Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UnB – Universidade de Brasília CDS – Centro de Desenvolvimento Sustentável A CONTRIBUIÇÃO DO PRONERA NA CONSTRUÇÃO DE PULÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Mônica Castagna Molina Orientadora: Lais Mourão Sá Tese de doutorado Brasília – DF: Novembro/2003 ABSTRACT During the last few decades there has been a view of development in Brazilian society which has considered the rural areas as backward, inferior and archaic. At the same time, the city is projected as a place of modernity and progress. This view of modernity as a preserve of cities, has sustained the implementation of an agricultural development model based on large areas of mono crop culture, cultivated with the intensive use of chemical and mechanical inputs over large concentrations of land. This model of modernising agriculture has, over the last few decades, forced more than thirty million people to leave the countryside. Opposed to this view are social movements and sectors of civil society organising themselves and fighting for Land Reform, proposing the idea of the countryside as a space for social inclusion and democratization of Brazilian society. This is a central policy for changing the current development model, through its capacity for redistributing land and income. One of the main results of the struggle for land redistribution has also been the conquest of the redistribution of knowledge by rural workers. Part of these conquests have materialised in the setting up of the National Programme for Education in Land Reform, and in the construction of a National Initiative for Education of the Countryside, whose history has been recovered in this paper. This action by the social movements has been responsible for the broadening of the land debate, definitively incorporating into it one more theme: Education of the Countryside, building with this area as well a new space for the production of knowledge, whose main feature is transdisciplinarity. A CONTRIBUIÇÃO DO PRONERA NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Mônica Castagna Molina Tese de Doutorado Brasília – DF Novembro de 2003 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL A CONTRIBUIÇÃO DO PRONERA NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL MÔNICA CASTAGNA MOLINA Tese de Doutorado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Grau de Doutor em Desenvolvimento Sustentável, área de concentração em Política e Gestão Ambiental. Aprovado por: _______________________________________________ Laís Mourão Sá, Professora Doutora/UnB Orientadora ________________________________________________ Leila Martins Chalub. Professora Doutora/UnB Examinadora Interna __________________________________________________ Suzi Huff Theodoro . Professora Doutora /UnB Examinadora Interna _________________________________________________ Bernardo Mançano Fernandes. Professor Doutor /UNESP Examinador Externo _________________________________________________ Roseli Salete Caldart. Professora Doutora/ITERRA Examinadora Externa _________________________________________________ Eliana Lutzgarda Collabina Ramirez Abrahão. Professora Doutora /UnB Examinadora Interna - Suplente Brasília, DF, 11 de novembro de 2003 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília Molina, Mônica Castagna: Título / Mônica Castagna Molina. – Brasília, 2003. 282 p. il. Orientadora: Laís Mourão Sá. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) - Universidade de Brasília. Centro de Desenvolvimento Sustentável. 1. Sustentabilidade - Tese. 2. Reforma Agrária - Tese. 3. Educação do Campo - Tese. 4. Educação e a Questão Agrária – Tese. I. Sá, Laís Maria Mourão. II. Universidade de Brasília. III. Título. DF/BS/CCSA CDU 37.035 (81) (043.3) É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta tese e emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. O autor reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta tese de doutorado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito da autora. Mônica Castagna Molina Autora AGRADECIMENTOS O processo de produção de trabalhos acadêmicos costuma ser carregado de intensa solidão. Porém, esta tese, assim como a recente história de construção da Educação do Campo, só foi possível em função de um trabalho coletivo, fruto de muitas reflexões conjuntas no desafio de compreender a realidade do campo brasileiro e os caminhos para o seu desenvolvimento. Quero agradecer de coração a muitas pessoas que foram imprescindíveis para concretização desta tese. A Antonio Molina Serralvo e Cleyde Castagna Molina, pelo imenso e sólido amor que sempre me ofertaram. E ainda, por todo o apoio no trabalho pesado de tabulação e elaboração dos gráficos , e pelas longas orações. Á Sônia Meire Santos Azevedo de Jesus, amiga irmã, que viveu comigo a angústia da redação da tese, pela inestimável contribuição nos debates, na leitura, reescrita, enfim , no parto da tese. A minha querida amiga Elisângela Nunes Pereira, por todo carinho e cuidado durante o período de redação, e também enorme contribuição em todo o trabalho de digitação e finalização da tese. A amiga amada, Catarina dos Santos Machado, pela tão rica convivência e por todos os valores ensinados. Aos grandes educadores, Bernardo Mançano Fernandes e Roseli Salet Caldart, não só pelas ricas contribuições ofertadas para a construção desta tese, desde o exame de qualificação, mas principalmente pelas lições práticas com o própria exemplo de vida. Aos amigos Edgar Jorge Kolling, João Rezek Júnior, João Claúdio Todorov e Elfi Fenske, que arduamente trabalharam na luta de resistência para a manutenção do Pronera. As queridas amigas Érica , Martinha e Marianne, que tiveram muita paciência comigo no trabalho, durante a escrita da tese. Aos amigos, conselheiros, orientadores, irmãos, Ademir e Vilma Araújo pela afeto tão intenso e cumplicidade de décadas. A Laís Mourão de Sá, minha orientadora e amiga, pela tão doce convivência, pelos grandes ensinamentos e pela total confiança e liberdade na realização desta tese. Ao estimado companheiro Lauro Morhy, que abraçou a luta pela Reforma Agrária e se empenhou intensamente para a viabilização dos projetos do Grupo de Tabalho de Apoio à Reforma Agrária, da UnB. RESUMO Durante as últimas décadas tem prevalecido na sociedade brasileira uma visão de desenvolvimento que considera o espaço do rural como o espaço do atrasado, do inferior, do arcaico. Simultaneamente, projeta-se a cidade como o lugar da modernidade e do progresso. Essa visão da modernidade voltada para cidades, sustentou a implementação de um modelo de desenvolvimento agrícola baseado em extensas áreas de monocultura, cultivadas com utilização intensa de insumos químicos e mecanicos, sobre grandes concentrações fundiárias. Esse modelode modernização da agricultura expulsou, nas últimas décadas, mais de trinta milhões de pessoas do campo. Em oposição a esta visão, propondo o campo como espaço de inclusão social e democratização da sociedade brasileira movimentos sociais e setores da sociedade civil organizam- se e lutam por Reforma Agrária. Esta é uma política central para mudança do modelo de desenvolvimento vigente, a partir de sua capacidade de desconcentrar terra e renda. Como um dos principais resultados da luta pela desconcentração fundiária, trabalhadores rurais têm conquistado também a desconcentração do conhecimento. Parte destas conquistas materializaram-se na criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, e na construção da Articulação Nacional por uma Educação do Campo, cujas histórias foram recuperadas neste trabalho. Esta ação dos movimentos sociais foi responsável pela ampliação do debate da questão agrária, incorporando a ele definitivamente mais um tema : a Educação do Campo, construindo também com esta área um novo espaço de produção do conhecimento, cujo marca principal é a transdiciplinaridade. SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS III LISTA DE TABELAS IV LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS V INTRODUÇÃO 1 1. A MUDANÇA DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO A PARTIR DO CAMPO 1.1. A Revalorização do Campo como Espaço de Desenvolvimento 5 1.2. Desenvolvimento Sustentável e Questão Agrária 11 1.3. O Papel da Reforma Agrária para a construção de um Novo Modelo de Desenvolvimento 26 1.4. A Educação como requisito para a construção da Sustentabilidade nas áreas de Reforma Agrária 33 2. A CONSTRUÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA E DA ARTICULAÇÃO NACIONAL POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO 2.1. Antecedentes da criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária 47 2.2. O processo político que garantiu a existência do Pronera 52 2.2. Antecedentes e reflexões da I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo: as sementes de um novo paradigma 62 2.3. Desdobramentos da Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo: algumas ações no período de 1999 –2003 68 2.4. Os primeiros frutos: a conquista das Diretrizes Operacionais para Educação Básica das Escolas do Campo 74 3. PRONERA: CONSTITUIÇÃO PRÁTICA E TEÓRICA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO 