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III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 896 “FEMINIZAÇÃO DA POBREZA”: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O EMPOBRECIMENTO DAS MULHERES Suamy Rafaely Soares 1 RESUMO: A presente reflexão objetiva compreender a relação dialética entre a acumulação capitalista e a desigualdade de gênero. Neste sentido, se propõe a analisar o processo de pauperização das mulheres, a historicidade do conceito de “feminização da pobreza”, bem como, a sua funcionalidade para as novas formas de intervenção na “questão social”, surgidas como resposta a crise do capital pós-1970. Ainda, situa as contradições dos programas de transferência de renda e a relação do Programa Bolsa família com a reprodução da desigualdade de gênero. Palavras-Chave: Patriarcado, acumulação capitalista, pauperização ABSTRACT This reflection aims to understand the dialectical relationship between capitalist accumulation and gender inequality. In this sense, we intend to analyze the process of impoverishment of women, the historicity about the concept of "feminization of poverty", as well as its functionality to the new forms of intervention in the "social issues" that arose in response to the crisis of capital post-1970. Also lies the contradiction of income transfer programs and the relationship of the Bolsa Familia with reproduction of gender inequality. Keywords: Patriarchate, capitalist accumulation, impoverishment. 1 NOTAS INTRODUTÓRIAS O aprofundamento da desigualdade social vem se apresentando como um dos principais debates político e teórico da contemporaneidade e a sua redução foco dos governos liberais, conservadores e socialdemocratas. No âmbito da construção do conhecimento tem-se constituído diferentes abordagens para compreender e intervir no cenário atual. Desde a construção de pseudocategorias analíticas articuladas à perspectivas teóricas funcionalistas, estruturalistas e pós – modernas, à reafirmação das categorias da crítica da economia política marxista. Vale ressaltar, que o feminismo tem, permanentemente, debatido acerca da particularidade da chamada “questão social”2 na vida das mulheres, devido a histórica 1 Assistente social, mestrado em Serviço Social pela UFPE, docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras – FAFIC. Email: suamy_soares@hotmail.com. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 897 situação de dominação/exploração a que são submetidas. Isso pode ser visibilizado nas esferas pública e privada, por meio de inúmeras expressões, entre elas, a pauperização, a pouca participação na política, na economia e na ciência, a divisão sexual do trabalho, o controle da sexualidade e o uso da violência. Especialmente nas últimas três décadas vê-se a emergência do conceito de “feminização da pobreza”, utilizado indiscriminadamente pelos sujeitos coletivos mais diversos e até contraditórios – órgãos governamentais, Banco Mundial, Fundo Monétário Internacional, ONG’s, fundações, filantrópicas e empresas, agências de cooperação internacional, lutas sociais e universidades – transformando-se numa linha de acesso a recursos e no foco das políticas de combate à pobreza. Em resumidas contas, o presente trabalho se propõe, em primeiro lugar, a compreender a relação dialética entre a acumulação capitalista e a desigualdade de gênero. Em outra parte, analisar a historicidade do conceito de “feminização da pobreza”, bem como, a sua funcionalidade para as novas formas de intervenção na “questão social”, surgidas como resposta a crise do sistema do capital pós -1970. 2 PATRIARCADO E SISTEMA CAPITALISTA: A IMPORTÂNCIA DA SUBORDINAÇÃO DAS MULHERES PARA A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL A desigualdade entre mulheres e homens constitui-se como um fenômeno histórico, social, cultural e econômico materializado pelo patriarcado 3 . De acordo com Saffioti (1999) o patriarcado é um sistema de relações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem e, pode ser pensado “[...] como um dos esquemas de dominação/exploração componentes de 2 A questão social é aqui entendida como o conjunto das expressões das desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais que são produzidas e/ou reproduzidas na sociedade capitalista desenvolvida. As bases explicativas para a emergência e reprodução destas desigualdades se assentam, em caráter último, porém não único, (as desigualdades de gênero, raça, etnia e geração se entrecruzam com a classe, mas não podem ser explicadas exclusivamente pelo viés da exploração/dominação de classe), na lógica que embasa esta forma de sociedade: a lógica da mercadoria e o processo de exploração e dominação que a sustenta. Sobre a questão social como objeto e fundamento sócio-histórico de legitimação do serviço social como profissão, cf. IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2003. 3 Segundo Saffioti (2004) a palavra patriarcado é de origem grega em que pater quer dizer pai e archie significa comando. A autora (2004, p.101) ainda aponta uma importante reflexão: “Tão-somente recorrendo ao bom senso, presume-se que nenhum (a) estudioso (a) sério (a) consideraria igual o patriarcado reinante na Atenas Clássica ou na Roma Antiga ao que vige nas sociedades urbano-industriais do ocidente. Mesmo tomando só o momento atual, o poder de fogo do patriarcado vigente entre os povos africanos e/ou mulçumanos é extremamente grande no que tange à subordinação das mulheres aos homens [...]”. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 898 uma simbiose da qual participam também o modo de produção e o racismo” (SAFFIOTI, 1999, p.193). Trata-se, pois, de relações de dominação que foram apropriadas, reconfiguradas e ampliadas pelo modo de produção capitalista. O surgimento e a consolidação da sociedade de classe, que tem sua base de sustentação na propriedade privada e na família patriarcal monogâmica, reconfigura o lugar da mulher na sociedade. Nesse sentido, os (as) filhos (as) e as terras passaram a ser propriedades privadas do homem, ficando bem definido os papéis sociais e sexuais entre eles. Ao homem era dado o poder de vida e morte sobre a mulher, filhos, escravos e animais, ou seja, sobre todos que estavam sob seu domínio, no famulus 4 . Uma referência importante aqui, é o fato de que a consolidação da família patriarcal monogâmica objetivou uma repartição entre as esferas pública e privada, a primeira locus privilegiado dos homens, do poder, da economia, da participação política e científica, e a segunda espaço obrigatório das mulheres, da subjetividade e da reprodução dos filhos e filhas. De acordo com Reed (2008, p.42), Na nova sociedade os homens se converteram em principais produtores, enquanto as mulheres eram trancadas em casa e ficaram limitadas à servidão familiar. Desalojadas de seu antigo lugar na sociedade, não somente se viram privadas de sua independência econômica, como, inclusive, de sua antiga liberdade sexual. A nova instituição do matrimônio monogâmico surgiu para servir as necessidades da propriedade, que a partir de entãoera possuída pelo homem. Mediante o exposto, nas sociedades de classe pré-capitalistas, e, posteriormente, na fase de emergência e consolidação do capitalismo as mulheres foram confinadas ao espaço doméstico e socializadas para o mundo da reprodução social. Isso não significa que as mulheres, enquanto categoria social, ficaram excluídas da produção, pois executavam atividades como tecer e confeccionar vestimentas, produzir e conservar alimentos e remédios, entre outras, que com a industrialização passaram a ser realizadas nas fábricas. Assim, a afirmação de que do período escravagista à manufatura as mulheres se mantiveram na reprodução, e, apenas com o advento da grande indústria se inserem na 4 De acordo com Saffioti (2004, p. 89): “famulus significa escravo doméstico, e família é o número total de escravos pertencentes a um homem”. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 899 produção social, é própria da ciência androcêntrica, que invisibiliza a história das mulheres enquanto trabalhadoras. Segundo Vinteuil (1989, p. 06), Além de anacrônica, esta tese é inaceitável, porque nenhuma formação social conhecida na história pôde prescindir da utilização massiva da força de trabalho das mulheres para a produção.