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CULTURA1 Bronislaw Malinowski2 O homem varia em dois aspectos: na forma física e na herança social ou cultura. A ciência da antropologia física, utilizando-se de um complexo aparato de definições, descrições, termos especializados e métodos mais precisos do que o sentido comum e a observação não disciplinada, conseguiu catalogar, com sucesso, segundo a estrutura física e as características fisiológicas, diversas variedades da espécie humana. Mas o homem varia também em um aspecto completamente diferente. Uma criança negra, de raça pura, transportada para a França e educada lá, vai se diferenciar profundamente daquilo que teria sido se fosse educada na selva de sua terra natal. Teria recebido uma herança social diferente: uma língua diferente, hábitos, idéias e crenças diferentes; teria sido inserida em uma organização social e em um quadro cultural diferentes. Essa herança social é um conceito chave da antropologia cultural, o outro ramo do estudo comparado do homem. É comumente chamada de cultura na antropologia moderna e nas ciências sociais. A palavra cultura é usada, às vezes, como sinônimo de civilização, mas é melhor empregar os dois termos de modo diferente, reservando civilização para designar um aspecto especial das culturas mais avançadas. A cultura compreende artefatos, bens, procedimentos técnicos, idéias, hábitos e valores herdados. A organização social não pode ser realmente entendida a não ser como uma parte da cultura; e todas as linhas especializadas de investigação sobre as atividades, os agrupamentos e as idéias e crenças humanas se fertilizam umas as outras no estudo comparado das culturas. O homem, para conseguir viver, altera continuadamente seu meio ambiente. Em todos os pontos de contato com o mundo exterior, cria um meio ambiente secundário, artificial. Faz casas ou constrói refúgios; prepara seus alimentos de modo mais ou menos elaborado, conseguindo-os por meio de armas e ferramentas; faz estradas e utiliza meios de transporte. Se o homem tivesse de confiar exclusivamente no seu equipamento anatômico, seria logo destruído ou pereceria de fome ou na intempérie. A defesa, a alimentação, o deslocamento no espaço, todas as necessidades fisiológicas e espirituais são satisfeitas indiretamente por meio de artefatos, inclusive nas formas mais primitivas da vida humana. O homem natural, o Naturmensch, não existe. Esses aparelhamentos materiais do homem - seus artefatos, seus edifícios, suas embarcações, suas ferramentas e armas, a parafernália litúrgica de sua magia e de sua religião - são os aspectos mais evidentes e tangíveis da cultura. Definem o seu nível e constituem a sua eficácia. O equipamento material da cultura, no entanto, não é uma força em si mesmo. O conhecimento é necessário para fabricação, manejo e utilização de artefatos, ferramentas, armas e outras construções e se relaciona essencialmente com a disciplina mental e moral, da qual a religião, as leis e as regras éticas são a fonte última. O manejo e a posse de bens implicam também uma apreciação de seu valor. A manipulação de ferramentas e o consumo de bens requerem igualmente cooperação. O trabalho comum e o uso coletivo de seus resultados se baseiam sempre em um tipo definido de organização social. Por isso, a cultura material precisa de um complemento menos simples, menos fácil de catalogar ou analisar, que consiste na massa de conhecimentos intelectuais, no sistema de valores morais, espirituais e econômicos, na 2 organização social e na linguagem. A cultura material é por outro lado, um aparato indispensável para o modelamento ou condicionamento de cada nova geração de seres humanos. O meio ambiente secundário, o aparelhamento da cultura material, é um laboratório no qual se formam os reflexos, os impulsos e as tendências emocionais do organismo. As mãos, os braços, as pernas e os olhos são ajustados pelo uso das ferramentas às habilidades técnicas apropriadas necessárias em uma cultura. Os processos nervosos são modificados de forma a se ajustarem ao conjunto completo de conceitos intelectuais, tipos emocionais e sentimentos que formam o corpo da ciência, religião e moral predominantes em uma comunidade. Como contrapartida importante desses processos mentais se produzem modificações na laringe e na língua que fixam alguns dos conceitos e valores cruciais associando-os com sons definidos. Artefatos e hábitos são igualmente