3.1. A metodologia da pesquisa 83 3.2. As estratégias adotadas nas primeiras experiências de Educação de Jovens e Adultos do Pronera 85 3.3. As estratégias dos Cursos Profissionalizantes e Superiores do Pronera – a formação dos Educadores do Campo 100 3.4. Ouvindo os sujeitos da Educação do Campo no Pronera 108 3.4.1. A relação da alfabetização com a construção da cidadania e da auto-estima 108 3.4.2. O difícil aprendizado das parcerias 113 3.4.3. A contribuição do Pronera para a construção da Sustentabilidade 116 3.4.4. O Pronera e a construção dos paradigmas da Educação do Campo 120 CONCLUSÕES Dos espaços conquistados: Como amarrar nossos arados às estrelas 126 FONTES PRIMÁRIAS DE PESQUISA POR ANO, TÍTULO E AUTOR 137 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 140 ANEXOS 146 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Comprovação do rendimento médio mensal entre regiões e áreas urbanas e rurais 20 FIGURA 2 – Principais resultados alcançados com a execução do Pronera, segundo os integrantes do MST 110 FIGURA 3 – Participação de outras Secretarias Municipais e Estaduais na execução do Pronera, segundo os professores 115 FIGURA 4 – Participação de outras Secretarias Municipais e Estaduais na execução do Pronera, segundo os gestores do Incra 115 FIGURA 5 – Campos de intervenção nas questões ambientais após a criação do Pronera, segundo professores 118 FIGURA 6 – Novas áreas de conhecimento das universidades que incluem a Educação do Campo, segundo os integrantes do MST 122 FIGURA 7 – Ampliação de produção acadêmica das universidades, segundo os professores 123 LISTA DE TABELAS E QUADROS TABELA 1 – Proporção de Pobres no Meio Rural. Brasil e Regiões. 1990 20 TABELA 2 – Média de Anos de Estudo da População de 15 anos ou mais. 2001 21 TABELA 3 – Taxa de analfabetismo população de 15 anos ou mais. 1991-2000 22 TABELA 4 – Freqüência à escola na faixa de 15 a 17 anos. 2000 22 QUADRO 1 – Características de processo de gestão das Políticas Públicas 47 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANMTR – Associação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNE – Conselho Nacional de Educação CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura CPT – Comissão Pastoral da Terra CRUB – Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras EFAs – Escolas Família Agrícola ENEJA – Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos ENERA – Encontro Nacional das Educadoras e dos Educadores da Reforma Agrária FUB – Fundação Universidade de Brasília GTRA – Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IES – Instituições de Ensino Superior INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas ITERRA – Instituto Técnico de Estudos e Pesquisas da Reforma Agrária MAB – Movimento de Atingidos por Barragens MEC – Ministério da Educação MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário MPA – Movimento de Pequenos Agricultores MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MS – Movimentos sociais ONG – Organização Não Governamental PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar PRONAF – Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária SEDUC – Secretaria Estadual de Educação SOF – Secretaria de Orçamento Federal UECE – Universidade Estadual do Ceará UEMS – Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul UFAL – Universidade de Alagoas UFCE – Universidade Federal do Ceará UFPR – Universidade Federal do Paraná UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFS – Universidade Federal de Sergipe UnB – Universidade de Brasília UNEFAB – União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNESP – Universidade Estadual Paulista UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância UNIJUI – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UVA – Universidade do Vale do Acaraú Lista das universidades e instituições que já trabalharam e/ou são parceiras do Pronera Centro Federal de Formação Tecnológica do Maranhão Escola Estadual Agrícola Juvêncio Martins Ferreira – Unaí - MG Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária Instituto Tecnosma Universidade Estadual de Feira de Santana Universidade Estadual de Santa Cruz Universidade do Estado da Bahia – Campus de Barreiras Universidade do Estado da Bahia – Campus de Bom Jesus da Lapa Universidade do Estado da Bahia – Campus de Irecê Universidade do Estado da Bahia – Campus de Teixeirade Freitas Universidade Federal da Bahia Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Universidade Federal da Paraíba Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Campus de Macau Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Campus de Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Campus de Caicó Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – Campus dee Mossoró Universidade Federal do Piauí Universidade Federal de Pernambuco Universidade de Pernambuco – Campus de Petrolina Universidade de Pernambuco – Campus de Guaranhuns Universidade de Pernambuco – Campus de Nazaré Universidade Federal Rural de Pernambuco Universidade Federal de Sergipe Universidade Federal de Alagoas Universidade Federal do Maranhão – Campus de São Luís Universidade Federal do Maranhão – Campus de Imperatriz Universidade Estadual do Vale do Acaraú Universidade Federal do Ceará Universidade Estadual do Ceará Universidade Federal de Rondônia – Campus de Rolim de Moura Universidade Federal de Rondônia – Campus de Ji-Paraná Universidade do Tocantins – Campus de Palmas Universidade do Tocantins – Campus de Gurupi Universidade do Tocantins – Campus de Araguaína Universidade do Tocantins – Campus de Guaraí Universidade do Tocantins – Campus de Tocantinópolis Universidade Federal do Pará – Campus de Belém Universidade Federal do Pará – Campus de Marabá Universidade Federal do Acre Universidade do Estado do Pará Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Universidade do Estado do Mato Grosso – Campus de Nova Xavantina Universidade do Estado do Mato Grosso – Campus de Cáceres Universidade Federal de Goiás Universidade de Brasília Universidade do Oeste de Santa Catarina – Campus de Videira Universidade do Oeste de Santa Catarina – Campus de Chapecó Universidade Federal de Santa Maria Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Universidade do Vale do Rio dos Sinos Universidade Estadual de Londrina Universidade Estadual de Maringá Universidade Estadual de Ponta Grossa Universidade Federal do Paraná Universidade Estadual de Montes Claros Universidade Estadual de Minas Gerais Universidade Federal de Viçosa Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal Fluminense Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Universidade Federal do Espírito Santo Universidade Estadual Júlio de Mesquita – Campus de Marília Universidade Estadual Júlio de Mesquita – Campus de Presidente Prudente INTRODUÇÃO Desde a graduação trabalho com Reforma Agrária pesquisando esta temática, primeiro no âmbito do Direito Agrário, depois na área das Políticas Públicas, onde fiz Especialização sobre políticas para a questão agrária. No mestrado em Sociologia, desenvolvi pesquisa intitulada “Reforma Agrária e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – A reinvenção do futuro”, na Universidade Estadual de Campinas. Em 1996, comecei a trabalhar na Universidade de Brasília, na Coordenação do Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária, cuja missão é desenvolver projetos de ensino, pesquisa e extensão no âmbito da questão agrária brasileira. Em função deste trabalho tive a rica oportunidade de estreitar os vínculos anteriores com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a partir da realização em parceria de diversos projetos, em diferentes áreas do conhecimento. Uma das áreas de trabalho mais fecundas que nos envolvemos foi com o Setor de Educação do MST. A partir de suas demandas e projetos, realizamos ações educativas em diferentes níveis nas áreas de Reforma Agrária. A partir da realização do I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, em 1997, uma série de desdobramentos ocorreram. Um destes desdobramentos foi a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera. Em função das atividades desenvolvidas na UnB, como coordenadora do Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária, fiquei responsável pelas articulações insterinstitucional do processo de negociação que resultou no Pronera, sendo que tive o privilégio de participar de todas as discussões para criação desta política pública. Participei também, representando a UnB, das proposições e ações que resultaram na criação da Articulação Nacional por uma Educação do Campo. Membro da Comissão Pedagógica Nacional e da Comissão Executiva do Pronera, nos 5 anos recentes acompanhei, em vários momentos, as tentativas do governo Fernando Henrique de extinguir o Pronera, impedindo a liberação de recursos com contigenciamentos e alterando a estruturação e o funcionamento da Comissão Pedagógica, reduzindo-lhe a composição e se opondo ao encaminhamento de projetos. Apesar das investidas e de grande retenção de 2 recursos pelo governo, os movimentos sociais, principalmente através das ações do Movimento Sem Terra, conseguiram