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Doutrina O Conceito de Usuário

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MARÇAl JUSTEN FILHO
TEORIA GERAL DAS
N
CONCESSOES DE,
SERViÇO PUBLICO
II~II
São Paulo - 2003
IR Nesse sentido, BIELSA, ob. cit., p. 420.
rão no domínio público. O concessionário não poderá praticar qualquer ato, no
curso do prazo da concessão, que inviabilize a posterior reversão dos bens.18
Essa duplicidade de regime jurídico é compatível com a natureza comple-
~a d~ concessão. Afinal, .a situação jurídica do concessionário perante os usuá-
nos e extr~~amente slm~lar à do Esta?o. O concessionário assume o desempe-
n.hodas atividades estataIS, sendo-lhe Impostos deveres-poderes peculiares. As-
slln se passa, por exemplo, com a objetivação da responsabilidade civil. Esse
regime jun:dico acarr~ta a identidade de tratamento jurídico entre os bens públi-
cos e os pnvados aplIcados à prestação do serviço público.
Obse~ve-se que mesm~ recursos financeiros do concessionário poderão es-
t~r a~rangldos na regra da IInpenhorabilidade. Suponha-se que o concessioná-
no ?Isponha. de depósitos bancários e os fundos destinem-se à liquidação de
dé?ltos_relaclO.nadoscom a execução da concessão: pagamento de salários, li-
qUldaçao de tnbutos ou realização de investimentos para ampliação dos servi-
ços, .por exemplo. Não será facultado a um credor pleitear a apreensão dos valo-
res, ~nvocandopretensões fundadas em direito privado. Se aquelas verbas forem
destmadas à manutenção da continuidade do serviço público, serão imunes a
penhora ou apreensão judicial.
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X.2) ~onsiderações Gerais sobre a Relação entre Sociedade e Usuários
E usual, no tratamento do instituto da concessão, presumir a comunhão de
interesses entre a Sociedade e os usuários, tomando como suficiente a tutela aos
usuários para assegurar os interesses coletivos. Essa formulação que deve ser
tomada com grande cautela, tal como apontado em inúmeras passagens anterio-
res.
A expressão usuário indica o conjunto de indivíduos (pessoas físicas e ju-
rídicas) que demandam, efetiva ou potencialmente, a fruição dos serviços públi-
cos objeto da concessão. O critério de identificação da condição de usuário, por-
tanto, reside nessa comunhão no tocante à necessidade a ser satisfeita por meio
Capítulo X - Posição Jurídica dos Usuários
X.I) O Conceito de "Usuário"
A expressão usuário é utilizada para indicar todos os sujeitos que, em tese,
possam vir a utilizar-se do serviço público, ainda que concretamente não o fa-
çam. Portanto, o usuário em potencial não é distinguido do USUál10efetivo.
Em princípio, usuário é o indivíduo, mas se admite que associações e ou-
tras formas institucionais de organização de interesses e pessoas sejam configu-
radas como tal.
O conceito de usuário poderia ser aproximado ao de pessoa, mas nem sem-
pre haverá identidade jurídica. Há usuários que não são reconhecidos como pes-
soas pelo Direito (tal como condomínios, sociedades não personificadas etc.).
Mas impõe-se a existência 51ealgum vínculo entre o sujeito qualificado como
usuário e um ser humano. E evidente que um animal que se encontra num va-
gão de trem não pode ser qualificado como usuário.
Não se confunde usuário com cidadão. Não há requisito da titularidade de
direitos políticos para alguém ser usuário de serviço público. O regime de tute-
Ia ao usuário não visa a proteger objetivamente interesses legítimos e não se iden-
tifica com a disciplina da ação popular.
Não se indaga sobre a nacionalidade do usuário. Como tal se pode configu-
rar um estrangeiro.
Nem mesmo há requisitos atinentes à capacidade de fato. A fruição do ser-
viço público não pressupõe - ao contrário do que se pensava no passado - uma
fórmula contratual privada, cujos requisitos de validade seriam determinados
segundo o direito privado. Portanto, um absolutamente incapaz pode (e, muitas
vezes, necessita) usufruir o serviço público.
Também não se reputa de maior relevância jurídica a utilização do concei-
to de cliente, tal como pretendem alguns arautos da renovação do conceito de
serviço público. A expressão nada acrescenta ao universo jurídico, a não ser
aproximar o tratamento do serviço público aos institutos de direito privado, sem
que isso possa afastar a aplicação de princípios fundamentais inerentes e insu-
primíveis ao regime publicístico.
Ademais, não se reputa cabível aplicar ao serviço público o conceito de
consumidO!;por motivos que serão expostos adiante.
Enfim, o conceito de usuário é dependente e derivado da utilização do ser-
viço público.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO548
dos serviços públicos. É evidente que é extremamente variável a dimensão das
necessidades individuais em face do serviço público concedido, tal como é va-
riado e heterogêneo o universo remanescente das circunstâncias dos diferentes
usuários.
O vocábulo Sociedade indica o conjunto global de indivíduos, considerados
em conjunto e em termos unitários em vista de uma pluralidade de circunstân-
cias comuns, de compartilhamento de valores, de identificação quanto a neces-
sidades comuns.
Pode-se supor que, em termos quase absolutos, todos os usuários integram
a Sociedade. Mas seria um excesso asseverar que a Sociedade se reduz aos usuá-
rios. Por mais essencial que seja a necessidade a ser atendida por meio do servi-
ço público, é impossível identificar usuário e Sociedade. É que os critérios defi-
nidores das duas categorias são distintos. O que une e vincula os usuários entre
si é a fmição do serviço. Já os vínculos que conduzem à configuração da Socie-
dade são muito mais extensos e intensos. Ser usuário é uma eventualidade, en-
quanto integrar a Sociedade é uma qualificação essencial ao sujeito.
Em outras palavras, sempre será possível identificar, numa Sociedade, duas
categorias. Haverá os usuários e os não usuários de serviços públicos.
551MARÇAL JUSTEN FILHO
X.2.2) O segundo equívoco: a ausência de homogeneidade da categoria dos
usuários
Mas há outro equívoco subjacente, relacionado com a consideração dos
usuários como uma categoria homogênea. Ora, o único ponto em comum entre
os usuários reside na circunstância de que todos usufmem efetiva ou potencial-
mente do sistema. Cada usuário possui interesses próprios e peculiares, inclusi-
ve no tocante à fruição do próprio serviço público. Em alguns casos, a distinção
é tão evidente que conduz a tratamento jurídico diverso, tal como se passa com
usuários residenciais e não residenciais para fins de serviço público de energia
elétrica ou de telecomunicações. Não é possível enfocar de modo homogêneo
os usuários de serviço público que deles se valem para fins empresariais, geran-
do riquezas e obtendo lucros. A situação é diversa quanto a outros, que se va-
Iem dos referidos serviços para satisfação de necessidades imediatas à própria
sobrevivência.
Ou seja, os indivíduos absolutamente carentes, residentes em habitações
precárias, são tão usuários dos serviços de energia elétrica quanto os integran-
tes dos extratos economicamente mais privilegiados. Tratar a todos eles como
titulares de interesses comuns e homogêneos seria ofensivo aos mais basilares
princípios jurídicos.
X.2.3) A alteração do critério de repartição dos encargos e de distribuição de
vantagens _ ,
Não se olvide, ademais disso, que a consagração da concessao conduz a
alteração do critério de repartição das cargas necessárias ao custeio do serviço.
Antes de promovida a outorga e na medida em que o serviço fosse custea-
do com recursos públicos em geral, aplicava-se o processo político comum, en-
volvendo critérios indeterminados e difusos. A captação de recursos estatais faz-
se, de modo geral, por via tributária, o que envolve apropriação segundo o prin-
cípio da capacidade contributiva. Ademais diss?, a partilh~ ~e recursos para
manutenção do serviço público resulta de um conjunto de declsoes governamen-
tais não sujeitas a controle externo.
ainda, o critério de repartição dos encargos passa a serdistinto, na medida em
que, antes da concessão, era indiferente a intensidade com que o sujeito se valia
do serviço público.
