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MAIS QUE PERFEITA ADOLESCENTE
							( Sylvia Orthof)
PREFáCIO
Cada espaço em branco pode ser lido do jeito que você quiser.
O resto é o que se segue.
Espaço em branco, também, pode ser uma forma de engrossar este livro.
Afinal, se vou assassinar uma pessoa, não posso ser um modelo de virtude.
Dedico este livro para você, que pode ser a minha vítima.
Decido que sou escritora. Se você não estiver de acordo, dane-se! Sei que tenho talento.
Eu tinha que ter algo de bom, né? As pessoas vivem dizendo que sou respondona, metida à coisa, que não me enturmo...
METIDA à COISA TEM CRASE?
Já pensei na chata da dona Inácia e na sua gramatiquice! Dona Inácia até me deu de presente um livro grosso, de Celso Ferreira da Cunha, chamado Gramática da Língua Portuguesa, cheio de dicas.
No livro tem algo que diz que a crase acontece quando...
E EU VOU FAZER UM LIVRO DE GRAMáTICA?
Nunquinha da silva, credo! Peço perdão a quem se amarra em crases e vírgulas, mas eu estou em outra: vou cometer um crime.
Vou cometer um crime mais-que-perfeito, ou seja:
Eu cometera,
Tu cometeras,
Ele cometera...
Socorro!
A chata da dona Inácia me gramaticou todinha!
A odienta, perversa, abominável dona Inácia, amantíssima gramatilóica, vai virar, tadinha, vai virar uma oração sem sujeito!
Exemplo de oração sem sujeitinho:
"Há dores secas, como há cóleras mudas" (Machado de Assis)
Pois eu tenho uma cólera muda, uma dor seca, eu tenho catorze anos de idade e sou uma peste!
Adoro escrever deixando espaços em branco. O motivo é que minha cabeça está cheia de espaços onde todas as coisas se misturam, fico sem pensar e penso, só que não consigo repetir os pensamentos.
Todas as cores misturadas dão o branco? É isso aí.
O problema é que as cores são sete, mas os pensamentos são iguais aos números, não têm fim!
Puxa, acho que escrevi uma coisa muito profunda!
BUNDA!
- Bia, cuidado com as rimas! - sopra, no meu pensamento, a crápula da dona Inácia. Droga!
A coisa que mais detesto na dona Inácia é que ela é frágil, doente, "tossidinha". Todo mundo vive dizendo que ela é um amor, realmente dedicada ao seu trabalho de editora. Que a dona Inácia lê todos os textos que mandam para ela, trabalha demais, sofre com os autores que não conseguem ser editados.
Dona Inácia vai morrer e vai pró céu. Isso já torna a minha consciência ainda mais em ordem. Deve ser terrível matar alguém que vai para o Inferno. Inferno é com letra maiúscula?
Quando conheci a dona Inácia, tudo era diferente: cheguei a gostar demais dela, fiquei vidrada naqueles olhos azuis, naquele ar de fidalguia, magreza, costume cinza. 
Eu digo "costume" porque ela fala assim; é treco de saia combinando com casaco. Por baixo, ela usa aquelas blusas de laço no pescoço, colar de pérolas, cabelo esticado em coque, grisalhamente perfeita.
Ela é tia do João. Conheci no aniversário dele. Eu lá, gamadíssima no cara, um gato, e veio a tia, a dona Inácia. João me apresentou:
- Tia Inácia, a Bia adora escrever. Quem sabe, a senhora dá uma chance e ela publica um livro, hein?
Dona Inácia piscou seus olhos azuis em minha direcção, e fiquei sabendo que ela tem uma editora. É editora pequena, mas publica livros infantis e juvenis, e fiquei com o coração batendo em dobro: mistura de batimentos cardíacos pelo João, com nervosismo por estar junto de uma senhora digníssima, que tinha uma editora.
João ficou no meio da turma. Eu, como sempre, fiquei afastada. Morro de chorar, porque o pessoal não conversa comigo! Mas isso é segredo... Só conto quando escrevo.
Será que todo livro é um segredo?
Lógico que é: vou assassinar a dona Inácia, vou publicar este livro por outra editora, vou deixar passar muito tempo. Ninguém vai desconfiar. Crime perfeito é assim.
Decido, ou decidi que vou usar um pseudónimo. Qual será o pseudónimo que escolherei, ó defunta Inácia?
Naquele dia da festa, dona Inácia deu uma certa atenção à minha pessoa (tem crase?), e eu fiquei muito da falante, o que sempre me acontece quando fico nervosa.
- Então, você escreve?
- Tento escrever um pouquinho... - e patati e patatá e tal e coisa, acabei contando que amo escrever, mas que detestava gramática, coisa assim e coisa e tal... Sei 
lá o que falei! Garanto que foi demais, mas eu sou como sou, não dá pra mudar.
- Gramática é coisa muito interessante - falou a dona Inácia, começando a se tornar chata, revelando um pouco da sua gramatiquice, mas eu não dei pela advertência. 
Eu estava ligada na possibilidade de editar um livro, fiz tudo para ser encantadora, prestei muita atenção na odienta, na que haveria de ser a minha vitima de morte-matadamente-mor
rida.
QUAL O MOTIVO DO CRIME?
Resolvi escrever agora colocando títulos nos capítulos. Pronto: rimei! E como é que eu vou dizer? Eu tenho culpa que capítulo rima com título?
Vou aproveitar e escrever uma poesia modernosa. Sei que o pessoal não se amarra mais em rimas, mas eu tenho que aproveitar o que acontece, e é o que farei. Depois, explico o resto. Agora, vou catar um livro, que encapei, porque foi comprado num sebo, e que se chama Vocabulário de Rimas, de Sérgio Ximenes. Aliás, o nome completo do autor é Sérgio Barcellos Ximenes, mas me amarrei foi no Ximenes. Achei o nome bárbaro: meu secreto pseudónimo será Ximena Ximenes... Talvez não seja bom: as iniciais 
formam xisxis... Vou catar outro pseudónimo, chegarei lá.
Onde encontrar rimas para capítulo?
Espio no índice. Vejo que as rimas procuradas ficam na página 247. Abro, procuro...
