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1 Parte 11 A guerra no mosaico libanês. Ao chegarmos a este ponto do livro, nos vemos obrigados a fazer uma confissão de peito aberto aos leitores que se dignaram a nos acompanhar até aqui. A questão libanesa nos intimidava. Os detalhes e os complicados meandros do mosaico libanês e de sua tumultuada guerra civil nos impunham uma séria dúvida: seria possível em apenas um capítulo lidarmos convenientemente com o assunto? A tentação de “saltar o assunto” e ir adiante fazendo apenas alusões ocasionais às tensões do Líbano foi grande. Contudo, como esta é uma obra que abarca os conflitos árabes-israelenses, e como é notório o envolvimento direto, de fato, “até o pescoço” da nação judaica na guerra intestina do país dos cedros, nos sentimos na obrigação de enfrentar o problema e desenvolver algumas linhas sobre essa tormentosa guerra civil. Tentemos, antes de mais nada, apresentar um diagnóstico dos principais grupos políticos, seus números, suas sutilezas para que possamos ter alguma idéia da tragédia libanesa. O Líbano moderno emergiu da ocupação francesa após a Segunda Guerra Mundial como um país cuja paz e estabilidade dependia da manutenção de um sensível equilíbrio entre as várias comunidades e também do comportamento dos dois mais destacados poderes estrangeiros em suas fronteiras: Israel e a Síria. O panorama das comunidades do Líbano em meados de 1975, ano da retomada da guerra civil era o seguinte: Cristãos maronitas – Sua população era de por volta de 700 mil pessoas. Formavam a comunidade mais próspera e politicamente influente do país. Ocupavam basicamente as montanhas do norte do Líbano e controlavam Beirute oriental. O acordo entre as comunidades atribuía aos maronitas 30 cadeiras no parlamento e o direito de indicar o presidente da república. Um importante detalhe a ser ressaltado, é que os maronitas não desfrutavam de uma unidade monolítica. A liderança da comunidade era dividida entre 4 famílias tradicionais rivais: Eddé, Chamoun, Frangieh e Gemayel. As três últimas controlavam forças milicianas armadas: os Chamoun contavam com uma tropa denominada “os tigres”; os Frangieh, o Exército de Libertação de Zghorta. Finamente os 2 Gemayel eram apoiados pela milícia mais numerosa e que viria a se tornar hegemônica entre os maronitas, a Falange. O fato dos maronitas tentarem se opor ao crescimento do peso político dos muçulmanos no xadrez libanês, não impedia que as suas várias milícias, vez por outra, retornassem ao velho hábito de tirotear animadamente entre si. O pedido de apoio israelense em favor dos maronitas para travar a guerra civil foi uma iniciativa de Bashir Gemayel, filho de Pierre Gemayel, chefe da Falange, secundado por Danny Chamoun, filho de Camille Chamoun, líder dos tigres. Ao mesmo tempo, outros grupos maronitas mantinham estreitos contatos com os sírios. Muçulmanos sunitas – sua população alcançava também por volta de 700 mil pessoas. O acordo político assegurava aos sunitas 20 lugares no parlamento e o direito de indicar o primeiro ministro. Durante a guerra civil, destacou-se na comunidade muçulmana sunita a combatividade da milícia Mourabitoun, de orientação nasserista. Os sunitas desejavam uma mudança no equilíbrio político libanês com o fito de aumentar o peso da presença muçulmana nas instituições governamentais. Muçulmanos xiitas – Eram cerca de 1 milhão de pessoas. A maioria deles pobres e vivendo no sul do país em aldeias. Tinham direito a 20 cadeiras no parlamento. Seguiam de um modo geral a orientação política do Movimento dos desvalidos, uma organização liderada pelo xeque Mohamed Yaacoub. O fortalecimento dos movimentos islâmicos de cunho religioso provocou o crescimento do ativismo político dos grupos xiitas. Grupos tais como o Movimento dos Desvalidos, promoviam importantes programas de ajuda social e ao mesmo tempo procuravam organizar politicamente as comunidades que recebiam sua assistência. Em 1982, com a grande invasão israelense, os xiitas saudaram a presença judaica no Líbano com simpatia. Isto porque mantinham relações de franca inimizade com os guerrilheiros da OLP e seus aliados sunitas. Para eles, a vitória de esquerdistas ateus representaria o pior dos mundos. Contudo, a aliança dos israelenses com os maronitas da Falange e sua insistência em permanecer no sul do Líbano logo modificou a posição dos xiitas, derivando-a para uma franca hostilidade. Não há dúvida que a vitória do Aiatolá Khomeini e de sua Revolução Islâmica no Irã em 1979 fortaleceria ainda mais a militância, a disposição e a influência de grupos políticos xiitas. No Líbano, o grupo Amal era a organização armada mais aguerrida entre os xiitas. Mais tarde, no sul do Líbano, formariam 3 uma organização que viria a se tornar uma das mais encarniçadas inimigas de Israel: o Hisbolá (Partido de Deus). Gregos-ortodoxos – Eram aproximadamente 400 mil pessoas. Apesar de cristãos, lutaram ao lado dos muçulmanos e da OLP na guerra civil libanesa pois jamais suportaram os maronitas. Tinham direito de eleger 11 deputados no parlamento libanês. Muçulmanos drusos – Alcançavam por volta de 300 mil pessoas. Formam até hoje a comunidade muçulmana mais coesa do Líbano. Casam-se apenas entre si e são vistos pelos demais muçulmanos como heréticos. Obtiveram notoriedade como tremendos guerreiros na defesa de suas áreas nas proximidades das montanhas de Shouf. Até a invasão em 1982, nunca tiveram problemas com os israelenses, e conseguiam manter os maronitas longe de suas montanhas. Eram liderados pela família Jumblatt, e indicavam 6 deputados para o parlamento. Armênios – Aproximadamente 250 mil. Dividiam-se entre a religião católica e ortodoxa. Tinham direito a 5 deputados no parlamento libanês. Protestantes – Eram apenas 100 mil. Possuíam apenas 2 representantes no parlamento. Palestinos – Milhares de palestinos haviam se transferido para o Líbano desde 1948. Viviam fundamentalmente em campos de refugiados, mas também se fixaram em Beirute ocidental. Em 1970, com o “Setembro Negro” na Jordânia, mais um grande número deles transferiu-se para o país, incluindo Yasser Arafat e seus combatentes da OLP. Os palestinos alcançavam por volta de 500 mil pessoas no Líbano. Muito politizados, simpatizantes das teses