indispensáveis e se produzem e se determinam mutuamente uns aos outros. A linguagem é muitas vezes considerada como algo diferente tanto dos bens materiais do homem como de seu sistema de costumes. Essa concepção está freqüentemente associada a uma teoria segundo a qual o significado é considerado como um conteúdo místico da palavra, que pode ser transmitido de um entendimento a outro mediante a elocução. O significado de uma palavra não está, porém, misteriosamente contido nela mas é antes o efeito ativo do som pronunciado no contexto de uma situação. A elocução de um som é um ato significante indispensável em todas as formas pactuadas de ação humana. É um tipo de comportamento estritamente comparável ao uso de uma ferramenta, ao manejo de uma arma, à execução de um ritual ou ao fechamento de um contrato. A utilização de palavras em todas essas formas de atividade humana é o correlato indispensável do comportamento manual e corporal. O significado das palavras consiste naquilo que conseguem pela ação convencionada, a manipulação indireta do meio ambiente mediante a ação direta sobre outros organismos. A língua é portanto, um hábito corporal e é comparável a qualquer outro tipo de costume. A aprendizagem da língua consiste no desenvolvimento de um sistema de reflexos condicionados que se transformam ao mesmo tempo em estímulos condicionados. A língua é a produção de sons articulados, desenvolvidos na infância a partir de elocuções infantis desarticuladas que constituem o principal dom das crianças no relacionamento com o seu meio ambiente. Conforme cresce o indivíduo, o aumento de seu conhecimento lingüístico corre paralelamente com o seu desenvolvimento geral. O conhecimento crescente dos procedimentos técnicos se liga com a aprendizagem dos termos técnicos; o desenvolvimento da cidadania tribal e da responsabilidade social vem acompanhado da aquisição do vocabulário sociológico e da fala educada, dos enunciados imperativos e da fraseologia legal; a experiência crescente dos valores religiosos e morais está associada com o desenvolvimento de fórmulas rituais e éticas. O conhecimento completo da linguagem é o correlato inevitável da completa aquisição de um status tribal e cultural. A linguagem, portanto, é parte integrante da cultura; não é entretanto, um sistema de ferramentas, mas antes um corpo de costumes vocais. A organização social é muitas vezes considerada pelos sociólogos como exterior à cultura, mas a organização dos grupos sociais é uma combinação complexa de equipamento material e de costumes corporais que não podem ser separada de seu substrato nem material nem psicológico. A organização social é a maneira estandardizada pela qual os grupos agem. Mas um grupo social consta sempre de indivíduos. A criança, ligada a seus pais pela satisfação de todas as suas necessidades, cresce dentro do abrigo 3 da casa, da choça ou da tenda paterna. A lareira doméstica é o centro em torno do qual se satisfazem as diferentes necessidades de calor, comodidade, alimento e companhia. Mais tarde, em todas as sociedades humanas, a vida comunitária está associada com o assentamento local, a cidade, a aldeia, o conglomerado; está localizada dentro de limites definidos e relacionada com atividades públicas eprivadas de natureza econômica, política e religiosa. Portanto, em toda atividade organizada, os seres humanos se encontram unidos entre si por meio de sua conexão com um determinado setor do meio ambiente, por sua associação com um refúgio comum e pelo fato de que executarem certas tarefas em comum. O caráter convencional de seu comportamento é o resultado de regras sociais, quer dizer, de costumes, ou sancionados por medidas explícitas ou funcionando de forma aparentemente automática. As regras sancionadas - leis, costumes e maneiras - pertencem à categoria dos hábitos corporais adquiridos. A essência dos valores morais, pelos quais o homem é orientado para um comportamento definido mediante compulsão interna, tem sido atribuía, no pensamento religioso e metafísico, à consciência, à vontade de Deus ou a um imperativo categórico inato; ao passo que alguns sociólogos a tem explicado como devido a um ser supremo moral: a sociedade ou a alma coletiva. A motivação moral, considerada empiricamente, consiste em uma disposição do sistema nervoso e de todo o organismo para seguir, dentro de determinadas circunstâncias, uma linha de comportamento ditada por uma compulsão interior