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1 1 31 O direito à história: o(a) historiador(a) como curador(a) de uma experiência histórica socialmente distribuída. [1: Ao longo do texto, mesmo não utilizando o recurso de apontar para as diferenças de gênero, espero que os leitores e leitoras tenham na mente, e no corpo, a experiência dessa presença da mulher, tão importante em nosso campo de estudos, mas ainda assim não suficientemente reconhecida. ] Valdei Lopes de Araujo (UFOP) [2: Pesquisador do CNPq. Membro do NEHM-PPGHIS-UFOP. ] Aos alunos, docentes e técnicos administrativos da UERJ que lutam hoje pelo futuro da universidade e da democracia. Apresentação Muito do debate sobre o valor do historiador e da historiografia parte de problemas ligados ao conhecimento da história, seja da realidade ou sua representação. Sem abdicar dessa dimensão, gostaria de refletir sobre o desafio contemporâneo de responder à percepção de que todos têm e fazem história, inclusive no sentido de serem cada vez mais produtores e difusores de narrativas e apresentações históricas. Esse texto é um convite a repensar a função social do historiador de modo a entendê-la também como reposta ao direito de todo humano, em sendo histórico, poder ter essa condição reconhecida ao realizar-apresentar suas histórias. Pretendemos assim juntar nossa voz ao convite feito pelo Simpósio Nacional de História ao definir o tema de seu XXIX encontro: “Contra os preconceitos: história e democracia”. [3: Este texto foi inicialmente produzido e apresentado por convite da Comissão Organizadora do Simpósio Nacional de História da Anpuh. Agradeço igualmente aos colegas Benito Bisso Schmidt, Henrique Estrada, Mara Rodrigues, Eliana Dutra, Pedro Teixerense, Rodrigo Perez, Rodrigo Turim, Mateus Pereira, Estevão de Rezende Martins e Temístocles Cezar pelas sugestões e textos que me foram enviados à época da elaboração deste artigo. Pude discutir uma primeira versão das ideias aqui apresentadas com os discentes da disciplina “Teorias contemporâneas do tempo histórico”, que ministrei no primeiro semestre de 2017 no PPGHIS da UFOP. ] Gostaria de argumentar que historiografia poderia ampliar suas funções tradicionais ligadas às expectativas de "aprender com a história" a partir das representações privilegiadas dos historiadores para se tornar também um espaço de acolhimento, amplificação e crítica das mais diversas apresentações históricas produzidas pelos atores sociais. No lugar de se pensar apenas como um centro irradiador, o campo historiográfico poderia projetar-se como espaço de acolhimento e convergência crítica da pluralidade de histórias. De imediato gostaria de salientar que essas duas funções não são contraditórias, nem excludentes, embora não possam ser tomadas como idênticas. O que esse movimento poderia significar na reestruturação da formação do historiador? Qual o papel que o campo da Teoria & História da Historiografia tem tido e poderá ter nessa transformação? O que podemos fazer a partir de nossos cursos de história para qualificar nossos alunos no enfrentamento desses desafios? Um rápido panorama da conjuntura Desde 2013 que presenciamos o questionamento progressivo do alcance da democracia no Brasil, foram para as ruas contingente muito diverso de sujeitos sociais insatisfeitos com a representação política e o papel do Estado brasileiro em seus diferentes níveis. Parte das forças sociais liberadas em 2013 são conduzidas e ressignificadas de modo a serem usadas como legitimação social para o golpe políticojurídico de 2016, que abriu a conjuntura de incertezas que vivemos e o alçamento ao poder de forças políticas e sociais que conjugam velhas oligarquias corruptas e parte da elite econômica que vê no enfraquecimento da democracia uma oportunidade para implementar sua agenda de reformas e uma concepção de sociedade desigual e hierárquica. Como a construção das Ciências Humanas e da Historiografia esteve sempre intimamente relacionada com as fundações do Estado nacional e suas instituições, esses questionamentos se retroalimentam. De todas as direções do espectro políticoideológico emergem questionamentos e desafios às Humanidades. Bem antes de 2013, reforçado pela crise de 2008, multiplicam-se notícias sobre o desinvestimento público nas Humanidades orientados por uma concepção de ensino e pesquisa mercantilizado e, desde o Brexit e a última eleição norte-americana, o questionamento agressivo das funções de mediação da universidade e das ciências humanas, em particular. A emergência de uma direita “identitária” aparelhada por grandes grupos econômicos interessados em saquear o Estado e a Sociedade alimenta uma guerra cultural de escala inédita. [4: Há um intenso debate global sobre os limites e as consequências das política identitárias na conjuntura recente, ver, por exemplo, Mark Lilla 2017. ] Em nossos espaços universitários, observamos um movimento crescente de questionamento de programas e bibliografias supostamente indiferentes às novas demandas dos coletivos sociais que reivindicam que suas questões, seus saberes, epistemologias e presenças sejam reconhecidos nos currículos, programas e salas de aula. As questões de raça, gênero e sexualidade não são apenas novos temas ou problemas que poderiam ser simplesmente incorporados, os seus sujeitos reivindicam novas epistemologias, novas disciplinas e institucionalidades. A perda de espaço nos currículos de ensino médio, projeto que surge antes do atual governo, mas que as condições de fragilização da democracia que vivemos ajudou a acelerar, resultando na nova lei do ensino médio que aboliu a obrigatoriedade do ensino de História neste segmento da educação básica, é outro exemplo bem concreto dessas ameaças. A tentativa de redução do debate sobre a educação ao numeramento e letramento, amplamente patrocinada pela OCDE, sem um enfretamento político, levará ao aprofundamento dessa tendência. Esse cenário de fragmentação e disputa ficou evidente nas reações de historiadores e não historiadores às diversas versões sobre o futuro do ensino de história que foram