de esquerda e divididos em pelo menos 8 organizações militantes diferentes (nem todas sob a autoridade da OLP), sua presença teria alterado totalmente o equilíbrio de forças vigente no Líbano. Os maronitas, de um modo geral pró-ocidentais e zelosos pela manutenção de seus negócios e propriedades, nutriam para com eles grande desconfiança que logo se deteriorou para franca inimizade. A chegada de Arafat acirrou os ânimos entre os maronitas, pois temiam que a OLP fundasse um Estado independente dentro do país. 1 A guerra civil libanesa foi revigorada em abril de 1975, com uma emboscada promovida por milicianos da Falange contra um ônibus que transportava palestinos, vitimando 27 pessoas, inclusive mulheres e crianças. Os maronitas alegavam que estavam 4 retaliando devido `a agressão contra uma de suas igrejas ocorrida no dia anterior. Logo o grupo palestino FPLP-CG (Frente Popular pela Libertação da Palestina – Comando Geral), grupos de esquerda libaneses e a milícia Mourabitoun sunita estavam em guerra aberta com os militantes maronitas. No primeiro momento, Arafat e a OLP tentaram se manter neutros, mas os ataques dos milicianos maronitas contra campos de refugiados controlados pela OLP levou-os a mudar de posição e empenhar suas forças no conflito. No mesmo ano, o líder dos drusos Kamal Jumblatt declarou que seu povo jamais apoiaria qualquer governo no Líbano vinculadoà Falange. Mesmo que os falangistas contassem com o apoio das outras milícias maronitas e de unidades do exército libanês, a aliança muçulmana era muito forte e eles acabariam fatalmente esmagados. Em 1975/76, quem impediu a destruição militar dos maronitas foi a Síria. O presidente Hafez Assad não desejava que o Líbano fosse controlado por um governo que poderia ser hegemonizado pela OLP, e tropas sírias cruzaram a fronteira e se instalaram no oeste e no norte do país. Damasco nunca abandonou a esperança de formar uma Grande Síria, impondo um apertada hegemonia nas regiões libanesas limítrofes. Os israelenses, que acompanhavam atentamente os acontecimentos no país vizinho, permitiram que os sírios entrassem com força no Líbano para salvar a pele dos maronitas. Um acordo, arbitrado pelos EUA entre Síria e Israel garantia que o último não se oporia à presença da “Força de paz da Síria” contanto que esta não desfrutasse de com apoio aéreo e mísseis e se mantivesse pelo menos a 24 quilômetros de distância da fronteira israelense. A área de demarcação que separaria os sírios da fronteira de Israel seria denominada “Linha Vermelha”. Porém, ter a pele salva pela intervenção síria não era suficiente para os desejos das mais destacadas lideranças maronitas. Muito mais do que isso, o que almejavam era a reconquista do controle político do Líbano, o que significava em rápidas palavras, a erradicação das bases da OLP no país. Os sírios jamais iriam tão longe e portanto, restava aos maronitas solicitar apoio israelense. Nas milícias cristãs havia um número suficiente de homens dispostos a luta, mas não possuíam armamento, principalmente do tipo pesado. Logo, Bashir Gemayel e Danny Chamoun viajaram para Israel para apresentar seus pontos de vista ao governo daquele país. 5 A primeira entrevista foi com Shimon Perez, que não tardou a comunicar o fato ao na época primeiro ministro Yitzhak Rabin. Os dois líderes consideraram muito interessante o pedido de ajuda dos maronitas. Em primeiro lugar, apesar de serem cristãos, os maronitas continuavam árabes. Tratava-se de um belo precedente a ser explorado o fato de árabes pedirem ajuda a Israel. Além disso, uma vitória maronita com o suporte israelense permitiria com que o governo do Líbano reconhecesse e estabelecesse relação regulares com Israel. Seria o segundo país árabe a fazer isso. O primeiro havia sido o Egito. Finalmente os maronitas se comprometiam a eliminar a OLP e todos os demais grupos palestinos do Líbano. Destruir a OLP, eliminar suas bases e neutralizar totalmente os ataques que estes dirigiam contra a região da Galiléia a partir do sul do Líbano, sem precisar de verter o sangue de soldados israelenses, era uma possibilidade apetitosa demais para ser deixada de lado. Com o intuito de sondar o terreno, o governo israelense enviou para o Líbano um oficial da FDI, Benjamin Ben Eliezer, que falava árabe fluentemente devido à sua procedência iraquiana. Todos os entendimentos entre Israel e os maronitas deveriam correr no mais obscuro sigilo, pois um movimento como esse certamente atrairia a ira da Síria e a reprovação norte-americana e soviética. Todavia, alguém deve ter se esquecido de advertir as massas maronitas da necessidade de segredo, pois Ben Eliezer, ao chegar ao Líbano acompanhado de Danny Chamoun, percorreu uma estrada até Beirute coalhada em suas margens de multidões de cristãos maronitas que o aplaudiam delirantemente. Em um dado momento, dois caminhões se aproximaram arrastando a carcaça de corpos de guerrilheiros palestinos. Diante de um Ben Eliezer atônito, Chamoun explicou que era assim que os maronitas tratavam os terroristas. À noite, já em Beirute, mulheres milicianas maronitas exibiram ao oficial israelense espantado, suas bem cuidadas coleções de orelhas palestinas 2 . Ben Eliezer, ao voltar a Israel, pode até ter apresentado ao governo um colorido e detalhado informe dos episódios que testemunhara no Líbano, o que certamente levaria homens sensatos a concluir que os integrantes das milícias maronitas haviam se convertido em entusiásticos degoladores e caçadores de orelhas, e se sentiam perfeitamente confortáveis em assumir tal condição. Não obstante as náuseas e os pudores despertados e proferidos, o realismo político venceu e o governo de Israel resolveu ajudar os maronitas com armas, munições e assessoria militar. 