A decisão de delegar o serviço para sua prestação por meio de concessão
envolve, de usual, a alteração de uma regra radical, significa atribuir ao usuário
o dever de arcar com os custos do serviço que recebe e fazê-lo na medida da in-
tensidade com que o consome.
Daí afirmar-se que a existência da concessão conduz, de modo direto, à
desoneração econômica da Sociedade e à oneração econômica dos usuários. Ou,
para ser mais preciso, conduz à concentração da oneração econômic.a.necess~-
ria à prestação do serviço público nos extratos da Sociedade que ~tlhzam tais
serviços. Logo, a concessão de serviço público configura-se como mst~~ento
de redistribuição de riqueza, na medida em que afeta o modo de repartlçao das
cargas financeiras necessárias à prestação do serviço público.
Por todos esses fatores, é evidente o equívoco envolvido na confusão entre
interesse da Sociedade e interesse dos usuários.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÓES DE SERViÇO PÚBLICO550
X.2.1) O primeiro equívoco: tomar interesse da Sociedade por interesse dos
usuários
Mas a questão mais séria reside na tentativa de identificar interesse do usuá-
rio e interesse social, especialmente tomando este por aquele. É comum esse
equívoco e também ele nem sempre é inocente. Trata-se de afilmar que o inte-
resse coletivo atinente a um serviço público se confunde com o interesse dos
usuários. A afirmativa é equivocada, a toda evidência. Quando se afirma que o
serviço público envolve interesse público, não se está aludindo ao interesse do
usuário ou coletivo dos usuários.
O interesse público na prestação do serviço público consiste no interesse da
Sociedade, que poderá coincidir com o interesse dos usuários - mas será mera
coincidência.
O tema já foi acima ventilado e deve ser novamente enfrentado, eis que a
divergência entre interesse de usuário e interesse da Sociedade tende a se afir-
mar com a escolha da opção da delegação à iniciativa privada, sob regime de
concessão.
Talvez fosse possível afirmar que a dissociação entre interesse dos usuários
e interesse da Sociedade se afirma pela própria escolha de implementar uma
concessão de serviço público. É que, antes da outorga, o fornecimento do servi-
ço público faz-se usualmente sem contrapartida de remuneração, sendo presta-
do gratuitamente.
Ora, é evidente que não existe serviço público gratuito. A circunstância de
o usuário receber o serviço sem contrapartida não significa que o serviço seja
gratuito. Ele é custeado com recursos públicos, obtidos por diversas vias - das
quais a principal reside na cobrança de impostos. A concessão importa, neces-
sariamente, a adoção de um sistema tarifário, em que o usuário arca com os cus-
tos correspondentes às utilidades que recebe.
Ou seja, o serviço público, antes da delegação ao particular, era custeado
pela Sociedade. Depois da outorga, passa a ser custeado pelos usuários. Mais
A matéria foi objeto de considerações ao longo de diversos capítulos desta obra.
Com a implantação da concessão, elimina-se a transferência externa de re-
cursos. O custeio passa a ser obtido internamente, a partir dos recursos dos pró-
prios usuários. E a partilha dos encargos faz-se em função da intensidade do uso.
Trata-se de uma alteração radical, com reflexos extremamente severos sobre as
categorias mais pobres da população.
553MARÇAL JUSTEN FILHO
x'2.6) A personificação da Sociedade nos usuários
Realizada essas diferenciações e com a devida cautela, até se pode perso-
nificar a Sociedade nos usuários. É evidente q4e a Sociedade, como instituição
difusa e não organizada, é incapaz de manifestar-se concretamente, nem dispõe
de instrumentos para identificar e exteriorizar seus interesses. Nem seria prati-
cável pretender auscultar a Sociedade, o que se traduziria sempre numa ativida-
de errática e tendente à demagogia.
Cabe, então, assegurar aos usuários (e a suas associações) a função de re-
presentação não apenas dos próprios interesses, mas também dos interesses da
Sociedade. Caberá à associação dos usuários a legitimidade para acompanhar o
processo de conformação da outorga, o procedimento licitatório e a contratação.
Depois, caber-lhe-á o poder de fiscalização da atuação do concessionário e a
interferência na gestão da concessão por parte do poder concedente. Haverá uma
presunção relativa de que o interesse titularizado pelos usuários será aquele da
Sociedade. Mas essa presunção é meramente relativa e pode ser desconstituída
a qualquer tempo.
É imperioso tomar em vista que os usuários vocalizam um interesse egoís-
tico próprio - o qual é merecedor de plena e inafastável tutela. Mas isso não sig-
nifica que esse interesse tenha de ser tutelado na sua integralidade, identificável
como sendo "o" interesse público.
Conduzindo a mesma questão por outra via, pode dizer-se que existem in-
teresses dos usuários protegidos e garantidos, inclusive na dimensão constitucio-
nal. O que não se pode tomar como certo é que o interesse público se reduza ao
X.2.S) A necessidade de diferenciação para fins jurídicos
É necessário promover as diferenciações acima, quando se examina a rela-
ção entre concessão de serviço público e interesse público. É imperioso reconhe-
cer que os usuários são titulares de interesses que merecem e exigem tutela - mas
que se configuram como uma parcela do interesse público. Mas não é possível
reduzir o interesse público apenas ao interesse dos usuários. O equívoco tende
a produzir um efeito repudiado pela Sociedade: transferir para ela os encargos
necessários à prestação do serviço aos seus usuários.
Não é casual a exigência de lei autorizando a outorga da concessão, eis que
se trata de meio para afirmação da vontade da Sociedade de afastar de si um
encargo específico e determinado. Editada a lei, não é possível ignorar a vonta-
de legislativa e produzir a desnaturação da concessão. É imperioso reconhecer
que o interesse da Sociedade pode ser contraposto ao interesse dos usuários. Se
tal vier a ocorrer, não será possível solucionar a disputa mediante um simples
critério quantitativo, do que resultaria o inevitável sacrifício da minoria. Cabe-
rá avaliar os princípios jurídicos e as garantias inerentes à Democracia. Em suma,
poderá ou não tutelar-se o interesse dos usuários, a depender da questão tratada.
Mas não será possível afirmar, de modo puro e simples, que interesse público e
interesse dos usuários se confundem e identificam.
quando todos os integrantes da Sociedade fossem usuários de um serviço, per-
maneceria aplicável o raciocínio, na exata medida em que a distribuição da ri-
queza não é homogênea e que cada qual é titular de capacidade econômica di-
versa e faz uso dos serviços públicos com intensidade diferente.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÓES DE SERViÇO PÚBLICO552
X.2.4) A concretização do raciocínio
A relevância dessa diferenciação até conduz à necessidade de fornecer
exemplo concreto, que permita compreender a extensão das diferenças.
Suponha-se um dos Estados brasileiros mais ricos. Imagine-se uma rodo-
via federal ali implantada e mantida com recursos públicos, sem pedágio. Essa
situação equivalia ao efeito de toda a Sociedade brasileira custear a existência e
manutenção daquela rodovia. Seus usuários estariam sendo beneficiados por
recursos arrecadados de todos os extratos da população (inclusive dos não usuá-
rios de rodovias). Isso significa que haverá uma transferência de riqueza dos
demais Estados para aquele em queexiste a rodovia implantada e mantida gra-
tuitamente.