- TULO
 - capítulo
- subtítulo
- título (s)
Ué... só isso? E eu precisava buscar um dicionário de rimas para encontrar o óbvio?
Até que simpatizo com o Ximenes. Ele, realmente, não poderia inventar rimas que não existem... MAS EU POSSO!
O título
do capítulo
tem o subtítulo
pós-modernículo
de um assassinículo
mais-que-perfeitículo
pra encher testículo
CHEGA!
Por favor, Sérgio Barcellos Ximenes, não fique zangado, eu não estou de gozação com o senhor! Até porque adorei, de coração inteiro, o seu agradecimento, no início 
do livro, que tem uma frase assim, no meio da poesia:
"...aos que passam sem leitores tendo a arte como selo..."
Será que ficarei eternamente sem leitores? E se eu nem tiver a "arte como selo"? Se eu for uma péssima arrogante pedante peidante de literatice e chatice?
Mexo e remexo no Vocabulário de Rimas, pensando no meu programado e certíssimo assassinato de dona Inácia, já que ela não aprovou os meus escritos, lá na editora. 
Tenho certeza de que a dona Inácia nem leu o que escrevi! Certeza absoluta, pois colei as páginas, algumas, só na pontinha, e elas voltaram coladérrimas. A falsa da dona Inácia ainda veio dizendo que eu levava jeito, mas que, infelizmente, minha gramática era sei lá o quê, e que eu deveria amadurecer o escrito, ler mais, 
que eu era jovem, demais pra escrever.
E dona Inácia? Será que ela é velha demais para morrer?
Odeio o nome Inácia!
O que será que rima com o nome dela? Vou perguntar ao amigo Ximenes, de quem já gosto um bocado! Acho um barato o camarada ajudar a quem não encontra uma rima! Um 
amigão!
O que rima com Inácia, a que vai ser minha vítima?
Procuro. Está na página 34. Oba! Tem cada rima óptima para a bandida:
Ó dona Inácia,
Tens a audácia
Da ineficácia!
Ó dona Inácia
Cara de emácia,
Vá pra farmácia!
Ó dona Inácia... Pronto: agora só restaram as rimas perspicácia, que é coisa que ela não tem. A dona Inácia não tem a perspicácia de pressentir o que vou fazer com 
a frágil e asmática, que tem a pertinácia de viver contando que pega pneumonia à toa, já foi tuberculosa, como Manuel Bandeira...
Manuel Bandeira viveu um bocado, mesmo tendo tido tuberculose. Mas ele foi um poeta amado, não foi víbora. Não teve ninguém para executá-lo da maneira que pretendo...
OUTRO CAPíTULO, QUALQUER NúMERO
O telefone tocou e confesso que me assanhei. João me convidou para ir ao cinema com ele!
O pior de tudo: bateu aquela impressão de que ele ia notar que estou gamada, talvez tenha apostado com alguém,pode estar cercado de garotos querendo ouvir o que eu ia responder... Aí, minha resposta foi assim:
- Cinema? - perguntei.
- É, você topa um cinema? - convidou João.
- Quando?
- Hoje, das seis às oito.
- João, sinto muito, mas das seis às oito eu estarei escrevendo um livro, muito ocupada.
- Minha tia Inácia aceitou o seu texto, Bia?
Aí, eu fingi que havia caído a linha e desliguei, deixando o fone fora do gancho.
Corri para o banheiro para chorar, à vontade.
Adoro chorar em frente do espelho, embaciando minha imagem. Odeio minha vida, minhas espinhas, me penalizo toda!
Minha mãe gritou:
- Bia, você largou o telefone fora do gancho! Estou esperando um telefonema importantíssimo e você...
Aí, eu me desliguei por dentro. Quando minha mãe vira megera, eu me desligo por dentro.
CAPíTULO SOBRE MINHA MÃE
Graças a Deus, mãe a gente só tem uma! Eu não aguentaria ter duas, ou três, nunca!
Quando eu era criança, eu amava minha mãe. Agora, confesso que tem momentos em que penso em largar tudo, fugir de casa, ser garçonete em Barcelona...
Mas sou adolescente, tenho catorze anos... Só posso viajar com autorização materna...
Nunca que minha mãe iria permitir que eu fosse ser feliz em Barcelona!
Mamãe é viúva de meu pai. Eu adorava meu pai, nem gosto de falar nele... Acho tão injusto eu não ter pai...
Ultimamente, mamãe anda parecendo uma perua: saltos altos, imitação de brilhante no dedo, cabelo com leque, unhas vermelhas.
Eu sei do motivo da raiva do telefone fora do gancho... Mamãe está de caso com um cara...
Mamãe está inquieta, implica comigo, espera telefonemas, não sabe dos MEUS sofrimentos; só pensa nela!
Será que ela não percebe que é ridículo uma mulher velha, de quarenta anos de idade, ficar se emperiquitando toda por causa de um homem?
Ih, será que estou com preconceito, ou ciúme?
Eu queria ser bonita como minha mãe foi, na minha idade. Vi uma fotografia dela, num vestido de cintura apertada, uma cinturinha de manequim... E o cabelo dela era liso, sedoso, com brilho. Não tinha espinhas no nariz.
- Mãe, posso falar com você?
- Lógico, filha. O que foi? Algo sério?
Mamãe não me serve de nada! Ela sempre pensa que comecei a transar com alguém, ou que ando metida com drogas. Nem tenho coragem de contar que nunca fui beijada! 
Não conto pra ninguém.
Comprei pílulas anticoncepcionais, coloquei na bolsa. Quem abrir minha bolsa vai pensar que já entendo das mutretas do amor, que já transei.
De minha mãe, lógico, escondo as pílulas. Mas já deixei minha bolsa cair, como quem não quer nada, só pra mostrar a caixinha. O raio da caixinha ficou dentro da bolsa, só caíram meus óculos, merda!
Se quebraram? Evidentemente que quebraram, não estavam no estojo! Minha santa mãe me ameaçou:
- Vou descontar da tua mesada, pra aprender o que custa!
E minha mesada dá pra descontar óculos?