[...] sustentar que todas as mulheres ficaram excluídas da produção é produto da ideologia patriarcal que apresenta o trabalho das mulheres como um não trabalho. Com o desenvolvimento das forças produtivas, por incremento da maquinaria, cria-se a necessidade de aumentar o número de trabalhadores, e, por conseguinte, inserir as mulheres e crianças no ciclo produtivo da fábrica, que até então era espaço exclusivo dos homens. De acordo com Marx (2008, p. 451): Tornando surpéflua a força muscular, a maquinaria permite o emprego de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento físico incompleto, mas com membros mais flexíveis. Por isso, a primeira preocupação do capitalista, ao empregar a maquinaria, foi a de utilizar o trabalho das mulheres e crianças. Assim, de poderoso meio de substituir o trabalho e trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e idade, sob o domínio direto do capital. Aqui fica claro, a relação entre o modo de produção capitalista e o patriarcado, pois, a mulher, referenciada socialmente como frágil e sem força muscular, passa a ser considerada como força de trabalho inferior, e, sendo assim, só será utilizada quando a força muscular for considerada surpéflua. Como já mencionei anteriormente várias teóricas feministas (SAFFIOTI,1987;REED,2008;TOLEDO,2008;) afirmam que as mulheres sempre realizaram atividades pesadas, tais como, preparar a terra para agricultura, cuidar dos animais, transportar utensílios pesados, entre outras, que apontam a apropriação da subordinação da mulher para desqualificar o seu trabalho. Ainda é importante ressaltar que no patriarcado o trabalho das mulheres é compreendido como complementar ao masculino, pois o homem deve assumir o papel de provedor e protetor da família. A retirada da mulher do exército industrial de reserva 5 , tem grande importância no processo acumulativo e expansivo do capital. Em primeiro lugar, porque, considerar a força 5 É próprio da lógica do capital criar uma superpopulação de trabalhadores supérfluos para o trabalho e a riqueza, mas economicamente necessários a dinâmica do capital, no sentido de acirrar a concorrência entre os III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 900 de trabalho feminina como inferior e complementar, faz com que a composição do seu salário seja reduzida, e, consequentemente, provoca a redução dos salários da classe trabalhadora. Segundo Toledo (2008, p.38-39): A incorporação da mulher à fábrica, e também da criança, desvalorizou o trabalho masculino e aumentou o grau de exploração, agora não mais do operário individual, mas de toda a família operária. Marx explica como o valor da força de trabalho passou a ser determinado pelo tempo de trabaho indispensável para a manuntenção de toda a família operária, e não mais apenas do operário adulto individual. Ao lançar no mercado de trabalho todos os indivíduos da família, a máquina distribuiu entre toda a sua família o valor da força de trabalho de seu chefe, desvalorizando-a. Em segundo lugar, a entrada das mulheres na fábrica cria a necessidade de ampliar a produção e a circulação de mercadorias, bem como a demanda de serviços. Como já esboçado anteriormente, as atividades que até então eram realizadas pelas mulheres, passaram a ser executadas pela fábrica. Isso transformou a família operária, até então produtora, em consumidora dos bens e serviços ofertados pelo sistema capitalista. Salienta-se que, o trabalho doméstico realizado pelas mulheres não é contabilizado pelo capitalista. Em outras palavras, os custos da reprodução da força de trabalho são contados a partir da satisfação das necessidades básicas à manuntenção e reprodução da classe trabalhadora, tais como, alimentação, vestuário, habitação, lazer, educação, entre outras. Entretanto, está excluído desta conta, todo o trabalho investido na gestão e execução dessas tarefas domésticas, assim como, o fato de que essas atividades são atribuições das mulheres. Por tudo isso, seria impossível a manuntenção do trabalho assalariado na produção sem a sustentação do trabalho reprodutivo e não remunerado na esfera doméstica (Carrasco,2001). Não é demais afirmar que o modo de produção capitalista insere de forma massiva crianças e mulheres na produção fabril, se apropriando de sua histórica subordinação para acumular mais riquezas. Por tudo isso, faz um movimento duplo, de um lado, cristaliza as atividades procriativas e reprodutivas como responsabilidades das mulheres, como forma de desonerar o capital com a reprodução social da força de trabalho. Em outra direção, transforma essas mulheres, junto com seus (as) filhos (as) em trabalhadores (as) mais baratos, trabalhadores e regular o valor dos salários. Assim, os capitalistas têm um grande contingente de trabalhadores a disposição do processo produtivo, podendo ser inseridos ou repelidos de acordo com as necessidades de expansão do capital. Para aprofundar essa questão, cf. IAMAMOTO, Marilda V. Serviço Social em Tempo de Capital fetiche. São Paulo: Cortez, 2008 III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 901 e, em certa medida, submissos (as). Como afirma Toledo (2008, p.39): “[...] apesar de haver sido confiscada pelo capital para ir à fábrica, a mulher não foi liberada da escravidão do trabalho doméstico”. A autora ainda aponta que (2008, p.54), O trabalho doméstico agrava o processo de alienação vivenciado pela mulher no mercado de trabalho e no conjunto das relações sociais. Além de embrutecê-la, porque toma-lhe o tempo ao aprimoramento intelectual e artístico, à participação política e social, a separa da produção materialdo conjunto da sociedade ou reserva-lhe um lugar subalterno. Sendo assim, a questão da alienação da mulher em casa e no trabalho é um aspecto fundamental de sua opressão. Ademais, essa entrada das mulheres na esfera da produção capitalista, em vez de proclamar a libertação feminina, como preconizava inúmeros autores (as), aprofundou as expressões do patriarcado no âmbito público e privado, bem como perpetuou diversos preconceitos e discriminações contra este segmento. É importante dizer que as mulheres, nos séculos XIX e XX, ocuparam cada vez mais, postos de trabalho, todavia, o fato do sistema capitalista se apropriar da subordinação das mulheres para obter mais lucro, transformou-as em trabalhadoras precarizadas, majoritariamente nos trabalhos informais e parciais, com baixas remunerações e sem garantias trabalhistas, além da acumulação de uma dupla jornada de trabalho. Além disso, é preciso reconhecer que a força de trabalho feminina, tradicionalmente, compunha o exército industrial de reserva, e que o capital insere ou repele essa força de trabalho quendo necessita ampliar sua produção. Um exemplo disso foi as duas guerras mundiais, em que as mulheres ocuparam os lugares dos homens e em pouco tempo voltaram ao desemprego (REED,2008). Sabe-se bem que as constantes transformações no modo de produção capitalista agudiza a dupla condição de exploração da mulher, como reprodutora do capital e da força de trabalho. Com destaque, para o processo de reestruturação produtiva do capital e emergência do neoliberalismo, no final da década de 1970 6 . 6 O capitalismo é um sistema baseado na expansão e acumulação, que articula em sua dinâmica contraditória, períodos de grande produção de riquezas e outros de grande estagnação. Ademais, toda forma de restrição a dinâmica expansiva do capital aparece como sinal de crise, que de acordo com Netto e Braz (2007) é elemento constitutivo do modo de produção capitalista e favorece o processo de reestruturação do sistema, pressupondo o III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 902 Uma referência importante aqui é que as intensas transformações no modo de produção capitalista articuladas aos processos organizativos das lutas sociais feministas objetivaram mudanças no sistema patriarcal, expressas em conquistas no âmbito dos direitos sociais e políticos, no mercado de trabalho, na esfera privada, entre outros. No entanto, a base material do patriarcado não foi destruída, pois o ingresso das mulheres no mundo do trabalho e em outros espaços da vida social se dá de forma precarizada e subordinada aos homens. Tal fenômeno se concretiza para as mulheres através da pouca inserção nos espaços de decisão política, econômica e científica, da ocupação do mercado de trabalho de forma subalternizada, da divisão sexual do trabalho, do controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva e do uso da violência. Nesse ponto da discussão cabe trazer alguns elementos da subordinação das mulheres nas últimas três décadas. Em primeiro lugar, é importante apontar algumas reflexões acerca da pouca participação das mulheres no poder político. Segundo Godinho (2004), nas últimas três décadas ampliou-se a presença da mulher nos espaços de caráter político, todavia, esse processo deu-se, fundamentalmente, na base dos partidos políticos e sindicatos, com fortes contradições, já que, em certa medida é uma inserção sustentada por políticas de cotas, e, em um momento histórico marcado pela “perda de fibra” dos movimentos sociais e partidos de esquerda 7 . Outro traço marcante da desigualdade entre homens e mulheres diz respeito a esfera econômica. Sabe-se bem, que as mulheres são historicamente o segmento social mais pauperizado e, mesmo a entrada das mulheres no processo produtivo não foi capaz de modificar esse quadro. Como já aludi, a inserção de mulheres na produção capitalista amplia as contradições do sistema patriarcal, já que impõe à mulher a obrigação com o trabalho doméstico, a socialização e educação dos filhos e filhas, bem como, o papel de cuidadora da família. Esses elementos potencializam a reprodução das relações desiguais de gênero. desenvolvimento de novas tecnologias e formas de exploração do trabalho, bem como, a adoção de medidas paliativas. Dessa forma, a ação capitalista convive com uma instabilidade permanente, cumulativa e crônica do sistema. Mais informações acerca das crises do capital ver, c.f. NETTO, J.P; BRAZ, M. Economia Política. Uma introdução crítica.São Paulo: Cortez, 2007. 