Imagine-se que se promove a concessão para exploração da rodovia, fixan-
do-se como critério de julgamento a maior oferta. Fixa-se a tarifa em valor mui-
to elevado, que ultrapassa largamente os custos de ampliação e manutenção da
rodovia. Uma empresa formula proposta de grande vulto financeiroe assume o
empreendimento, pagando largas somas ao poder concedente. Nessa hipótese,
os usuários da rodovia estarão custeando não apenas a manutenção daquela ro-
dovia, mas transferindo valores ao poder concedente, o qual se valerá deles para
gerar vantagens e benefícios para os não usuários daquela rodovia. Então, have-
rá uma transferência de riqueza daquele Estado para os demais, na medida em
que a utilização da rodovia produz uma redistribuição patrimonial. I
Em outras palavras, a disputa sobre o modelo de prestação de serviço pú-
blico encobre uma discussão muito mais ampla, relacionada com a defesa de
interesses econômicos corporativos e individuais.
Esses exemplos destinam-se a evidenciar, em termos mais concretos, a di-
ferença entre interesse dos usuários e interesse da Sociedade. A fixação de tari-
fas desproporcionadas ao custo da manutenção do serviço público alicerça-se no
argumento da realização do interesse da Sociedade, ainda que claramente seja
contrário ao interesse do usuário. Sem tomar partido de qualquer das alternati-
vas, o que é evidente é a impossibilidade de afirmar que a pretensão do usuário
de obter a redução da tarifa corresponderia ao interesse de toda a Sociedade. A
redução da tarifa traduzir-se-á na supressão de verbas destinadas ao atendimen-
to do interesse dos não usuários da rodovia - que são a maioria da população.
Isso não equivale a afirmar que o interesse da maioria da Sociedade deve preva-
lecer sobre o interesse dos usuários ou vice-versa. O que não se pode incorrer é
no equívoco de ignorar a realidade subjacente da pluralidade de interesses en-
volvidos na discussão.
Os exemplos envolvem concessões de rodovias mas o raciocínio pode ser
estendido a qualquer outra concessão. É evidente, no entanto, que a ampliação
do universo de usuários tende a tornar menos nítida a distinção. No entanto, ainda
X. 4. 1 ) A questão do serviço público e o Código de Defesa do Consumidor
A primeira questão a ser versada, a propósito do regime jurídico atinente à
posição dos usuários refere-se à aplicação da legislação de defesa do consumi-
555MARÇAL JUSTEN FILHO
dor. Veja-se que o art. 7° da Lei n° 8.987 assegura a incidência cumulativa das
normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) e do Direito
Administrativo, o que gera inafastável perplexidade.
X.4.1.1) A origem do Direito do Consumidor e da natureza do serviço público
Um aspecto que usualmente passa desapercebido ao estudioso reside em que
o chamado Direito do Consumidor teve origem na cultura anglo-saxã, mormen-
te na experiência norte-americana. Ocorre que, nos EUA, não se adota a noção
de serviço público vigente entre nós. Todas as atividades econômicas se subor.
dinam aos princípios fundamentais da livre iniciativa, com algumas ressalvas e
limitações (mormente no tocante às chamadas public utilities).3 Ignora-se a con-
cepção da titularidade estatal de certas atividades e não existe figura exatamen-
te idêntica à da concessão de serviço público.
Para os fins do presente estudo, é importante destacar que o modelo norte-
americano resultava na ausência de poderes estatais para disciplinar atividades
econômicas de interesse coletivo, intervindo em favor do interesse do usuário.
Ao longo do tempo, o panorama foi-se alterando (especialmente durante as dé-
cadas de 1960 e 1970, quando foram criadas inúmeras comissões encarregadas
de promover a chamada regulação social). Mas a evolução do Direito do Con-
sumidor, no âmbito norte-americano (e, mesmo, inglês) resultou da concepção
de não incumbir ao Estado a prestação direta e imediata de prestações destina-
das à satisfação de necessidades coletivas. A evolução de normas de tutela ao
consumidor, especialmente no tocante a monopólios naturais, resultou da cons-
tatação de que os mecanismos próprios de mercado eram incapazes de produzir
seus efeitos próprios de controle do poder econômico. A situação de monopólio
ou oligopólio propiciava à parte economicamente mais forte impor à mais fra-
ca, sacrifícios insuportáveis e abusivos. A decorrência da omissão estatal seria
a infração da direitos e liberdades reputados como relevantes, tal como a eleva-
ção da ineficiência do sistema econômico em seu conjunto.
Por isso, foi-se afirmando a necessidade de criação de mecanismos de con-
trole do poder econômico, não apenas no plano macroeconômico, mas também
no relacionamento direto e imediato com os consumidores. Sob um certo ângu-
lo, o Direito do Consumidor é uma espécie de segunda face do Direito antitrus-
te, buscando-se em todos os casos evitar as distorções produzidas pelos meca.
nismos de mercado.
Sob certo ângulo, o Direito do Consumidor desempenha, no ordenamento
jurídico norte-americano, a função assumida entre nós pelo instituto do serviço
público. São alternativas diversas para a tutela dos mesmos princípios e valores.
Vale dizer, o sistema anglo-saxão remeteu a satisfação das necessidades essen-
ciais à iniciativa privada, mas reservou a aplicação de um regime próprio e pe-
culiar, destinado a tutelar o usuário. A mesma necessidade conduziu outros or-
denamentos a atribuir a titularidade do exercício das mesmas atividades ao Es-
tado, subordinando seu desempenho ao regime de Direito Público.
Aliás e não por acaso, a ampliação do relevo do Direito do Consumidor, na
Europa continental, foi proporcional e correspondente à redução da importân-
Para análise do modelo norte-americano e das diferenças em face do conceito de serviço
público, consulte-se a obra do autor, O Direito das Agências Reguladoras Independen.
tes, cit., pp. 70 e ss.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO554
interesse dos usuários e que, como decorrência, deva o interesse dos usuários
receber o tratamento jurídico de supremacia e indisponibilidade reservado ao dito
interesse público.
Enfim, todos os segmentos da Sociedade são titulares de interesses egoísti-
cos. O concessionário (que integra a Sociedade) pretende obter lucro; o usuário
quer o melhor serviço com a menor tarifa (se possível, sem tarifa alguma); o não
usuário busca reduzir os custos a ele transferidos, inclusive quando isso se pro-
duz por meio de elevação de carga tributária.
o dispositivo tem a seguinte redação: "Sem prejuízo do disposto na Lei n° 8.078, de II
de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: I . receber serviço adequa-
do; 11 - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de
interesses individuais ou coletivos; 111- obter e utilizar o serviço, com liberdade de esco-
lha, observadas as normas do poder concedente; IV - levar ao conhecimento do poder
público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes
ao serviço prestado; V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados
pela concessionária na prestação do serviço; VI - contribuir para a permanência das boas
condições dos serviços públicos através dos quais lhes são prestados os serviços."
X.3) Os Usuários como Parte na Relação de Concessão
Nos termos ora refetidos, pode reputar-se que os usuários integram a rela-
ção jurídica de concessão como parte. A questão envolve três grandes controvér-
sias, as quais já foram em parte examinadas acima, quando se enfocou a nature-
za da relação jurídica de concessão.
A primeira consiste em admitir que a relação jurídica da concessão é inte-
grada não apenas pelo poder concedente e pelo concessionário.
A segunda reside em afirmar que a Sociedade participa da relação de con-
cessão, sendo atribuída aos usuários a legitimidade para participar do vínculo.
A terceira envolve a admissão da restrição da participação dos usuários, os
quais não teriam posição jurídica equivalente àquela atribuída às outra partes.
Cabe complementar esse exame, nos tópicos abaixo.
X.4) Regime Jurídico da Subposição dos Usuários
É problemático reconhecer aos usuários situações jurídicas discriminadasem face exclusivamente do poder concedente ou apenas frente ao concessioná-
rio. A posição jurídica dos usuários tende a ser uniforme relativamente ao poder
concedente e concessionário indistintamente, no seu relacionamento externo. Na
medida em que não se distingue, em face do usuário, o concessionário do poder
concedente, são muito específicas e limitadas as situações em que o conteúdo
da situação jurídica do usuário seria material ou formalmente diverso em rela-
ção a eles.