garantir a continuidade do Programa. O Pronera foi oficializado em 16 de abril de 1998. Até 2003 apoiou mais de 150 projetos nos assentamentos rurais, contabilizando parcerias com mais de 55 universidades públicas federais e estaduais. De onde nasce esta pesquisa? Da convicção de analisar teoricamente o significado de um movimento social impulsionar e pressionar construírem-se políticas públicas de educação. No exame de qualificação deste doutoramento, Roseli Salete Caldart ressaltou a necessidade de registrar “o que produz a proposição do Pronera e o que a proposição do Pronera produz”. Entender quais condições históricas e qual acúmulo político de forças tornou possível propor-se uma política de educação específica para as áreas de Reforma Agrária, numa conjuntura de desmonte e intervenção do Estado na educação. Ao mesmo tempo se quer analisar o que significou e o que produziu a existência desta política. Não se pretende avaliar eficiência pedagógica de práticas educativas que o Pronera apóia, porém estratégias de articulação dos movimentos sociais, significantemente do MST. Esta pesquisa é para mim a realização prática dos pressupostos teóricos de produção do conhecimento propostos por Edgar Morin. Não se produz ciência abortando-se a subjetividade dos sujeitos. Ao tempo que realizo esforços para análise teórica dos processos vividos, trago também a memória afetiva de co- partícipe da escrita desta história. No livro O Pensamento Complexo, há um artigo intitulado “Viver, Compreender, Amar”, do qual extraio afirmação orientadora para este esforço de reflexão sobre o próprio processo que vivi: uma vida totalmente racional é pura loucura. (1999, p. 181) Reunir-se-ão elementos úteis a outras estratégias para elaborar políticas públicas de educação num campo novo de conhecimento que se está construindo a partir do que estamos chamando de transição de paradigmas. Desta reflexão proposta por Edgar Morin sobre transição de paradigmas propusemo-nos considerar a hipótese de compreender o campo do saber novo como campo do conhecimento que se produz a partir da transdisciplinaridade e exige um pensar complexo para absorvê-lo. Complexidade é a forma de pensar o mundo que mostra a necessidade de abordar todo problema e todo processo pelo ponto de vista da trama das relações 3 em que se inserem. Problema é processo não linear, não vertical, organizado em rede cuja lógica depende da realidade em si e da compreensão dos paradigmas que norteiam o conhecimento. Para Morin há complexidade quando os componentes “constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico são inseparáveis) e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes” (2001, p.20).Nesse instante do apreender nos propusemos a analisar a questão agrária. Morin ensina-nos que a postura paradigmática implica questionar o conhecimento disponível e nova reorganização do conhecimento, longe das determinações e do entendimento de problemas por linearidade ou neutralidade histórica. O princípio basilar dessa organização é contextualizar, o que se deve ter como imperativo em educação. A referência de Morin muito vale para a Reforma Agrária e as novas socioterritorializações. Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução, a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de representações, idéias, teorias, discursos. A organização dos conhecimentos é realizada em função de princípios e regras; comporta operações de ligação (conjunção, inclusão, implicação) e de separação à ligação, da ligação à separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese à análise. Ou seja: o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise e síntese (Morin, 2001, p. 24). São estas reflexões propostas que nos orientaram na análise da questão agrária brasileira, procurando compreender os diferentes elementos que a compõem. O aspecto principal desta reflexão sobre a questão agrária relaciona-se aos índices de concentração fundiária extremamente altos ainda vigentes na sociedade brasileira e as consequências sociais, econômicas, políticas, culturais e ambientais que advém desta concentração. A principal ferramenta para alterar esta situação é a intervenção do Estado na estrutura fundiária a partir da realização da Reforma Agrária. E a nossa primeira 4 hipótese de interpretação é que a luta dos movimentos sociais para a sua realização incorporou mais um elemento à constituição da questão agrária brasileira : a Educação do Campo. No primeiro capítulo refletimos sobre a emblemática luta produzida pelos movimentos sociais na perspectiva de ter o campo como espaço central de novo modelo de desenvolvimento, cuja preocupação não é produzir infinitamente mercadorias, mas criar vida digna e sustentável para a sociedade e a natureza. Construir esse modelo exige repensar as funções da agricultura e as do meio rural, aliadas à radical transformação do acesso e do uso do conhecimento no campo. Analisamos a ação prática dos movimentos sociais na busca deste modelo no segundo capítulo, em que reconstituímos a história do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária e a construção da Articulação Nacional por uma Educação do Campo. E aí se coloca nossa segunda hipótese de trabalho: o conjunto de práticas pedagógicas e reflexões teóricas produzidas a partir da intensa ação dos movimentos sociais cria um novo espaço de produção de conhecimento, essencialmente transdicipinar. No terceiro capítulo trabalhamos a constituição teórica e a prática do novo campo do conhecimento, pesquisando estratégias e práticas desenvolvidas nos projetos apoiados pelo Pronera. Em pesquisa documental, entrevistas semi- estruturadas e aplicação de questionários recolhemos as problemáticas reunidas pelo fio condutor da análise das estratégias na implementação das experiências do Pronera. Fundamentamos a tese ora defendida: pensarmos o Pronera como constituinte prático e teórico da Educação do Campo e de produção de políticas públicas. Nas conclusões apresentaremos estratégias a incorporar seguindo as lições do Pronera e as da Articulação Nacional na construção de políticas públicas de Educação do Campo que são capazes de contribuir na promoção do Desenvolvimento Sustentável. 5 CAPÍTULO 1.º A MUDANÇA DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO A PARTIR DO CAMPO 1.1. A REVALORIZAÇÃO DO CAMPO COMO ESPAÇO DE DESENVOLVIMENTO A construção do modelo de desenvolvimento capaz de garantir aos brasileiros dignas condições de vida passa pelo campo. Encontrar alternativas para democratizar a distribuição de renda - indispensável à retomada do crescimento econômico - exige sistemático esforço e investimentos em estudo e pesquisa das possibilidades que o espaço rural representa em potencialidade de geração de empregos, renda, espaço de moradia, serviços. Além de alternativas para incluir mais de 52 milhões de pobres na sociedade, um novo modelo deve pensar caminhos para enfrentar o caos das metrópoles, conseqüência da modernização conservadora da agricultura. Redescobrir a interação campo-cidade, em que reflexões sobre ocupação e utilização do território são o eixo central para se construir um novo modelo. A partir dos anos 70, o campo ocupou pouco espaço na agenda nacional de pesquisa. Levantamento preliminar em programa de pós-graduação brasileiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul atesta que somente 2% das pesquisas dizem respeito ao rural, que precisa ser reconduzido à agenda de pesquisas construindo conhecimentos que nos possibilitem utilizar todo o seu potencial. Atualmente diversas questões das sociedades contemporâneas tem restituído ao campo a importância que foi deixada para trás a partir da ênfase no desenvolvimento a partir das cidades. Wanderley (1997) analisa que problemas com o meio ambiente, discussões sobre o papel da agricultura no desenvolvimento, crises sociais e sobretudo ausência de emprego e transformações na agricultura recolocaram a problemática da “ruralidade” no contexto das sociedades modernas. Fala-se de um “renascimento rural”, da 6 necessidade de formulação de uma teoria da localidade (não apenas rural, diga-se de passagem) e de novas relações entre o campo e a cidade. Estes, longe de constituírem pólos opostos, guardam especificidades que não se anulam e que se expressam social, política e culturalmente (idem, p. 92). O debate da relação campo-cidade perpassa todas as reflexões que pretendemos desenvolver. Por muito tempo a visão que prevaleceu na sociedade, continuamente majoritária em muitos setores, é a que considera o campo lugar atrasado, do inferior, do arcaico. Nas últimas décadas consolidou-se um imaginário que projetou o espaço urbano como caminho natural único do desenvolvimento, do progresso, do sucesso econômico, tanto para indivíduos como para a sociedade. De certa maneira esta foi a visão-suporte para o processo de modernização da agricultura implementado no país. o desenvolvimento do capitalismo ocidental transformou a cidade em lugar privilegiado para a localização da indústria, do comércio e dos serviços, ou seja, um lugar de produção e trocas. Os centros urbanos passaram a ser pólos irradiadores de mercadorias e tecnologia e, consequentemente, de valores ideológicos e culturais, reforçando uma distinção dicotômica entre a cidade e o campo. Essa dicotomia tem funcionado como uma lógica explicativa fundante da realidade social, que ora contrapõe os dois pólos, ora subordina, incondicionalmente, o rural ao urbano SAUER (2002, p. 13) A leitura de "superioridade" do espaço urbano mascarou as conseqüências sociais, econômicas, ambientais, políticas e culturais nefastas do modelo de desenvolvimento agrícola das últimas décadas, enquanto à cidade associou-se ao espaço moderno, futurista, avançado. Trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas, são vistos por setores da sociedade como inferiores, não merecedores dos direitos e das garantias legadas aos moradores de grandes centros urbanos. 