6 A ajuda israelense permitiu que os combates se equilibrassem no Líbano, mas a força das milícias maronitas era insuficiente para a erradicação da OLP. Lembremos ainda que não existia uma unidade total entre os vários grupos de militantes cristãos, o que dificultava os projetos de ação comum. A família Gemayel se esforçou em solucionar o problema. Em 1978, falangistas ligados aos Gemayel assassinaram Tony Franjieh, cuja fação era ligada a Síria. Em 1980, o quartel dos tigres foi atacado e por volta de 80 deles foram mortos (juntamente com a amante de Dany Chamoun e sua filhinha, ainda um bebê de colo). Dany conseguiu escapar para a Europa, mas o poder dos Chamoun e de seus tigres estava temporariamente liquidado. Logo depois, Etienne Saqre e Georges Adwan, chefes de dois pequenos grupos de milicianos maronitas declararam aceitar a liderança dos Gemayel e com isto, escaparam da morte. Os lances da política libanesa eram pontuados por numerosas traições e sangrentos assassinatos. O amálgama de facções, as lutas intestinas fazia do país um saco recheado de gatos raivosos. A melhor política seria apostar que a ONU ou a Liga Árabe tentassem arbitrar a confusão obtendo pausas nas matanças e procurando impedir que o país se partisse em cacos minúsculos e brigões. Entretanto, a partir de 1981, o governo israelense mudaria de política e acabaria por envolver-se diretamente na ciranda libanesa. O resultado das eleições de 1981 produziu o primeiro governo inteiramente de direita da história de Israel. Os analistas da época atribuíram esse estrondoso triunfo de Begin ao ataque devastador realizado pela FAI ao reator nuclear em construção no Iraque (Operação Babilônia). O governo do presidente Sadam Hussein avançava celeremente na construção de um reator em Tamuz, na localidade de Osirak. A FAI despachou 16 aeronaves, 8 F-16 Fighting Falcon e 8 F-15 Eagle (o “cavalo de batalha” da força aérea dos EUA até hoje). Armados com bombas guiadas a laser, levaram apenas dois minutos sobre o alvo para destruir reator e voaram de volta à Israel sem sofrer qualquer baixa 3 . A ousadia da empresa e a brilhante execução do ataque renderam votos extras à coligação liderada pelo Likud de Begin. Os falcões da política israelense reuniram-se todos no ninho governamental embalados pela vitória. Begin continuaria a ser o primeiro ministro; Ariel Sharon, inicialmente na pasta da agricultura, chegou ao ministério da defesa; Yitzhak Shamir consolidou sua posição no governo. Nas forças armadas, um outro falcão, o general Rafael Eytan assumiu o posto de chefe do estado maior. No mesmo ano de 7 1981, para desafiar o dito do poeta que “os ventos do norte não movem moinhos”, chega ao poder nos Estados Unidos Ronald Reagan. A “onda conservadora” que varreu o mundo na década de 1980, constituiu o ambiente que permitiu uma autonomia maior de ação para as lideranças extremadas da direita israelense. No que se referia ao problema dos territórios ocupados de Gaza, Cisjordânia e Golan, o governo israelense logo deixou claro que não pretendia de modo algum aplicar as políticas de transição negociada que havia se comprometido em Camp David. O primeiro passo efetivo dessa decisão foi o anúncio da anexação formal da área de Golan. O gesto não irritou apenas os sírios,mas também todo o mundo árabe. Os representantes de Damasco protestaram na ONU, e a organização reafirmou a posição (com a aprovação dos EUA) que deixava claro que a aquisição de territórios por meio de força militar era inadmissível e conclamava Israel a rever sua política. A postura dos norte-americanos era muito desconfortável. Desde o momento em que a URSS havia se envolvido na guerra do Afeganistão (1979), os Estados Unidos perceberam uma luz verde que, caso bem aproveitada, poderia melhorar muito suas relações com os governos muçulmanos. Os americanos forneceriam todo o suporte necessário para a luta dos mujahedins contra os russos. A máquina financeira e de propaganda dos EUA funcionou a todo o vapor. Holywood retratou os combatentes afegãos como heróis da liberdade. Nada disso afastava o governo americano da tese que identificava Israel como um aliado estratégico. Reagan e Begin aliás davam-se muito bem (na correspondência pessoal que mantinham, tratavam-se com intimidade: Menachem para lá, Ron para cá). Desejavam os Estados Unidos no entanto que os israelenses colaborassem adotando uma postura mais positiva (ou ao menos não provocativa) em relação aos problemas árabes. Israel e o mundo muçulmano: Reagan queria as duas coisas 4 . Mas esses apelos estavam além das possibilidades de Begin e Ariel Sharon. Ambos não se sentiam vinculados às obrigações atestadas em Camp Davide e não estavam dispostos a permitirem que suas iniciativas fossem limitadas pelos namoros de Washington com o Islã. Com efeito, não tardaram a acelerar a política de desapropriação de terrenos árabes e de construção de novos assentamentos judaicos nos territórios ocupados. Sharon, por seu lado, uma vez no poder como responsável pela defesa, e apostando na lentidão das reações norte-americanas contra Israel, começou a imaginar planos mais 8 ambiciosos, cujo resultado seria a consolidação definitiva da posse das áreas ocupadas viabilizando para sempre o Grande Israel. A idéia de Sharon era a seguinte: Israel, com todo o peso de seu poder militar, deveria invadir o Líbano e executar o trabalho que os maronitas não foram capazes de concluir: destruir completamente a estrutura da OLP no país. Sharon almejava que, uma vez expulsos do Líbano, os palestinos poderiam ser compelidos a migrarem em massa para a Jordânia. Ao livrar-se dos palestinos, Israel poderia redesenhar o sistema político libanês de acordo com a sua vontade. Como segunda parte do plano, estava disposto a usar o poder de Israel no sentido de obrigar o rei Hussein a aceitar os palestinos de volta e até mesmo, caso fosse necessário, prestar auxílio para que estes derrubassem os Hashemitas do poder transformando a Jordânia em um Estado puramente palestino. Desse modo, Sharon esperava que os palestinos e a comunidade internacional que os apoiava desistissem de criar problemas por causa da Judéia, Samaria e do Distrito de Gaza, admitindo a total soberania israelense 5 . Sharon sempre foi um personagem que, na perseguição de seus objetivos, jamais mediu esforços e sequer se preocupou com exageros. Desde sua juventude esteve envolvido nas operações de retaliação contra os palestinos, e de fato, seus resultados sempre foram muito além das espectativas estabelecidas (ou desejadas) pelo poder civil. Era um oficial do exército insubordinado (mais até do que Moshe Dayan) e entendia que as tropas sob o seu comando na verdade a ele pertenciam e não ao governo. Conseguia irritar até os demais colegas oficiais generais