Tem horas que penso em assassinar minha mãe, junto com a dona Inácia. Não, isso seria demais. Eu amo minha mãe...
Socorro, cadê o divã do analista?!
A TAL EDITORA
Eu acho que deveria colocar cada capítulo numa página nova, assim o livro ficaria melhor. Agora, escrevendo, tenho que economizar papel, mamãe vive reclamando que eu deveria escrever dos dois lados das folhas. Odeio economizar papel e não vou escrever do jeito que ela quer, ora!
Eu vou ganhar um concurso. Dizem que o prémio é bárbaro: cinco mil dólares!
Se eu ganhar essa grana, juro que não boto na poupança!
COISAS QUE FAREI, SE GANHAR A GRANA:
Telefono para dona Inácia e digo assim:
- É a pedante da Inácia que fingiu que leu o meu texto?
- Quem está falando? - responderá a bruxa, com voz tremelicante. Talvez dê umas tossidinhas, ela é chegada a uma quase-pneumonia.
- Aqui é a tal da Bia, aquela que tinha que amadurecer o texto e estudar gramática.
- Bia, que agressividade é essa?
- Nenhuma, ó primitiva dos séculos passados!
Aliás... (aí eu abro bem aberto o livro Gramática da Língua Portuguesa e leio, em voz alta, o que vou dizer pra mulher que será assassinada por mim)
Eu direi, num tom intelectual:
- A senhora, dona Inácia, faz parte de "uma unidade linguística particular que conservaria relativa homogeneidade até meados do século XIV - o galego-português".
- Bia, você está em seu estado normal?
E eu, doidérrima, no maior sarro por ter ganhado cinco mil dólares, por ter ganhado o primeiríssimo lugar, diria:
- Sabe que, por sua causa, ó víbora, cheguei a decorar as preposições? E que de nada me adiantou saber
a
ante
após
até
com
contra
de
desde
em
entre
para
perante (nunca estarei perante um tribunal, o crime será PERFEITO!)
por
sem
sob
sobre
trás
Sabia disso?
- Estou ficando muito preocupada com você, Bia! - exclamará a fingidona da dona Inácia, que nunca se preocupou com os meus escritos.
- Preocupada? A senhora sabia que era muito importante para mim que a senhora lesse o meu texto, sabia?
- Lógico, menina, até fiz observações...
- É? Pois o texto que mandei pra senhora ganhou o primeiro lugar no concurso, e eu fiquei rica, tenho cinco mil dólares, vou viajar para... para...
Para onde?
Pó! Eu comecei a imaginar tanto que ganhei o concurso e que estava telefonando para a dona Inácia que dei para gritar a conversa imaginária, trancada no banheiro.
Minha mãe esmurrou a porta:
- Bia, Bia, você está passando bem?
- Estou óptima, mamãe.
- Mas que gritaria era essa?
- Eu estava cantando sem música!
"Esqueci até de dizer as outras coisas que eu faria se eu ganhasse a grana. E adianta? Vai ver, o júri é adulto, e eu vou me ferrar."
NO COLÉGIO
Encontrei o João namorando a Lia. Encontrei o João namorando a Lia.
Sabe que o João está namorando a Lia?
Preciso deixar de pensar nisso, preciso deixar de pensar nisso...
Na aula de matemática, fingi que estava com dor de cabeça.
- Deve ser porque você anda escrevendo um livro muito grosso para a editora da tia Inácia - zombou o João.
- Eu não vou colocar meu livro numa editora michuruca! Se eu editar o meu livro, vai ser por uma editora grande, editora de bom nível, daquelas...
- Minha tia disse que você precisa amadurecer mais...
- Ela disse?
- Ela falou que muita gente procura colocar livros na editora, mas que as pessoas ignoram o que um jovem gosta de ler.
- E dona Inácia sabe?
- A editora de tia Inácia é especializada em literatura infanto-juvenil - respondeu João.
- É daquelas que colocam um dever de casa junto com o texto? Daquelas editoras que pensam que literatura é dever de casa?
- Se as editoras não fizessem isso, o pessoal não ia ler nunca! - respondeu o João, tomando a defensiva da tia.
- É?
- É.
- Não acho. Um livro não deve ser obrigatório. Eu leio porque gosto.
- Ora, ora, você!
- O que tem, hein? - perguntei.
- Você tem mesmo cara de intelectual!
Depois que João me disse aquilo, tive vontade de morrer! Então, eu tinha cara de intelectual?
- E o que é cara de intelectual? - insisti.
- Você nunca se olhou no espelho? - zombou João.
- Eu já me olhei no espelho, sei que não sou bonita, mas isso não quer dizer que eu tenha cara de intelectual! - chorei.
Eu não podia ter chorado!
Mas fingi que estava chorando por causa da dor de cabeça. Claro que João não acreditou.
Que dia infeliz!
João está namorando a Lia. Ela não tem cara de intelectual. Aliás, Lia é burríssima.
Mas Lia tem olhos verdes, pestanudos. Lia tem cabelo louro, natural. Lia usa uma pulseirinha no tornozelo. Eu botei uma pulseira no meu tornozelo, minha mãe implicou:
- Que coisa mais cafona! Que coisa brega!
- E não é brega usar unhas pintadas de vermelho e um anel imitação de brilhante? - perguntei.
- Ora, você precisa parar com essa mania de discordar de tudo! - disse minha mãe.
Isso foi na semana passada. No fim de semana, minha mãe inventou de me deixar na casa da vovó, porque ela precisava "viajar a negócios". Pois sim!
Minha mãe trabalha numa loja que vende roupas.
Ela é gerente. Duvido que tenha viajado a negócios!
Pior de tudo: mamãe esqueceu no banheiro uma caixinha de pílulas anticoncepcionais!
Todo mundo vive, sóeu é que me morro toda!
Só falta minha mãe pegar AIDS. Porque, se ela usa pílulas, ele não usa camisinha... E ela tem certeza da saúde lá dele?
Mas não vou falar nisso. Acabei de ler numa revista que a literatura para jovens está impregnada de assuntos tipo diário, AIDS etc.