projetadas no texto da Base Nacional Curricular Comum, colocando em lados opostos as demandas por reconhecimento e acolhimento das lutas identitárias e aspectos da tradição disciplinar. A politização crescente dessa bandeira do esvaziamento e ataque às Humanidades se revela com todo o seu risco no movimento auto-intitulado “Escola Sem Partido”. Seu objetivo é nada menos do que dissolver qualquer vestígio de autonomia docente, mas certamente é a Historiografia o alvo preferencial dessas iniciativas. Como destacou Marco Napolitano (2017), para a direita identitária as Humanidades são um aparelho doutrinador de esquerda, e para a direita liberal, representariam um gasto inútil de desempenho duvidoso. [5: Ver também (Rodrigues 2016), sobre a ideologia judicialista do movimento. O autor propõe a retomada a aprofundamento das dimensões de colegialidade como horizonte de enfretamento progressista das exigências por maior participação social no ambiente escolar e acadêmico. ] Nas redes sociais o historiador ficou mais exposto. Assim como os demais especialistas, precisa negociar sua autoridade em outros espaços que não aqueles academicamente controlados. No Facebook, Twitter, Youtube, blogs, dentre outras medias, esse espaço de indiferenciação discursiva se alarga, nele o historiador fala, ao mesmo tempo, como cidadão, especialista e panfletário (militante partidário), sem os protocolos e códigos internos que o discurso disciplinar produziu para diferenciar e autorizar o seu “discurso”. O cidadão comum, por sua vez, mais do que nunca tem acesso aos meios de difusão da comunicação. O comentário e outras seções de opinião adquirem uma força “pessoal” e massiva, sem mencionar a captura e distorção dessas novas formas de comportamento por grupos políticos e empresariais, seja pela renovada fórmula da propaganda, seja pelo uso de robôs capazes de induzir comportamentos. Outro elemento desafiador nessaconjuntura é a política de segredo que organiza a economia dos algorítmos e códigos das grandes empresas que controlam e moldam essa nova realidade social. Do ponto de vista da produção científica, apesar da reversão recente provocada pelo corte de verbas e pelo retrocesso de expectativas abertas pelas leis que ampliavam o orçamento para a ciência e educação, as avaliações em geral são positivas. O modelo de pesquisa na Historiografia e nas Humanidades adaptou-se à lógica avaliativa construída ao longo das últimas décadas. A quantidade e qualidade da produção científica, o número de programas de pós-graduação, periódicos e pesquisadores têm crescido solidamente e se desconcentrado. Mas mesmo aqui não têm faltado sinais de certo esgotamento do modelo, seja pelo risco de produtivismo, seja pelo insulamento dessa produção, cujos impactos sociais são atualmente rediscutidos (Araujo 2016). Nada parece ter revelado mais a complexidade desse problema do que as batalhas de memória em torno do significado da ditadura civilmilitar. Essa percepção tem levado a esforços variados na busca de novas formas de mediação entre a historiografia acadêmica e seus públicos, seja no ensino de história ou nos debates da história pública. Nesta conjuntura de retrocessos dos valores e estruturas da democracia, a luta pela regulamentação da profissão de historiador abriu um saudável debate acerca da necessidade de repensarmos os currículos e os modelos de cursos de graduação em história que temos hoje no Brasil. O cenário atual não parece apontar movimentos de superfície, mas um novo status quo. Portanto, é urgente entender como podemos não apenas nos adaptar a ele, mas trabalhar para extrair dessa nova situação suas potencialidades emancipadoras. Como poderemos defender a ampliar nossa democracia, como refundar o pacto entre historiografia e democratização que tem marcado a história moderna, mesmo sem ignorarmos as ambivalências e retrocessos nessa relação. Na seção seguinte faremos um breve balanço de algumas respostas a essas questões que pesquisadores brasileiros do campo da Teoria e História da Historiografia têm oferecido. Nossa intenção não será esgotar essa bibliografia, mas apenas indicar alguns de seus caminhos. Fronteiras da Historiografia: publicidade e diversidade Nas últimas duas décadas o campo da Teoria & História da Historiografia se consolidou como um espaço dinâmico e articulado de debates no Brasil. Vimos surgir eventos regulares e especializados, com destaque para o Seminário Brasileiro de História da Historiografia, que no ano de 2018 estará em sua décima edição; revistas dedicadas a esses recortes, como a História da Historiografia, Revista de Teoria da História, Revista Expedições, dentre outras. Diversos núcleos de pesquisa e linhas de investigação estão presentes em Programas de Pós-graduação espalhados pelo Brasil, com particular ênfase em instituições como PUC-Rio, UFRGS, UFOP, UFES, UFG, UnB, UFMG, UERJ, UFRRJ, UNIRio, UFBA, UFCG, dentre outras. Fóruns de debates regulares estão organizados e movimentam uma cena dinâmica, sem falar em iniciativas como o “Observatório da História”, recentemente lançado por pesquisadores da Unifesp, que busca ser um espaço interinstitucional de pesquisa da cultura histórica. É portanto razoável perguntar-se como o campo tem respondido à conjuntura que descrevemos acima. Em artigo publicado em 2009 Raquel Glezer & Sarah Albiere analisaram os impactos sobre a historiografia do que chamavam de obras de fronteira, , ou “quasehistórias” (Glezer and Albieri 2009). Referiam-se a grande expansão no mercado editorial brasileiro de biografias e outras obras voltadas para a demanda crescente de material com conteúdo histórico. Enfatizavam que “[...] nos anos 1990, ao serem lançados os primeiros volumes das edições que denominamos de “fronteiriças”, a comunidade se manifestou de forma contrária a tais produtos, com certo estardalhaço” (Glezer & Albieri, 2009, p. 19). O artigo concentra-se em um esforço de estabilizar as fronteiras entre o histórico (disciplinar) e o quase-histórico, distinção que, as autoras reconhecem, o público ignora. Já apontavam as transformações epistemológicas do final do século XX como uma das causas dessa crescente indiferenciação: “[...] a fragmentação das identidades individuais faz com que o passado assuma [...] a característica de ser objeto de busca de algo mitificado como homogêneo, como contraponto do momento vivido, ou como curiosidade pela diferença e exotismo, mas deva, por outro, estar inserido no mercado de consumo e lazer cultural [...]