Assim, por exemplo, o usuário tem direito a obter um serviço adequado, mas
esse direito tanto pode reputar-se como dirigido perante o poder concedente
como perante o concessionário.
Na sua essência, o conteúdo da posição jurídica do usuário está sumariado
no art. 7° da Lei n° 8.987.2
cia do instituto do serviço público. A propugnada extinção do serviço público
geraria lacuna a ser preenchida preponderantemente pelo Direito do Consumi-
dor. Na medida em que todos os serviços de interesse coletivo passassem a ser
exercitados sob regime de mercado, o instrumento jurídico apropriado para tu-
teia dos usuários seria o Direito do Consumidor.
Também por isso, o Direito do Consumidor não se vincula propriamente
nem ao direito público nem ao privado. Desenvolveu-se como instrumento de
tutela perante o Estado tanto quanto perante os agentes econômicos. Até se po-
deria cogitar de um direito público do consumidor e de um direito privado do
consumidor, conforme a disciplina envolvesse atividade desenvolvida no âmbi-
to público ou privado. Mas se é possível localizar um núcleo comum a todas essas
regras e princípios, isso não significa que relações jurídicas de direito público
sejam submissíveis a uma disciplina idêntica, no tocante ao consumidor, àquela
que se aplica às relações privadas. Portanto, até se poderia questionar se o Di-
reito do Consumidor teria atingido o destaque que alcançou no cenário anglo-
saxão se lá prevalecesse um conceito de serviço~público. Essa cogitação deriva
de que o instituto do serviço público é moldado sobre a concepção da necessi-
dade de restrição e limitação do poder econômico e de mercado de certos agen-
tes econômicos. Para assegurar a satisfação dos interesses coletivos, determinou-
se sua integração no patrimônio e no regime de direito público.
X.4.1.2) Um reflexo significativo da diferenciação e a democratização do
serviço público
O acolhimento entre nós do Direito do Consumidor provoca dificuldades no
âmbito do serviço público, especialmente porque o regime de serviço público
assegura ao poder concedente algumas faculdades e prerrogativas anômalas, não
conhecidas no ambiente anglo-saxão. Tais competências estatais derivam da
concepção de incumbir ao Estado promover a tutela e a defesa dos usuários do
serviço público.
Ou seja, o regime de serviço público produz a atribuição de duas compe-
tências na pessoa do Estado. Cabe-lhe não apenas prestar o serviço como tam-
bém regular as condições de sua prestação. Já no sistema do Direito do Consu-
midor, o Estado é titular apenas da segunda competência, incumbindo a presta-
ção dos serviços à iniciativa privada.
Ora, essa cumulação das competências própria do regime de serviço públi-
co é apta a gerar um potencial conflito de interesses, com o risco de ausência de
suficiente tutela ao usuário. É que o exercício pelo Estado da sua competência
regulatória tenderá a privilegiar seus interesses secundários, deixando em segun-
do plano o interesse dos usuários.4 Portanto, a pura e simples existência do ser-
viço público não acarreta a necessária e satisfatória tutela do interesse do usuá-
rio.
A primeira dificuldade relevante residia na concepção clássica do Direito
Administrativo que identificava Estado e Sociedade. Portanto, reputava-se que
o usuário carecia de legitimidade para questionar os atos do poder concedente,
Sob um certo ângulo, esse tipo de enfoque é subjacente ao pensamento de diversas dou-
trinas econômicas, agrupadas sob o título Publie Choice (Escolha Pública), que preconi-
za que o interesse pessoal dos governantes é privilegiado em face dos interesses dos ci-
dadãos.
557MARÇAL JUSTEN FILHO
X. 4. 1.3) A relativa incompatibilidade entre os regimes referidos
Ocorre que nem sempre é possível conciliar o regime de Direito Público com
aquele do Direito do Consumidor. A cumulação do mecanismo de serviço pú-
blico e de Direito do Consumidor provoca um conflito de competências e de
regime jurídico, cuja solução deve ser realizada com cautela.
Um exemplo permite compreender de imediato o problema. Segundo o Di-
reito do Consumidor, é obrigatório o empresário manter a oferta realizada nas
condições originais. Já no âmbito do serviço público, a mutabilidade é da sua
inerência. Suponha-se, então, o caso da telefonia fixa. Imagine-se que o conces-
sionário estabeleça relação jurídica com o usuário, orientando-se por determi-
nada regulamentação do poder concedente. Se houver necessidade e conveniên-
cia, o poder concedente alterará as regras pertinentes, com reflexos na situação
jurídica do usuário. Em face do regime de Direito Administrativo, o usuário não
poderia invocar direito adquirido à manutenção do regime jurídico. Mas sua
pretensão poderia encontrar respaldo no regime característico do Direito do
Consumidor.
Não seria excessivo afirmar que a concepção do serviço público defere ao
poder concedente a função de tutelar e defender o interesse coletivo (aí abrangi-
resolvendo-se sua insatisfação por manifestações no âmbito do processo eleito-
ral. Escolhas inadequadas do governante, relativamente aos serviços públicos,
poderiam acarretar como única conseqüência a derrota eleitoral. Esse enfoque
vai sendo superado, na medida em que se reconhece que o poder concedente não
é "representante" da Sociedade, sendo perfeitamente cabível (e necessário) di-
ferenciar os interesses públicos estatais daqueles públicos não-estatais.
Mas a mera atribuição de legitimidade aos usuários para questionar as de-
cisões regulatórias não resolve a questão, na medida em que passaram eles a se
deparar com as restrições inerentes ao regime de Direito Público. Entre elas, há
aquela (também herdada do passado) que impõe uma espécie de presunção ab-
soluta de que todas as decisões adotadas pelo poder concedente seriam as mais
vantajosas para os usuários - asserção cuja procedência não pode ser presumida
e deve ser comprovada caso a caso. Mais ainda, o problema reside em que o re-
gime de Direito Público constitui-se em obstáculo a que os usuários comprovem
e demonstrem a insuficiência das soluções regulatórias produzidas pelo Estado.
Afinal, grande parte das escolhas regulatórias exercitadas pelo poder conceden-
te enquadram-se no conceito de discricionariedade administrativa, o que con-
duz à impossibilidade de controle sobre o mérito de atos administrativos.
Esse estado de coisas conduziu à contínua deterioração da qualidade dos
serviços públicos, de modo a generalizar-se a insatisfação e tornar-se impossí-
vel manter a recusa quanto ao controle de decisões cujos equívocos, despropó-
sitos e abusos eram, em certos casos, inquestionáveis.
Assim, vão sendo afirmadas novas concepções a propósito dos serviços
públicos, inclusive com a preconizada dissociação entre as competências regu-
latória e executiva.
Nesse contexto, torna-se compreensível a proposta de estender ao âmbito
dos serviços públicos o regime do Direito do Consumidor. Desse modo, even-
tuais excessos ou abusos praticados pelo poder concedente poderiam encontrar
uma limitação mais satisfatória.
TEORIA GERAL OAS CONCESSÕES OE SERViÇO PÚBLICO556
do também o interesse dos usuários). Já o Direito do Consumidor assegura ao
próprio consumidor e às entidades da Sociedade a função de sua defesa (sem que
isso exclua a intervenção de órgãos estatais).
É fundamental tomar em vista, então, que a aplicação das normas de Direi-
to do Consumidor não pode fazer-se emface do serviço público com a idêntica
extensão aplicável no caso de relações puramente privadas, relacionadas com a
exploração de atividade econômica em sentido restrito.
No caso das relações jurídicas privadas, não se põe em questão interesse
público transcendente à órbita das partes. Existem, então, cinco características
diversas, que tornam inconfundíveis negócios privados e serviço público, cons-
tituindo-se em limitação à aplicação indiscriminada do regime de Direito do
Consumidor.