O pessoal que faz crítica é gozado: se uma coisa interessa a nós, já não serve. Adulto é fogo! Adulto parece Europa. Europa tem mania de pensar que é o umbigo da 
sapiência do mundo! Aliás, não é a Europa, são os europeus, seguidos de nós, do Terceiro Mundo!
E eu tenho mania de pensar que ser adolescente é ser gente. Ninguém entenderá que cada fase da vida é coisa própria, não precisa ser "antes de", ou "após de"...
Como será que foi a quase-tísica dona Inácia quando era adolescente?
Pouco importa: ela vai morrer, e eu serei a assassina! Meu plano, secretíssimo, é ESPECTACULAR!
Eu acho espectacular, ora!
Dona Inácia, realmente, não anda muito boa de saúde, e caiu na asneira de pedir minha ajuda. Ela telefonou, com aquela voz asmática, um pouco suspirenta, e disse:
- Bia, você aceitaria fazer um pequeno trabalho para mim? Não é coisa grátis, você receberá um pagamento e...
Falou em pagamento até esqueci da raiva. Ando numa dureza de fazer pena! Minha mãe está muito unha-de-fome, só gasta com ela, pra agradar o cara. É um tal de cabeleireiro, 
manicure, roupinha nova...
Pra mim, quando peço, ela diz:
- Bia, você está crescendo tanto, deixa pra comprar mais tarde...
- Eu cresci, mas não foi tanto. Aliás, já parei de crescer!
- Você ainda não parou de crescer. Eu cresci até os dezasseis anos - respondeu minha mãe.
- Mas eu fiquei menstruada aos treze, estou com catorze e, segundo estudos científicos, não devo crescer mais! - berrei, batendo a porta.
Ainda bem que a dona Inácia me telefonou, oferecendo trabalho!
Vou aceitar o serviço e ver no que dá. Pode ser que ela acabe vivendo mais um pouco, ou...
Enfim, a dona Inácia me convidou para trabalhar, nas férias, lá na editora e ganhar um trocado.
Cheguei na editora às oito horas, conforme o combinado.
Meu trabalho seria organizar a correspondência, ver o que tinha maior pressa, menor pressa, o que deveria ser jogado fora. Tudo, naturalmente, depois de falar com dona Inácia.
Também recebi, como função, atender o telefone, já que a telefonista estava viajando, de férias.
Dona Inácia apareceu, abrindo a porta. A editora fica na parte de baixo da sua residência, e eu achei que dona Inácia estava muito agasalhada para o calor de julho. 
Apesar de ser inverno, o Rio estava quente, misturando as estações.
Eu também misturo estações. Acho que cresci, porque a dona Inácia me pareceu baixinha, magra, olhos inchados.
- Bom dia, dona Inácia, tudo bem?
- Bom dia, tudo mais ou menos, Bia. Vou suportando.
- Suportando?
- Sempre o velho problema dos pulmões. Tenho que tomar cuidado, é o meu ponto fraco. O médico disse que devo ficar alerta, não pegar gripe.
- E como a gente fica alerta pra não pegar gripe, hein, dona Inácia?
- Evitar aglomerações, entende? Comigo, qualquer gripezinha é uma ameaça de pneumonia. Ando sem resistência!
- A senhora está com óptima aparência - menti.
- É maquiagem. Passei blush. Estou um caco! - falou dona Inácia, naquela voz rouquenha.
Combinamos o trabalho. Eu receberia um salário mínimo para começar.
- Salário... mínimo? - indaguei.
- Acha pouco?
- Não. Afinal, não tenho experiência.
Mas eu voltei a mentir. Foi uma desilusão danada! Eu já sonhara com um short azul, um batom e uma mochila legal. Não vai dar. Vou ser escrava, me matar... MERDA!
Mas aceitei. Botei um sorriso de Mona Lisa e aceitei.
Será que o tal sorriso da Mona Lisa era um disfarce? Vai ver, o Leonardo da Vinci ofereceu um salário mínimo pra ela posar; ela ficou enfurecida, mas não tinha outro jeito...
Ouvi dizer que Leonardo da Vinci era homossexual.
O João é macho, por isso tem aquela falta de sensibilidade. Odeio o João!
Um dia, vou casar com um homem que seja quase feminino. Ele vai me entender. Mas hoje, quando fui trabalhar, dois garotos passaram por mim e um disse pro outro:
- Olha que gatinha!
Eu olhei prum lado, olhei pro outro... Na calçada só vínhamos eu e uma velha de uns noventa anos, passeando com dois cachorros.
Será que estou mudando pra melhor?
Engraçado: perdi a mania de deixar espaços em branco. O papel anda caro, melhor não virar uma doida, gastando o que não posso.
Se eu ganhar os cinco mil dólares, farei uma farra!
Farei várias farras! Uma delas será comprar um papel chiquérrimo de carta, com as minhas iniciais em cima, gravadas em alto-relevo.
Poderei, também, após assassinar a dona Inácia, mandar rezar uma missa cantada no Mosteiro de São Bento, em canto gregoriano.
Colocarei um anúncio fúnebre?
Vou colocar um anúncio fúnebre no Estado de São Paulo. Dizem que os anúncios fúnebres no Estadão custam uma nota preta!
Sonhei tanto com a minha riqueza que voltei ao vício de deixar um espaço em branco! Ficou lindo, não é? E deixo mais um pouco de nada... Papel em branco é nada?
Mas vou contar do meu serviço, lá na editora.
MEU SERVIÇO NA EDITORA
Faço um pouco de tudo e, naturalmente, vou prosseguindo no meu plano diabólico de matar a dona Inácia.
Plano diabólico?
O plano é tão fantástico que chega a ser angelical!
Mas, por enquanto, atendo a quem chega, organizo umas fichas com nomes de autores e obras, faço o que a pré-defunta ordena.
- Bia, meu anjo, você pode organizar a correspondência?
Odeio quando ela me chama de "meu anjo"! É sempre pra pedir algo que dê bastante trabalho.
A correspondência de uma editora é um saco: autores que oferecem textos, bibliotecas que pedem livros, um monte de jornais culturais de escolas e grémios e clubes; 
tudo recebe respostas padronizadas, ou silêncios lixentos.