. Tais processos teriam levado à “[...] fragmentação do que parecia ser um campo homogêneo — a história-ciência cedeu espaço a campos historiográficos diversos, cada qual com seus objetos, fontes, metodologia, conceitual analítico, resultados e forma de apresentação”. (Glezer & Albieri, 2009, p. 24). As autoras concluíam afirmando a necessidade de qualquer campo científico diferenciarse das práticas de divulgação e mesmo da falsa ciência, embora admitissem que essa distinção é mais possível no enfrentamento de casos concretos do que a partir de uma definição teórica fechada. Sua resposta apontava ainda o papel heurístico positivo que esses discursos de fronteira poderiam ter ao inspirar o campo científico por seu uso mais abundante da imaginação e por operar por fora dos constrangimentos da ciência. Uma de suas afirmações parece ter adquirido contornos mais dramáticos desde então: “Contudo, há um razoável consenso quanto a todas as especialidade acadêmicas serem produtoras de conhecimento confiável – incluindo as humanidades. E nesse sentido, as falsas representações dos pseudo-historiadores seriam de natureza muito semelhante àquelas dos alquimistas ou criacionistas” (Idem, p. 28). Hoje esse consenso parece mais ameaçado quando os governos desafiam o discurso da ciência e da autoridade em geral, colocando em risco o pacto frágil entre Estado democrático e produção de conhecimento. [6: Aqui citam Jean Chesneaux. De la modernité. Paris: La Découverte-Maspero, s.d. ] Em artigo publicado em 2013 na Revista História da Historiografia, Jurandir Malerba deslocava o problema das relações entre a história acadêmica e a história leiga para o campo da “Public History”, no contexto do debate acerca do projeto de regulamentação da profissão de historiador. Após um relevante balanço do debate internacional, aponta que “Desde o final dos anos 1990, nos Estados Unidos, a Public History encontra--se institucionalizada dentro das universidades.” (p. 29). Segue demonstrando como por diferentes formas esse novo campo de atuação do historiador vai se desenvolvendo em países como Austrália e Grã-bretanha. Fica evidente o aspecto central da produção de história como entretenimento, controlado por grandes grupos empresariais de mídia, nessa configuração a atuação do historiador não é distinta daquela de outros profissionais da indústria. Como o autor resumo de modo lapidar: “Hoje o passado significa “negócios” e, não menos importante, “poder”! (Idem, p. 32). Passando pela análise de franquias como Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e Leandro Narloch, Malerba desmonstra como esse segmento do mercado editorial e do entretenimento tem no confronto caricato com a historiografia acadêmica uma de suas marcas de definição, juntamente com a manipulação e amplificação de preconceitos e valores antidemocráticos, além de ignorarem as conquistas cognitivas da historiografia desde o século XIX. (Idem, p. 36). O artigo conclui com um amplo chamamento aos historiadores acadêmicos entrarem na disputa e na crítica dessa chamada “história pública”. (Idem, p. 43) Embora já aqui apareçam algumas referências acerca da conjuntura política, em especial o processo de eliminação da disciplina nos currículos a partir de iniciativas dos Estados e alguns municípios, não há ainda a conexão que hoje parece bastante evidente entre essa “história pública” e o seu aparelhamento direto por grupos políticos cuja agenda passa pelo enfraquecimentodos valores democráticos e a promoção da ignorância e do preconceito. Analisando questões semelhantes Marcelo Abreu e Marcelo Rangel (UFOP), em artigo de 2015 publicado na revista História e Cultura, analisam as modalidades de resposta quando o ensino de história é desafiado pelas tensões do mundo contemporâneo. Para os autores, as condições de produção da memória no mundo atual, que parece desafiado pela austeridade econômica e, ao mesmo tempo, marcado por pressões homogeneizadoras que se organizam em torno de fenômenos como o Presentismo e o Presente Amplo, nos convidam a pensar a aula como o “terreno em que memórias múltiplas podem ganhar expressão”, e em que a “[...] a autoridade do discurso histórico escolar [...] é questionada a todo momento na medida em que ecoam na sala de aula as incessantes produções de passados efetivadas no mundo da comunicação/informação e outros âmbitos da “cultura histórica”. Para competir com essas fontes o discurso histórico escolar seria preciso, segundo os autores, “[...] fazer das aulas um exercício de sensibilidade histórica” ao lado dos “[...] investimentos já consolidados da razão histórica”. (Abreu & Rangel, 2015, p. 21). Aproximando-se tanto dos problemas levantados por Glezer & Albiere e Malerba, deslocados para o espaço do ensino de história, reivindicam a necessidade de “[...] sustentar a didática da história na oscilação entre entendimento e imaginação, entre sentido e presença.” (Idem, ibidem). O caminho para uma resposta eficaz estaria no equilíbrio entre as demandas disciplinares por consciência histórica e cognição e a demandas contemporâneas por presença e performance participativa. Em outra dimensão deste debate, a história-memória da ditadura civil-militar tornou-se um espaço privilegiado para a observação dos fenômenos da democratização da história e seus desafios para o historiador. Mateus Pereira, em artigo publicado na revista Varia História em 2015, observa dois movimentos contraditórios nesse campo. Por um lado, o aumento da negação e do revisionismo em relação ao nosso último período autoritário, por outro, o desenvolvimento do que chama de “inscrição frágil” da memória da ditadura, motivados pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Afirma, ao estudar as discussões nos fóruns de editores de verbetes da Wikipedia que tratam de 64, que as "batalhas de Memória" acerca do significado da Ditadura-Civil militar foram e estão sendo cotidianamente travadas e que muitos de seus elementos que pareciam latentes emergiram nos últimos anos, produzindo novos lances em diferentes constelações. Pereira procura responder à pergunta de como a memória autoritária, fundada em gestos negacionistas e revisionistas, consegue sobreviver aos esforços historiográficos de crítica e estabelecimento factual. Conclui, que “ao contrário do que parece defender Ricoeur em ‘A memória, a história e o esquecimento’ (2007), conhecer a factualidade do que ocorreu anteriormente por meio da lembrança talvez não tenha nenhum resultado terapêutico, pelo menos ligado à cura, à reconciliação ou à pacificação”. (Pereira, 2015, p. 880) Sendo assim, o papel da historiografia não se encerraria no estabelecimento de uma verdade factual, mas passaria pela compreensão dos modos de funcionamento dessas complexas comunidades de “memória em rede” (Pereira, 2015, p. 874). A crítica histórico-factual por si só não seria capaz de refutar o discurso revisionista-negacionista, colocando-se para o historiador os desafios de compreender, mediar e (des)qualificar os movimentos táticos e estratégicos dessas comunidade de memória em conflito, além do imperativo ético de se colocar ao lado da luta por reparação e justiça. Em artigo ainda inédito intitulado “O professor universitário de história é um professor? Reflexões sobre a docência de Teoria e Metodologia da História e Historiografia no Ensino Superior”, Mara Rodrigues e Benito Schmidt (UFRGS) partem do diagnóstico semelhante aos que já temos tratado para se perguntar o quanto a área de Teoria e Historia da Historiografia tem avançado em pensar as transformações recentes em termos didáticos. Destacam a importância de ações político-acadêmicas que visaram trazer a licenciatura e a função social do historiador como professor da educação básica para o centro do debate. Citam diretamente a criação do Pibid pelo CNPq e os Mestrados profissionais voltados para o ensino em âmbito da Capes, em particular o ProfHistória. Apesar disso, constatam “[...] a carência de discussões sobre a atuação do/a docente desta área de conhecimento no Ensino Superior” (Schmidt and Rodrigues 2017). Os autores nos convidam a diferenciar os objetivos do ensino de História na universidade e no ensino básico. No primeiro seria formar pesquisadores- historiadores, no segundo contribuir para a cidadania plena, salientando a elasticidade desse objetivo, a depender do tempo e dos grupos sociais em disputa, a cidadania pode significar coisas muito distintas e, por vezes, contraditórias. Destacam a democratização do acesso e a maior diversidade de nossos cursos de história e se perguntam como podem os nossos planos de curso e currículos permanecerem os mesmos? (Idem, p. 8) E ainda: “Como podemos manter nossa lista de leituras e estratégias de ensino sem modificações, se quando as elaboramos, as pensamos, mesmo que inconscientemente, para um grupo de características genéricas (seriam leitores e ouvintes universais, conformados a partir de um modelo branco, masculino, de classe média, com um repertório de leituras e viagens relativamente comum?) e homogêneas?” (Idem, p. 10) A partir de um diálogo com a hermenêutica de Ricoeur a Gadamer, destacam a necessidade de relativizar a concepção romântica de autoria que celebra a individualidade solar e o momento de produção como uma espécie de isolamento na intimidade, para enfatizar a leitura como evento constitutivo dos sentidos dos textos: “Sob esta ótica, a abordagem do conhecimento histórico em sala de aula não se restringiria à invocação de um passado histórico, mas se ampliaria às possibilidades abertas por um passado prático, “utilizável” por diferentes grupos, instituições, pessoas particulares e agências, conforme sua constituição identitária, subsidiando suas tomadas de decisões na vida cotidiana (White, 2014: XIII)” (Idem, p. 11). Insistem que as diferenças entre a história pesquisada e a história escolar poderiam ser melhor definidas como entre uma história pesquisada e uma história ensinada, salientando o fato evidente de que nossa prática acadêmica não se reduz à pesquisa, embora as pressões do modelo de pós-graduação tenda a fazê-lo, mas envolve igualmente o ensino. Rodrigo Turim (UNIRIO), em artigo disponibilizado para debate (2017) na plataforma academia.edu intitulado “Entre o passado prático e o passado histórico: figurações do historiador no Brasil contemporâneo”, aborda as consequência das transformações contemporâneas do tempo para a história disciplina em seu formato universitário. Analisa um conjunto de textos publicados no site da Anpuh nacional que versa sobre os desafios atuais da historiografia, em particular o projeto de profissionalização e a Base Nacional Curricular Comum. Também aqui parte-se do mesmo diagnóstico que temos destacado: “[...] o historiador vê sua autoridade sendo intensamente disputada na arena pública, esmaecendo aquela forte distinção entre profissionais e amadores estabelecida desde o século XIX. O que resta dessa distinção? No que, hoje, pode se sustentar a profissão do historiador e seu papel na sociedade diante dessas novas experiências sociais e políticas?”