7 Essa negação de direitos é facilmente constatada a partir da precariedade de condições de vida em que se encontram populações de áreas rurais. Wanderley (1997, p. 100) observa ser marcante no Brasil ausência de poder público no meio rural,verificando-se carência de bens e serviços nesses locais. Vê que “em conseqüência, o rural está sempre referido à cidade como sua periferia espacial precária, dela dependendo política, econômica e socialmente”. Em geral, a vida da população rural depende estreitamente do núcleo urbano que a congrega, para poder suprir demandas econômicas ou sociais. Wanderley (idem, p.100) enfatiza que no país o rural é espaço de precariedade social. Mesmo a supressão de necessidades elementares dos indivíduos (acesso a médicos, bancos e igrejas) exige que os moradores se desloquem para as áreas urbanas. Quando estas “pequenas aglomerações crescem e multiplicam suas atividades, o meio rural não se fortalece, pois o que resulta deste processo é freqüentemente a sua ascensão à condição de cidade, brevemente sede do poder municipal”. A ausência do poder e de investimentos públicos rurais associa-se a um paradigma de desenvolvimento que nas últimas décadas dominou a sociedade brasileira e a partir do qual - com o processo de modernização - o espaço rural foi destinado a perder importância, tornando-se completamente subordinado à cidade. Veiga (2002, p.5) explicita essa visão ao afirmar que no Brasil há grande crença “de que sua fortíssima urbanização transformará a população rural em relíquia de um ultrapassado subdesenvolvimento”. Boa parte das elites brasileiras entende o esvaziamento sociocultural e demográfico do meio rural como desenvolvimento, i.e., alcançaremos a plenitude da modernidade quando a imensa maioria da população for urbanizada. Esta leitura fortalece a compreensão de que não há sentido o Estado investir recursos, criar políticas públicas específicas para um espaço que se extinguirá. Segundo dados oficiais 75,5% da população residia em áreas urbanas em 1991, proporção que teria atingindo 81,2% em 2000 (p. 21). Veiga contesta esta análise estatística e aponta graves distorções metodológicas na construção dos índices. Estudando os dados da pesquisa IPEA- IBGE-NESUR desde o censo de 1996, Veiga conclui que seria “ficção estatística” afirmar que 81,2% da população brasileira é urbana. A “ficção” origina-se de tradicionalmente, no Brasil, classificarem-se domicílios por zona onde se encontram: rural ou urbana. 8 Como todos municípios têm necessariamente zona urbana, “mesmo que sitiada pela mais cerrada das matas, pela mais rala das caatingas, pela mais extensiva das pastagens ou pela mais erma das plantações” são considerados urbanos os imensos contingentes populacionais que vivem no campo. Demonstrando a inconsistência da aferição, Veiga (idem, p. 5) observa que “casebres recenseados em veredas ou clareiras desses biomas são considerados tão urbanos quanto um duplex no centro de uma metrópole como São Paulo”. Wanderley (1997, p. 97/98) reitera esta crítica afirmando que no Brasil atribui-se a toda sede municipal a condição de cidade e à sua população a condição de urbana, independentemente de suas dimensões. Da mesma forma são consideradas igualmente urbanas certas concentrações populacionais que em alguns casos são de dimensão extremamente reduzida, como acontece com a grande maioria das sedes distritais. Além disso, é urbano quem habita sedes urbanas dos municípios, independentemente das profissões desempenhadas. Assim, um pequeno comerciante residente num ‘village’ europeu ou norte-americano, sem ser agricultor é um rural, enquanto o agricultor brasileiro que more na cidade é aqui considerado um legítimo urbano. Ao definir rural e urbano aliando critérios que incluem densidade demográfica por quilômetro quadrado, localização e tamanho populacional, Veiga (2002, p. 112) sustenta que 86,6 milhões de pessoas (55% da população) pertencem de fato à rede urbana. Dos “5.507 municípios brasileiros, 4.990 podem ser quase tudo o que se queira, menos cidades. A não ser que esse vocábulo se tenha tornado sinônimo de vila, povoado, vilarejo ou aldeia”. Muito mais que alertar que não é urbana quase metade da população brasileira, esta abordagem permite caracterizar três padrões básicos de território: “realmente urbano, rural profundo e os meandros rurais imprecisos ou ambíguos.” A partir desta nova leitura “podemos considerar como população rural 52 milhões de pessoas” (Veiga, p.113). 9 Esta tipologia é de extrema importância porque permite um novo desenho para a elaboração das políticas públicas, a partir da vontade política de se construir um novo modelo de desenvolvimento. Interessa-nos demonstrar a importância do campo como espaço de inclusão social, a partir de uma nova visão territorial sobre os processos de desenvolvimento. Interessa-nos analisar quais são as possibilidades que podemos construir enquanto nação a partir da utilização dos vastos espaços territoriais rurais e do investimento intensivo na formação, valorização e escolarização formal da população do campo. Ignacy Sachs desenvolve reflexões que enfatizam a centralidade do espaço do campo para mudar o modelo desenvolvimento. Sachs (2001) aponta que já está em curso um novo movimento no processo migratório em função das próprias mudanças experimentadas pela sociedade nacional a partir dos ciclos econômicos que o país atravessa. As mudanças migratórias sinalizam crescerem as populações rurais em municípios que Veiga (2002, p. 78) admite serem municípios rurais atraentes. Em um quarto dos municípios essencialmente rurais houve crescimento populacional bem superior ao dos urbanos. Nos 1.109 municípios mais atraentes do Brasil rural, a população aumentou mais de 30%, enquanto cresceu 20% no Brasil urbano e 15% no conjunto do país. O movimento de crescimento que Sachs aponta muito importa para estabelecermos uma estratégia política deliberada que tenha forte intencionalidade de direcionar o desenvolvimento desde o Brasil rural. Wanderley (2000) enfoca que a revalorização rural em curso relaciona-se a pela primeira vez na história brasileira a agricultura familiar estar sendo oficialmente reconhecida como ator social e a criação do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar – Pronaf é um sinal explícito disto. Se produtores de baixa renda e pequenos produtores eram antes os pobres do campo, hoje os agricultores familiares são percebidos como portadores de outra concepção de agricultura, diferente e alternativa à agricultura tradicional, diferente e alternativa à agricultura latifundiária e patronal dominante no país. A forte e efetiva demanda pela terra se traduz na emergência de um setor de assentamentos de Reforma Agrária. Uma das principais conseqüências dos dois movimentos é a 10 revalorização do meio rural como lugar de trabalho e de vida expresso na retomada da reivindicação por permanência ou retorno à terra. Esta “ruralidade” da agricultura familiar, que povoa o campo e anima sua vida social, se opõe, ao mesmo tempo, à relação absenteísta, despovoada e predatória do espaço rural, praticada pela agricultura latifundiária, à visão “urbano-centrada” dominante na sociedade e à percepção do meio rural sem agricultores Wanderley (2000, p. 29) Consoante essa reflexão, Sauer (2002, p.17) estuda que há o ressurgimento na atualidade de um “processo de retomada teórica do rural como tentativa de resgatar os diferentes processos de transformação porque passa a sociedade”. Desenvolve a reflexão analisando estar em curso amplo movimento social e político que trabalha recriar o sentido do espaço do campo na luta pela terra no Brasil. Essa luta é processo social e político que abarca diferentes transformações no meio rural, redirecionando e democratizando a participaçãoda população rural no conjunto da sociedade. A luta garante bem-estar social, melhoria de vida e impulsiona transformações culturais, simbólicas e representacionais, gesta valores e representações sociais. Cria perspectivas para o rural, transforma a relação com o meio ambiente (sustentabilidade) e com o lugar (reterritorialização) entre as pessoas (nova sociabilidade), abre perspectivas para a nova ruralidade no Brasil. Interpretação pertinente na recriação do sentido do espaço do campo não ignora subjetividades, representações nem o imaginário social, que possibilitará criar e inovar fundamentando-se na cultura de cada espaço/território. COSTA (2002) diz: a construção das representações pelos homens também incorpora o cotidiano desses homens. As representações da terra que os sujeitos em questão constróem nascem de suas experiências vivenciadas no dia-a-dia, na luta pela conquista da terra, do senso 11 comum que carregam consigo, da capacidade que contam de se descolarem do mundo (p. 148). A ativa luta social vivida no Brasil quanto ao acesso à terra insere-se num processo maior que questiona a lógica do modelo de desenvolvimento em que não há espaço para todos, e a natureza é mercadoria. Quando Wanderley (1997, 2000) e Sauer (2002) explicitam o processo de recriação do rural por lutas sociais como aquele que não quer só melhorias socioeconômicas, mas modo de vida harmonioso com a natureza, as pessoas, uso/produção de conhecimento, remetem-nos a conceituar desenvolvimento rural sustentável . 