Silêncios lixentos são as coisas que nem são lidas e vão directo pro lixo. Os jornais culturais, segundo a óptica da pré-defunta dona Inácia, devem ir pro lixo.
Lembrei de uma cantiga que cantavam no colégio:
Oi, Nácio,
oi, Nácio,
muié parida não come,
oi, Nácio,
oi, Nácio,
nem de noite, nem de dia,
oi, Nácio,
oi, Nácio,
se ela come ela morre,
oi Nácio,
oi Nácio,
e o filho não se cria!
Que muié danada
é a dona Maria,
ela come de noite,
ela dorme de dia,
se não fosse o homem,
a muié não paria!
A gente lembra de cada bobajada! Só porque a pré-defunta se chama Inácia, veio o raio da cantiguinha.
Eu estava cantando, lá na editora, a dona Inácia abriu a porta e disse:
- Meu anjo, você pode parar com essa cantoria, por favor? Aqui é lugar de trabalho.
- Eu cantei sem querer, dona Inácia, desculpe. A cantiguinha grudou na minha cabeça, toda hora eu canto, sem sentir.
- A cantiga fala em Inácia? Ouvi algo parecido com o meu nome...
- Não senhora: é "oi, Anastácio, oi Anastácio"...
- Tudo certo, meu anjo, mas vamos trabalhar? Aliás, desculpe a franqueza, mas se você quiser virar escritora e escrever igual ao jeito que você canta...
- Como assim, dona Inácia?
- Meu anjo, espero que você venha a escrever melhor do que canta, entende? Você é desafinada! - disse a pré-defunta, fechando a porta, e tossindo, como sempre.
Vai morrer, a pré-defunta! Vai morrer de morte matada, parecendo que é morte morrida!
Mas eu estava contando o que faço na editora e me atrapalhei toda. Fugi do assunto, ou expliquei o assunto?
E A VIDA ?
Eu estou tão fixada no crime perfeito que tenho esquecido de viver, de pensar em João.
Ora, não penso mais em João.
Fiz força pra voltar ao antigo sofrimento de amar sem ser amada, mas só penso no que vou realizar, em breve.
Agora, essa é a minha vida: a preparação mortífera do desfecho da pré-defunta!
Adorei a frase!
E a dona Inácia disse que eu desafino! Ela nem imagina como vai ser a desafinação, coitada!
Deixei um espaço em branco. O raio da puta velha conseguiu me fazer sofrer, e eu não quero sofrer!
Ela disse:
- Meu anjo, espero que você VENHA A ESCREVER MELHOR do que canta, entende? Você é desafinada!
Outro espaço em branco. Se ela disse isso, é porquea pré-defunta não gosta do meu jeito de escrever.
Ela não acredita no meu talento, ela zombou de mim, ela me ridicularizou, foi isso!
Só porque sou adolescente, ela teve a coragem de usar aquele tom sarcástico, superior, irónico!
Fiquei abalada. Eu não queria sofrer com o que os outros me fazem. Descobri que sou de uma fragilidade extrema, faço questão de ser amada até por quem odeio!
Eu menti quando disse que não pensava mais no João. Eu odeio o João, eu queria ser amada por ele...
Eu queria ser amada por dona Inácia?
Se ela gostasse dos meus escritos, se ela tivesse encorajado o meu gesto de entregar um original para ela ler, será que eu ficaria feliz?
Preciso de espaço. O espaço particular, aquele que só EU devo preencher!
Dona Inácia me atropela os sonhos. Dona Inácia me pisa, como se eu fosse uma barata.
Dona Inácia ri de mim!
Dona Inácia nunca teve a franqueza de dizer que escrevo mal, mas que tenho originalidade, estilo...
Eu sou original? Eu tenho estilo?
Ela nem leu o meu texto! As páginas que estavam coladas voltaram coladíssimas! Peguei a megera na mentira!
Vou deixar de ser frágil, vou falar com ela, vai ser agora!
A PORTA
Entre mim e a dona Inácia existe uma porta fechada. Dona Inácia só admite portas e janelas fechadas, por causa daquela tosse enjoadinha.
Dona Inácia também gosta da porta fechada, porque ela é a patroa, a dona.
No gabinete dela tudo é de mogno. A escrivaninha é enorme, escura, tem pernas retorcidas. As pernas da escrivaninha parecem com aquelas colunas enroscadas do Vaticano.
Dona Inácia tocou a campainha, e eu, a serviçal, fui atender.
- Meu anjo, quando aparecer um rapaz magrela, de cabelão comprido, um riponga, você inventa que saí.
- Sim senhora.
- Você devolve a ele esta porcaria de original e diga que está óptimo, mas que, infelizmente, no momento, a linha editorial é outra.
- Sim senhora.
- Você, meu anjo, seja amável. Diga que nós só poderíamos editar o texto daqui a três anos e que é melhor ele procurar outra editora, mas que gostamos muito.
- Não é melhor a senhora dizer tudo isso por escrito?
- Deus me livre, meu anjo! Se eu escrever que este texto idiota é bom, o rapaz aproveita a minha crítica e coloca junto com o original, quando for fazer sofrer outra editora! Aprenda uma coisa: nunca escrever uma opinião! É mais seguro.
Dona Inácia me despede com o seu olhar azul, e eu saio, esquecendo a porta aberta.
- Bia, fecha a porta!
Fechei a porta e fico com aquele original nas mãos.
Está dentro de uma capa cinzenta, tudo no capricho.
Foi entregue com tanta esperança! Será que...
Será Que Dona Inácia Leu O Texto?
Porque noutro dia, ela falou assim:
- Meu anjo, não sou agência de caridade para lançar livros de autores iniciantes!
É por isso que, mesmo sem querer, só penso na morte da
pré-defunta.
Ela tem grana, tem o poder de decidir... Ela não é agência de caridade...
E se aparecer um texto de um autor que seja realmente fora de série? Ouvi dizer que, cada vez mais, as editoras fecham as portas pra quem é iniciante.
O jeito é eu ganhar o concurso.
Vou ganhar o concurso, vou escrever durante toda a minha vida, vou ser famosa, vou ganhar cinco mil dólares e editar meu livro, vou...