X 4.1.3.1 ) Serviço público como desempenho de função pública
A primeira distinção reside na situação do prestador do serviço. O presta-
dor do serviço privado estrutura sua operação econômica com finalidade diver-
sa da satisfação do interesse público. Ele busca obter o maior lucro possível,
tendo em vista os princípios da atividade econômica em sentido estrito (CF/88,
art. 170). Já o prestador do serviço público desempenha atividade disciplinada
pelos princípios de direito público e apenas pode intentar a satisfação egoística
de seu interesse de lucro na medida em que se realize o interesse público. Quem
presta o serviço público é o Estado, que exercita poderes de que é titular o povo.
Logo, quem presta o serviço público é a própria comunidade, em última análi-
se. O interesse público que entranha a prestação do serviço público significa, que
o usuário é titular de interesses assemelhados aos do prestador. Portanto, as de-
cisões regulatórias podem estar erradas, mas isso não autoriza generalização
nesse sentido - o que seria tão despropositado quanto a consagração de entendi-
mento radicalmente oposto. Ou seja, o poder concedente estrutura a prestação
do serviço visando, em princípio, o interesse generalizado da Sociedade.
Já na hipótese de prestação de serviço privado, o prestador pode valer-se da
autonomia outorgada constitucionalmente (CF/88, arts. 170, parágrafo único, e
174). Prevalecendo-se de seu poderio econômico, poderá produzir situações de
abuso em face do usuário. Já os serviços públicos são organizados segundo pa-
râmetros diversos, sem qualquer autonomia dessa ordem.
Para colocar a questão na linguagem do Direito Administrativo, a prestação
do serviço público corresponde a uma função pública, diversamente do que se
passa no tocante a empreendimentos privados. Por isso, muitas restrições ou li-
mitações impostas ao consumidor do serviço público podem justificar-se em face
do interesse público, o que usualmente não ocorre no âmbito das atividades eco-
nômicas privadas.
Logo, é possível presumir uma diferença fundamental, que não pode ser
ignorada a propósito da aplicação do regime de Direito do Consumidor. Trata-
se de uma presunção no sentido de que toda e qualquer limitação imposta pelo
empresário, no setor da iniciativa privada, deriva do interesse em ampliar seu
~ucro e comporta controle e restrição externa. Mas toda e qualquer limitação
Imposta pelo prestador do serviço público revela um dever-poder de satisfazer o
interesse coletivo, sendo inadequado produzir lesão à comunidade para assegu-
rar a satisfação de um único e determinado usuário.
559MARÇAL JUSTEN FILHO
X4.1.3.4) A questão do interesse a ser tutelado
Enfim, há uma quarta diferença, que se relaciona a temas essenciais. A dis-
ciplina do serviço público orienta-se à tutela do interesse público, antes do que
à defesa de um usuário específico. Já o regime de Direito do Consumidor tutela
o interesse privado (ainda que se possa cogitar de interesses coletivos ou difu-
sos).
Por tudo, impõe-se tutela muito mais intensa ao usuário do serviço privado
do que se passa perante o público. No serviço privado, somente existem em jogo
interesses disponíveis; a tutela da parte economicamente mais fraca não põe em
jogo questões mais relevantes. No campo do serviço público, o interesse do pres-
tador do serviço é público; o do usuário é privado. Logo, é cabível evitar que o
usuário, como parte economicamente mais fraca, tenha seus interesses indevi-
damente sacrificados. Mas não é admissível que o interesse particular do usuá-
rio seja superposto ao interesse público.
X.4.1.3.3) A disciplina regulamentar administrativa
A terceira diferença aguda reside em que as condições estabelecidas para a
prestação do serviço público são fixadas por ato administrativo estatal. O rela-
cionamento entre usuário e concessionário reflete condições estabelecidas pelo
Estado, de modo que as regras praticadas pelo concessionário não são livremente
por ele escolhidas. Diversamente se passa no âmbito da iniciativa privada, em
que o empresário escolhe as regras e fixa as condições das negociações que pra-
ticará.
X4.1.3.5) O custo econômico da tutela
Daí se segue uma diferenciação de extrema relevância, relativa aos efeitos
econômicos da tutela. Todas as imposições do Direito do Consumidor produzem
custos econômicos cujo custeio é atribuído ao particular prestador do serviço -
ao qual seria lícito, quando muito, transferir esses encargos para os preços que
pratica, segundo os mecanismos de mercado. Mas a imposição atinente ao ser-
viço público reflete-se diretamente sobre o Estado, o que significa elevação da
carga tributária ou das tarifas públicas.
Portanto, assegurar uma vantagem a um consumidor de serviços públicos
envolve questões econômicas muito diversas daquelas colocadas a propósito da
X4.1.3.2) A situação do usuário do serviço público
A segunda distinção tem pertinência com a situação do próprio usuário. O
serviço público apresenta uma referibilidade a número indeterminado de pessoas,
as quais são titulares de necessidade similar a ser satisfeita. Por isso, as condi-
ções de prestação do serviço tomam em vista não apenas a conveniência de um
específico e determinado usuário, mas a coletividade indeterminada de sujeitos
em condição similar. Bem por isso, a fixação das condições atinentes à presta-
ção do serviço tem de tomar em vista a generalidade dos usuários, para evitar
que a atribuição de benefícios ou vantagens individuais comprometa a possibi-
lidade de atendimento a todas as necessidades. Dito em outras palavras, a regu-
lamentação pelo poder concedente ao serviço público é norteada pelo interesse
coletivo, característica que não se aplica necessariamente quando se enfoca a
questão do Direito do Consumidor.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO558
tutela ao usuário do serviço público. Nesta última hipótese, os reflexos da tute-
la transcendem largamente o relacionamento específico examinado, atingindo
terceiros que em nada se vinculam à disputa.
561MARÇAL JUSTEN FILHO
X 4.3. 1) O elenco do art. r da Lei n° 8.987
O art. 7° da Lei n° 8.987 contempla uma relação de direitos e garantias em
prol do usuário. Trata-se de relação meramente exemplificativa e que costuma
ser ampliada no corpo das leis específicas atinentes às diversas concessões ou
por meio de atos regulamentares que disciplinam as concessões. Mas é possível
formular uma análise do tema a partir desse elenco.
X4.3) As situações de sujeição ativa do usuário
Pelos motivos já apontados, as situações jurídicas do usuário em face do
concessionário e do poder concedente serão consideradas em conjunto.
gadas em vista de interesses privados. O prestador do serviço desenvolve fun-
ção que se reflete na atuação do próprio usuário. Somente pode dizer em um
sentido muito limitado que particular que usufrui o serviço público estaria exer-
cendo um direito. As restrições decorrem de que o particular, ainda que dispo-
nha dafaculdade de valer-se do serviço, não pode fazê-lo senão em termos com-
patíveis com a consecução do serviço público. Portanto, o particular não dispõe
de faculdade de adotar condutas que dificultem ou impeçam a incidência dos
princípios norteadores do serviço público. Mais ainda, o usuário tem o dever de
colaborar para com a realização desses objetivos. Vale dizer, incidem sobre o
usuário deveres de natureza omissiva (abster-sede condutas prejudiciais ao de-
senvolvimento do serviço público) como de natureza comissiva (praticar as con-
dutas necessárias ao bom desenvolvimento do serviço público).
O art. 7° da Lei n° 8.987 deve ser interpretado segundo essa ótica. O usuá-
rio do serviço nem sequer disporá da faculdade de recusar ou omitir algumas
condutas previstas no dispositivo. Constituem-se tanto em poder como em de-
ver dele, justamente em virtude da natureza funcionalizada da situação jurídica
da fruição de um serviço público. Daí por que o art. 7° alude a direitos e obriga-
ções jurídicas do usuário, numa redação arrevesada que merece crítica. Éque a
situação do usuário não é apenas ativa. É, igualmente, passiva. Ou seja, sua po-
sição jurídica envolve não apenas o direito de usufruir o serviço, mas o dever de
fazê-lo de modo compatível com a fruição de todos os demais potenciais usuá-
rios. O direito à fruição do serviço público é assegurado sem garantia de exclu-
sividade, mas com o dever de colaboração do usuário em face do seu próximo.