7 Sem dúvida, o processo organizativo das mulheres, principalmente, nas décadas de 1980 e 1990, nos grupos de mulheres, foi importante para consolidação do movimento feminista e das mulheres, enquanto sujeito político coletivo. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 903 Destaca-se, também, o processo de reestruturação produtiva, a partir da década de 1970, que aprofunda a particularidade na forma de exploração das mulheres. Segundo Hirata (2003) ocorreu uma ampliação do trabalho remunerado das mulheres, em nível mundial, tanto no setor informal quanto no formal, e, estagnação dos postos de trabalho masculino. É importante salientar que o aumento do emprego remunerado das mulheres foi acompanhado da degradação e precarização desses empregos, por meio da flexibilização e terceirização do trabalho, da “desregulamentação” das leis trabalhistas e sindicais, da ampliação do mercado de trabalho informal, bem como, do crescente desemprego e o aumento da desigualdade. A autora ainda aponta a desigualdade de salários, das condições de trabalho e de saúde não foram alteradas em sua estrutura, bem como a relação das mulheres com o trabalho doméstico não mudou, apesar do aumento de responsabilidades no mundo público. Ampliou- se as tecnologias e serviços para o uso doméstico, mas as atribuições do mesmo continuam sendo das mulheres. Esses elementos reforçam a tendência das mulheres se situarem, cada vez mais, em atividades e empregos precários, e, por conseguinte, aprofundam a condição histórica de pauperização das mulheres. Ainda em relação ao trabalho remunerado das mulheres, estudos recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) mostram que em média, no Brasil, as mulheres recebem pouco mais da metade do salário dos homens, apesar de terem maior grau de escolaridade e dedicam mais horas para o trabalho doméstico. Ademais, as informações do relatório do PNUD sobre as desigualdades entre mulheres e homens indicam que os países africanos estão entre os menos desiguais, inclusive aqueles que possuem os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), disputam os primeiros lugares da lista com menor diferença de rendimento entre mulheres e homens 8 . Essa igualdade na pobreza nega o argumento de que a desigualdade entre homens e mulheres é fruto do subdesenvolvimento e/ou resquícios do atraso. Assim, entendo que o modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista de produção está fortemente baseado nas desigualdades de gênero, por tudo isso, não surpreende os dados da PNUD que mostram que 8 Segundo o mesmo relatório do PNUD, o Quênia, 144° noranking do IDH, está em segundo lugar em desigualdades de rendimentos entre homens e mulheres, nesse país as mulheres recebem 82% dos salários dos homens. Em Moçambique, 175° no IDH, é o terceiro de menor desigualdade de renda, as mulheres ganham 81% do salário dos homens. Ainda na lista dos dez primeiros colocados estão outros dois países africanos, Burundi e Malawi, ambos com baixo IDH. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 904 os países desenvolvidos e de alto IDH, apresentam grandes diferenças nos rendimentos feminino e masculino. Além da pouca participação política e econômica, outra expressão da subordinação da mulher que foi aprofundada pelo capitalismo, diz respeito ao controle do corpo e da sexualidade, manifestados de diversas formas, entre elas, a imposição da heterossexualidade e da maternidade como normas, a dificuldade de acesso as políticas de saúde reprodutiva, a criminalização do aborto, o tráfico de mulheres e a prostituição, e, na mercantilização do corpo das mulheres. Convém enfatizar, o uso da violência como expressão máxima do patriarcado. De acordo com pesquisas feitas pela Fundação Perseu Abramo cerca de uma em cada cinco brasileiras declara espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência (SAFFIOTI, 2004). Podemos afirmar por meio dessas considerações, que é próprio da lógica do sistema do capital se apropriar dos segmentos historicamente vulnerabilizados como forma de ampliar a acumulação. Homens e mulheres são explorados nesse sistema, mas há particularidades na forma de exploração feminina, que requer, além da luta anticapitalista, uma ação coletiva das mulheres capaz de construir uma sociedade verdadeiramente emancipada, autodeterminada e livre. Nesse sentido, a opressão patriarcal e a exploração efetivada pelo sistema capitalista estão perfeitamente articuladas e ao falar da subordinação das mulheres na atual sociedade, não temos como deixar de mencioná-las. Sendo assim, não podemos estudar as desigualdades de gênero de uma forma desarticulada da perspectiva da totalidade, ou seja, da materialidade concreta de nossa sociedade patriarcal/capitalista/racista. 3 FEMINIZAÇÃO DA POBREZA: UM CONCEITO A SER REPENSADO? Cabe dizer, que nas últimas três décadas multiplicaram-se os estudos de gênero, em um contexto de ofensiva neoliberal e contrarreformas no Estado, bem como, de consolidação do terceiro setor e refluxo dos movimentos sociais. Com isso, a categoria gênero passa a ser utilizada pelas agências de cooperação internacional, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial como foco para redução da pobreza, e, sendo assim, transforma-se em uma linha de acesso à recursos que, fundamentalmente, implicam na construção de estratégias ditas de “empoderamento” e III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 905 “autonomia individual”, ao “protagonismo”, a “cooperação e integração social”. É importante mencionar que houve uma gradativa incorporação da categoria gênero como base ou tema transversal das ações e/ou políticas sociais dos governos. Esse processo é compreendido por muitas teóricas como uma manifestação de força do movimento feminista e de mulheres, todavia, deve ser analisado a apropriação do discurso feminista pelo Estado, que altera as demandas do movimento e re-significa suas reivindicações. Penso, que a centralidade da questão não reside no fato das reivindicações do movimento serem incorporadas ou não pelo Estado, mas da necessidade de um questionamento constante da forma como são elaboradas as políticas governamentais com perspectiva de gênero. Concomitantemente a esse processo se tem construído um debate multifacetado acerca da relação entre a “pobreza” e a “questão de gênero”. Nesse sentido, afirma-se que está em curso um novo fenômeno denominado de “feminização da pobreza”, tal conceito, passa a ser utilizado para justificar a formulação e implementação de políticas públicas focadas especificamente para as mulheres pobres. Como já aludi, o conceito “feminização da pobreza” já nos ronda a três décadas, segundo Novellino (2004) ele surge em 1978, nos E.U.A., em um artigo de Diane Pearce que relacionava o empobrecimento feminino ao aumento de famílias chefiadas por mulheres, assim, este fenômeno estava intrínsecamente associado ao fato da ausência do provedor masculino na família. Esse ângulo analítico tem sido base de inúmeros estudos sobre o assunto que afirmam a “feminização da pobreza” como um reflexo de uma “nova pobreza” e a relaciona diretamente com a chefia feminina e a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Outra perspectiva para compreender esse fenômeno se articula com os efeitos específicos das políticas econômicas de corte neoliberal sobre a vida e o trabalho das mulheres. Ainda há os estudos, mais recentes, e, na ordem do dia, que identificam grupos de mulheres mais vulneráveis ao empobrecimento, tais como as mulheres negras, as mulheres indígenas, as mulheres lésbicas, as mães solteiras, entre outros. Todas essas abordagens tem como pressuposto comprovar ou refutar a “feminização da pobreza” para formular políticas sociais, ou focalizadas nas mulheres pobres, ou