e, certamente, o que preservava a sua carreira era o fato de ser um oficial dotado de capacidade muito acima da média. Até mesmo Begin, claramente um parceiro do mesmo espectro político de Sharon fazia-lhe ressalvas. O primeiro ministro entendia que Sharon, não obstante ser um oficial brilhante, não mantinha boas relações com a verdade. Seu plano tinha conteúdos ousados e também flagrantemente inexcrupulosos. Salvo para Begin e para Rafael Eytan, em sigilo, não poderia revelar seus reais objetivos abertamente para o resto do governo e o Knesset. Uma modificação da situação política em dois países mediante o uso da força, o Líbano e a Jordânia, um abandono declarado dos protocolos de Camp David, um plano cujo objetivo final era a anexação dos territórios ocupados em desafio à ONU, nada disso poderia vir a público com todas as letras de sua crueza. Sharon optou por apresentar ao governo e ao público uma linha de ação bem mais 9 modesta. Previa o emprego de tropas israelenses apenas no sul do Líbano, com o intuito de impedir que guerrilheiros palestinos continuassem a alvejar a Galiléia com suas plataformas de foguetes Katyusha (trata-se de uma arma desenvolvida pela URSS durante a Segunda Guerra Mundial fazendo sua estréia diante de Smolensk em 1941. O BM-13-16 “Katyuasha” é uma plataforma de foguetes transportada por caminhões. Dispara de uma só vez, acondicionados em 8 trilhos, 16 foguetes de 132 milímetros dotados de ogivas explosivas de fragmentação. Os cinco homens de sua guarnição levam apenas de oito a dez minutos para recarregar e atirar novamente. A tarefa de localizar e destruir as Katyushas é dificultada devido à sua mobilidade. Na época da Guerra Fria, os aliados da URSS eram agraciados com baterias de Katyushas) 6 . A campanha elaborada detalhadamente pela equipe de Eytan afirmava que em nenhum momento a FDI pretendia marchar sobre Beirute. Uma ação como esta necessariamente forçaria a ultrapassagem da Linha Vermelha e um choque com as tropas sírias. Só assim, ultrapassando as posições sírias, os israelenses alcançariam a rodovia para Beirute. Antes de mover as tropas, Sharon voou para Washington com o intuito de advertir os americanos de seu plano. Perante o diplomata de origem libanesa Philip Habib, declarou que caso os palestinos continuassem seus ataques à Galiléia via Líbano, Israel não teria outra escolha a não ser invadir o Líbano e só sair do país depois de ter arrasado completamente as bases dos terroristas. Habib, assustado, lembrou a Sharon que estavam no século XX, e que os tempos haviam mudado. Era inaceitável que um país invadisse outro, espalhasse a destruição e eliminasse civis indiscriminadamente. No final, a invasão provocaria necessariamente uma guerra com a Síria e todo o Oriente Médio seria engolfado em chamas. Sharon replicou que Israel insistia no seu direito de se defender e agiria de acordo com isso. Não estava pleiteando a permissão americana, estava apenas comunicando antecipadamente a questão. Discurso semelhante foi proferido ao secretário de Estado Alexander Haig, que igualmente ficou boquiaberto 7 . Em junho de 1982, o esperado pretexto para lançar a “Operação Paz para a Galiléia” finalmente ocorreu. Em Londres, um grupo palestino feriu gravemente o embaixador israelense Shlomo Argov. Diante do gabinete israelense reunido para discutir o problema, integrantes do Mossad asseguraram que o atentado havia sido realizado pelo grupo liderado 10 por Abu Nidal (Sabri al-Banna). A OLP nada tinha com isso, pois Abu Nidal era o mais terrível inimigo de Yasser Arafat, a quem qualificava de capitulacionista e “filho de judeus”. A OLP havia sentenciado Abu Nidal a morte devido ao fato de membros de sua organização terem assassinado integrantes moderados da OLP. Begin não estava interessado em detalhes. Declarou que “todos eles eram a OLP”8. Passando a ação, o governo liberou a FDI para iniciar a invasão do Líbano. Divulgou um comunicado afirmando que as finalidades da operação eram limitadas. Pretendiam eliminar a ameaça dos terroristas contra a Galiléia avançando somente 50 quilômetros além da fronteira internacional. Prometeuainda que o exército sírio não seria atacado, a menos que este alvejasse os soldados de Israel. Em um domingo, 6 de junho de 1982, colunas blindadas da FDI entraram no Líbano iniciando a Operação Paz para a Galiléia”. Como tentamos demonstrar nas páginas anteriores, o Líbano havia de convertido em uma terra de “matamouros”. Pois foi no meio desse pântano de facções aguerridas e confusas que a dupla Begin-Sharon atolou as forças armadas de Israel. A guerra desta vez se daria bem além do solo israelense. Embora o pretexto para a mesma fosse a proteção do norte do país dos ataques palestinos, os soldados israelenses viram-se rapidamente avançando adiante das linhas demarcatórias da campanha anunciadas pelo seu governo, enfrentado um adversário tenaz e engenhoso: o guerrilheiro palestino. Sharon desejava destruir a OLP, e para isso, inevitavelmente teria de alcançar Beirute. Para chegar a capital do Líbano a FDI deveria cortar e controlar a rodovia. Isso implicava em um confronto direto com os sírios. A Síria mantinha uma forte posição defensiva no vale de Bekaa. Estabelecera na região várias baterias de mísseis terra-ar apoiados por sistemas de radar e por canhões antiaéreos autopropulsados ZSU-23-4 soviéticos de tiro rápido com 4 tubos. A FAI monitorara exaustivamente a posição síria com aeronaves Grumman E-2C Hawkeye de controle aéreo dotadas de sofisticados sensores eletrônicos e ópticos. Os operadores dos Hawkeye perceberam que o adversário movimentava pouco o posicionamento de seus equipamentos na área. Isso possibilitou um mapeamento detalhado de todas as baterias de mísseis, das estações de radar e dos demais sistemas de apoio. No dia 9 de junho os israelenses atacaram o Vale de Bekaa. Utilizaram como vanguarda do ataque aeronaves 11 teleguiadas (drones) que uma vez percebidas pelos sírios, faziam com que acionassem todos os seus sistemas defensivos. A princípio, os radares não tinham como discernir os drones dos aviões de ataque de verdade. Logo atrás dos drones, voavam as aeronaves da FAI (Phantom F-4 , Skyhawk e Kfir-C2) armadas com mísseis anti-radiação AGM-78 Standard e AGM-45 Shrike. Esses mísseis