1.2. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E QUESTÃO AGRÁRIA As interpretações dicotomizadas da realidade, fundadas na racionalidade científica que se estruturou baseada na separação sujeito-objeto do conhecimento, não têm sido capazes de responder aos inúmeros questionamentos que se colocam diante da gravidade e da diversidade dos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea. A novidade dos problemas e ausência de respostas satisfatórias a eles, aliados a ineficiência dos modelos de explicação até então oferecidas pela ciência, caracterizam uma situação de transição, de mudanças de paradigmas. A complexidade dos problemas, exige que se pense como enfrentar as questões ambientais, econômicas, sociais, políticas, culturais através de reorientação do modelo de desenvolvimento vigente na sociedade. Esta crise do modelo de desenvolvimento e da forma de conhecer a própria realidade podem ser definidas como um momento de transição de paradigmas, onde ainda não existem novos métodos definidamente eficientes para conhecer, como também a própria idéia da autosuficiência dos métodos é posta em causa. É dentro deste ambiente de incertezas e de mudanças que Pires (1998) propõe uma reflexão sobre o conceito de desenvolvimento sustentável. 12 Este autor considera que ainda não há, de fato, um conceito preciso acerca do que seria considerado desenvolvimento sustentável, alertando que há muito mais uma rejeição dos padrões atuais, do que a definição do conteúdo dos novos padrões e valores. O certo é que uma concepção que analise o desenvolvimento buscando a sustentabilidade não pode continuar insistindo num padrão de leitura que só é capaz de perceber a realidade de uma maneira fragmentada, compartimentalizada, dividida em diferentes “caixinhas” de ciência. A idéia da sustentabilidade exige um olhar complexo, capaz de abordar simultaneamente os aspectos sociais, econômicos, ambientais, políticos, culturais e institucionais dos problemas analisados. De acordo com a reflexão proposta pelo autor, estaria se constituindo na ciência uma nova “consciência da complexidade do real”, onde uma das dicotomias fundantes do modo de conhecer estaria sendo posta em causa: a separação sociedade e natureza, a partir da constatação de que “o meio ambiente é frontalmente atingido pelos fatores econômicos, sociais e culturais da sociedade moderna” Pires (1998, p.20). Assim, a crença reconfortante para muitos cientistas da possível separação entre sujeito e objeto do conhecimento é profundamente abalada pela compreensão que qualquer ação sobre a natureza e o meio ambiente provoca novas alterações e novos padrões de comportamento na própria natureza, correlacionados ao tamanho e ao impacto da ação humana desencadeadora desta determinada reação. Esta profunda discussão sobre a forma de conhecer e intervir na realidade não deve ser apenas um exercício de diletantismo acadêmico, mas, deve estar orientada pela preocupação central de fundamentar um novo patamar para as relações entre a sociedade e a natureza, baseados em novos padrões de igualdade e de justiça social. Conforme observa Pires (1998, p.23 ), os problemas ambientais que enfrentamos atualmente são conseqüência do modelo de crescimento econômico que fundamenta-se em uma “ciência e uma técnica, que privilegia o lucro em detrimento da preservação, o capital vis-a-vis o trabalho, o econômico em relação ao social, o poder frente a ética”. 13 Uma nova forma de conhecer, baseada na preocupação de garantir um desenvolvimento sustentável para a humanidade necessita caminhar no sentido uma “inter e uma transdiciplinaridade das ciências, admitindo, contudo, a complexidade e o caráter incipiente desse processo”. (idem, p. 25 ) Ou seja, para de fato estabelecermos novos padrões de relação entre a sociedade e natureza, fundamentado na busca da sustentabilidade, é necessário não apenas aprender a interpretar a realidade através do cruzamento dos conceitos de diferentes áreas do conhecimento, mas também através do cruzamento dos diferentes métodos de investigação, produzindo assim novos campos disciplinares capazes de abarcar o conjunto de variáveis necessárias a uma leitura complexa dos fenômenos sócio- ambientais. A crise do meio ambiente provoca e “testemunha profunda e dramática incapacidade da ciência dita universal de fornecer uma visão de mundo compatível com as aspirações/necessidades do homem”, segundo PENNA -VEGA (2003:22). Da crise ressurge a consciência imprescindível da transição para outro modo de pensar a vida, "uma ciência nova baseada na união cooperativa entre previsibilidade/imprevisibilidade, certo/incerto, determinado/indeterminado, complicado/complexo, ordem/desordem” (p. 23). Esta ciência exige compreendermos a relação questão agrária x desenvolvimento sustentável por interfaces e interpretações atualizadas sobre a realidade agrária, considerando-lhe a complexidade. Uma leitura complexa dos fenômenos, capaz de integrar o ambiental ao social ao econômico ao político ao cultural é modernizadora e modelar no desenvolvimento em que se opera. RAMOS (2001, p. 150) referencia : A atual discussão sobre desenvolvimento rural sustentável faz sentido quando inserida nas reflexões contemporâneas que os pensadores de diversas formações vêm fazendo sobre o processo de desenvolvimento, pensando nacionalmente ou não. O tema tem particular interesse quando remetido à situação dos países subdesenvolvidos, pois em suas áreas rurais está a maior parte da população mundial excluída daquele processo, muito tempo confundido com o processo de urbanização/industrialização. Mostrou-se que isto teve enraizamento cultural, já que se cristalizou 14 a visão de que rural significa atraso e conservadorismo, tendo predominado até hoje um economismo e um racionalismo reducionistas, nos quais a preocupação com a conservação do solo, do clima, enfim da paisagem ficou em segundo plano, tanto quanto a sua relação com a propriedade e com a estrutura fundiária. A relaçãoda estrutura fundiária com a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento implementado é flagrante. A forma de distribuir a propriedade da terra num país influi determinantemente no conjunto de relações econômicas, políticas, culturais e sociais que nele se desenvolvem. A propriedade da terra, por bem específico que é, tem capacidade natural de produzir outros bens. Confere a seu detentor a automática capacidade de gerar riquezas. Concentrar a propriedade da terra concentra renda, riqueza, poder político, controla as relações sociais nesse espaço. A questão agrária é estrutural. Impossibilitar o acesso à terra como meio de produção impede classes trabalhadoras rurais de ter acesso a bens e a direitos fundamentais de alimento, emprego, moradia, educação. Inviabiliza-se analisar a questão agrária sob a visão reducionista. Ao privilegiar um só item (econômico/agronômico/socioagrário), corre- se risco de propor soluções isoladas, de não incorporar elementos e informações definidoras à interpretação da realidade agrária. a questão agrária é o movimento do conjunto de problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações capitalistas de produção. Em diferentes momentos da história, essa questão apresenta-se com características diversas, relacionadas aos distintos estágios de desenvolvimento do capitalismo. Assim, a produção teórica constantemente sofre modificações por causa das novas referências, formadas a partir das transformações da realidade FERNANDES (2001, p. 23). 15 As conseqüências da distribuição territorial fazem com que a elas se vincule a solução de diversos problemas da sociedade. O centro da questão agrária refere-se a níveis de concentração fundiária vigentes no Brasil e às distorções que gera no acesso ao trabalho. Concentrar terra nas mãos de poucos proprietários determina o círculo vicioso que impede evoluírem grandes parcelas da população e reproduz miséria econômica, social, política e cultural no campo e na cidade. É por isto que a questão agrária não envolve apenas aspectos agronômicos, econômicos, sociais, políticos, culturais ou ambientais. Estes aspectos estão todos relacionados e decorrem de uma característica básica da estrutura fundiária do Brasil: a concentração da propriedade no pólo superior da pirâmide dos proprietários, que provoca extrema fragmentação dos níveis inferiores; e a existência de uma grande população rural destituída de terra. “Quando se constata a formação desse círculo vicioso, não pode haver dúvida: o desenvolvimento do país em questão defronta-se com uma questão agrária” (SAMPAIO. 