universais para homens e mulheres pobres. Para tanto, empreende-se esforços para estabelecer linhas de III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 906 pobreza, tipologias e indicadores acerca do empobrecimento feminino, a exemplo do Índice de Desenvolvimento Humano Feminino - IDHF. Algumas indagações emergem como fundamentais: afinal, o que é a “feminização da pobreza”? Como e por que os mais diversos sujeitos sociais vem se apropriando desse conceito? Qual a funcionalidade desse conceito tão amplo e palátavel para as novas formas de enfrentamento a “questão social”, surgidas no pós-1970? E como o movimento feminista têm se posicionado frente a esse debate? Ousar refletir essas questões postas na atualidade “pós” é uma necessidade para constituirmos um debate realmente aprofundado e crítico. As autoras das mais diversas vertentes do feminismo, desde as mais radicais até as conservadoras, relacionam a “feminização da pobreza” com dois elementos: o aumento da chefia feminina como indicador de pobreza e a inserção das mulheres no mercado de trabalho de forma subalternizada. É preciso levar em consideração que embora a ausência masculina obrigue a mulher a prover o sustento da família, e, sobretudo, amplie suas responsabilidades na reprodução e socialização dos filhos e filhas, não é a partir da ausência do homem enquanto figura provedora e protetora que se desenvolve o processo de “feminização da pobreza”, como afirmam algumas autoras, a exemplo de Pearce (1978). Até porque, de acordo com dados do PNUD, ONU e OIT, os chefes de domicílio, sejam homens ou mulheres, sofrem de forma similar os baixos níveis de renda (CASTRO, 2004). O que pode ser acrescentado aqui, é a o fato das mulheres se posicionarem em postos de trabalho mais precarizados e com menores rendimentos. Segundo Lavinas (1996) nos últimos dez anos, aumentou a taxa de mulheres no mercado de trabalho, embora em ocupações com nível de rendimento baixo, e com pouca qualificação e capacidade gerencial. Além disso, constatou-se uma tendência à redução no diferencial dos rendimentos por sexo e uma ampliação do desnível de renda entre as mulheres.Para Lavinas (1996, p.473), “Numericamente, [...] a pobreza feminina não tem maior expressão que a pobreza masculina”. E, nesse sentido, a autora conclui, que existem desigualdades próprias de gênero e outras que se desenvolvem entre pobres e não-pobres. Na presente reflexão, a pobreza feminina não pode ser compreendida, apenas, de forma demográfica e/ou numérica, a não ser que se analise pobreza como insuficiência de renda ou consumo. Dessa maneira, a pauperização das mulheres, tem inúmeros elementos, III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 907 tais como, o fato de possuirem pouco poder político, econômico, científico, o uso da violência e a dificuldade de acesso a políticas sociais. Já para o PNUD (2010) a “feminização da pobreza” é um conceito controverso por agrupar a pobreza e a desigualdade de gênero, duas grandes problemáticas da contemporaneidade. Por essa razão, há uma necessidade de se esclarecer o conceito e atribuir indicadores para alocar recursos de forma eficiente. Dessa maneira, o conceito deve significar uma mudança nos níveis de pobreza com uma tendência desfavorável às mulheres ou aos domicílios chefiados por mulheres. Vale ressaltar, que o termo pobreza é compreendido como insuficiência de renda ou consumo, capacidade ou liberdade, e esta relacionado a três indicadores ou fatores determinantes, a localização, a escolaridade e o número de pessoas por domicílio. Apreendido na perspectiva de mudança, a “feminização da pobreza” deve implicar em um processo, que faça com que as carências implícitas no conceito de pobreza se tornem mais comuns ou intensas entre as mulheres ou nos lares por elas chefiados. De acordo com Lavinas (1996) a “feminização da pobreza” tem aparecido nos discursos governamentais e de agências de cooperação internacional, assim como nas análises teóricas de diversas vertentes do feminismo como um fenômeno contemporâneo, e, que tem como característica reunir duas fragilidades: ser mulher e ser pobre. Por essa razão, esta categoria sexuada se refere à mulher pobre. Segundo a autora supracitada (1996, 02-03): Ao enfatizar a feminização da pobreza, estamos falando das mulheres pobres, que certamente não irão buscar sua cidadania própria a partir da pobreza.[...] Não é possível reivindicar o direito de ser pobre. Por isso mesmo, a mulher pobre é uma forma de categorização social forçosamente gestada pelas instituições, pelas elites pensantes, pela classe política. Não é um processo identitário com vistas à constituição de um campo legítimo de interesses e a mecanismo de representação. E, por essas razões, é uma categoria ah doc ao feminismo. Para Castro (2001) a “feminização da pobreza” deve ser compreendida a partir das transformações no mercado de trabalho e nas políticas sociais de emprego e renda, direcionadas à elevação da quantidade de postos de trabalho, ou compensatórias, tais como, capacitações e transferências de renda, bens e serviços. A autora aponta a apropriação do conceito de “feminização da pobreza” para justificar políticas compensatórias e fragmentar os direitos sociais consquistados pela classe trabalhadora. Nessa lógica, se escolhe um grupo de III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 908 beneficiários (as), deixando de fora uma grande parcela da população em condição semelhante. Considero que o conceito de “feminização da pobreza”, como esta sendo analisado nas últimas décadas, tem uma interpretação ambígua e fetichizada, e, vem sendo utilizado por forças sociais contraditórias. Um conceito que agrada gregos e troianos. Além disso, tem uma forte funcionalidade para a lógica do modo de produção capitalista, assim como, não analisa a dominação e exploração das mulheres de forma aprofundada. Em primeiro lugar, porque parte do pressuposto de que a pauperização das mulheres é um processo recente. Sabe-se bem que as mulheres, historicamente, não dispunham em seu poder os meios de produção, não participavam das grandes decisões coletivas, nem tão pouco tinham acesso a construção do conhecimento. Por essa razão não é pertinente dizer que houve uma “feminização da pobreza” como uma questão processual e situada nos últimos 30 anos, pois as mulheres historicamente são a parcela populacional mais empobrecida. Em segundo lugar, o processo de aprofundamento da pobreza feminina, deve ser pensado como parte do processo de empobrecimento da classe trabalhadora no pós 1970. Isso porque, as medidas para retomar o ciclo expansivo e acumulativo do capital nos anos 1980, baseadas no receituário neoliberal, não foram capazes de superar a crise capitalista, entretanto afetaram a condição de vida da classe trabalhadora. De forma que houve uma agudização da desigualdade social, acompanhada da fragilização dos direitos sociais, e, nesse contexto, uma apropriação dos segmentos historicamente explorados/dominados para expandir a acumulação. Mediante o exposto, esses segmentos historicamente explorados, a exemplo das mulheres, negros, homossexuais, entre outros, têm sua força de trabalho cada vez mais precarizada, e passam a ser beneficiários de políticas sociais focalizadas, fragmentadas e, em certa medida, paternalistas, que cristalizam sua condição de segmento explorado. 4 “FEMINIZAÇÃO DA POBREZA” E AS POLÍTICAS SOCIAIS FOCALIZADAS NAS MULHERES Quero sustentar em minha análise, que a partir da década de 1970, com o processo de reestruturação do sistema do capital, se dimensiona uma forte preocupação, téorica e política, com o aprofundamento da chamada “questão social”, e, por conseguinte, com a expansão da III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 909 pobreza como elemento capaz de ameaçar a retomada do ciclo expansivo/acumulativo capitalista. No campo téorico, elaborou-se categorias analíticas para compreender essa “nova” realidade, tais como, desfiliação, “nova pobreza”, “apartação social”, “exclusão”, “nova questão social”, entre outras, articuladas a perspectivas teóricas funcionalistas, estruturalistas e pós – modernas9. Nesse sentido, a pobreza ganha status de centralidade no discurso das agências internacionais de cooperação, isso pode ser observado nos relatórios anuais do Banco Mundial e nas indicações sobre políticas de desenvolvimento, que dimensionam a pobreza como foco central de intervenção e limite para o crescimento econômico. Por tudo isso, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio e Fundo Monetário Internacional, vêm somando esforços para reduzir a pobreza, através de investimentos na esfera social, nos países em desenvolvimento, principalmente com políticas focalizadas e de