são guiados pelas ondas emitidas pelos radares. Em altitude mais elevada, o ataque era conduzido por Boings 707 para guerra eletrônica. Seus sofisticados equipamentos, além de identificar as posições sírias, interferiam com os sistemas de comunicações e os radares do adversário. Os bombardeiros da primeira leva destruíram os radares sírios. Logo depois a segunda onda de ataque, armadas com bombas comuns ou do tipo clusher (invólucros contendo feixes de bombas menores e granadas que se espalham por um ampla distância) terminaram o serviço. Em pouco tempo as plataformas de mísseis, os radares, centros de comando e geradores de energia estavam totalmente destruídos. Durante toda a invasão do Líbano, a FAI abateu ou destruiu no solo 84 aviões sírios, ao passo que suas perdas se limitaram a apenas um avião de reconhecimento Skyhawk e um helicóptero anticarro Bell AH-1 Cobra 9 . O sucesso fulminante da FAI no vale de Bekaa revelou importantes pontos. Antes de tudo, Israel estava livremente utilizando todos os aparelhos da vasta panóplia de sistemas de armamentos norte-americanos. Com a exceção do Kfir (uma cópia muito melhorada do Mirrage III, de produção israelense) todas as aeronaves de combate eram de procedência americana, e os sistemas de guerra eletrônica, os mais sofisticados da época, também. A aliança estratégica entre os Estados Unidos e Israel funcionava a pleno vapor. A seguir, o comando da força aérea israelense não estava disposto a assumir riscos desnecessários e subestimar os árabes (tal como havia feito na Guerra do Yon Kippur). O planejamento do ataque foi detalhado, e a finalidade da cuidadosa operação era a de destruir todos alvos sem perder nenhum piloto da FAI durante a ação, o que de fato ocorreu. Finalmente, levando em conta a lógica da Guerra Fria, é possível afirmar que do ponto de vista dos EUA e também da OTAN, o Oriente Médio era um bom campo de provas para os confrontos entre os equipamentos produzidos no Ocidente e aqueles concebidos pelos rivais soviéticos. Nas mãos dos planejadores, técnicos, operadores e pilotos israelenses, os sistemas da OTAN estavam levando nítida vantagem sobre seus 12 rivais. Já na década de 80, a injeção tecnológica, a sofisticação e o desenvolvimento superior da informática ocidental estavam fazendo diferença em relação ao padrão soviético. A eliminação das forças sírias em Bekaa garantiu a estrada livre para Beirute. Embora os grupos palestinos e seus aliados libaneses fossem capazes de fustigar os israelenses, não possuíam nem equipamento nem comando regular eficaz para deter as colunas blindadas da FDI. O anel de aço e fogo com o que os israelenses sitiaram Beirute estava além de todo o planejamento de campanha e pegou tanto a opinião pública mundial quanto a própria população israelense de surpresa. Sharon, largando fora o terno e a gravata de ministro e envergando o fato militar de soldado, retornava à velha condição de oficial e realizava frenéticas visitas ao front com o intuito de apressar as coisas. Colocar as unidades em posição, trazer a artilharia para o alcance, armazenar as munições e fechar o cerco. Sharon não queria que o comando da FDI se preocupasse com as baixas entre os soldados ou cuidasse de qualquer outra coisa que não fosse fechar os acessos à Beirute e confinar os palestinos na parte ocidental da cidade. Unidades de paraquedistas assumiram o controle do aeroporto internacional e tanques penetraram nos subúrbios ao sul da cidade. Os palestinos e seus aliados cediam terreno cobrando um custo elevado em sangue aos israelenses. A artilharia da FDI respondia malhando quarteirões com o apoio de caças. Como era de se esperar, a reprovação internacional se fez presente. Beirute era uma metrópole moderna e populosa. Nada justificava o fato da cidade ser submetida a cerco e bombardeada pela artilharia. A maioria esmagadora dos habitantes de Beirute (mesmo na parte ocidental) não era constituída de palestinos, e mesmo entre eles haviam mulheres e crianças. Em Israel o clamor público também se fez sentir. Como explicar que a segurança e a sobrevivência do Estado judaico dependia da demolição de Beirute? Qual a razão de uma operação militar, anunciada como limitada, ser transformada em uma campanha cuja ferocidade se assemelhava a de um rei Senaqueribe da Assíria dos tempos de antanho? Pais, mães e esposas dos soldados começaram a apresentar veementes protestos contra os riscos que os seus parentes estavam se expondo, e logo as listas de baixas começaram a aumentar. Para culminar, dentro do próprio exército, soldados amedontrados ou moralmente chocados com 13 a situação começaram a se recusar a obedecer. As prisões dos rebeldes e insubmissos se avolumaram. Enquanto pode, a dupla Begin-Sharon forçou a mão. Em Washington o presidente Reagan aumentava a pressão com o intuito de deter o gládio israelense, mas Sharon desejava tomar Beirute ocidental a todo o custo. No primeiro momento imaginou que poderia contar com as milícias cristãs para a tarefa. Estas, sob a cobertura da artilharia e da aviação israelense, entraria no setor da cidade controlado pelo inimigo, e entre os escombros caçaria e liquidaria os guerrilheiros palestinos. Mas os chefes maronitas declararam que seu pessoal não estava preparado para uma luta como aquela. Contentavam- se em defender as áreas da cidade sob o seu controle, e com alegria transferiam a honra de travar a luta sangrenta de rua em rua e de casa em casa para a infantaria israelense. Dentro dacidade, as vantagens representadas pelo poder de fogo da artilharia e da aviação estariam neutralizadas. Acuados, os palestinos, com Kalashnikovs, armas antitanques portáteis RPG, coquitéis Molotov e granadas de mão preparavam-se para oferecer um feroz Stalingrado aos infantes de Israel. Diante disso, o comando israelense concluiu que o melhor para todos seria curvar-se à pressão internacional e permitir a retirada dos palestinos da cidade. Sharon então entrou em cena com seu plano. Enviou um recado a Yasser Arafat afirmando que estava preparado para fazer com que o rei Hussein os aceitasse de volta a todos, sem problemas. À força se necessário. Em paz, os palestinos sairiam de Beirute e iriam para a Jordânia em massa com toda a segurança. Arafat respondeu que em primeiro lugar, o lar do povo palestino não era a Jordânia; em segundo lugar, acusava Sharon de estar tentando explorar a agonia do povo palestino e transformar a disputa palestino-libanesa em um conflito entre os palestinos e os jordanianos. Após saber da resposta de Arafat e soltar um punhado de imprecações em árabe, Sharon resolveu fortalecer seu ponto ordenando um bombardeio de saturação contra Beirute ocidental. No dia 10 de agosto, canhões autopropulsados Soltan, tanques e a aviação realizaram a maior barragem da guerra: por volta de 300 pessoas morreram. Os acontecimentos se precipitaram. De Washington, Ronald Reagan pressionou vivamente o primeiro ministro Begin. No Líbano, uma delegação de lideranças do país procurou Yasser Arafat e implorou para que ele e seu povo fossem embora. 