. (Turin, 2017, p. 4) Em sua análise percebe a continuidade de elementos justificativos e virtudes epistêmicas construídas pela disciplina desde o século XIX. Valores como a objetividade do conhecimento histórico e seus compromissos com a nação precisam mediar sua relevância no contexto de pluralização de narrativas identitárias, em suas palavras, a historiografia estaria então entre este passadodisciplinar “[...] e um passado prático, constituído pelas pressões de um cenário marcado pela difusão e ampliação dos meios de representação do passado e pela globalização das memórias sociais e nacionais”. (Idem, p. 10). Em outro artigo disponível para debate no site “Academia.edu”, e agora publicado na Revista Maracanã, Francisco Souza, Géssica Gaio e Thiago Nicodemo, três professores do departamento de História da UERJ, refletem sobre os desafios da historiografia como resposta à terrível crise que atravessa aquela instituição. Perguntam-se, muito diretamente, “como refletir sobre a história diante da experiência de desmantelamento da universidade pública [...]” (Souza et al., 2017, p. 1). Propõem pensar sobre a disciplina e as formas de engajamento com o tempo presente, questão que retorna com força renovada à ordem do dia desde o momento em que ficou evidente a articulação antidemocrática de forças políticas que viam nas sequências dos governos petistas e de suas políticas de inclusão a maior ameaça a seus projetos de hegemonia econômica e social. O objetivo do artigo é pensar a “reativação dos vínculos entre universidade e sociedade” (idem, ibidem). Analisando o comprometimento de historiadores do começo do século XX, Crocce, Bloch, Sérgio Buarque, com os vínculos entre presente e escrita da história, salientam a persistência do conceito moderno da história como um singular-coletivo como um horizonte naturalizado. Afirmam que a manutenção dessa conjunção entre disciplina, ciência e realidade como singular-coletivo resulta em que “[...] a história como disciplina tem participado do amplo movimento de produzir para públicos cada vez mais concentrados” (idem, p. 7). No enfrentamento dessa conjunção, afirmam que a historiografia precisa enfrentar os efeitos limitadores de sua adesão a um conceito moderno de autor que limita o processo da produção de conhecimento a uma concepção de linguagem difusionista. Retornam a Bakhtin para pensar a linguagem como circulação, reivindicando uma nova ética tanto na produção do conhecimento, quanto na sua configuração escolar, no acontecimento da aula. Assim, colocam a seguinte pergunta: “Não é evidente hoje, por exemplo, se produzimos como arquipélagos ou se seremos capazes de produzir conjuntamente” (Idem, p. 8). [7: “Nossa imaginação intelectual tendeu a ser configurada numa universidade de caráter excludente (no sentido de um privilégio para poucos indivíduos), o que marca não apenas a questão do acesso, mas também os procedimentos de pesquisa, o repertório de temas a serem investigados, de protocolos de inclusão e exclusão social e de formas de comunicação com o público”. (Idem, p. 16) ] Em conferência no 9 SNHH, cujo tema foi “O historiador brasileiro e seus públicos”, Jurandir Malerba expandiu suas reflexões sobre história pública de 2014 para incorporar de modo decisivo aquilo que estava ausente naquele texto, os impactos da revolução digital e a mudança do enfoque das “audiências” para ´”o público gerador de história” (Malerba 2017, p. 141). O texto avança no debate ao propor não apenas o reforço das fronteiras em história disciplinar e leiga, mas a compreensão de “[...] como esse conhecimento vem sendo testado e negociado” (idem, p. 144). O caminho sugerido por Malerba passaria por uma reafirmação da autoriadade e responsabilidade do historiador pela cultura história democratizada (idem, p. 147). O historiador como curador Parece-me que a ênfase hoje dada no debate a uma explosão da demanda por história e de novas formas de representação tende a exagerar o seu aspecto recente, pois desde o XIX, pelo menos, que a historia disciplinar teve de disputar e conviver com inúmeras outras fontes de história, uma tarefa atual da HH tem sido repensar essa relação que foi silenciada como parte da estratégia discursiva da disciplina. No século XIX, a escolarização do ensino de história universal e nacional foi um passo ousado e importante naquela conjuntura em que democratização da história, a ampliação de seu valor social, político e cultural fez emergir novos sujeitos e cenários de disputa. Os regimes de autonomia dos discursos históricos disciplinar e escolar constituíram-se em competição aberta com o discurso histórico literário, consagrado no romance, com o regime compilatório e popular que se espalhava pela imprensa periódica em expansão e pelo negócio do livro. Portanto, não podemos exagerar o ineditismo da situação contemporânea, com o risco de opor nosso estado atual a um passado nostálgico cuja existência não resistiria a uma análise mais rigorosa. O aspecto positivo dessa constatação é que podemos olhar para o passado da disciplina em busca de algumas respostas. Inúmeras pesquisas em andamentos têm revelado uma rica “historiografia popular” no século XIX que disputava e negociava fronteiras com a disciplina. Nomes como Justiniano José da Rocha, Francisco Solano Constâncio, Abreu e Lima, João Francisco Lisboa, Joaquim Felício dos Santos, Mello Moraes, entre outros, têm se destacado nessas novas pesquisas. Estes autores produziram no século XIX uma historiografia voltada para o livro impresso ou mesmo para as folhas periódicas com o duplo objetivo de intervir na vida prático-política e atender a um desejo crescente por história. Do mesmo modo, não podemos absolutizar a oposição entre historiografia disciplinar e outras formas de discurso no esquema binário prático versus científicoteórico, como tem sido difundido a partir da recepção das reflexões mais recentes de Hayden White acerca dos “passados práticos”. Se deixarmos o campo das definições típico-ideias para o da história da historiografia veremos facilmente que nem o mais cientificista projeto historiográfico esteve desprovido de dimensões e objetivos práticos, éticos e políticos. A história no século XIX só pôde tornar-se uma ciência no momento em que conseguiu convencer a sociedade e o Estado das vantagens práticas evidentes do conhecimento que poderia produzir, em particular em sua pretensão de orientar na conjuntura, amplificar novas identidades políticas e mediar conflitos nas relações internacionais. Esse processo de delimitação de fronteiras entre o prático e o científico não foi linear nem carente de ambivalências, mas construído por meio de disputas e polêmicas que podem e estão sendo reconstruídas. (Maleval 2015; Varella 2011; Santos 2013; Ferreira 2017; Araujo 