transferência de renda, com centralidade na família. Inclusive, com base na noção de feminização da pobreza, essas organizações internacionais recomendam, por meio do documento Toward gender equality de 1997, a focalização das políticas de combate à pobreza nas mulheres. Uma referência importante nesse debate, é que o movimento feminista muito pressionou pela adesão de uma perspectiva de gênero na elaboração das políticas sociais e por políticas públicas específicas para as mulheres. E, nessa correlação de forças, aconteceu uma absorção por parte das instituições governamentais e de cooperação internacional de elementos do discurso feminista acerca da histórica pauperização das mulheres,principalmente, a partir da Conferência de Pequim (1995). Essa conjuntura impulsionou inúmeros estudos acerca da condição da mulher, que demonstraram um intenso empobrecimento feminino, mesmo com o aumento de sua participação no mercado de trabalho e de sua base educacional. Dessa forma, passou-se a 9 Nas últimas décadas tem-se construído diferentes abordagens para compreender e analisar a realidade, dentre elas, o debate francês elaborado por Castel e Rosavalon, com inspiração em Durkheim, o primeiro, trata a chamada “questão social” como uma fratura na coesão social. O segundo, aponta o surgimento de uma “nova questão social”. Ambos referem-se a reconstituição do contrato social como forma de reconstruir os vínculos sociais, seja via proteção social, ou da solidariedade. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 910 reproduzir nos campos teórico e político que a pobreza femina deveria ser o foco da ação para redução da pobreza, pela via de sua inserção em postos de trabalho, transferências de renda e pela efetivação de políticas sociais focalizadas nas mulheres pobres. Nesse sentido, houve uma ressignificação ideológica do debate feminista acerca da pauperização das mulheres, com ampliação dos estudos sobre “feminização da pobreza”. O que, em certa medida, legitimou ainda mais o processo de focalização das políticas sociais, que pressupõem a comprovação de renda, contrapartida dos (as) beneficiários (as) e responsabilização das mulheres pela eficiência das políticas. É preciso analisar que enfoque de gênero e centralidade na mulher são perspectivas totalmente diferentes, a primeira significa que as desigualdades entre homens e mulheres devem ser enfrentadas no contexto do conjunto das desigualdades sociais. Já a segunda, compreende a mulher como objeto de sua ação, e não as relações entre os gêneros e seus antagonismos. Penso, por tudo isso, que o que temos são políticas com centralidade na família, especialmente nas mulheres, em que transfere-se a responsabilidade do Estado com o enfrentamento da “questão social” para a sociedade civil, e a unidade familiar. Nesse horizonte, a mulher passa a ter responsabilidade pela eficiência das políticas sociais, assim como, a ser compreendida como um instrumento de desenvolvimento social. Além desses elementos, as políticas focalizadas nas mulheres, em geral, instrumentalizam os papéis sociais atribuidos às mulheres, principalmente, os relacionados à esfera reprodutiva. Assim, a transferência de bens ou atividades de capacitação, desenvolvidas por essas políticas, reforçam as habilidades consideradas adequadas as mães/donas-de casa/não-trabalhadoras. Segundo Carloto (2006) as políticas com centralidade na mulher desconsideram as desigualdades entre homens e mulheres, e em certa medida, as amplia e reafirma. Já que nelas a “mulher-mãe” é interpelada a participar das ações, responsabilizada pela educação dos (as) filhos (as) e pelo cumprimento dos critérios de permanência nos programas. E, sendo assim, sobrecarregam as mulheres com atividades que implicam na forma de execução dos programas. O debate sobre a relação entre “feminização da pobreza” e as políticas sociais focalizadas na mulher tem sido crescente nos últimos anos, e, inclusive alguns segmentos do III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 911 movimento feminista criticam a focalização de “mulheres em geral”, defendendo o reconhecimento das diferenças entre as próprias mulheres. Assim, propõe uma “focalização dentro da focalização”, capaz de dá conta dos segmentos de mulheres mais vulnerabilizados, tais como, as mulheres negras, mulheres mães solteiras, mulheres lésbicas, entre outras, que nessa perspectiva, somam explorações. Contrariando essas perspectivas, Lavinas (1996) e Castro (2001) apontam a necessidade de se defender políticas públicas mais universais, que visem reduzir a pauperização da classe trabalhadora e não de grupos específicos de pobres, mesmo que sejam de mulheres. Todavia, apontam a necessidade de compreender que há desigualdades entre homens e mulheres que devem ser analisadas e consideradas na elaboração e implementação de programas governamentais. Considero, que a fragmentação das políticas articulada a mobilização de setores do movimento feminista por políticas cada vez mais direcionadas a “grupos específicos”, aprofundam o processo de pauperização crescente da classe trabalhadora, e, das particulares formas de pauperização das mulheres, assim como obstaculariza a compreensão do fenômeno de forma profunda e crítica. Nesse sentido, é imprescindível analisar a processo específico de exploração das mulheres, articulada a questão de classe/raça/orientação sexual e geração, e também, da defesa dos direitos sociais e de políticas universais de redistribuição de riqueza. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A “feminização da pobreza” é um conceito polissêmico e palatável, que precisa ser mais profundamente teorizado. Vem sendo utilizado em níveis de compreensão diversos, desde o pensamento comum mais elementar, até o teórico, mais sofisticado. Além disso, tem adesão dos sujeitos sociais diversos e antagônicos, fazendo parte do discurso da “direita” e “esquerda”, e nesse sentido, adquire uma interpretação fetichizada. Ademais, é um conceito que explica o fenômeno de empobrecimento feminino, situado nas últimas três décadas, capaz de justificar a necessidade de políticas fragmentadas, desarticuladas e focalizadas nas mulheres. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 912 E por essas razões, não consegue dá conta de compreender/analisar a relação dialética entre o aprofundamento da pobreza feminina e a crise do modo de produção capitalista no pós-1970. Por tudo isso, é necessário (re) atualizar o debate sobre “feminização da pobreza” e a relação do movimento feminista com Estado, numa perspectiva de totalidade. Até para não se aderir ao pensamento pós-moderno, conservador e (neo)liberal, próprios de um movimento feminista de direita. REFERÊNCIAS ABRAMO, Laís. Nota Técnica: perspectiva de gênero e raça nas políticas públicas. Brasília: IPEA, nov. 2004. BEHRING, Elaine e BOSHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortês, 2006. CARLOTO, Cássia M. Gênero, políticas públicas e centralidade na família. In: Serviço Social e Sociedade, 86, ano XXVII, julho 2006. CARRASCO, Cristina. La sostenibilidad de la vida humana: Un asunto de Mujeres? In: Mientras Tanto. N81. Barcelona: Otoño-inverno, 2001. CASTRO, Mary Garcia (2001). Feminização da pobreza em cenário neoliberal. In: Galeazzi, Irene M. S. (org). Mulher e trabalho. Porto Alegre: PED-RMPA. FARIA, Nalu e NOBRE, Miriam. Gênero e desigualdade. São Paulo: SOF, 1997. (Coleção Cadernos Sempre Viva). GODINHO, Tatau. Democracia e política no cotidiano das mulheres brasileiras. 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Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 914 A ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO: O PROJETO REVIVER DO CARIRI (CEARENSE) E A (RE)INTEGRAÇÃO SOCIAL DE DEPENDENTES QUÍMICOS. ÁREA TEMÁTICA: JUSTIÇA, DIREITOS HUMANOS E INCLUSÃO SOCIAL Camila Pereira Brígido Rodrigues 10 Maria Aline Pereira de Brito 11 Izak Batista de Araújo 12 Francisca Laudeci Martins Souza 13 Resumo: A Economia Solidária propõe uma forma diferenciada de qualidade de vida e de consumo, a partir da integração e da solidariedade entre os cidadãos de todo o mundo. Seus valores centrais são o trabalho, o conhecimento e o atendimento das necessidades sociais da população, a partir de uma gestão responsável dos recursos públicos. Ademais, a Economia Solidária é tida como um instrumento de combate à exclusão social, apresentando assim, alternativas viáveis para a geração de trabalho e renda, os quais promovam a satisfação direta das necessidades humanas, e dessa forma, eliminar as desigualdades materiais, bem como difundir os valores da ética e da solidariedade. Em termos discursivos, no que tange a reabilitação social, diz-se então, que o trabalho que segue, tratar-se-á de uma abordagem analítica, através de um estudo de caso do Projeto Reviver Cariri em Juazeiro do Norte (CE), haja vista que o objetivo central do Projeto é recuperar e (re)integrar os dependentes químicos, utilizando a economia solidária como estratégia de inclusão. Palavras-Chaves: Projeto Reviver Cariri, Reabilitação Social, Economia Solidária. 