos ancestrais e a própria vida sedimentada na forte solidariedade familiar foi fenecendo nas mentes dos meninos. O passado da família, do khel e da tribo foi substituído por um passado que os avós e os pais dos garotos jamais viveram. Um novo passado imaginado pelos mullahs incultos que tinha como base uma comunidade islâmica original totalmente inventada. Os veneráveis campeões das tribos, cujas proezas confirmavam os ditames morais do pashtunwali, deram lugar aos combatentes do Jihad que seguiam os preceitos wahabitas. O talib das madrassas dos campos ia se tornando um tipo de estudante muito específico - um recruta para o movimento Talibã do mullah Omar. Galgando o poder “ Nós pegamos em armas para alcançar os objetivos do Jihad afegão e salvar nosso próprio povo de sofrimentos maiores nas mãos dos auto-proclamados mudjahedeen. Nós temos fé completa em Deus, o todo-poderoso. Jamais esquecemos disso. Ele pode nos abençoar com a vitória ou nos punir com a derrota.” (Declaração do mullah Omar para um jornal paquistanês). Os arranjos entre o Talibã e o Paquistão avançaram pelo ano de 1994. Os sauditas logo concretizaram seu entusiasmo pelo movimento mandando dinheiro e fornecendo o tipo de carro de combate preferido nas guerras do Afeganistão contemporâneo: centenas pick-ups de marca japonesa 4X4. Restava saber se o Talibã seria capaz de limpar as estradas e proteger os comboios de caminhões paquistaneses. No mês de outubro daquele ano, o ISI transmitiu ao Talibã uma informação quanto a existência de um grande depósito de armas e munições fornecidas aos mudjahedeen de Hekmatyar pelo Paquistão na localidade de Spin Baldak. O Talibã atacou o posto capturando armas e munições suficientes para equipar dez mil homens. Na mesma época, as companhias de transporte do Paquistão, por conta própria, ofereceram ao Talibã um polpudo estipêndio regular, dezoito mil Kalashnikovs, algumas peças de artilharia, munição e vários veículos militares no caso do Talibã se comprometer com a abertura das estradas. Em 29 de outubro de 1994, os paquistaneses organizaram um grande teste. Um comboio de oitenta caminhões dirigidos por motoristas que haviam pertencido ao exército foi enviado para cruzar a rota do sul. No comboio viajava o comandante do ISI na região, o coronel Imam. Ao atingir Takht-e-Pul, uma área que fica a trinta quilômetros de Kandahar, próxima ao aeroporto, o comboio foi detido por forças lideradas pelos senhores da guerra Amir Lalai, Mansur Achakzai e Ustad Halim. Os comandantes queriam dinheiro e uma parte das mercadorias. Desejavam ainda que o Paquistão parasse de apoiar o Talibã. Em face ao problema, o governo do Paquistão elaborou três opções para liberar o comboio: a) enviar o Grupo de Serviços Especiais – a força de comandos do Exército Paquistanês; b) ordenar que uma tropa de pára-quedistas saltasse na área; c) solicitar que o Talibã resgatasse o comboio. Como se tratava de um teste, a terceira opção foi escolhida. No dia 3 de novembro, o Talibã atacou e liberou o comboio. Mansur Achakzai foi caçado deserto adentro, capturado e executado juntamente com dez guarda-costas. Desnecessário dizer que seu cadáver foi atado pelo pescoço no alto do cano de um canhão, etc, etc. Na mesma noite, o Talibã moveu-se contra Kandahar e atacou as forças do principal comandante da cidade, o mullah Naquib. Em poucas horas seus dois mil e quinhentos homens se renderam. O Talibã capturou uma substancial quantidade de veículos, armas e munições. Apossaram-se ainda de seis caças MIG-21 e seis helicópteros de transporte. Graças ao estímulo paquistanês e saudita, o Talibã tornara-se dono da segunda maior cidade do Afeganistão, Kandahar e assumira o controle do coração do país dos pashtun. Em dezembro de 1994, aproximadamente doze mil rapazes afegãos e paquistaneses da etnia pashtun, oriundos de madrassas situadas na Província da Fronteira Noroeste e no Baluchistão, portando documentos fornecidos pelo governo paquistanês, cruzaram a fronteira para se unir ao Talibã em Kandahar. No ano seguinte, o Conselho de Segurança da ONU declarou que o Talibã representava uma força que poderia restaurar a ordem no Afeganistão. O serviço de inteligência dos Estados Unidos – a CIA – pensava a mesma coisa. Recebida na Casa Branca e indagada pelo presidente Bill Clinton quanto ao envolvimento paquistanês com o Talibã, a primeira ministra Benazir Bhutto negou peremptoriamente qualquer ligação e afirmou que o Talibã era um assunto exclusivamente afegão. Uma vez em Kandahar, o Talibã imediatamente declarou a imposição de sua versão muito particular da Shariah. Todos os homens deviam andar com a cabeça coberta e deixar crescer a barba. O teatro e o cinema foram proibidos. Nada de música nas rádios ou na tv. Nada de competições esportivas em lugar nenhum. Quanto às mulheres, a ordem era para que sumissem, isto é, abandonassem seus empregos, ficassem em casa, e no caso de terem de circular nas ruas, deviam cobrir o corpo inteiro com as burkhas. A conquista de Kandahar foi apenas o primeiro passo. Com suporte saudita e paquistanês, o Talibã marcharia adiante. Em Kandahar, reuniu-se a Shura – conselho – do Talibã. Os conselheiros ratificaram o nome do Mullah Mohammed Omar como líder supremo. Para o Talibã a escolha de Omar não se justificava nem pelo fato dele ser um grande orador, nem porque ele fosse um excepcional líder militar. Nas reuniões da Shura, o mullah Omar raramente fala, e na luta, sempre cedeu à liderança aos chefes militarmente mais talentosos. O mullah Omar foi escolhido em virtude de sua devoção. Em termos políticos, à sua maneira, o Talibã perseguiu um objetivo revestido de palavras corânicas, mas essencialmente movido por fortes resquícios de interesse tribal: avançar sobre Kabul, deslocar os tadjiques e os uzbeques do poder e restaurar a supremacia pashtun em todo o país. Para a concretização do projeto, o Talibã, sem sequer esboçar um tímido “obrigado”, continuaria a aceitar a ajuda dos amigos. Para alguns desses amigos mais generosos, estenderia até as obrigações de hospitalidade do pashtunwali. Essa é a lógica explicativa do vínculo entre o Talibã e Osama Bin Laden.
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