que não se deve a impulsos inatos nem muito menos a vantagens ou benefícios evidentes. A compulsão interior é o resultado do treinamento gradual do organismo em um conjunto definido de condições culturais. Os impulsos, desejos e idéias, dentro de cada sociedade, estão fundidos em sistemas específicos, chamados sentimentos na psicologia. Tais sentimentos determinam as atitudes de um homem para com os membros de seu grupo, sobretudo para com seus parentes mais próximos; para com os objetos materiais de seu meio ambiente; para com o país em que habita; para com a comunidade com a qual trabalha, para com as realidades de sua Weltanschauung mágica, religiosa ou metafísica. Os valores ou sentimentos formados condicionam de tal forma o comportamento humano que o indivíduo prefere a morte à renúncia ou compromisso, a dor ao prazer, a privação à satisfação do desejo. A formação dos sentimentos e, portanto, dos valores, está sempre fundamentada no aparato cultural de uma sociedade. Os sentimentos são formados no decorrer de um longo período de tempo e mediante um treinamento ou condicionamento muito lento do organismo. Estão baseados em formas de organização, muitas vezes de âmbito mundial, tais como a Igreja Cristã, a comunidade Islâmica, o império, a bandeira - todos símbolos ou lemas atrás dos quais se escondem, não obstante, realidades culturais grandes e vivas. A intelecção da cultura deve ser procurada no processo de sua produção por sucessivas gerações e na forma pela qual produz, em cada nova geração, o organismo adequadamente modelado. Os conceitos metafísicos de pensamento de grupo, de consciência ou percepção coletiva, são devidos a uma aparente antinomia da realidade sociológica: por um lado, a natureza psicológica da cultura humana e, por outro, o fato de a cultura transcender o indivíduo. Solução enganosa dessa antinomia é a teoria de que as mentes humanas se combinam ou se integram para formarem um ser supra-individual e, com certeza, espiritual na sua essência. A teoria de Durkheim, da coação moral pela influência direta do ser social, as teorias baseadas no inconsciente coletivo e no arquétipo da cultura, conceitos tais como a consciência de grupo ou a inevitabilidade da imitação 4 coletiva, respondem pela natureza psicológica e ao mesmo tempo supra-individual da realidade social, introduzindo significados teóricos metafísicos. A natureza psicológica da realidade social, entretanto, é devida ao fato de que seu veículo transmissor último é sempre a mente ou o sistema nervoso individual. Os elementos coletivos são devidos à identidade das reações no interior dos pequenos grupos, que atuam como unidades de organização social mediante o processo de condicionamento, e ao instrumento da cultura material, no interior do qual se situa o condicionamento. Os pequenos grupos, que atuam como unidades por causa de sua identidade mental, são depois integrados em esquemas mais amplos da organização social mediante os princípios da distribuição territorial, da cooperação e divisão em estratos de cultura material. Dessa forma, a realidade do supra-individual se encontra na massa da cultura material que permanece fora de qualquer indivíduo e sem dúvida o influencia de modo físico comum. Portanto, não há nada de místico no fato de que a cultura é ao mesmo tempo psicológica e coletiva. A cultura é uma realidade sui generis e deve ser estudada como tal. Estão equivocadas as diferentes escolas de sociologia que tratam o tema da cultura mediante o símile orgânico ou do mesmo modo como uma mente coletiva. A cultura é uma unidade bem organizada dividida em dois aspectos fundamentais - uma massa de artefatos e um sistema de costumes - e também obviamente em outras subdivisões ou unidades. A análise da cultura em seus elementos componentes, a relação desses elementos entre si e as suas relações com as necessidades do organismo humano, com o meio ambiente e com os fins humanos universalmente reconhecidos, a que servem, constituem importantes problemas da antropologia. A antropologia tem abordado seu objeto com dois métodos diferentes, determinados por duas concepções incompatíveis sobre o desenvolvimento e a história da cultura. A escola evolucionista tem encarado o crescimento da cultura como uma série de metamorfoses espontâneas que procede de acordo com leis definidas e produz uma seqüência fixa de etapas sucessivas. Essa escola deu como certa a divisibilidade da cultura em elementos