2002, p.318). Sampaio demonstra que existe íntima correlação entre a desigualdade social e os níveis de crescimento, contrariando as correntes econômicas majoritárias que consideram que os índices de concentração de renda e desigualdades sociais existentes na sociedade brasileira não alteram os níveis de crescimento econômico. Os índices de concentração da propriedade fundiária e as inúmeras distorções que ela acarreta nas relações econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais, desenvolvidas na sociedade brasileira, indicam a centralidade da questão agrária. A forma como se organiza a agricultura e distribuição da estrutura fundiária sobre a qual ela se faz terá conseqüências diretas e indiretas sobre o conjunto da população, e o acesso à terra é elemento fundamental desta equação, caso se busque de fato a sustentabilidade do desenvolvimento. Os dados disponíveis mais atualizados sobre concentração fundiária foram apresentados pelo Sistema Nacional de Cadastro Rural, do Incra, que divulgou, em agosto de 1996, o Atlas Fundiário Brasileiro. De acordo com esses dados, cerca da metade da área dos imóveis rurais do Brasil está concentrada em apenas 2% das propriedades. Nesses imóveis, 62,4% da área não é produtiva e poderia ser desapropriada para Reforma Agrária. Segundo o Atlas, existem no Brasil 75 imóveis cuja área de sua propriedade é de mais de 100 mil hectares. 16 Da leitura do Atlas Fundiário podemos afirmar que a concentração de terras no país permanece sem qualquer alteração que indique diminuição dos níveis de concentração, há 56 anos. Os números confirmam o problema estrutural apontado por Sampaio (2002) em relação à principal característica da estrutura fundiária brasileira: a concentração da propriedade da terra no topo da pirâmide dos proprietários pode ser traduzida pelo fato de as 87.594 propriedades consideradas grandes, a partir dos novos parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, deterem 187.762.627,7 hectares, que representam 56,7% da área total dos imóveis em seu poder. A evolução da estrutura fundiária no país comprova que a concentração da propriedade da terra vem aumentando progressivamente. Os dados referentes ao período de 1992 a 1996 indicam que as propriedades com menos de 100 hectares foram perdendo seu peso, no total, enquanto as propriedades acima de mil hectares aumentaram de 45% para 55,2% de todas as terras do Brasil. A manutenção da concentração da propriedade da terra em níveis tão altos, e a inutilização da maior parte destas áreas traz graves conseqüências. Não é só no campo, e não somente para os trabalhadores rurais, que esta estrutura fundiária anacrônica é prejudicial: o conjunto da sociedade brasileira arca com os prejuízos da distorção. Os altos índices de concentração fundiária guardam intrínseca relação com a forma como se dá a utilização das terras no Brasil. É comum que a maior parte das grandes propriedades cultive pequena parcela de sua área, mascarando a realidade do não-aproveitamento da maior parte das terras concentradas nos latifúndios. Alertando para o desperdício das terras, WANDERLEY (1995, p.10) declara que “são 185 milhões de hectares (40% da área aproveitável) que têm proprietários e não são aproveitados produtivamente; quase toda esta terra apropriada sob a forma de latifúndios”. O processo de “modernização da agricultura” pelo qual passou o país, nas três últimas décadas, agravou a concentração fundiária e as conseqüências que dela advêm. O que se reflete é se a forma como se deu o processo de “modernização” é a única opção de que a sociedade dispõe para organizar sua agricultura. 17 O debate acerca da importância da estrutura fundiária tem sido, nos últimos tempos, um dos principais pontos de divergência entre os movimentos sociais rurais e representantes dos latifundiários, que reafirmam que o problema da Reforma Agrária, hoje, não é mais a concentração fundiária do Brasil, mas o insucesso dos assentamentos. Contestando a interpretação que historicamente ignora o peso e a força econômica e a política do latifúndio no Brasil, os movimentos sociais reiteram que o grande problema do país é manter os atuais índices de concentração de propriedade da terra, em função da concentração da riqueza e do poder político que ela produz. A não-resolução dos problemas resultantes da concentração fundiária traz conseqüências econômicas, sociais, políticas, culturais para o conjunto da sociedade. No caso brasileiro, ao dificultar esta decisão do Estado está o antigo pacto estabelecido entre este e a classe proprietária, para modernizar o latifúndio, sem desconcentrar a propriedade da terra. Esse pacto impede o avanço do desenvolvimento integral das potencialidades da sociedade nacional. Analisando as características do processo de modernização da agricultura brasileira, compete aclarar que são próprias do modelo implementado a produçãoconstante da miséria, da exclusão social. As principais características da modernização da agricultura brasileira têm indicado contradições a partir do modelo de desenvolvimento dentro do qual a modernização foi gestada. Este debate repôs a preocupação que influenciou as ciências sociais, na década dos 60, sobre crescimento e desenvolvimento. Para Martins (1994, p. 52), depois de trinta anos de captura do desenvolvimento pela ideologia do crescimento, estamos diante dos mesmos problemas, ”reconhecendo que três décadas de crescimento apenas repõem o tema e o problema original: o não- desenvolvimento no crescimento”. Apesar do crescimento econômico experimentado no período, não houve melhoria significativa nos padrões de desenvolvimento da sociedade brasileira. Ao contrário. SACHS (2001, p. 75-76) destaca: de 1940 a 1980 o Brasil cresceu ao ritmo descomunal de 7% ao ano, dobrando portanto o seu PIB de 10 em 10 anos. Porém este 18 avanço ocorreu por meio de um crescimento socialmente perverso, alimentado pelo aprofundamento persistente das desigualdades e pela gestão inflacionária dos conflitos distributivos. Assim, o Brasil foi o campeão do crescimento durante quatro décadas, mas saiu desta experiência como um país profundamente injusto e, portanto, subdesenvolvido. Tamanha injustiça é incompatível com o conceito de desenvolvimento humano, que supõe a extensão de todos os direitos - inclusive os econômicos, sociais e culturais - ao conjunto dos cidadãos. Dito de outra maneira, o desenvolvimento implica a cidadania universal efetiva, condição esta que não está presente hoje. Há duas décadas o país não consegue retomar o crescimento e muito menos arcar com a dívida social acumulada. Analisando os dados apresentados no “Relatório sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil”, produzidos desde 1996 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, comprovamos essas afirmações. São radiografias das condições econômicas e sociais que avaliam dados sobre renda, escolaridade e expectativa de vida nos estados brasileiros. Avaliar um modelo de desenvolvimento da perspectiva dos níveis de desenvolvimento humano franqueia que as políticas públicas proponham ações voltadas à transformação do padrão de vida dos povos e da superação da pobreza. O documento do IPEA menciona: O Desenvolvimento Humano é um conceito amplo e integral que pode ser definido como o processo de ampliação da gama de opções e oportunidades das pessoas. Dentro desse espectro, três opções básicas estão presentes em todos os níveis de desenvolvimento e aparecem como condição para as demais: desfrutar uma vida longa e saudável, adquirir conhecimento e ter acesso aos recursos necessários a um padrão de vida decente IPEA (2002, p. 3). Dados destes relatórios apontam que um em cada três brasileiros não tem renda suficiente para suprir suas necessidades básicas, havendo mais de 52 19 milhões de pessoas abaixo do nível de pobreza. Sem consenso sobre o exato número de pobres - os dados utilizados para medir pobreza no Brasil variam com as metodologias de instituições e pesquisadores - importa a absurda parcela que vive em condições desumanas. Outro indicador aponta a gravidade da situação social: a renda média dos 10% mais ricos da população é quase 30 vezes maior do que a renda média dos 40% mais pobres. De acordo com Figueiredo (1996), os métodos mensuráveis da pobreza variam entre o direto e o de renda. Pelo direto, consideram-se pobres pessoas cuja cesta de consumo não atende às necessidades mínimas essenciais de sobrevivência. Pelo de renda, consideram-se pobres pessoas cuja renda está abaixo da faixa determinada, que satisfaz as necessidades básicas de sobrevivência. Independentemente do método, precisamos ressaltar a forte incidência de população rural pobre. Na literatura sobre modernização agrícola, tem sido objeto de diferentes estudos a análise das relações entre a modernização e a concentração da distribuição da renda e a pobreza na área rural, cujos estudos apontam ser a pobreza fenômeno de extensão fundamentalmente rural. Figueiredo (1996, p. 103) observa que “a agricultura apresenta níveis mais baixos de renda média e maiores níveis de pobreza absoluta do que o observado para o total dos demais setores”. A reflexão sobre a relação da pobreza rural e a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento agrícola encontram-se em trabalhos diversos. Análises indicam vinculações entre pobreza, fome e estrutura agrária, à parte critérios metodológicos variados que apuram índices e resultados não coincidentes entre os trabalhos. Analisando principais pesquisas sobre o tema, Norder (1997, P.13), in “Assentamentos Rurais: Casa, Comida e Trabalho” reforça a reincidência da miséria na área rural. Conclui: “independentemente dos critérios e das divergências numéricas entre estas pesquisas quantitativas, todos estes estudos mostram que a pobreza e a fome são proporcionalmente maiores no campo que na cidade”. Confirmando a gravidade da situação rural, Leone (1994, p. 30) registra que a indigência, o nível mais acentuado de carências, “tem maior incidência nas áreas rurais, havendo nestas áreas uma maior proporção de indigentes com relação à população total da localidade de cada região”. As tabelas que seguem mostram a proporção pobres nas áreas urbanas e nas áreas rurais. 