2015). O cenário atual se destaca não tanto pela centralidade da noção do público como audiência, mas pela reivindicação de uma cidadania que quer ser pensada como polo ativo na produção de uma historiografia socialmente distribuída, ou seja, da democratização das condições de escrita e apresentação de histórias, aqui entendida como intervenções sobre a historicidade que extrapolam os regimes discursivos estabelecidos ao longo do processo de modernização. Esse fenômeno não pode ser visto apenas como uma ameaça à historiografia profissional, mas como uma reação compensatória que não tem sido suficientemente respondida no interior do campo. Em artigo recente procurei caracterizar o que chamei de “regime de autonomia avaliativo”, fruto do modelo de pós-graduação implantado e monitorado pela Capes desde meados dos anos 1970. Sem ignorar os grandes avanços que este regime discursivo tem permitido, dois aspectos precisam ser apontados: a exterioridade dos modelos científicos e de avaliação construídos a partir de uma elite administrativa fortalecida nas agências, e (2) a baixa comunicação e legitimidade social do conhecimento academicamente produzido neste contexto. A legitimação pelo desempenho, para retomar a reflexão clássica de Lyotard de 1979 (Marques 2015), surge como efeito e, ao mesmo tempo, aprofunda a crise de legitimação da ciência, portanto, a cena atual não poderá ser respondida apenas pelo reforço da lógica da produção de conhecimento científico-especializado, embora essa mesma lógica precise ser, no caso das Humanidades, defendida frente das forças destrutivas que se levantam contra a disciplina.A legitimação pelo desempenho, celebrado no modelo de avaliação das agências, em especial da Capes, é não apenas uma força domesticadora das Humanidades, mas tem igualmente aprofundado sua crise de legitimação. Uma das direções da resposta passa necessariamente pelo aprofundamento crítico do modelo disciplinar, seja pelo enfrentamento das armadilhas da política de desempenho e do modelo avaliativo, que ampliam a pesquisa reduzindo seu auditório e impacto. A busca de novas ferramentas críticas passa por conceitos mais complexos que atualizem a aporia do discurso histórico, para me utilizar da formulação de Luiz Costa Lima. Para este autor, uma das condições definidoras da escrita da história está na reivindicação de alguma autoridade na busca da verdade do que aconteceu. Naturalmente as formas pelas quais as sociedades administram seus regimes de verdade são diversas e precisam ser continuamente recolocadas, mais do que singelamente abandonadas. Como a intrigante epígrafe do grande romance de João Ubaldo, “O problema da verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”, assim, o problema da verdade não começa ou termina pelos fatos, mas pelas condições de verdade das histórias que tornam os fatos eventos significativos. Ao lado dessa tarefa, é urgente a busca de novas formas de organizar e representar a avalanche de informações da era digital e a complexidade de nosso mundo integrado. A promessa da chamada web 3.0 de transformar, através das redes semânticas, toda informação em dado, é, para as Humanidades, ao mesmo tempo, uma ameaça e um desafio. Em todas essas frentes a disciplina precisa ser defendida e renovada. [8: Agradeço a Luana Melo ter chamado minha atenção para essa frase que abre o romance “Viva o povo brasileiro”. ] Essa nova onda democratizante e esse desejo renovado por histórias precisa ser respondido em diversas frentes que articulem um conceito mais amplo de “direito à história”. Quando digo direito à história me refiro ao acesso às condições plenas de desenvolvimento e experiência de nossa condição humana, e não uma espécie de difusão de versões simplificadas de caráter pragmático a serviço de projetos de estados, nações, especialistas ou mercados: “A afirmação da disciplina passou sempre pela consciência da dificuldade em negociar constantemente suas fronteiras frente às múltiplas pressões, afirmar que a historiografia foi apenas uma “ferramenta” dessas forças é ignorar o que ela tem de mais fundamental, a capacidade de alargar nossa experiência e conhecimento da história, de voltar-se contra si mesma, mesmo que buscando fora de suas fronteiras os recursos para fazê-lo, pois a ideia de autonomia disciplinar não é alheia à porosidade de suas fronteiras, muito antes a exige” (Araujo, 2016, p. 89) Portanto, há importantes diferenças na natureza do trabalho do historiador quando definimos sua tarefa como a de garantir o “direito à história” e, por outro lado, afirmar que “Saber história é um direito”, como muito oportunamente foi definido pela Anpuh como uma bandeira de luta para o campo. A disciplina produz um conhecimento controlado e é natural que espere que a sociedade possa ter livre e amplo acesso a esse “produto”. Por outro lado, isso não deve nos impedir de reconhecer que o saber histórico sempre teve outras fontes, em última instância pelo simples fato de, em existindo, o ser humano constantemente produzir interpretações sobre sua situação. Produzir historiografias depende da constante interpretação da situação histórica, é impossível separar completamente esses dois polos. O mundo moderno tem constantemente democratizado o acesso às condições para a escrita e representação da história, a representação especializada do historiador que desde o século XIX procurou garantir seu valor privilegiado, enfrenta hoje novos e renovados desafios, mas não devemos ver esses desafios nem como um convite irrecusável para o desfazimento das diferenças entre o conhecimento histórico disciplinar e aquele produzido fora da disciplina em diferentes âmbitos, nem como um fenômeno marginal que possa ser simplesmente ignorado. A democratização das condições de produção de representações históricas é um fenômeno complexo e ambivalente, inseparável do processo de modernização em geral, que tanto pode apontar para a banalização e congelamento da experiência da história, quanto para o seu alargamento. O historiador sempre teve e pode continuar a ter um papel central nessa luta pelo