simples e se ocupou desses elementos como se fossem unidades da mesma ordem; apresentou teorias sobre o desenvolvimento do processo de fazer fogo lado a lado de explicações do modo como se desenvolveu a religião, hipóteses da origem e evolução do matrimônio e ensinamentos sobre o desenvolvimento da cerâmica. Formularam-se estágios do desenvolvimento econômico e etapas na evolução dos animais domésticos, dos instrumentos de corte e do desenho ornamental. E no entanto é certo que a família, o casamento ou as crenças religiosas não estão sujeitas a metamorfoses simples e dramáticas, embora alguns utensílios tenham mudado, passado por uma seqüência de etapas e obedecido a leis evolutivas mais ou menos definidas. As instituições básicas da cultura humana mudaram não por meio de transformações espetaculares, mas antes por meio de uma crescente diferenciação da forma de acordo com uma função cada vez mais definida. Antes de se compreender e descrever mais amplamente a natureza dos diferentes fenômenos culturais, suas funções e suas formas, parece prematuro especular sobre possíveis origens e estágios. Os conceitos de origens, estágios, leis de desenvolvimento e crescimento da cultura sempre foram nebulosos e essencialmente não empíricos. O método da antropologia evolucionista se baseava fundamentalmente no conceito de sobrevivência, posto que permitia ao estudioso 5 reconstruir os estágios passados a partir das condições dos dias presentes. O conceito de sobrevivência, entretanto, supõe que um arranjo cultural possa sobreviver à sua função. Quanto melhor se conhece um determinado tipo de cultura, menos sobrevivências parece haver nela. Uma investigação evolucionista deve ser precedida, portanto, de uma análise funcional da cultura. A mesma crítica vale para a escola histórica ou difusionista, que tenta reconstruir a história das culturas humanas seguindo principalmente as pistas de suas difusões. Essa escola nega a importância da evolução espontânea e sustenta que as culturas foramcriadas, principalmente, a partir da imitação ou do empréstimo de artefatos e costumes. O método da escola consiste em um mapeamento cuidadoso das semelhanças culturais em grandes partes do globo e em reconstruções especulativas de como unidades semelhantes de cultura migraram de um lugar para outro. As disputas dos antropólogos históricos (pois há pouco consenso entre Elliot Smith, F. Boas; W. J. Perry e o Padre Schmith; Clark Wissler e Graebner; ou Frobenius e Rivers) referem-se principalmente a problemas como onde se originou um tipo de cultura, por onde se difundiu e como se difundiu. As diferenças se devem, basicamente, ao modo pelo qual cada escola concebe, de um lado, a divisão da cultura em suas partes componentes e, de outro, o processo de difusão. Esse processo tem sido muito pouco estudado nas suas manifestações atuais e é somente a partir de um estudo empírico da difusão contemporânea que pode ser encontrada uma resposta para sua história passada. O método de dividir a cultura em suas unidades componentes, que por suposto se difundem depois, é menos satisfatório ainda. Os conceitos de traços culturais, complexos de traços e de Kulturkomplexe se aplicam indiscriminadamente a utensílios ou ferramentas simples, tais como o boomerang, o arco ou os paus de fazer fogo, ou a características vagas da cultura material, como a megaliticidade, a sugestionabilidade sexual da concha de cauri ou certos detalhes de forma objetiva. A agricultura, o culto da fertilidade e os grandes princípios, embora vagos, de agrupamento social, tais como a organização dual, o sistema de clãs ou um tipo de culto religioso, são considerados traços únicos, quer dizer, unidades de difusão. Mas a cultura não pode ser considerada como um conglomerado fortuito de tais traços. Apenas elementos da mesma ordem podem ser tratados como unidades idênticas de coisas; apenas elementos compatíveis compõem um todo homogêneo. Detalhes insignificantes da cultura material, por um lado, instituições sociais e valores culturais, por outro, devem ser tratados de forma diferente. Não foram criados da mesma maneira nem podem ser transferidos, difundidos ou introduzidos da mesma maneira. O ponto mais fraco no método da escola histórica é forma pela qual seus membros estabelecem a identidade dos elementos culturais. Pois, todo o problema da difusão histórica surge da ocorrência de traços ou complexos real ou aparentemente idênticos em