20 Tabela 1. Proporção de Pobres no Meio Rural: Brasil e Regiões. 1990. (Percentagem) Regiões Metropolitanas (%) Urbano (%) Rural (%) SUL 17,6 16,8 28,9 SUDESTE 26,9 17,7 27,1 NORDESTE 43,4 43,8 49,1 CENTRO-OESTE 22,4 23,2 31,8 NORTE 43,4 43,2 - BRASIL 28,9 26,8 39,2 Fonte: Rocha (1995), a partir de dados do IBGE/PNAD (Citado por VEIGA. 1998) Nota: Meio Rural do Norte não investigado pela PNAD e estado de Tocantins incluído em Goiás. Pelo IBGE, prepondera a desigualdade ao aferir-se renda em áreas rurais, se comparada o rendimento real médio mensal1 de domicílio rural ao de zona urbana. Na urbana, o valor é igual a R$ 854,00 e na rural é de R$ 328,00, o equivale a 38% do urbano. Rendimento real médio mensal - 2000 0 200 400 600 800 1000 1200 Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste Urbana Rural Figura1. Comprovação do rendimento médio mensal entre as áreas urbanas e rurais. 1 Soma do rendimento mensal de trabalho com o rendimento proveniente de outras fontes. Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2000 21 Os baixos índices de desenvolvimento do campo relacionam-se à impossibilidade básica de acesso à terra pelos trabalhadores rurais. Veiga (1998, p. 3) enfatiza que diversos trabalhos comprovam que a pobreza rural relaciona-se ao modelo adotado para se desenvolver a agricultura. “Isso significa que se quiser discutir a fundo pobreza rural tem que discutir as características da nossa agricultura. E a mais marcante é o contraste entre o perfil da agricultura brasileira e o perfil da agricultura de um país considerado desenvolvido” . Além dos piores índices de renda, estão no campo também os piores índices de escolaridade. Os dados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar – PNAD, comparam a proporção da população ocupada em todos os setores econômicos. A escolaridade média da população de 15 anos ou mais, moradora em zonas rurais (3,4 anos) é metade da estimada para a população urbana (7 anos). Urgem atitudes que diminuam a desigualdade. Tabela 2. Média de Anos de Estudos da População de 15 anos ou mais (2001) Urbano Rural Brasil 7,0 3,4 Norte 6,4 3,3 Nordeste5,8 2,6 Sudeste 7,5 4,1 Sul 7,3 4,6 Centro Oeste 7,0 4,1 Fonte: IBGE - PNAD 2001 Regiões Geográficas Anos de Estudos Nota: Exclusive população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Número Médio de Anos de Estudos da População de 15 anos ou mais - 2001 Os índices de analfabetismo também preocupam. Segundo a PNAD, 29,8% da população adulta2 da zona rural é analfabeta, enquanto na zona urbana a taxa é 10,3%. O dado é mais grave se considerarmos que a taxa de analfabetismo mensurada não inclui os analfabetos funcionais, população com menos de quatro séries do ensino fundamental cursadas. 2 De 15 anos ou mais. 22 Tabela 3. Taxa de analfabetismo da população (15 anos ou mais.1991-2000) 1991 2000 1991 2000 1991 2000 Brasil 19,7 13,6 40,1 29,8 13,8 10,3 Norte 24,3 16,3 38,2 29,9 15,5 11,2 Nordeste 37,1 26,2 56,4 42,7 25,8 19,5 Sudeste 11,9 8,1 28,8 19,3 9,8 7,0 Sul 11,9 7,7 18,2 12,5 9,7 6,5 Centro Oeste 16,6 10,8 30,0 19,9 13,6 9,4 Fonte: IBGE - Censos Demográficos 1991 e 2000 Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais - 1991-2000 Taxa de Analfabetismo (%) Total Regiões Geográficas Rural Urbana Na faixa etária correspondente ao ensino médio, a situação do estudo na área rural é ainda mais grave. De acordo com o Censo Demográfico 2000, somente 66% de jovens entre 15 a 17 anos residentes em zonas rurais freqüentam a escola, o que significa 1.462.454 alunos. Além disso, do total de 2.215.591 jovens rurais, 17,3% estão ainda nas séries iniciais do ensino fundamental. Entre os jovens urbanos são 5,5%, indicando sério problema de atraso escolar. Tabela 4. Freqüência à escola na faixa de 15 a 17 anos. 2000. Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Brasil 2.215.591 80,7% 66,0% 5,5% 17,3% 30,7% 30,8% 38,1% 12,9% 1,8% 1,1% 4,7% 4,0% Norte 273.629 80,1% 56,3% 8,3% 20,6% 38,7% 25,2% 23,9% 4,2% 3,9% 1,8% 5,2% 4,5% Nordeste 1.111.055 80,3% 70,1% 10,9% 26,0% 39,5% 33,7% 24,4% 5,5% 1,5% 0,9% 3,9% 4,0% Sudeste 446.957 82,1% 63,4% 3,0% 5,4% 26,2% 30,6% 46,7% 22,8% 1,5% 1,0% 4,8% 3,6% Sul 291.099 77,7% 65,0% 2,0% 2,5% 21,8% 23,7% 46,8% 33,4% 1,7% 1,1% 5,4% 4,3% Centro Oeste 92.851 80,0% 60,8% 3,9% 7,0% 33,3% 34,7% 35,2% 14,4% 2,0% 1,1% 5,4% 3,6% Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000 Ensino Regular Freqüência à escola na faixa de 15 a 17 anos - 2000 Taxa de Freqüência à escola Outros Níveis/Modal. de ensino População Rural de 15 a 17 anos Região Geográfica 1ª a 4ª 5ª a 8ª Ensino Fundamental Ensino Médio Educação de Jovens e Adultos A ausência de políticas públicas educacionais específicas para o campo é forte componente dos fatores que contribuem para impedir o desenvolvimento efetivo das comunidades rurais. Abramovay (2001) analisa a importância da educação para o desenvolvimento do campo: o mais importante desafio que têm pela frente as forças capazes de levar adiante um pacto de desenvolvimento territorial consiste na Fonte: IBGE – PNAD 2001 23 mudança do ambiente educacional existente no meio rural. A tradição histórica brasileira (própria de sociedades de passado escravista) que dissocia o trabalho do conhecimento persiste até hoje no meio rural. Como em toda a América Latina, persiste no Brasil o costume de que fica na propriedade paterna aquele filho com menos vocação para o estudo. Aos mais dinâmicos e empreendedores todos apontam o caminho da migração como o mais promissor: os pais, os colegas, os professores e os próprios extensionistas. É claro que se forma assim um perfeito círculo vicioso entre a escassez de oportunidades e a precariedade dos talentos para explorá-las. (Abramovay, 2001; p. 31) . Enquanto escolas rurais favorecerem êxodos e ativarem baixa auto-estima em trabalhadores rurais/agricultores/jovens e estigmatizarem o espaço rural com preconceito e desvalorização, difícil será mudar a visão do que pode significar para o jovem o espaço do campo. Construir o olhar que faculta perceber a indissolubilidade dos laços desse espaço com questões vitais como preservar recursos naturais, produzir alimentos e qualidade de vida exige reconstruir o saber e o aprendizado de outra forma de aprender no campo. A idéia central é: não se trata apenas de melhorar a escola ou ampliar cursos profissionalizantes, mas modificar a lógica do uso e do acesso ao conhecimento no campo brasileiro. Ressalta-se que este processo necessariamente tem dois sentidos: não só levar e ampliar o acesso aos conhecimentos científicos quanto recuperar e ampliar a utilização dos amplos saberes os quais são detentores os trabalhadores rurais. Saberes estes que foram sistematicamente ignorados e desvalorizados por este modelo de desenvolvimento agrícola baseado na modernização tecnológica. Mas, só faz sentido discutir proposta educacional específica para o homem do campo partindo-se de um novo projeto de desenvolvimento para o campo, como parte de novo modelo de desenvolvimento. As complexidades a enfrentar para se mudar o acesso e o uso do conhecimento no campo não produzirão efeitos sem se alterar profundamente as próprias condições de sobrevivência no espaço rural da sociedade brasileira. 