X4.3.2) Direito ao serviço adequado
O Estado tem de garantir ao usuário a organização do serviço de molde a
configurá-lo como adequado, segundo determinado na disciplina legal e regu-
lamentar do serviço.
E se não o fizer? A resposta depende das circunstâncias. Se a inadequação
do serviço provocar dano concreto ao usuário, assiste-lhe a faculdade de plei-
tear indenização, segundo disposto no art. 37, ~ 6°, da CF/88. Mas a mera ina-
dequação do serviço, ainda que não provoque dano autônomo a usuário, carac-
teriza infringência à ordem jurídica. O Estado está obrigado, por isso, a promo-
ver as medidas necessárias a eliminar os defeitos e produzir um serviço adequa-
do. Não há faculdade da Administração, quanto a isso. Sendo o serviço inade-
quado, o usuário tem direito de exigir e a Administração dever de adotar as me-
didas cabíveis a promover a regularização. Se o serviço for desempenhado atra-{
';
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO560
Nessa linha, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO assevera que " ... as cláusulas regulamen-
tares do contrato podem ser unilateralmente alteradas pelo poder concedente para aten-
der as razões de interesse público. Nem o concessionário, nem os usuários do serviço
podem opor-se a essas alterações; inexiste direito adquirido à manutenção do regime ju-
rídico vigente no momento da celebração do contrato. Se é o interesse público que deter-
mina tais alterações, não há como opor-se a elas." (Parcerias na Administração Pública.
cit., p. 52)
X4.1.4) A preponderância do Direito Administrativo
É evidente que nenhum problema surgirá nas hipóteses de disciplina unifor-
me e coincidente entre o Direito Administrativo e o Direito do Consumidor.
Quando se configurar a regulamentação divergente, deverá promover-se a com-
patibilização dos regimes jurídicos, segundo o princípio da proporcionalidade.
Deve reputar-se inviável aplicar ao serviço público as regras e princípios
construídos para hipóteses de serviço privado e que sejam incompatíveis com o
princípio da supremacia e indisponibilidade do interesse público.
Assim, por exemplo, não se pode invocar regra do Código de Defesa do
Consumidor para inibir o exercício de faculdades derivadas das ditas cláusulas
exorbitantes. A Administração Pública, nos limites de sua competência, pode
alterar unilateralmente as condições de prestação do serviço. A impugnabilida-
de desses atos far-se-á segundo os princípios de Direito Público. Não haverá
possibilidade de invocar a regra de que a expectativa gerada no usuário produ-
ziria cristalização das condições originais.5
Por igual, não teria cabimento produzir indenizações por mau funcionamen-
to do serviço público com a dimensão que se tomou conhecida, especialmente
no âmbito do Direito comparado, no Direito do Consumidor. Se o usuário ofen-
dido tem direito de ser indenizado por perdas e danos (inclusive morais, se for o
caso), não se pode olvidar que o custo da indenização será arcado pelo conjunto
de usuários ou pelos cofres públicos.
Isso significa reconhecer a preponderância do regime de Direito Adminis-
trativo sobre o Direito do Consumidor. A disciplina do Direito do Consumidor
apenas se aplicará na omissão do Direito Administrativo e na medida em que não
haja incompatibilidade com os princípios fundamentais norteadores do serviço
público. Em termos práticos, essa solução pode gerar algumas dificuldades. O
que é certo é a impossibilidade de aplicação pura e simples, de modo automáti-
co, do Código de Defesa do Consumidor no âmbito dos serviços públicos.
X.4.2) Natureza funcional das faculdades outorgadas aos usuários
Tal como já adiantado acima, a situação jurídica do usuário também é atin-
gida pela funcionalização inerente ao regime de direito público, derivada da apli-
cação do princípio da associação. Isso significa que a prestação do serviço pú-
blico reflete a realização de interesses comuns do Estado, da Sociedade e do
concessionário.
Por isso, a tutela à posição do usuário não se faz segundo o modelo direito
subjetivo-dever jurídico do direito privado, eis que as faculdades não são outor-
X.4.3.4) Direito de liberdade quanto à utilização do serviço público
A previsão contemplada no art. 7°, inc. III, da Lei de Concessões deve ser
interpretada em face da natureza e regime jurídico do serviço público de que se
trate.
X.4.3.5) Direito de comunicar ao poder concedente (e ao concessionário) a
existência de irregularidades
Sempre que o usuário tomar conhecimento de irregularidades na prestação
do serviço, surgirá o poder-dever de comunicar às autoridades a ocorrência. Tra-
ta-se não apenas de um direito, mas de um dever. A ausência de comunicação
poderá conduzir à responsabilização pessoal do usuário que, ciente da existên-
cia do defeito, deixou de levar a informação ao conhecimento da autoridade com-
petente. Se a prática da irregularidade caracterizar crime, o silêncio indevido
poderá conduzir a uma modalidade de co-autoria (Código Penal, art. 30). Mes-
mo quando inexistir viabilidade de tipificação penal, poderá aplicar-se a regra
geral dos arts. 186 e 927 do Código Civil de 2002.
Na verdade, o disposto no art. 7°, inc. IV, da Lei de Concessões, apenas es-
pecifica o poder-dever que recai sobre todo e qualquer sujeito, no sentido de
colaborar com as autoridades públicas no controle da observância do Direito.
Não se trata de instituto peculiar ao campo dos serviços públicos, nem umafa-
culdade assegurada especialmente aos usuários deles.
Seria inútil o dispositivo se dispusesse apenas sobre a órbita do usuário.
Assegurar o poder do usuário denunciar irregularidades significa impor o d~ver
do poder concedente de investigá-las. O inc. IV produz, para Estado e part~cu-
lares que eventualmente prestem o serviço, o dever de manter estrutura destma-
da a apurar denúncias dos usuários acerca de irregularidades. Não serão lícitos
quaisquer empecilhos ao exercício do poder previsto neste inciso, espe~ialmen-
te aqueles de natureza burocrática. Não será admissível remeter o usuáno a uma
via crucis de órgãos, repartições e informações desencontradas acerca de local
MARÇAL JUSTEN FILHO
Existem serviços públicos compulsórios, na acepção de que o particular tem
o dever de valer-se deles, em vista do interesse da coletividade. As hipóteses são
excepcionais, em face dos princípios que estruturam um Estado Democrático de
Direito. Assim, a ligação das residências à rede de água e esgoto não retrata uma
livre escolha para os particulares. Hipóteses similares (ainda que não configu-
rem serviços públicos propriamente ditos) envolveriam a notificação de doen-
ças contagiosas, vacinações compulsórias etc. A excepcionalidade de situações
poderia conduzir à restrição da liberdade individual, respeitadas as garantias
constitucionais. Em tais circunstâncias, não se poderia invocar o inc. III ora exa-
minado.
Foradessas situações anômalas, vigora o princípio da autonomia individual,
que se retrata na impossibilidade de o serviço ser imposto compulsoriamente aos
particulares. .
A autonomia pode manifestar-se em dois planos. Poderá dar-se a liberdade
de escolha entre usufruir e não usufruir o serviço. Mas o dispositivo também
resguarda a ausência de exclusividade na prestação do serviço, em consonância
com o disposto no art. 16. Havendo pluralidade de concessionários, será asse-
gurada ao usuário a faculdade de livre escolha entre eles. Assegurar essa facul-
dade significa, inclusive, a vedação à adoção de expedientes destinados atomar
compulsória a vinculação do usuário a um determinado concessionário. Não é
compatível com a ordem jurídica a ausência de interconexão ou a consagração
de soluções técnicas que, uma vez adotadas, tornem inviável ao usuário alterar
sua escolha quanto ao prestador do serviço.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO562
vés de regime de concessão ou permissão, a situação poderá desaguar na cadu-
cidade ou, mesmo, na encampação.