14 Em Israel o apoio à iniciativa militar no Líbano enfraquecia mais e mais. Os movimentos pacifistas e os parentes dos soldados envolvidos no conflito pressionavam duramente. Em uma reunião do gabinete no dia 12 de agosto, o ministro da defesa foi privado de uma série de poderes: foi-lhe retirada a autoridade de ordenar ataques aéreos, o comando sobre as unidades blindadas e sobre a artilharia. Os israelenses cessariam a barragem contra Beirute e permitiriam que os palestinos saíssem da cidade. Os governos dos EUA e da França concordaram em enviar tropas para Beirute com o propósito de supervisionar a saída dos palestinos. O Egito, a Arábia Saudita e os emirados do Golfo Pérsico recusaram-se a aceitar os retirantes. Nada de solidariedade árabe coesa mais uma vez. Para esses governos, os palestinos eram uns encrenqueiros. Os palestinos sairiam de Beirute sob o olhar das câmeras de televisão do mundo inteiro, dando tiros para o ar em desafio. Arafat e 8.500 de seus seguidores rumaram por mar para a Tunísia. Outros 2.500 foram distribuídos pela Síria, Iraque e Iêmem. Após mais de dois meses de guerra, a fortaleza da OLP no Líbano estava destruída. Cabia agora aos libaneses juntarem os cacos e tentar reencontrar o equilíbrio político do país. Begin e Sharon entendiam que Israel devia participar estreitamente do processo. Após a ajuda prestada aos maronitas, desejavam que o Líbano reconhecesse diplomaticamente e regularizasse suas relações com Israel o mais rápido possível. Como líder mais importante entre os maronitas, Bashir Gemayel, candidato à indicação como presidente foi chamado para um encontro secreto com Begin. No encontro, nada aconteceu como Begin queria. Gemayel assumiu uma postura no estilo “devagar com o andor”. A despeito de seu agradecimento aos israelenses, desejava costurar os equilíbrios do país. Tinha de empenhar-se em apaziguar os muçulmanos (sunitas, xiitas e drusos), e estes jamais aceitariam de imediato a regularização das relações entre os dois países. Lembrou também que o Líbano era um país árabe, muito menor e menos poderoso do que o Egito. A pressão das demais nações árabes descontentes com o reconhecimento seria irresistível. Os dois líderes se despediram muito contrariados um com o outro. Begin considerou Gemayel um mal agradecido que desconhecia onde lhe apertava o sapato. O libanês, durante o encontro, ficara irado pois percebera que Begin tentava trata- lo como a um vassalo 10 . Gemayel seria de fato eleito presidente do Líbano. Mas 3 semanas depois da vitória foi assassinado em seu quartel, muito provavelmente por agentes sírios. Não se sabe ao 15 certo se os assassinos de Gemayel eram oficiais do exército sírio ou se pertenciam à milícia palestina sustentada pela Síria (al-Saiqa). Isso porque a lista das facções libanesas e dos arredores que ficariam encantadas com o desaparecimento súbito de Gemayel era quilométrica 11 . Todavia, não é possível ignorar as profundas inclinações do presidente Hafez Assad pelo assassinato. Em seu próprio país, a Síria, o exemplo do que aconteceu com o povo de Hama em fevereiro de 1983 é emblemático. Muitos de nós, no Brasil, não sabemos que o Líbano e a Síria se destacam no quadro da história humana por abrigarem em seus territórios antigas e famosas cidades. Nenhuma urbe no mundo pode gabar-se de ser mais antiga do que Damasco. No litoral do Líbano, de Sídon e Tiro zarparam as bem conduzidas naus fenícias que praticaram as trocas e a fundação de colônias por todo o Mediterrâneo. E nas terras da Síria especificamente despontam ainda, junto com Damasco, Alepo, Worms e Hama. Hama era uma das cidades mais belas do Oriente Médio, e um centro fervoroso do Islã sunita. Muitas das lideranças religiosas abrigadas na cidade se opunham ao regime de Damasco, liderado por Hafez Assad desde 1970. Assad fazia parte da seita Alawita, pouco representativa em termos numéricos, mas muito ativa, pois sua doutrina permitia que os adeptos assumissem uma postura de radicais partidários da modernização a todo o transe. Os sunitas (maioria da população da Síria, cujos mais destacados pensadores viviam em Hama) olhavam os Alawitas com desconfiança e consideravam-nos hereges. Não tardou para que um ramo da organização fundamentalista Irmandade Muçulmana se estruturasse na Síria e iniciasse o proselitismo contra o governo. Como de hábito ocorre em países islâmicos, a sociedade civil, tolhida pelo sistema político autoritário, não tem como abrigar o debate das diferentes posições políticas e opções de poder. Resta então o expediente do uso da força como única possibilidade de virar a situação. E foi exatamente o que os Irmão Muçulmanos tentaram fazer, iniciando uma onda de atentados contra figuras do governo, incluindo a pessoa do presidente. Assad não titubeou. Sabia naturalmente que o centro intelectual da Irmandade era Hama. Enviou seu irmão e brigadas blindadas para lá. Deviam arrasar a cidade e resolver de vez o assunto. Hama tinha 120 mil habitantes, e com o ataque das brigadas de Damasco, 16 instaurou-se a controvérsia acerca do número de mortos: as estimativas variam de 10 a 25 mil pessoas vitimadas pela repressão de Assad 12 . Hoje em dia, a “praga” do “politicamente correto” tenta nos impedir de dizer algumas coisas, de fazer importantes considerações. Em face ao politicamente correto, podemos nos tornar covardes, omissos e hipócritas. E, pior ainda, podemos ser compelidos a assumir a condição de lamentáveis intelectuais simplórios. Nenhum