direito à história. A luta pelo direito à história não passa apenas por gestos individuais e voluntários, mas pela disputa institucional e política, como foi aquela que permitiu a criação de arquivos, universidades e profissões que garantissem as condições mínimas para a produção do conhecimento historiográfico moderno. Hoje essa luta passa pela regulação da mídia, da propaganda, da circulação de notícias falsas, por uma educação emancipadora que permita ao cidadão ter acesso às condições de reflexividade sobre sua situação existencial. A simples expansão do discurso sobre a história e a memória não pode ser confundida com sua “democratização”, se algumas dessas fontes estão mais comprometidas com a afirmação de poderes, privilégios, preconceitos, ou a edificação de lucrativos negócios. Não queremos apenas colaborar com os processos de naturalização da temporalidade do mercado e do capitalismo contemporâneo, ser mais uma fonte de distração e entretenimento, não apenas ser atual, mas fazer a história colidir com o “presente atualista” (Araujo and Mateus 2016). Assim como hoje o ensino de história não pode ser resumido à ideia de transposição de um saber disciplinar para o espaço escolar, também a relação com a demanda e produção social de histórias não será atendida apenas pelas práticas de divulgação científica, embora elas sejam fundamentais, mas deve partir do reconhecimento dos diversos sujeitos e suas produções locais e epistemologias, surgindo daí mais a imagem de uma circulação do que a de uma difusão para auditórios cada vez mais amplos. Nesse circuito, talvez o historiador possa desenvolver uma nova e distinta função social, aparecendo como “curador de histórias”. No capítulo “Memória coletiva como afirmação” da coletânea “Heritage and Social Media”, de 2012, Neil Silberman e Margaret Purser assim resumem o problema a partir da perspectiva das políticas de patrimônio, trata-se de: “ [...] capacitar comunidades contemporâneas a digitalmente (re)produzir ambientes históricos, narrativas coletivas e visualizações geográficas que aglutinem essas perspectivas individuais em formas e processos de lembrança” (Giaccardi 2012, p. 14). Os autores salientam que nesses atos de curadoria o elemento central é o processo ativado, mais do que simplesmente o produto final (Idem, p. 26). Este mesmo volume trás o interessante estudo de Sophie B. Liu intitulado “Curadoria socialmente distribuída do desastre de Bhopal”, em que estuda as formas pelas quais a memória da catástrofe de 1984 foi reativada socialmente através das medias digitais. A autora parte da premissa de que “As emergentes tecnologias de informação e comunicação como as medias sociais estão transformando as ‘memórias digitais’ em artefatos que podem ser copiados, remixados, (re)presentados e, finalmente, curados on line de modo distribuído” (Giaccardi 2012, p. 31). [9: “enable contemporary communities to digitally (re)produce historical environments, collective narratives and geographical visualizations that cluster individual perspectives into shared forms and processes of remembering”. ][10: “Emerging ICTs like social media are transforming ‘digital memories’ into artifacts that can be copied, remixed, (re)presented and ultimately curated online in a distributed fashion”. ] Estes movimentos não estão apenas usando o passado, mas produzindo saberes históricos. Quando comunidades como as de Bento Rodrigues, cujo espaço de existência foi dizimado pela catástrofe da Vale-Samarco-BHP contam e produzem suas histórias no contexto da luta porreparação, o trabalho do historiador não pode pretender apenar substituir esses relatos por historiografias profissionais, mas também e fundamentalmente contribuir para amplificá-los em suas dimensões cognitivas e prático-políticas. Um esforço para o qual o livro “Vozes de Tchernóbil”, de Svetlana Aleksiévitch, pode nos servir como inspiração. O seu trabalho de promover, recolher, selecionar e editar relatos orais de pessoas comuns sobre a catástrofe está mais próximo da tarefa de um curador do que da de um autor de histórias: “Quase vinte anos. Encontrei e conversei com ex-trabalhadores da central, cientistas, médicos, soldados, evacuados, residentes ilegais em zonas proibidas. [...] Essas pessoas conversavam, buscavam respostas. Nós pensávamos juntos.” (ver página) Oi ainda, “O que a experiência de Tchernóbil nos deu? Terá nos conduzido a esse mundo secreto e silencioso dos ‘outros’”. [refere-se aqui aos animais] O mesmo poderia ser dito acerca das narrativas produzidas e difundidas pelos movimentos sociais, os coletivos negros e de gênero, o Movimento de Atingido por Barragens, dos Sem Terra e Sem Teto, pelo Passe Livre e as ocupações, mas também por empresas e corporações a partir de outra lógica e posição, ou ainda pelas pessoas comuns, que graças às ferramentas “sociais”, colaborativas e de compartilhamento da Web 2.0, cada vez mais têm acesso aos meios de produção e difusão e sentem-se motivadas a contar as suas histórias. O historiador pode e deve tratar essa pluralidade de fenômenos como fontes para uma historiografia disciplinar, mas pode também atuar tornando essa nova dimensão um problema em si mesmo. O foco aqui seria menos a autoria e a produção, como na pesquisa, mas o acolhimento crítico e a amplificação de oportunidades e ferramentas. Não me parece portanto acidental que diversos trabalhos elencados nesse balanço reivindiquem a necessidade urgente de se pensar novas formas de autoria e autoridade nas humanidades, apontando para formas mais colaborativas e compartilhadas de produção de conhecimento. Não deixa de ser promissor o fato de que muitos dos artigos citados são em co-autoria, o que pode ser um bom sinal da superação da lógica romântica do autor com sua definição metafísica de subjetividade, que se acopla à lógica liberal do trabalho intelectual como equivalente à propriedade individual e privada. Pensar uma nova estratégia de comunicação, circulação e democratização do direito à história não passa apenas ou sobretudo pela reivindicação de que o historiador deveria escrever