Em termos práticos, a ausência de serviço adequado caracteriza infringên-
cia a direito subjetivo dos potenciais usuários, mas também contraria o interes-
se público, de modo objetivo. Portanto, abre-se oportunidade para controle não
apenas pelos instrumentos de defesa de direitos subjetivos individuais como tam-
bém para a via da ação popular e ação civil pública. A utilização do mandado
de segurança será problemática porque, usualmente, a configuração de serviço
adequado envolve produção de prova incompatível com a natureza do manda-
mus - excetuadas hipóteses-limite, onde seja totalmente incontroversa a situa-
ção fática. No entanto, há hipóteses de obsolescência onde a controvérsia não
envolverá divergência quanto aos fatos, mas acerca da modernidade da solução
adotada.
X.4.3. 3) Direito à obtenção de informações para defesa de interesses pessoais
e coletivos
O direito a informações é emanação do princípio da publicidade, assegura-
do constitucionalmente como instrumento de controle das atividades estatais
(CF/88, art. 5°, inc. XXXIV, b; art. 37). A regra do inc. II do art. 7° da Lei n°
8.987, relaciona-se, em última análise, com a própria determinação do art. SO
desse mesmo diploma. Em todos os casos, trata-se de impedir que o Estado ocul-
te informações e, com isso, impeça a fiscalização de suas decisões, a invalida-
ção de atos viciados ou a correção de situações reprováveis.6
Isso não significa ausência de limites para prestação de informações. Pelo
contrário, é até possível reputar que o prestador do serviço terá o dever de man-
ter absoluto segredo sobre informações cuja divulgação seja potencialmente
danosa (a interesse público ou privado). Assim, o Estado tem o dever de assegu-
rar o sigilo das comunicações através de telefonia.7 Portanto, não poderá divul-
gar informações que possibilitem frustração desse sigilo. Por igual, haverá in-
formações essenciais acerca do funcionamento de serviços públicos que não
podem ser divulgadas sob pena de ampliação do risco de interferências indivi-
duais indevidas.
Daí a vinculação da informação à comprovação da defesa de interesse indi-
vidual ou coletivo. Somente existirá a possibilidade de o sujeito (pessoa física
ou jurídica) postular o fornecimento de informação se evidenciar sua utilidade
ou necessidade para defesa de outros interesses. Sob esse ângulo, a regra do art.
7°, inc. lI, aproxima-se mais do direito de petição do que da faculdade prevista
no art. 5° da Lei n° 8.987.
6 Observe'se que a Lei n° 9.051, de 18 de maio de 1995, assegura o direito de informação,
impondo prazo de quinze dias para o fornecimento de certidões visando ao esclarecimento
de situações c defesa de direitos. A temática também é tratada, no âmbito da União, na
Lei de Processo Administrativo.
Ressalvadas as hipóteses restritivas estabelecidas na Lei n° 9.296, que regulamenta o art.
5°, inc. XII, da CF/88.
X4.3.6) Direito de comunicação de infrações praticadas pela concessionária
O dispositivo previsto no art. 7°, inc. V, da Lei de Concessões é abundante.
As irregularidades referentes à prestação do serviço compreendem os atos ilíci-
tos praticados pela concessionária. Mas o dispositivo não deixa de ser útil, na
medida em que evita o expediente burocrático e reprovável de remeter a atribui-
ção de fiscalizar para órbita alheia. Se não houvesse a regra do inc. V, surgiria o
risco de o Estado exigir uma espécie de exaurimento de instância perante a
e responsável pelo recebimento das informações de anomalias. Esses expedien-
tes caracterizarão frustração, por via indireta, do poder assegurado aos usuários
pela Lei n° 8.987 e produzirá duas conseqüências jurídicas relevantes. A primeira
será a violação ao dever jurídico da moralidade, pois quem exerce serviço pú-
blico estájungido a atender os reclamos dos usuários e promover a verificação
de sua procedência. A segunda será a ratificação e solidarização pelos defeitos
objeto da comunicação. Como dito, o usuário que omitir comunicação do des-
vio transformar-se-áem co-responsável. Esse regime se estende também para os
agentes que recusarem ou dificultarem a apuração da irregularidade, com gran-
de possibilidade de tipificação penal. Tão grave quanto produzir a irregularida-
de é recusar-se a promover sua apuração, repressão ou correção.
Portanto, o usuário que não conseguir levar a cabo a comunicação do de-
feito, ainda que por efeito de tergiversações e expedientes indiretos praticados
pelos agentes do Estado ou da concessionária, poderão levar o evento à comu-
nicação do Ministério Público, para as medidas adequadas.
Existe algum limite para o exercício da faculdade de comunicação de irre-
gularidades? Em princípio, os limites são os mesmos que conformam a situação
em qualquer setor da vida em comunidade. Assim, uma denúncia anônima não
pode ser ignorada, simplesmente pelo anonimato do denunciante, já que o de-
ver de fiscalização deve ser exercido inclusive de ofício. Denúncias aparentemen-
te disparatadas exigem investigação, suficiente para demonstrar sua improcedên-
cia. Aliás, o anonimato pode, eventualmente, ser garantia imprescindível à ob-
tenção da colaboração popular. O que não se admite, porém, é um regime de
terror, onde se estabeleça alguma presunção de veracidade em favor de toda e
qualquer denúncia. É imprescindível que a tutela a favor do denunciante (espe-
cialmente quando mantido o anonimato) seja contrabalançada por garantias efe-
tivas em prol do denunciado. Não se admitirá, em face da Constituição, que o
denunciado seja onerado pelo encargo de provar a improcedência da acusação.
Nenhum efeito jurídico automático poderá extrair-se da mera denúncia.
Observe-se, por fim, que o usuário de má-fé, que promove comunicação da
irregularidade, pode ser responsabilizado, segundo o regime jurídico comum. A
consciência da improcedência da imputação da irregularidade ou a intenção
mesquinha de prejudicar terceiros não pode ser albergada sob o manto da "fa-
culdade" ora examinada. Como já apontado, a figura tem natureza funcional e
seu exercício vincula-se à realização do bem comum. Logo, se e quando um
particular atuar abusivamente no desenvolvimento desse poder, será cabível seu
sancionamento. Isso não significa, é claro, que a improcedência de comunica-
ção de irregularidade autorize punição automática do usuário. O sancionamen-
to far-se-á segundo as regras de direito comum, tendo em vista o despropósito
da conduta do usuário e a configuração dos elementos da ilicitude.
565MARÇAL JUSTEN FILHO
X.4.3.1O) Direito de participação na atividade de fiscalização
Os usuários disporão da faculdade genérica de fiscalização das atividades
do concessionário. Mas, ademais disso, deverão ter um representante integran-
do o órgão formal de controle da concessão.
X.4.3.9) Direito de participação na atividade de regulamentação
Especialmentedepois de formalizada a outorga, deve reservar-se função de
grande relevo prático e jurídico para representantes dos usuários. As decisões
atinentes à regulamentação do serviço terão de ser subordinadas à manifestação
desses representantes e levadas à prévia discussão pública com os usuários. Não
será condição de validade a aprovação pelos usuários das decisões do poder con-
cedente, mas se imporá a participação e o respeito ao direito de manifestação -
inclusive para o fim de motivação das decisões que deixem de atender aos plei-
tos dos usuários.
X4.3.8) Direito de acompanhamento da licitação
O acompanhamento da licitação é outra faculdade assegurada ao usuário.
Não pode interpretar-se essa questão sob o ângulo da mera oportunidade de com-
parecer às solenidades públicas. Deverá assegurar-se atuação concreta, em que
o usuário (por meio de sua associação) tenha ampla oportunidade de verificar o
conteúdo das propostas e seja ouvido a propósito das decisões da comissão de
licitação.