24 No Seminário Internacional Distribuição de Riqueza, Pobreza e Crescimento Econômico, realizado em Brasília, em julho de 1998, Veiga, sustentou a tese de que uma mudança efetiva nos padrões de desenvolvimento da sociedade brasileira para níveis maiores de igualdade e distribuição de riqueza requer mudança significativa no padrão de desenvolvimento agrícola adotado. Ao fazer a ligação entre pobreza rural, desenvolvimento e crescimento econômico, o autor sustentou a tese de que a Reforma Agrária e a agricultura familiar se apresentam como políticas cruciais para um novo modelo de desenvolvimento no campo. Este autor também observa ser preciso estar atento ao fato de que ainda haja tanta pobreza no meio rural num país que teve um dos maiores êxodos do mundo: aproximadamente 30 milhões de pessoas deixaram o campo, entre 1960 e 1980, o que teria significado cerca de 300 mil famílias por ano. Uma das principais críticas ao modelo de desenvolvimento adotado no país, pode ser apresentado através do que tem sido considerado como estratégia urbana de desenvolvimento rural e que teve um amplo respaldo de uma determinada visão teórica sobre os processos de desenvolvimento, o que nos remete as discussões anteriores sobre a responsabilidade das leituras científicas. De acordo com o livro Reforma Agrária e Agricultura Familiar no Século XXI, estas estratégias urbanas de desenvolvimento rural, que foram amplamente desenvolvidas em parte dos países da América Latina basearam-se principalmente em estratégias de estímulo à modernização da grande propriedade tradicional, por meio, sobretudo, de generosos subsídios, modernizando a produção dos latifúndios sem democratização do acesso à terra, o provocou extrema redução de oportunidades de trabalho agrícola e acirrou intensamente os conflitos fundiários. A opção por este caminho, que significou o desprezo do Estado e da sociedade à produção agrícola realizada a partir das unidades familiares de produção, se explicam por diversos fatores, entre eles por razões políticas e econômicas específicas a estes países, em geral relacionadas ao poder das oligarquias rurais em manter um status quo marcado pela alta concentração dos recursos fundiários. No entanto, esta adoção contou com uma justificativa intelectual proporcionada pela visão teórica predominante sobre o papel da agricultura no processo dedesenvolvimento econômico. Segundo esta visão, o potencial da 25 agricultura para estimular o crescimento econômico era muito limitado. Ao setor agrícola caberia financiar o processo de industrialização, fornecer mão-de-obra barata e gerar divisas por intermédio, sobretudo, da exportação de produtos tropicais (...) O “atraso” da agricultura, visto como fonte de crises agrárias e estrangulamentos ao crescimento da indústria, deveria ser enfrentado pela modernização do latifúndio (...) A integração do latifúndio à economia moderna por intermédio da tecnificação seria suficiente para assegurar que a agricultura desempenhasse suas funções e para dinamizar a economia rural. Em nenhum momento levou-se em consideração as conseqüências socioeconômicas e políticas da adoção desta estratégia, em particular sobre a distribuição de renda, tal era a confiança na leitura teórica que colocava todas as expectativas na indústria como dínamo do crescimento, e nas cidades como locus de desenvolvimento. Esta visão limitada da inserção da agricultura na economia ignorava não apenas os efeitos sociais negativos de um crescimento baseado na modernização do latifúndio, como também a correlação positiva entre crescimento econômico e distribuição de renda. (GUANZIROLI, et al. 2001, p. 16). (grifos nossos) Estabelecida a relação entre o padrão de desenvolvimento agrícola adotado no Brasil e os altos índices de pobreza encontrados na área rural, é necessário encontrar alternativas capazes de transformar a situação social da população, proporcionando-lhes condições dignas de vida. Neste cenário se coloca a possibilidade de a Reforma Agrária contribuir com a alteração deste modelo, pelas implicações econômicas, sociais, políticas e culturais que produz. Para tanto, não se pode prescindir do papel do Estado. Quando se busca o desenvolvimento, e não apenas o crescimento econômico, é imprescindível a atuação do Estado. A lógica de operação do mercado não se preocupa se há ou não desenvolvimento paralelo ao crescimento econômico. 1.3. O PAPEL DA REFORMA AGRÁRIA PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO 26 Debater Reforma Agrária provoca interesses contraditórios e conflitivos entre os atores que têm interesse em realizá-la e os que desejam impedi-la de concretizar-se. No debate sobre o caráter da Reforma Agrária nos anos noventa foi majoritária a idéia de que esta política pública não era mais necessária do ponto do vista do desenvolvimento econômico do país. Um dos motes da concepção de Reforma Agrária como política social compensatória foi a idéia de “terra para quem nela não mais trabalha” (SILVA, 1989, p. 43). Por essa concepção, grandes produtores respondem às demandas do mercado. Nesta etapa, é caro capitalizar e tornar competitivos os pequenos agricultores beneficiários da Reforma Agrária. Apesar de assumir o caráter conservador da modernização agrícola brasileira, este autor defende que uma ampla Reforma Agrária “não é mais necessária do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas no campo” (SIVA, 1989, p. 48). Por esta análise, o Brasil agrícola vai muito bem, pois ocorreu forte modernização no campo, com instalação de diversos complexos agroindustriais que alteraram o modo de produção na agricultura. Ao país compete agora enfrentar somente uma “questão social”, a ser tratada como resquício da inevitável modernização. A visão segundo a qual a Reforma Agrária não tem mais sentido econômico na sociedade brasileira atualmente, parte do pressuposto de que o modelo de desenvolvimento vigente na agricultura não deve ser alterado, por ser eficiente, já que conseguiu responder aos desafios colocados ao setor na década de 60, não cabendo mais uma ampla distribuição de terra aos trabalhadores rurais. De acordo com essa concepção, não são necessárias profundas alterações na organização da produção agrícola nacional, em função da sua eficiência produtiva. A leitura de que do ponto de vista econômico a Reforma Agrária não é mais necessária separa a questão fundiária da questão da produção e do abastecimento, ou seja, da “questão agrícola”. De acordo com Veiga, (1998) a leitura que supõe não haver mais sentido econômico para a Reforma Agrária hoje está associada a um tremendo dilema para os economistas brasileiros (independente do espectro político em que se encontram: direita, centro ou esquerda), que separam radicalmente os aspectos sociais e os 27 econômicos da atuação do Estado, particularmente quando se discute a questão da estrutura agrária. O autor ressalta ser possível e muitas vezes necessário, para fins analíticos e de estudos de especialização, fazer-se essa distinção. Não se pode perder de vista porém, que na realidade concreta, cotidiana, estes aspectos não se separam. Observa que nas Ciências Humanas, de muito se fazer essa separação e especializar pesquisadores em aspectos sociais e em aspectos econômicos, muitos economistas e sociólogos acabam tratando a realidade de forma separada. Veiga (1998, p.1) observa que um dos grandes problemas teóricos e políticos que temos para enfrentar a pobreza rural está em um pensamento arraigado da elite intelectual brasileira segunda a qual “o crescimento nada tem a ver com desigualdade; o que leva a pensar que a redistribuição de ativos fundiários não teria sentido econômico, sendo aceitável apenas como política de cunho social”. É a separação entre os aspectos sociais e econômicos das conseqüências da redistribuição da estrutura fundiária que leva parcela significativa dos pensadores brasileiros a afirmar que a Reforma Agrária não tem mais sentido econômico atualmente, que a ela resta o papel de política social, no sentido de fazer justiça social aos sem-terra. Contrariando a visão que sustenta que a Reforma Agrária é política somente de cunho social, no Seminário Internacional “Distribuição de Riqueza, Pobreza e Crescimento Econômico” foram apresentados diversos trabalhos comprovando os efeitos econômicos da política de reestruturação fundiária. Pesquisas discutidas no Seminário comprovaram que, ao promover a distribuição da terra, que é um ativo financeiro, a Reforma Agrária produz efeitos agregados, sustentando o próprio crescimento econômico, o que confirma o papel estratégico do meio rural no processo de desenvolvimento. O Seminário, que tinha como objetivo principal discutir argumentos teóricos e evidências empíricas capazes de mostrar a relação entre desigualdade e crescimento econômico, apresentou como uma de suas principais conclusões a importância da Reforma Agrária como política das mais eficazes no combate à pobreza rural. Uma das mais graves conseqüências da visão, segundo a qual a reforma da estrutura fundiária teria sentido somente como política social, é que ela retira o caráter estratégico da reflexão sobre a intrínseca conexão entre a pobreza rural e o modelo de desenvolvimento agrícola adotado no país, fazendo com que em lugar de 28 se pensar a Reforma Agrária como questão estrutural, se proceda à comparação de custos e benefícios desta política com outras políticas assistenciais. Embora os partidários desta leitura da Reforma Agrária como política social façam também suas as críticas aos custos sociais da modernização conservadora da agricultura brasileira (êxodo rural, pobreza, superexploração dos trabalhadores etc.), eles não aceitam a idéia quando se propõe que estes custos são parte do próprio modelo implementado, não sendo factível a separação do agrário e do agrícola. Novamente essa separação do econômico e do social justifica a posição em defesa da eficácia
Compartilhar