1. INTRODUÇÃO 10 Graduanda em Ciências Econômicas pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Bolsista de Iniciação Científica CNPQ. E-mail: camilabrigido@hotmail.com 11 Graduanda em Ciências Econômicas pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Bolsista PIBIC-CNPq. E- mail: linny_brito@hotmail.com 12 Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Email: izak- b@hotmail.com 13. Doutora em Educação, professora do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri – URCA e Coordenadora do Grupo ECOS de estudos em Economia Solidária e Sustentabilidade. laudecimartins@yahoo.com.br III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 915 As modificações estruturais, de ordem econômica e social, ocorridas no mundo nas últimas décadas, fragilizaram o modelo tradicional da relação capital - trabalho, de modo que é crescente o aumento da informalidade e precarização das relações formais. Nesse contexto, a economia solidária procura resgatar as lutas históricas dos trabalhadores que tiveram origem no início do século XIX, sob a forma de cooperativismo, como uma das formas de resistência contra o avanço avassalador do capitalismo industrial. No Brasil, a mesma ressurge no final do Século XX como resposta dos trabalhadores às novas formas de exclusão e exploração no mundo do trabalho. Novos modos de existência econômica, que se pautem em princípios diferentes daqueles propagados pela economia tradicional, ganham corpo e se fortalecem no século XXI. Isto por que, os tempos que correm são marcados por crises que se justificam menos na conjuntura do que na estrutura da economia clássica. Ou seja, é crescente o movimento que cada vez mais questiona os objetivos de maximização da produção, minimização dos custos e maximização dos lucros como alternativa única de produção e consumo. Neste cenário, partilha, comunhão e consumo consciente são apenas alguns dos conceitos que emergem a partir dos princípios da solidariedade e sustentabilidade. Muito embora a economia solidária emirja no século XIX com o surgimento e avanço de outras formas de organização do trabalho, conseqüência, em grande parte, da necessidade dos trabalhadores encontrarem alternativas de geração de renda, no século XXI a intensificação da destrutividade ambiental, por exemplo, tem colocado a humanidade em face de um conjunto de problemáticas que impactam direta ou indiretamente as condições de reprodução da vida planetária. O aumento exponencial do lixo, a contaminação e redução das fontes de água potável, o aquecimento global, o desmatamento, a descartabilidade e a redução da biodiversidade são alguns dos fenômenos cada vez mais evidentes, afetando as possibilidades de reprodução do sistema do capital, além de impactarem as múltiplas formas de vida orgânica, sobretudo, a dos segmentos mais pauperizados das classes trabalhadoras. As alternativas, hegemonicamente presentes no debate ambiental, apontam para um conjunto de iniciativas de ordem técnica e comportamental, caucionadas na defesa do aprimoramento e da ecologização do capital: trata-se de um discurso que propala a capacidade do sistema de compatibilizar “desenvolvimento econômico e preservação ambiental”, desde que os indivíduos adotem posturas mais respeitosas para com a natureza. Sob o manto da responsabilidade socioambiental, os meios de comunicação enfatizam, cotidianamente, experiências bem sucedidas, iniciativas empresariais “sustentáveis”, III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 916 revelando uma ofensiva ideológica sem par, cujo fim é convencer a todos de que é possível superar a degradação ambiental sob o signo do capital. (SANTOS, et al, 2012, p. 96) Ou seja, as crises em curso no século XXI são transversais e interdisciplinares na medida em que suas causas e consequências não se assentam somente no mundo da economia uma vez que perpassam o mundo da cultura, do ambiente, da educação e da justiça social, entre outros. Assim o são por que menos do que advindas das relações históricas estabelecidasentre trabalho e capital, são questionamentos à própria estrutura do capital e suas externalidades crescentemente negativas. O aprofundamento dessa crise abriu/abre espaço para o surgimento e avanço de outras formas de organização do trabalho, consequência, em grande parte, da necessidade dos trabalhadores encontrarem alternativas de geração de renda. Experiências coletivas de trabalho e produção vêm se disseminando nos espaços rurais e urbanos, através das cooperativas de produção e consumo; as associações de produtores; redes de produção, consumo e comercialização; instituições financeiras voltadas para empreendimentos populares solidários; empresas de autogestão; entre outras formas de organização. No Brasil, a economia solidária se expandiu a partir de instituições e entidades que apoiavam iniciativas associativas comunitárias e pela constituição e articulação de cooperativas populares, redes de produção e comercialização, feiras de cooperativismo e economia solidária, etc. Atualmente, a economia solidária tem se articulado em vários fóruns locais e regionais, resultando na criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Hoje, além do Fórum Brasileiro, existem 27 fóruns estaduais com milhares de participantes (empreendimentos, entidades de apoio e rede de gestores públicos de economia solidária) em todo o território brasileiro. Foram fortalecidas ligas e uniões de empreendimentos econômicos solidários e foram criadas novas organizações de abrangência nacional. (MTE, 2013) A temática da economia solidária, aos poucos, se torna uma realidade no cenário econômico brasileiro. Seus conceitos de solidariedade e participação se espalham gerando novas iniciativas e afetando as antigas, buscando assim, um mercado mais humanizado e menos utilitarista. Mesmo estando diante de um sistema competitivo e individualista, essas iniciativas solidárias vêm ganhando seu espaço de forma significativa (ADDOR, 2006). Em 1994, Laville caracterizava a economia solidária como um conjunto de atividades econômicas, no qual sua lógica é diferente tanto da lógica do mercado capitalista quanto da III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 917 lógica do Estado. Ao contrário da economia capitalista, que visa o capital a ser acumulado, funcionando a partir das relações competitivas com objetivos de sempre buscar os interesses individuais, a economia solidária é estabelecida a partir de fatores humanos, o que favorece a valorização do laço social através da reciprocidade, adotando formas comunitárias de propriedade. Ela se difere também da economia estatal que exibe uma autoridade central e formas de propriedade institucional (LAVILLE, 1994 apud LECHAT, 2002). O Fórum Brasileiro de Economia Solidária define a Economia Solidária como sendo “fruto da organização de trabalhadores e trabalhadoras na construção de novas práticas econômicas e sociais fundadas em relações de colaboração solidária”. Neste contexto, destaca-se a importância dos valores culturais, que apresentam o ser humano como sujeito e também finalidade da atividade econômica. Nascimento (2006) afirma que as ciências econômicas através da economia solidária devem buscar o bem estar da população: Independentemente do sistema produtivo e das relações políticas da sociedade, as ciências econômicas devem buscar o bem estar da população. Não fariasentido que todo esforço empreendido pelo Estado visasse apenas reduzir arelação dívida/PIB ou mesmo aumentar o superávit primário das contas públicas.Aparentemente, esses parâmetros buscam em sua essência criar expectativaspositivas para a economia, buscando pavimentar o caminho para os investimentos produtivos (NASCIMENTO, 2006, p. 04). A Economia Solidária pode apresentar várias características, se tratando de ideologia, a Economia Solidária apresenta uma forma diferente de qualidade de vida e de consumo, partindo da integração e da solidariedade de toda a população mundial. O trabalho, o conhecimento e o atendimento das necessidades sociais da população são apontados como os calores centrais da Economia Solidária, iniciando com uma gestão com responsabilidade perante os recursos públicos (NASCIMENTO, 2006). A Economia Solidária pode representar uma importante ferramenta de combate à exclusão social conforme se apresentam alternativas viáveis para a geração de trabalho e renda para satisfazer