X4.3.7) Direito de participação na elaboração das condições da outorga
O usuário tem de ser ouvido por ocasião da configuração da outorga. O
poder concedente está obrigado, juridicamente, a promover não apenas a audiên-
cia a que alude o art. 5° da Lei de Concessões. Ademais disso, deriva do princí-
pio do devido processo legal que o poder concedente propicie aos usuários a
oportunidade de pleno esclarecimento e de imediata participação na elaboração
das condições do ato convocatório e no delineamento da futura concessão.
Até é possível que, infringido esse direito, o princípio da proporcionalida-
de conduza à impossibilidade do desfazimento da outorga, solução que geraria
efeitos maléficos muito superiores aos derivados da infração examinada. Mas,
até que se formalize a outorga, o usuário pode impugnar a atividade do poder
concedente apontando a ausência de convocação da comunidade para ser ouvi-
da, para participar e manifestar-se a propósito das soluções concebidas pelo po-
der concedente.
concessionária. Ou seja, remeteria o usuário a procedimento prévio perante a
concessionária. Em tal hipótese, o poder-dever de o Estado interferir somente se
tomaria eficaz quando a situação não tivesse sido corrigida no âmbito da pró-
pria concessionária. Isso seria desvirtuar o regime jurídico da prestação do ser-
viço, pois o poder concedente tem o dever de fiscalizar a prestação do serviço
delegado.
Logo, a existência da irregularidade autoriza o particular a promover noti-
ficação diretamente ao Estado, a quem compete o dever correspondente de ado-
tar as providências adequadas.
Por outro lado, a autoridade competente pode ser distinta daquela que pres-
ta o serviço ou que promoveu sua delegação. Assim, poderá tratar-se de autori-
dade policial, do Ministério Público etc.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO564
X, 4.4) As situações de sujeição passiva do usuário
O usuário é titular de inúmeras situações jurídicas passivas, em face do po-
der concedente e do concessionário.
A Lei n° 9.791/99 acrescentou um art. 7-A à Lei n° 8.987, com a seguinte redação: "As
concessionárias de serviços públicos, de direito público e privado, nos Estados e no Dis-
trito Federal, são obrigadas a oferecer ao consumidor e ao usuário, dentro do mês de ven-
cimento, o núnimo de seis datas opcionais para escolherem os dias de vencimento de seus
débitos."
567MARÇAl JUSTEN FilHO
X, 4.4. 3) Dever de urbanidade e respeito aos prestadores do serviço
O concessionário e seus prepostos não são servos do usuário. São titulares
de posição jurídica que comporta respeito e tratamento equivalente ao que me-
rece todo e qualquer sujeito de direito. As pessoas físicas exercentes de funções
de prestação de serviço devem ter respeitada sua dignidade. Daí decorre que o
pagamento da tarifa não gera para o usuário o "direito" a promover insulto ou
qualquer tipo de ofensa física ou moral ao concessionário ou a seus prepostos.
X, 4.4.4 ) Dever de respeito à integridade. dos bens aplicados à prestação do
serviço
O usuário tem o dever de respeitar os bens aplicados no desenvolvimento
dos serviços públicos. O dano praticado relativamente a esses bens é duplamen-
te reprovável. Em primeiro lugar, porque os bens alheios devem ser respeitados.
Em segundo lugar, porque esses bens são instrumento da prestação de serviços
à comunidade. Quando se lesionam os bens utilizados para prestação de servi-
ços públicos impede-se ou dificulta-se que terceiros usufruam desses serviços,
inclusive porque, nesta situação, os bens estariam afetados pelo interesse públi-
co, sujeito à regime diferenciado.
X.4.4.6) Sujeição à responsabilização administrativa e penal
As condutas irregulares do usuário relacionados à fruição das utilidades
materiais poderão configurar ilícito administrativo e (ou) penal, aplicando-se a
disciplina correspondente.
X, 4.4. 5 ) Sujeição à responsabilização civil por atos ilícitos
O usuário responde civilmente pelos efeitos dos atos ilícitos praticados.
Trata-se de responsabilidade civil subjetiva, mas não se pode negar a ampliação
da objetividade da responsabilidade também no que tange ao usuário. Isso sig-
nifica a existência de um dever de diligência do usuário na fruição do serviço,
de modo a impedir que se produzam danos que prejudiquem a terceiros, sejam
eles o poder concedente, o concessionário, outro usuário ou qualquer pessoa.
Ou seja, a tutela à condição de usuário não gera respaldo a abusos, exces-
sos ou infrações. O usuário poderá ser responsabilizado inclusive por danos
morais gerados por condutas ilícitas.
rios, especialmente quando essa é a precisa e exata intenção do usuário. Um
exemplo característico é o do pagamento do pedágio com moedas de um centa-
vo, gerando conflagração do trânsito. A característica do curso forçado da moe.
da impõe o dever de aceitação de qualquer valor monetário, mas não autoriza o
usuário a produzir, de modo intencional, o impedimento ao livre trânsito dos
demais usuários. Se um usuário dispuser somente de moedas de um centavo, tal
não configurará abuso. Mas haverá esse abuso quando o usuário - ou, mais evi-
dentemente, um conjunto de usuários - se aparelha especificamente para dirigi-
rem-se a todas as cabines de cobrança do pedágio na rodovia, apresentando
moedas de um centavo com a intenção precisa e exata de bloquear o trânsito.
Existe o evidente exercício abusivo da faculdade, que comporta adoção de pro-
vidências repressivas correspondentes e proporcionais.
TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERViÇO PÚBLICO566
x'4.4.1) Dever de remunerar o concessionário pela fruição do serviço
O dever mais evidente do usuário é o de remunerar o concessionário pela
fruição do serviço. É incompatível com o regime da concessão a utilização gra-
tuita das utilidades fornecidas pelo concessionário, ressalvadas as hipóteses em
que a remuneração seja arcada por terceiros.
Esse dever traduz-se no pagamento prévio ou posterior da tarifa, nos valo-
res, no modo e no tempo estabelecidos regulamentarmente.
Veja-se que existe dispositivo legal impondo ao concessionário a adoção de
soluções destinadas a assegurar que a tarifa seja liquidada em época do mês mais
adequada e satisfatória para o usuário.8
x'4.3.11) Direito de ser indenizado por danos configuradores de falha do
serviço
Outro direito fundamental do usuário reside em ser indenizado por falhas
do serviço. O tema foi examinado a propósito da responsabilidade civil do po-
der concedente e do concessionário.
X.4.4.2) Dever defruição adequada do serviço
Ainda que a Lei silencie, reconhecem-se limites à utilização dos serviços
públicos pelo usuário. Poderia dizer-se que o usuário deve usufruir os serviços
públicos com adequação. Assim como existe o dever do concessionário promo-
ver o serviço adequado, cabe ao usuário afruição adequada do serviço. Seria a
contrapartida da figura do serviço público para o âmbitodo usuário. Reprova-se
o abuso do usuário, assim entendida a conduta que ultrapasse objetivamente os
padrões de normalidade, utilidade e necessidade. .
Significa que o usuário não pode consumir o serviço como se fosse dele
proprietário. A fruição deve obedecer ao princípio da não-exclusão, possibili-
tando que a prestação possa beneficiar aos demais interessados.
Depois, indica a impossibilidade de promover o desperdício das utilidades
em que consiste o serviço. Não é possível invocar a condição de usuário ou de
pagamento de tarifa para eliminar utilidades, sem destiná-las a consumo. O pa-
gamento de tarifas não autoriza sacrificar o interesse público, consistente na
manutenção das fontes de produção e na redução dos encargos sobre a comuni-
dade. Por isso, é perfeitamente possível reprovar o particular que atua abusiva-
mente no consumo de água ou de energia elétrica, por exemplo.
Mas poderia ir-se adiante para caracterizar como abusivas certas condutas
que refletem a clara violação ao direito alheio de beneficiar-se da prestação do
serviço. A fruição adequada é desqualificada quando o modo pelo qual o usuá-
rio se vale do serviço toma impossível a fruição adequada pelos demais usuá-
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