A campainha da porta de entrada tocou. Também sou porteira, e vou abrir.
O rapaz, de cabelo comprido, ali, sorridente. Ele está com aquele sorriso intimidado, frágil, nervoso. O sorriso dele parece a minha boca, o meu sofrimento, a minha 
ansiedade. Olho pra ele, vejo a magreza, vejo o sapato meio velho, a calça jeans, daquelas que são vendidas por aí, em lojas baratas. Devia usar ténis, mas usa sapatos 
mocassim, marrons, com manchas acinzentadas.
- Dona Inácia marcou comigo. Meu nome é Felipe Freitas.
MINTO, OU DIGO A VERDADE?
VERDADE, OU MENTIRA?
Mando o Felipe entrar e digo, conforme ordem da megera, que ela saiu.
- Dona Inácia havia marcado comigo... Corri um bocado, quase que me atrasei! - disse Felipe.
- Ela teve que sair - menti, sentindo uma vergonha enorme de agir em defesa do meu mísero empreguinho.
Se eu matar a dona Inácia, será que descolo um novo serviço para as próximas férias?
É uma falta de carácter eu ficar pensando em mim, com aquele rapaz sendo enganado. Sem dizer uma palavra entrego para ele a pasta cinzenta.
- Ela mandou devolver o meu texto? - pergunta Felipe, com a voz um pouco trémula, querendo disfarçar a decepção.
- Ela mandou devolver.
- Não aprovou?
- Ela disse que o texto é bom, mas não está dentro das metas editoriais, no momento. Seria melhor você procurar outra editora. Antes de três anos, vai ser impossível editar o seu livro - menti.
O rapaz ficou olhando para mim, eu baixei os olhos.
- O que você está fazendo, tão jovem, nesta editora? - perguntou.
- Trabalho durante as férias, preciso da grana.
- Quer dizer que você vai ficar sem férias?
- É, troquei as férias do colégio por trabalho - respondi.
- A vida anda difícil pra quem vive no Brasil, né?
- É.
Eu não queria continuar aquela conversa, estava me sentindo uma pulha, uma vendida.
- Que idade você tem?
- Que idade você me dá? - respondi, perguntando.
- Quinze?
- Acertou.
Eu voltara a mentir.
Mentira é fogo, é vício. Basta a gente começar, a mentira se expande, a gente fica naquela sedução do pecado, sei lá. Já teve ocasião em que menti tanto, tanto, que acabei acreditando.
Acho que quem gosta de escrever tem algo de parecido com um mentiroso: inventa situações.
Eu estava pensando nisso, a porta se abriu.
Dona Inácia, que havia mandado dizer que não estava, deu de cara com Felipe!
Aí, aconteceu o que se segue, mas vou botar em outro capítulo.
Foi demais!
Estou espumando de indignação!
A MEGERA
Dona Inácia não deixou transparecer qualquer perturbação, a fingida!
- Vamos entrar, Felipe, por favor!
Depois, dona Inácia disse, com voz de melado artificial, com aquele gosto químico dos xaropes que ela vive engolindo:
- Bia, meu anjo, você não confundiu o recado, não é?
- Eu confundi?
- Eu disse que não queria receber um certo rapaz, mas não era o Felipe. Quando o "outro" chegar, é aquele, compreendeu?
Tenho que deixar o espaço. Vou dizer o quê? Mesmo deixando um espaço em branco, olhando para o papel inescrito (...inventei uma linda palavra?), me desencontro toda!
Ai, esse absurdo de ter que obedecer ao comando, esse amargo dever que me faz ingressar no mundo adulto da perfídia!
Estou adulterada! Mutilaram a minha adolescência, meu resto de infância e de verdade!
A
vida
me
altera!
A vida me altera,
a solidão sou eu.
Olho em volta
e vejo a porta
fechada.
Preparo dois cafés,
não fui a convidada.
Escrevo péssima poesia
e me morro em palavras.
Cresci envelhecendo
a límpida infância
que me saía da boca
sem dó, nem compostura.
Calei.
Virei adulta.
Igual e tal.
Ponto final.
Ponto final?
Percebo que vou matá-la. Mas, agora, acredito que irei até o ponto final.
Antes, eu fazia somente o plano, mas não acreditava realmente, sabia que era tudo um palavrão de ódio atravessado.
Agora, a coisa parece séria.
Levei os cafezinhos, e dona Inácia, sem qualquer escrúpulo, dizia para Felipe:
- Li o seu original e achei extremamente curioso.
Curioso? O que quer dizer essa palavra, colocada assim, no termo mais ambíguo?
Hoje perdi a minha inocência.
O OUTRO LADO
O outro lado? Será que as coisas têm dois lados? Nem sei.
Penso que há o lado; nós é que somos indignos, corruptores da verdade.
A verdade é uma, as mentiras são muitas.
Quantos lados tem a mentira?
O espacinho em branco, pequeno, pode ser um aparelho de televisão.
Sentada no sofá, ou meio-sentada, comi um saco inteiro de amendoim e vi o programa onde o público parecia delirar.
O comunicador (chamam os enganadores de auditório desse jeito) jogava dinheiro para a plateia.
Moças se atiravam atrás de míseras notinhas de merda.
Mudei de canal.
Domingo é dia puto, não é dia santo! Basta olhar os programas de televisão e não deixar que aquilo nos envolva.
NÃO QUERO ME MASSIFICAR!
Não quero rastejar atrásde umas parcas notinhas de um dinheiro que não vale o gesto!
Quem foi o miserável demónio que inventou o dinheiro?
Penso, repenso... Mandei o original que escrevi para o concurso. Quero ganhar?
NÃO QUERO GANHAR!
Mentira: estou louca pela possibilidade de ter cinco mil dólares!
Penso no júri. Fico imaginando que meu livro depende da aprovação de todos...
É como ganhar na lotaria: tenho que acertar todos os números.
Leio os nomes, imagino, imagino.
Será que os jurados também ficam imaginando como serão os seus julgados?
Ouvi dizer que eles escolhem, depois se reúnem e discutem sobre o que leram...
São tantos textos, tantos...