às necessidades humanas, colocando fim as desigualdades materiais e propagando os valores da ética e da solidariedade. A Economia Solidária mostra-se também como um grande projeto de desenvolvimento integral visando a sustentabilidade, a democracia participativa, a justiça econômica e social, além da preservação do meio ambiente através do uso racional dos recursos naturais, estabelecendo o compromisso dos poderes III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 918 públicos em democratizar o poder, a riqueza e o saber, instigando uma formação estratégica de alianças entre organizações populares para que vigore ativamente os direitos e deveres da cidadania (NASCIMENTO, 2006). Segundo Nascimento (2006, p.09), “A Economia Solidária propõe uma atividade econômica enraizada no seu contexto mais imediato, e tem a territorialidade e o desenvolvimento local como marcos de referência. Consumidores de diversos países definem conscientemente seus níveis de consumo com base em princípios éticos, solidários e sustentáveis.” É muito provável, que o significado mais preciso acerca de Economia Solidária é apresentado quando ela é formada por um conjunto de organizações econômicas, que se caracterizam pela propriedade coletiva dos meios de produção, pela própria gestão do trabalho através de mecanismos para a tomada de decisões coletivas e pela formação comunitária. A partir desta definição, a unidade mais simplificada de Economia Solidária é o Empreendedorismo Econômico Solidário, que pode apresentar-se como uma cooperativa, uma associação ou até mesmo um grupo informal. Com isso, não se confunde com as práticas de solidariedade assistencial, de caridade ou até de responsabilidade social e ambiental, mas, antes de tudo está interligada a uma concepção de solidariedade social fundamentalmente associada às condições de organização e ima (auto) gestão do trabalho relacionando-se também com a repartição de benefícios (BERTUCCI, 2010). A partir desta concepção, podemos tomar quatro variações, que dizem respeito à forma com que se analisa o potencial desses empreendedorismos. Para os mais otimistas, o crescimento desse tipo de empreendimento econômico mostraria um caminho evidente que, através de uma prática socialista, levaria à superação do capitalismo. Isso quer dizer que, neste ponto de vista, a organização da produção através de empreendimentos autogestionários se tornaria hegemônica (BERTUCCI, 2010, p. 52). Para Nascimento (2006), “A Economia Solidária busca fundamentalmente a unidade entre produção e reprodução, evitando a contradição fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a produtividade, mas exclui crescentes setores de trabalhadores do acesso aos seus benefícios, gerando crises recessivas, hoje de alcance global.” A economia solidária compreende quaisquer práticas econômicas populares que se posicionam aquém do assalariamento formal, e que englobam ações individuais ou de grupos, resultado a solidariedade como fator da produção econômica. Essa ideia remete ao termoIII Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 919 economia popular, que antecede ao da economia solidária. Mesmo que se entenda a solidariedade como um elemento essencial, compreende-se o movimento da economia solidária para além da produção popular (BARBOSA, 2007 apud GONÇALVES, 2010). A Economia Solidária é também um projeto de desenvolvimento integral que visa a sustentabilidade, a justiça econômica e social e a democracia participativa, além da preservação ambiental e a utilização racional dos recursos naturais. Ademais, a Economia Solidária exige o compromisso dos poderes públicos com a democratização do poder, da riqueza e do saber, e estimula a formação de alianças estratégicas entre organizações populares para o exercício pleno e ativo dos direitos e responsabilidades da cidadania. Ainda nesse âmbito, IRION (1997, p. 39), contribui para o presente trabalho salientando que a compreensão do termo Economia Solidaria está em entendermos por economia solidária: [...] aquela que se fundamenta na organização dos trabalhadores em empresas que tenham por base a pessoa e não o capital, a democracia, a autogestão, o livre acesso e a solidariedade entre os atuais participantes e a solidariedade para os que virão no futuro depois dos primeiros associados. Empreendimentos deste tipo se caracterizam por individualizar o capital de cada sócio e por gerarem fundos indivisíveis entre os sócios, como solidariedade futura (IRION, 1997, p. 39). Para melhor compreensão e entendimento dos termos conceituais supracitados, diz-se que a economia solidária é a resposta organizada à exclusão pelo mercado, por parte dos que não querem uma sociedade movida pela competição, da qual surgem incessantemente vitoriosos e derrotados. É antes de qualquer coisa uma opção ética, política e ideológica, que se torna prática quando os optantes encontram os de fato excluídos e juntos constroem empreendimentos produtivos, redes de trocas, instituições financeiras, escolas, entidades representativas, etc., que apontam para uma sociedade marcada pela solidariedade, da qual ninguém é excluído contra vontade. De acordo com GAIGER (2003), os empreendimentos de economia solidária (EES) constituem a célula básica da economia solidária. Uma de suas características é a preexistência de alguma relação social entre seus trabalhadores, ou pelo menos entre uma boa parte deles, seja por já dividirem outros ambientes de trabalho seja por serem camponeses de uma mesma localidade, ou vizinhos, familiares, ou até mesmo por pertencerem a grupos étnicos afins. No caso brasileiro, os EES se organizam das mais variadas formas, como III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 920 empresas recuperadas e administradas pelos próprios trabalhadores, cooperativas, associações ou grupos informais de produção, de caráter suprafamiliar e comunitário, caracterizando um verdadeiro “polimorfismo” que não necessariamente está relegado à parcela mais pobre da população. Concomitante ao exposto, devemos salientar que além dos EES, existem no país diversas organizações que atuam no plano do fomento e fortalecimento das formas de expressão da economia solidária, tais como: Organizações Não Governamentais (ONG’s), movimentos sociais, fóruns nacionais e estaduais, entre outros, tanto no meio urbano como no meio rural (SILVA, 2010). Nesta pesquisa constituímos como exemplo dessas organizações solidárias, o Projeto Reviver em Juazeiro do Norte (CE). O Projeto surgiu através da verificação da forte incidência de dependência química entre jovens e adultos trabalhadores na Região Integrada do Cariri Araripe 14 , bem como na constatação da inexistência de unidades que promovam o tratamento e reestruturação dos dependentes químicos da região. O objetivo central do Projeto Reviver é recuperar dependentes químicos, pessoas “esquecidas” pela sociedade e pela própria família, haja vista que em muitos casos, tais dependentes estão na marginalidade para sustentar o vício e assim provocando grandes impactos familiares e sociais. Desta feita, o trabalho de cunho associativo com foco de solidariedade requer uma série de capacidades que não estão necessariamente inseridas na dinâmica capitalista de produção. Portanto, esse tipo de organização do trabalho é tido como experiência coletiva de organização econômica, na qual os indivíduos se associam para produzir e reproduzir meios de vida, através de relações de reciprocidade e igualdade, partindo assim do princípio conceitual da economia solidária. A partir disso, a grande questão desta pesquisa é indagar de que maneira o princípio da solidariedade que deve perpassar as iniciativas de Economia Solidária constitui estratégia de 14 A RICA é constituída pelos municípios de Abaiara, Altaneira, Antonina do Norte, Araripe, Assaré, Aurora, Baixio, Barbalha, Barro, Brejo Santo, Campos Sales, Caririaçu, Cedro, Crato, Farias Brito, Granjeiro, Ipaumirim, Jardim, Jati, Juazeiro do Norte, Lavras da Mangabeira, Mauriti, Milagres, Missão Velha, Nova Olinda, Penaforte, Porteiras, Potengi, Salitre, Santana do Cariri, Tarrafas, Umari, Várzea Alegre, no Ceará; Araripina, Bodocó, Cedro, Exu, Granito, Ipubi, Moreilândia, Ouricuri, Santa Cruz, Santa Filomena, Serrita, Trindade, em Pernambuco; Acauã, Alegrete, Belém do Piauí, Betânia do Piauí, Caldeirão Grande, Campo Grande, Caridade do Piauí, Curral Novo, Francisco Macedo, Fronteiras, Marcolândia, Padre Marcos, Paulistana, Pio IX, São Julião, Simões, Vila Nova, no Estado do Piauí; Bom Jesus, Bonito de Santa Fé, Cachoeira dos Índios, Cajazeiras, Conceição, Guarabira, Monte Horebe, Santa Inês, São José de Piranhas, na Paraíba. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 921 superação da marginalidade vivenciada pelos dependentes químicos. Ou seja, a instituição de um modo de existência que contemple a inclusão social como objetivo principal de uma Economia Solidária, ou seja, mais preocupada com o ser humano do que com as empresas, com a relação entre os povos do que com os meios de produção. Para dar conta da questão central e tomando o Projeto Reviver como campo da pesquisa, objetivamos identificar na Economia Solidária estratégias de superação da marginalidade produzida pela dependência química. Especificamente, objetivamos conceituar Economia Solidária; discorrer a cerca da utilização da Economia Solidária como combate à marginalidade, e compreender o processo de superação da marginalidade através do Projeto Reviver, a fim de construir um quadro característico dos beneficiados pelo projeto. 2. A INSTITUIÇÃO DE UM CAMINHO METODOLÓGICO 2.1 Sobre o projeto O Projeto Reviver do Cariri, criado em 2006, é uma instituição privada que cuida da recuperação para dependentes químicos cujo princípio fundamental é a solidariedade a partir da fé. Conforme o Pastor Fernandito, coordenador da instituição: A base é a palavra de Deus (...). Temos as terapias operacionais e a parte médica, que é a parte da saúde, como enfermeiro, psicólogo e psiquiatra. Assistente social, nós temos essa parte que completa o tratamento e a desintoxicação. Nós temos cursos, oficinas, cursos que são ministrados como relações humanas e outros cursos que são ministrados aqui, mas, o que, o que forma, o que muda o caráter, é o que ele vai aprenderdentro da palavra de Deus. Presentemente o Projeto atende homens e mulheres – jovens e idosos - distribuídos em três unidades em conformidade com processo de desintoxicação química. O processo tem uma duração que varia de nove a doze meses de internamento onde se trabalha com terapias ocupacionais, esportes, palestras, estudos bíblicos, artes, musica, acompanhamentos medico e espiritual. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 922 Figura 01: Faixada do Projeto Reviver Cariri Fonte: dados da pesquisa (2013) O projeto se destina a todos àqueles que por livre vontade ou por ordem judicial buscam o Projeto Reviver do Cariri, não importando variáveis como: condições financeiras, gênero, raça, partido politico entre outras. Segundo o próprio site da instituição 15 alguns dos objetivos do projeto são amparar os adolescentes, adultos e idosos em situação de risco, estendendo a assistência social à suas famílias; desenvolver programas beneficentes de inclusão, proteção, prevenção; articular e integrar ações públicas e privadas em rede comprometer-se com a promoção da comunidade local, incentivando o trabalho comunitário e participativo e a integração na sociedade; oferecer o espaço para o lazer sadio, oficinas criativas em socialização e desenvolvimento humano, cultural e social. favorecer aos alunos uma formação profissional para integrá-los no mundo do trabalho e na família; oferecer e desenvolver a educação básica familiar; difundir a importância da cultura através da expressão artística e desportiva; promover, oferecer e 15 projetoreviverdocariri.com.br III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 923 desenvolver a educação para o exercício da cidadania por meio da educação moral, cívica e religiosa. Aos dependentes que aderem ao projeto, é oferecido um tratamento adequado viabilizando o acompanhamento dos internos no primeiro mês, estes permanecem inclusos até o nono ou duodécimo mês, completando a desintoxicação e retornando a sociedade. 2.2 Sobre os dados e os procedimentos Para atender os objetivos deste trabalho utilizou-se uma base primária de dados constituídos a partir de entrevistadas. A pesquisa de campo utilizou como método a pesquisa-participante que segundo Soares e Ferreira (2006, p. 92), “[...] implica necessariamente a participação, tanto do pesquisador no contexto, grupo ou cultura que está a estudar, quanto dos sujeitos que estão envolvidos no processo da pesquisa”. Segundo Garjado (1986) apud Carvalho (2013) os aspectos da pesquisa participante são: a) o objetivo é o de trabalhar com os grupos excluídos, em situações comuns de trabalho e estudo e trocar informações para colaborar na mudança das condições de dominação. b) o ponto de partida, o objeto e a meta da pesquisa participante são o processo de aprendizagem dos que fazem parte da pesquisa. c) ao invés de se manter distância entre o pesquisador e o grupo que vai ser examinado, tal como se exige nas ciências sociais tradicionais, propõe-se a interação. Trabalhar, talvez viver, no grupo escolhido, a fim de elaborar perspectivas e experimentar ações que perdurem, inclusive depois de terminado o projeto. d) no desenrolar do estudo, aspira-se a uma comunicação o mais possível horizontal entre todos os participantes. e) utiliza o dialogo como meio de comunicação mais importante no processo conjunto de estudo e coleta de informação. III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 924 3. A ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO ESTRATÉGIA DE SUPERAÇÃO DA EXCLUSÃO SOCIAL PRODUZIDA PELA DEPENDÊNCIA QUÍMICA: O CASO DO PROJETO REVIVER CARIRI 3.1 Dependência química: Uma Abordagem Conceitual Em pleno século XXI, a dependência química é vista como resultado de uso e abuso de substâncias psicoativas, quer dizer, drogas lícitas e ilícitas vêm a ter um crescimento progressivo, o que traz graves consequências a saúde física, psíquica e social do ser humano refletindo na família e na sociedade (SANTOS, 2008). Conforme a Organização Mundial da Saúde, citado por Santos (2008) as substâncias psicoativas consistem em: Substâncias que ao entrarem em contato com o organismo, sob diversas vias de administração, atuam no sistema nervoso central produzindo alterações de comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora sendo, portanto, passíveis de auto-administração. A dependência química pode ser considerada como sinônimo de escravidão, pois a pessoa chega a perder o amor próprio, o respeito por si mesmo e também se distanciar de tudo que faz ou poderia lhe fazer bem, é considerada uma doença grave e até mesmo incurável, porém pode ser controlada. Visualizando-se como doença, trata-se de um transtorno, em que a pessoa que porta esse distúrbio perde total controle do uso da substância, acabando assim com sua vida emocional, psíquica, espiritual e física. Ela é considerada doença química, visto que o que provoca a dependência é uma reação química no metabolismo do corpo; a circunstância básica e única dessa “doença interna” é o uso do produto, existindo aspectos internos relacionados ao organismo que atuam ao mesmo tempo direta e indiretamente que colaboram para a alocação da doença, causando uma predisposição física e emocional para a dependência; é considerada como uma doença progressiva; trata-se de uma doença crônica que se apresenta como incurável, que atinge de certa forma toda a família (SANTOS, 2008). Conforme Silveira (2003), citado por Santos (2008, p. 17), a dependência química é: O impulso que leva a pessoa a usar droga de forma contínua (sempre) ou periodicamente (frequentemente) para obter prazer. Alguns indivíduos podem também trazer o uso constante de uma droga para aliviar tensões, ansiedades, medos, III Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura e Desenvolvimento-CEURCA, ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil 925 sensações físicas desagradáveis, etc. O dependente caracteriza-se por não conseguir controlar o consumo de drogas, agindo de forma impulsiva e repetitiva. Quando o indivíduo sente um impulso indomável, é a dependência psicológica impondo a ele a necessidade de fazer o uso das drogas a fim de evitar o mal-estar. A dependência psicológica mostra várias mudanças psíquicas favorecendo a obtenção do hábito. O hábito por sua vez, é um dos aspectos mais importantes que se considera na toxicomania, pois a tolerância juntamente com a dependência psíquica significa que se faz necessária o aumento das doses para adquirir os efeitos desejados. E essa tolerância é o fenômeno responsável pela necessidade constante do indivíduo aumentar o uso da droga. E em estado de dependência psíquica, o desejo repetitivo de tomar várias doses é transformado em necessidade, que se não satisfeita, o indivíduo fica em um estado de profunda angústia, (estado depressivo). Esse estado de angústia por falta da droga é bastante comum em praticamente todos os dependentes e viciados (SANTOS, 2008). Entender e ver como uma doença vem amenizar para o dependente o fato na esfera moral e social, embora para muitos seja desconhecido ainda este fator doença. Reconhecer, como doença, aceitar principalmente
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