distanciamento acadêmico proposto pela antropologia cultural nos impedirá de afirmar que no Oriente grassam governos que se comprazem em eliminar maciçamente parcelas de seus próprios povos ou de etnias consideradas inimigas do regime. Hafez Assad em Hama, Sadam Hussein eliminando xiitas e curdos, os turcos eliminando curdos e armênios e por aí vai. Enunciar uma lista completa seria tedioso. O massacre de Hama não provocou nem grandes rumores nem calorosos protestos. Foi engolido pela confusão do Líbano vizinho. O direito humanitário e o direito penal internacionalainda tem uma longa trilha a percorrer. Com a morte de Bashir Gemayel, o plano de Sharon para constituir um Líbano amistoso estava soterrado. O assassinato de Gemayel foi o pretexto para que forças israelenses fossem enviadas para Beirute ocidental a procura de guerrilheiros palestinos remanescentes. Foram acompanhados de perto por milicianos da Falange maronita sedentos de vingança. Na proximidades de Beirute ocidental, erguiam-se os campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila. No que concernia ao estado maior israelense, eram os ninhos onde se ocultavam os terroristas da OLP. A FDI sitiou os campos e manteve-os iluminados à noite com holofotes. Durante o cerco, permitiram que em pequenos grupos, milicianos falangistas entrassem nos campos e executassem um massacre. As páginas deste livro juntamente com as imagens de televisão e os textos jornalísticos já devem ter demonstrado vivamente ao leitor atento que, no Oriente Médio, algo que é muito ruim pode sempre tornar-se bem pior. O desfecho da luta no Líbano poderia ser outro. Para que caçar guerrilheiros remanescentes já que a estrutura da OLP estava destruída e sua liderança rumava para a distante Tunísia? O massacre de Sabra e Shatila prejudicou gravemente a respeitabilidade de Israel e de seu exército. Os soldados alegaram depois dos eventos, que não podiam saber o que ocorria nos campos. Porém, é muito difícil deixar de escutar o gemido de agonia de 800 a 1000 pessoas que estão sendo assassinadas. Além do mais, era fácil entender o que os maronitas armados fariam uma vez 17 no interior dos campos. Muitos dos corpos das vítimas foram sepultados por seus parentes, mas somente o comitê da Cruz Vermelha Internacional sepultou 210 corpos: 140 homens, 38 mulheres e 32 crianças 13 . Esse foi o epílogo macabro da intervenção israelense no Líbano. Como podemos avaliar tais acontecimentos? Do lado de Israel, a guerra do Líbano acabou provocando um grande desgaste político para o governo liderado pelo Likud e para a dupla Begin-Sharon. À medida em que a escalada crescia e o envolvimento israelense se aprofundava, as baixas aumentavam e os clamores populares de protesto se fizeram sentir. Não era possível afirmar que o sítio a Beirute era essencial para a sobrevivência de Israel. Aquela guerra não guardava qualquer semelhança com a luta de 1948, quando os pioneiros afrontaram os perigos e construíram o Estado judaico superando todas as apostas e expectativas de sucesso. Ao mesmo tempo, o soldado israelense de 1982/83 diferia muito dos colonos de 1948. Muitos deles se habituaram a uma vida de classe média, passada nas escolas, junto às namoradas nas lanchonetes e diante das telas de televisão. Sua disposição para largar seu dia a dia para arriscar a pele no Líbano era pequena, e a capacidade de seus pais e amigos suportarem a dor de uma perda também. Os colonos religiosos ortodoxos poderiam apoiar a intervenção no Líbano ardorosamente, mas sua postura parecia hipócrita para a maioria da população israelense, moderna, ocidentalizada e laicizada. Afinal, os filhos dos religiosos não servem às forças armadas. Portanto seu sangue jamais se misturaria às águas do rio Litani, nem suas vidas correriam risco nos quarteirões de Beirute. Os desejos de um Líbano politicamente organizado sob o talante israelense também malograram. Bashir Gemayel foi assassinado, e a composição governamental que vingou por intermédio de seu irmão Amin Gemayel repetiria o quadro dos equilíbrios libaneses, agora sem a presença de uma OLP forte. Mas a animosidade contra Israel na fronteira não diminuiria. Os xiitas, antes preocupados em combater os sunitas, cristãos e a OLP formariam movimentos de resistência contra a presença israelense no sul do Líbano, e certamente, o mais fraco deles não seria o grupo Hizbollah (Partido de Deus). Assim, os ataques com morteiros e rampas de foguetes contra território israelense continuariam, só que desta vez as armas eram operadas por militantes xiitas. O grosso das tropas israelenses tinham portanto de sair do Líbano. Inicialmente queriam que sua retirada fosse seguida de um movimento análogo das unidades sírias que 18 ocupavam as áreas do leste do país. Os sírios contudo, assumiram ares de que não pretendiam de livre e espontânea vontade mover-se de onde estavam, a não ser que ocorresse um novo dilúvio bíblico. Logo evidenciou-se que o deslocamento das tropas de Hafez Assad de suas posições só aconteceria pela força de um ataque israelense. Mas naquele momento, nem a comunidade internacional nem a opinião pública de Israel tolerariam uma nova guerra. A FDI iniciou então uma retirada unilateral, tendo o cuidado de deixar em sua esteira uma força militar patrocinada por Israel: o Exército do Sul do Líbano. Além disso, tropas israelenses continuariam engajadas em combates na região, mas jamais conseguiriam prevalecer totalmente sobre o inimigo. O episódio de Sabra e Shatila por sua vez, calou fundo a consciência humanitária e democrática de muitos cidadãos israelenses, e os protestos da comunidade internacional levaram o governo israelense a instalar uma comissão de inquérito. Os comandantes militares da área, o chefe do estado maior e o ministro da defesa foram considerados co- responsáveis pela desgraça. A comissão concluiu que as autoridades israelenses sabiam claramente o que aconteceria caso franqueassem a entrada dos maronitas nos campos sitiados por suas tropas. O gabinete israelense teve de se pronunciar acerca das conclusões da comissão. O único voto contrário ao relatório foi o de Ariel Sharon. Este acabou saindo do ministério da defesa, continuando no governo como ministro sem pasta. 