Visitei, noutro dia, a Bienal do Livro, e fiquei desanimada: era tanto livro escrito, exposto, parecendo puta esperando um freguês...
Escrevo errado, nunca tenho certeza de onde colocar os raios das vírgulas.
E se tiver um gramático-gramaticóide, instrutor especializado em vírgulas?
Se dona Inácia fosse jurada, a primeira coisa que ela iria notar, com certeza planíssima, seriam as virgulações dos textos, as crases, os porque-por-que-por-quês.
Bem, essa felicidade já tenho: a pré-defunta não faz parte do júri.
Aliás, o pré (do pré-defunta) tem acento? Se não tiver, estou ferrada!
Mandei o texto, agora espero, finjo que não mandei e pronto. Seja o que for... Nem ligo.
O mais importante é preparar o assassinato da dona Inácia. Já pensei em tudo, tem todas as possibilidades de dar certo, certíssimo, certétrico!
CONTINUANDO EM FELIPE
Felipe estava saindo. Dona Inácia o acompanhou até à minha saleta.
- Então, Felipe, você deixa o seu original e me dá um tempo, certo?
- Certo, dona Inácia. Obrigado pela chance, pelo interesse.
- Ora, Felipe, o génio é você! - tossiu dona Inácia, disfarçando a crapulidade.
Respirei fundo. O ódio é coisa que se instalou como uma explosão, não consegui conter e berrei:
- Felipe, não vá acreditar nessa megera! É mentira!
- Bia, você enlouqueceu? - indagou a bruxa, com os olhos faiscando de raiva e de indignação. Eu rompera os limites.
- Eu não vou ser cúmplice de tamanha falta de... de...
Deixo em branco. Senti que estava com febre, havia tomado chuva, de propósito. Havia aberto a janela, e o vento gelado entrara por dentro da minha garganta inflamada 
e eu estava lá no auge da maquinação do crime.
Eu estava, finalmente, eu estava ardendo de ódio, com muita febre, uma gripe que me escorria pelo nariz, pelos olhos.
- Meu anjo, você parece estar delirando de febre! - adocicou-se a megera.
- É verdade, estou com trinta e nove de febre, uma gripe fantástica! E obrigada pelos ensinamentos, estou me despedindo. Felipe, não vá acreditar: você era a pessoa 
que ela não queria receber...
- Bia, comporte-se! - berrou a megera.
- Eu, Bia, não me comporto, nem me importo com a merda desse emprego, e vou sapecar um beijo de adeus na senhora!
Dona Inácia, com aquela tossezinha, ia fechar a porta para não apanhar a gripe. Mas eu já a havia beijado à força, melando minha gripe na bochechinha dela!
- Beijocas e... adeus!
Felipe ficou pra trás. Acho que foi consolar a dona Inácia, ou... que se danem os dois!
Voltei pra casa e me meti na cama. Minha mãe botou o termómetro. Eu estava com 39,2 de febre!
Dona Inácia iria pegar a minha gripe e iria sucumbir, de morte morrida e matadinha... Oba!
Três Semanas Depois
Estou saindo do hospital. Quase morri de pneumonia, mas me salvei.
As férias já haviam terminado, e eu estava sem notícias da dona Inácia.
Se ela pegou a pneumonia, com certeza, deve ter morrido. Ela não iria suportar... nem eu.
Que aflição!
Depois do crime efectuado, fico sem saber do resultado da maquinação diabólica. Matei a dona Inácia com o meu beijo cheio de vírus?
Porque eu peguei a gripe, de propósito, para acabar com a pneumonia dona Inácia. Crime perfeito... horrível!
Se dona Inácia realmente faleceu, eu sou a assassina. E agora?
Tenho tanto medo de saber da verdade que fico sem perguntar, olhando jornais.
Ela estaria num anúncio fúnebre?
Se eu ganhar o concurso, será que vou conseguir conviver comigo, sabendo que sou uma assassina que ganhou cinco mil dólares?
Se eu for viajar, vou ter que viajar comigo, vou ter que carregar o saco da minha consciência, junto com os dólares?
Faço as contas.
Nossa inflação faz os dólares ficarem cada vez com um valor maior, maior, maior!
Posso não ser rica com cinco mil dólares... mas transformando em cruzeiros reais... irreais... Quanto?
Só consigo escrever em branco!
Senhores jurados, se vocês não gostarem do branco dos meus escritos, o problema é vosso!
(Vocês... vossos?!)
Vós não sabeis
Inventar
palavreeis
impossíveis
nos brancos
tantos
dos espantos
difíceis
de
soletrar
em
hieroglífeis!
QUE BESTEIRADA!
O TEXTO
Também, não era este o texto que enviei, que não sou louca pra mandar uma doidice dessas prum concurso!
Gastei uma nota, assim mesmo. Tive que pagar xerox de sei lá quantas cópias, de não sei quantas páginas de outro escrito. Pouco importa!
Só penso que posso ser assassina.
Mas será mesmo um assassinato beijar alguém estando com gripe?
A Bíblia diz que o que vale é o sentimento interior das pessoas.
Também existe um certo provérbio óptimo: de boas intenções o inferno está cheio.
Minha intenção foi péssima. Se, com boas intenções, a gente vai pro inferno, tudo bem, irei pro céu virar um anjo, de asas transparentes de renda azuis.
Vou sentar numa nuvem e tocar lira.
Prefiro tocar bateria.
Anjo, tocando bateria, será que vai ter aprovação do Vaticano?
E dona Inácia?
Que horror: dona Inácia está vivinha da silva! Uma pessoa do júri desistiu, e dona Inácia está no lugar, substituindo!
Eu li no jornal que dona Inácia foi convidada pra substituir sei lá quem...
Só me faltava essa!
Só me faltava isso!
Só...
... ... ... ... ... ... ...
Enlouqueci: dei pra brincar com reticências!
Faltam sessenta dias pra eu saber do resultado do concurso.
Não vou suportar viver tanto tempo! Vou me embriagar com
Coca-Cola!
LOVE YOU
Resolvi escrever assim, LOVE YOU. Sei que, em inglês, o troço soa mal. Adoro erros e palavras dissonantes.