melhor, mais literariamente, seja lá o que isso signifique. Muitas vezes é apenas a consolidação de preconceitos linguísticos vindos de uma época em que o auditório privilegiado do historiador era formado pelas elites letradas. Trata-se, na verdade, de compreender os regimes de autonomia que organizam a circulação dos discursos em nosso mundo e atuar em todas as suas dimensões. Ao lado do historiador-pesquisador e do historiador-docente estamos vendo emergir o historiador-curador, para isso precisamos reestruturar nossos cursos, em particular nossos bacharelados, hoje limitados pela tarefa de reproduzir quadros para a universidade e a pesquisa. Precisamos transformar nossas graduações, criar instrumentos institucionais como laboratórios de áudiovisual, ampliar os produtos nos quais se espera que um historiador possa se comunicar, redefinir os currículos de modo que possam atingir um novo universo de competências, aproximar o campo de áreas como a comunicação, a antropologia e as ciências da informação. Talvez, explorando a dimensão curatorial do trabalho do historiador, poderemos enfrentar mais decididamente a extensão universitária, que tem sido apontada por autores como Rodrigo Perez, da UFBA, como uma das respostas na busca de uma epistemologia para tempos de golpe e desmonte da democracia. Ao destacar essas três vocações do trabalho do historiador nossa intenção não é produzir qualquer tipo de isolamento, no limite, as habilidade e, jogo nas três áreas são muito parecidas, deslocando-se apenas as ênfases. Da mesma forma, espera-se que certas práticas desenvolvidas em um âmbito possa contribuir para os demais. Tanto a sala de aula do ensino básico quanto a pesquisa podem se beneficiar por conceitos como “produção distribuída” (crowdsourcing) e espaços comunitários de cooperação e aprendizado, duas práticas que o historiador norte-americano Charles Upchurch nos convida a mobilizar nas salas de aula do ensino superior, cada vez mais complexificadas pelas demandas identitárias (Upchurch 2017). A curadoria de histórias como um espaço de promoção, seleção, edição e reapresentação de histórias socialmente distribuídas e compartilhadas deve, entretanto, responder ao desafio de decidir que histórias curar. A premissa da democratização e do acolhimento da diversidade não poderia nos levar ao risco de silenciar frente à relatos fundados no preconceito, no ódio e na manipulação? Mesmo aqui devemos nos perguntar quais as aporias do discurso histórico disciplinar comprometido com o direito à história? Quais são seus valores incontornáveis? Aqui listaremos apenas três que consideramos incontornáveis. O pergunta pela verdade do acontecimento, a defesa da democracia e o respeito à diversidade. Celebrar e amplificar a diversidade que celebre a diversidade, que saiba se alimentar do outro ao mesmo tempo em que o edifica, e condenar a diversidade autorreferida, que para se afirmar precise reduzir o outro a si mesmo. Certamente que não poderemos contar com uma prescrição teórica que nos garanta uma fórmula para guiar nossas decisões concretas, mas como historiadores sabemos que a sabedoria prática, a que vem da experiência, é capaz de nos guiar nas decisões, ao mesmo tempo em que nos mantém aberto a sua contínua retificação. A democracia e a verdade são valores aporéticos e condição para a universilização do direito à história que devem orientar o historiador em sua função social de curador de histórias. Isto nos permitiria desqualificar qualquer discurso histórico que tenha como pressuposto a negação desses valores. A curadoria de histórias em sua dimensão crítica certamente envolve o enfrentamento dos relatos de ódio e preconceito, a função de "curador" aponta nessa direção, não apenas ou sobretudo pelo silenciamento dessas (anti)histórias, mas por sua desestabilização. Muitas vezes o deixar falar em um ambiente de diálogo paritário pode contribuir para desestabilizar essas narrativas, isso para não dizer dos procedimentos críticos, que precisam ser reforçados, mas que sozinhos não resolvem. A curadoria em história deve igualmente contribuir para a construção de políticas públicas que sejam eficazes na defesa do direito à história, protegendo a sociedade de usos espúrios e da privatização e mercantilização desses valores, certamente mais ameaçados do que nunca quando a Web 3.0 promete tornar toda informação, no limite todo o real, em um imenso banco de dados organizado por redes semânticas cujas lógicas estruturadoras estarão a serviço dos interesses que as promovem. No debate acerca do movimento “Escola sem Partido” há uma tendência de reforçarmos o papel quase doutrinal do Ensino de História, mesmo com as boas intenções de sempre, esse gesto é bastante arriscado por diversos motivos, a começar por alimentar a própria agenda supostamente antidoutrinária dessas propostas. O ponto que gostaria de insistir é que o foco poderia deixar de ser apenas o "saber" ou "conhecer" história, mas também a amplificação de nossa capacidade de contar e ouvir (ler, ver, tocar) histórias como gesto de alargamento do humano, como condição de empatia e educação para a democracia. Gostaria de concluir este artigo recordando as palavras de Temistócles Cezar em recente artigo de balanço sobre os impactos do Giro Linguístico na historiografia brasileira, considerado por ele uma “[...] brecha, um gap no sentido que lhe atribui Hannah Arendt, ou seja, um “estranho entremeio no tempo histórico, onde se tomaconsciência de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda” (ARENDT 1992, p. 35-36)”. (p. 451). (Cezar, 2015, p. 451) Frente a esses momentos de crise, nos caberia “[...] tentar nos reaproximar do clima histórico marcado pela instabilidade, que, ao mesmo tempo, assusta e incita” (Idem, p. 455). Ou, em uma paráfrase de Foucault, as ciências Humanas estarão em perigo enquanto forem perigosas. Bibliografia citada Abreu, Marcelo, and Marcelo Rangel. 2015. “Memória, Cultura Histórica E Ensino de História No Mundo Contemporâneo.” História E Cultura 4 (2): 7–24. 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