14 A guerra no Líbano desgastara, tanto fisicamente quanto emocionalmente o primeiro ministro Menachem Begin. Em 1983 divulgou a notícia de que se afastaria da vida política. Begin seria substituído na liderança governamental por Yitzhak Shamir. No lado palestino, o episódio do Líbano, aparentemente devastador para a estrutura da OLP, impôs algumas modificações na conduta da sua liderança, que no nosso modo de entender foram positivas. O Líbano estava drenando as atenções e as forças dos palestinos. Uma vez lá, ao constituírem um pequeno Estado dentro do Estado (tal qual haviam tentado fazer na Jordânia), desviaram-se da questão principal. Para compreendermos devidamente o problema tornam-se necessárias algumas informações adicionais. Desde o primeiro choque do petróleo – 1973 – os governos árabes, especialmente da área do Golfo, se encheram de dinheiro. Os petrodólares jorraram nas cearas arábicas e tendas começaram a ser substituídas por suntuosos palácios. Yasser Arafat, com muita habilidade e esperteza, conseguiu a proeza de sensibilizar emires e xeques do Golfo para a 19 necessidade de fornecerem subvenções em dinheiro para a OLP e o povo palestino. A lógica que governava as cabeças dos emires do petróleo é fácil de ser percebida. Abrir mão de algum dinheiro e com isso, manter os palestinos à distância, entretidos com suas turras com Israel não era, para eles, mau negócio. O ouro negro que jorrava dos campos petrolíferos então, respingou generosamente nas vestes dos líderes das várias facções da OLP. Muitos deles, em Beirute, passaram a gozar uma “boa vida”. Zuhair Mohsen, por exemplo, líder da al-Saiqa (grupo político aliado aos sírios), passeava sossegadamente pelas ruas da cidade em um magnífico Mercedes prateado. Em seu período de férias (pois ninguém é de ferro), transferia-se para um apartamento de sua propriedade na famosa La Croisette Promenade situada na badalada Cannes. Arafat não compartilhava, ele próprio, de tais amenidades, mas toleravaque seus auxiliares mais próximos participassem da farra. O chefe da inteligência, Mohamed Atallah, vivia em um opulento apartamento em Beirute e promovia “festas de arromba” onde eram consumidas generosas quantidades de caviar. Enquanto isso, jovens palestinos residentes em Beirute que estudavam na universidade, passavam os seus dias em elegantes cafés discutindo de forma empolgada os mais importantes eventos da revolução árabe. Não há como saber se parte do dinheiro doado pelos ricaços do petróleo serviu para o suporte das unidades combatentes ou mesmo se proporcionou algum alívio aos palestinos moradores em campos de refugiados. Como ponto culminante de todo o equívoco e descaracterização, a OLP, com o dinheiro do petróleo, iniciou a organização de unidades militares regulares. Adquiriram da Síria e da URSS velhos tanques T-34/85 para criar uma brigada blindada. Começaram a treinar jovens recrutas como soldados convencionais. O delírio chegou a tal ponto que a OLP passou a contar com uma banda militar formada por gaiteiros ao estilo escocês. Seus integrantes eram soldados palestinos que pertenciam à Legião Árabe da Jordânia e em temos idos, haviam sido treinados como músicos por gaiteiros da velha Escócia. 15 A experiência libanesa provocou um grave divórcio entre a liderança da OLP e os jovens idealistas da frente de combate, bem como as multidões de palestinos que viviam em precárias condições na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. É possível, ao interpretarmos os eventos desse modo, que a intervenção israelense no Líbano tenha sacudido a OLP obrigando-a a voltar a realidade. Uma vez privados das amenidades de Beirute, foram 20 compelidos pelo estrondo da artilharia israelense a lembrarem-se de duas obrigações e retornar `a luta. De qualquer modo, coordenar a luta a partir do distante exílio em Túnis fazia com que tudo se tornasse muito mais difícil para a liderança da OLP. No início dos anos 80, as diferenças entre os “de dentro” (palestinos moradores dos territórios ocupados) e os “de fora” (os palestinos da “diáspora”) ampliou-se mais ainda. Tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza, o povo parecia assumir um comportamento apático e desesperançoso. Os líderes da OLP nos territórios enfrentavam grandes dificuldades em mobilizar politicamente os habitantes e em obter novos recrutas. Tudo indicava que os palestinos residentes, coletivamente, conformaram-se às agruras da ocupação e procuravam viver suas vidas do modo menos miserável possível. Milhares deles entravam todos os dias em Israel para trabalhar em empresas pertencentes a cidadãos israelenses. Os mercados das cidades ocupadas estavam repletos de artigos produzidos em Israel. A ocupação estabelecera laços econômicos fortes entre os dois povos. A mente árabe parecia estar possuída pelo marasmo, embotada pelas imposições do governo militar israelense. Mas os líderes da OLP no exílio não poderiam saber de verdade o significado de viver sob o tacão de um governo militar durante 20 anos. Os generais israelenses de seu lado, se esqueceram da história e se esqueceram de sua própria história. A força militar podia derrotar exércitos, mas dificilmente seria capaz de manter uma população inteira indefinidamente subjugada. Em 1987, os palestinos residentes surpreenderiam tanto seus autoproclamados líderes no exílio quanto os gerentes da ocupação militar. A aparente apatia não foi suficiente para apagar o surdo ressentimento alimentado por duas décadas de vexames, revistas, desapropriações forçadas e arrogância da autoridade militar. Em 1987, soou a hora da Intifada. 1 Coleção Guerra na Paz. Op.cit. p. 986-987 2 SHLAIM, A op.cit. p. 344-345. 3 Idem, p. 384-385. 4 Idem, p. 391 5 BREGMAN, A , JIHAN, T. op.cit. p. 168. 6 FOSS, Christopher. Jane’s armour and artillery – 1984-9984. London, Jane’s Publishing Company Limited, 1985, p. 743. 7 SHLAIM, A op.cit. p. 402. 8 Idem, p. 403. 9 Coleção Guerra nos Céus. Rio de Janeiro, Rio Gráfica, 1986. Volume II, p. 269-271. 10 BREGMAN, A e TAHRI, J. op.cit. p. 172-174. 11 Idem, p. 174-175. 12 FRIEDMAN, Thomas. From Beirut to Jerusalem. New York, Anchor Books, 1989, p. 80-82. 13 Idem. P. 161-164. 21 14 SHLAIM, A op.cit. p. 417. 15 FRIEDMAN, T. op.cit p. 120-121.
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