Não existem sinfonias dissonantes?
Eu queria ter nascido em outra época e casar com Mozart.
Mozart seria bom de cama? Ou iria dizer:
- Bia, espera um pouco, vou levantar da cama e escrever uma sinfonia, volto daqui a três semanas...
Fico pensando como será a minha primeira vez. Tenho medo, tenho curiosidade, vontade, pavor.
E se acontecer num dia, de repente, em que eu esteja usando aquele meu ténis supertransado, mas que deixa um chulé terrível nas meias e nos pés?
Mozart chegaria perto de mim, ele mudaria de século só por minha causa, e eu estaria de ténis.
- Eu te amo, love you, Bia!
Mozart tiraria a peruca branca, aquela roupa de cetim azul, as meias, os sapatos de verniz com fivelas.
Mozart estaria quase despido, usando ceroulas...
Mozart começaria a tirar minha roupa... Tiraria minha blusa, meu sutiã... Sei que tenho seios bonitos...
Quando chegasse a hora, eu lá, firme, de ténis.
- Tira os sapatinhos, amor! - diria ele. Mozart ignoraria o termo "ténis", com certeza.
- Não, eu tenho uma fantasia sexual, meu Johann Sebastian!
- Eu não sou Johann Sebastian. Você me traiu com Bach?
- Perdão, comecei a me interessar por música clássica faz pouco tempo. Eu entendo mais de Madona, sabe?
- Madona? Música sacra, com certeza.
- Não, ó Coiso. Música sacrana!
- Coiso? - perguntaria Mozart.
- Esqueci o seu primeiro nome!
- É Amadeus!
Pronto, Mozart se danou e foi embora.
Ainda bem que não tirei o ténis!
Como é que bate besteira na cabeça! Será que isso é adolescência, ou demência?
Bem feito: fingir, em fantasias, que a gente culta dá nisso!
Serei culta para o concurso? E se eu ganhar e tiver que agradecer à dona Inácia na hora de receber o Oscar?
É parecido com o Oscar o raio da estatueta?
Tem estatueta?
Eu posso receber a estatueta de bronze e tacar na cabeça dela. Aí, seria um crime testemunhado, eu iria imediatamente pra cadeia...
Sou menor. "Demenor", como dizem. Eu iria pra uma instituição de menores.
Engraçado: a palavra "menor" está sempre ligada a crimes, contravenções. Esquisito. O mundo das palavras é muito esquisito.
Ai, que nervoso!
Acho que vou ao cinema, ver aquele filme.
Sei que vou detestar. Vou por causa disso. Se uma porcaria de texto sobre dinossauros pode fazer sucesso (a história é tão antiga que parece dinossáurica), o meu 
texto pode ganhar... talvez. Escrever sobre cientistas malucos já era.
Minha mesada não deu pra pagar o cinema! Estou sem emprego e sem mesada. Mamãe diz que não vai aguentar pagar a mensalidade do colégio.
E agora?
UM TELEFONEMA
O telefone tocou. Era João.
- Oi, Bia.
- Oi. Quem está falando? - fingi. Eu já tinha manjado que era a voz dele.
- É João. Você topa um cinema?
- Ver o quê, hein?
- O filme dos dinossauros.
- Hoje?
- É. E não vá inventar que está escrevendo!
- Não estou escrevendo - menti.
Não estou escrevendo, ou estou?
Afinal, quem sou eu? Sou personagem, autora, assassina que não conseguiu matar a vítima?
Sou culpadamente inocente?
Mea culpa,
tentei,
pensei,
agi...
Ora, isso não é poesia, é uma porcaria que vou rasgar, jogar fora!
Fui ao cinema com meu namorado João. Estamos namorando. Já tenho quinze anos.
A pré-ex-defunta nem pegou o resfriado. Está óptima, engordou, deixou de tossir.
João contou que a tosse dela (tosse dela... que horror!) era alérgica. Ela tinha alergia a gato.
Esqueci de contar que dona Inácia tinha um gato angorá, chamado Sófocles. Lógico que dona Inácia, metida a intelectual, não poderia colocar o nome de Mimi num gato!
Sófocles morreu de gripe, mas não era a minha gripe. Era uma espécie de gripe, sei lá o nome da coisa, que dá em gatos.
Dona Inácia sofreu muito com a morte de Sófocles.
Depois, dona Inácia se conformou e ficou boa da tosse.
O RESTO
O resto, tipo conclusão, é que tenho um padrasto. Custei a aceitar, tive ciúme, mas aceitei.
Minha mãe também custou a aceitar que tenho um namorado.
Já se passaram mais três anos. O tempo passa depressa, já estou com dezoito.
Meu namorado é Felipe. Aquele Felipe. Pois é, estou adulta, ou quase.
Se ganhei o concurso?
Não ganhei, quem ganhou foi o Felipe, com o texto que ele havia enviado para dona Inácia.
Ela não sabia que o texto era dele, ele escreveu sob pseudónimo.
Aquele texto, o que dona Inácia mandara devolver, dizendo pra mim que era droga, mentindo pra ele, dizendo que era genial... na verdade, na verdade...
VERDADE VERDADEIRA
O texto do Felipe, na verdade, nunca fora lido por dona Inácia, na editora. Ela nunca lia originais de principiantes.
Quando Felipe ganhou o concurso, ele pensou que dona Inácia, por saber que o texto era dele, confirmara a tal opinião da "genialidade".
Precisava ver a cara de dona Inácia quando descobriu que o texto que fora para suas mãos, lá na editora, pois é, o tal texto que ela não lera, mas criticara, havia 
ganhado!
Porque, sendo jurada, a dona Inácia era obrigadíssima a ler o que enviaram para o concurso.
FINAL FELIZ
Olha, dona Inácia, eu pensei em matá-la com o vírus da gripe, mas a senhora não tinha problema de pulmão, tinha problema de alergia a gato, coisa à-toa.
De modo que meu crime foi perfeito: não se consumou.
Antes de colocar um ponto final, declaro que há cochilos propositais no texto; porque...
Tudo é ficção!
(Escrito em 19 de abril)
Fim
SIMPLESMENTE amei

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