áreas diferentes. Para estabelecer a identidade de dois elementos de cultura, os difusionistas empregam os critérios do que poderia ser chamado, respectivamente, de forma irrelevante e concatenação fortuita de elementos. A irrelevância da forma é um conceito fundamental, porque a forma, que é ditada por necessidade interna, poderia ter se desenvolvido independentemente. Os complexos, naturalmente concatenados, poderiam ser também o produto de evolução independente - daí a necessidade de considerar apenas os traços fortuitamente concatenados. Segundo Graebner e seus seguidores, entretanto, concatenação acidental e detalhe irrelevante de forma só pode ser o resultado de difusão direta. Mas tanto a irrelevância da forma quanto a acidentalidade 6 do concatenamento são asserções negativas, o que significa em última instância que a forma de um artefato ou de uma instituição não pode ser explicada, nem pode ser encontrada a concatenação entre vários elementos de cultura. O método histórico emprega a ausência de conhecimentos como base de sua argumentação. Para serem v lidos, seus resultados precisam ser precedidos de um estudo funcional da cultura dada que esgotaria todas as possibilidades de explicar a forma pela função e de estabelecer relações entre os diferentes elementos da cultura. Se a cultura em seu aspecto material é basicamente uma massa de artefatos instrumentais, parece improvável, a primeira vista, que qualquer cultura possa abrigar uma grande quantidade de traços irrelevantes, sobrevivências ou complexos fortuitos, transmitidos por alguma cultura itinerante estranha ou transferidos como sobrevivências, fragmentos inúteis de um estágio desaparecido. Parece menos provável ainda que costumes, instituições ou valores morais apresentem esse caráter necrótico ou irrelevante pelo qual estão fundamentalmente interessadas as escolas evolucionista e difusionista. A cultura consiste no conjunto de bens e de instrumentos, assim como de costumes e hábitos corporais e mentais, que funcionam direta ou indiretamente para satisfazer as necessidades humanas. Todos os elementos da cultura, se essa concepção for correta, devem estar agindo, funcionando, ativos, eficazes. O caráter essencialmente dinâmico dos elementos culturais e de suas relações sugere que é no estudo da função cultural que se encontra a tarefa mais importante da antropologia. A antropologia funcional se interessa basicamente pela função das instituições, dos costumes, das ferramentas e das idéias. Sustenta que o processo cultural está sujeito a leis e que essas leis devem ser procuradas na função dos verdadeiros elementos da cultura. O tratamento atomizador ou segregador dos traços culturais é considerado estéril porque o significado da cultura consiste na relação entre seus elementos e não se admite a existência de complexos culturais fortuitos ou acidentais. Para formular alguns princípios fundamentais basta tomar um exemplo da cultura material. O artefato mais singelo, amplamente utilizado nas culturas mais simples, um bastão liso, cortado toscamente, de uns seis ou sete p‚s de comprimento, assim que pode ser usado para escavar raízes ou cultivar a terra, como varejão ou para caminhar, é um elemento ou traço de cultura ideal, pois tem uma forma simples fixa, é aparentemente uma unidade auto-suficiente e é de grande importância em todas as culturas. Definir a identidade cultural do bastão por sua forma, pela descrição de seu material, de sua extensão, de seu peso, de sua cor ou de qualquer outra característica física - descrevê-lo de fato segundo o critério último da forma como fazem os difusionistas - seria um procedimento metodologicamente equivocado. O bastão de cavar é manejado de um modo apropriado; é usado na plantação ou na floresta para objetivos específicos; é arranjado e descartado de forma bastante descuidada - pois cada exemplar tem freqüentemente muito pouco valor econômico. Mas o bastão de cavar avulta-se fortemente no esquema econômico de cada comunidade na qual é usado, assim como no folclore, na mitologia e nos costumes. Um bastão de forma idêntica pode ser utilizado na mesma cultura como varejão para impelir, bordão para caminhar ou arma rudimentar. Mas em cada um desses usos específicos, o bastão é inserido em um contexto cultural diferente; quer dizer, destinado a diferentes usos, envolvido por diferentes idéias, revestido com um valor cultural diferente e, de modo geral, designado por nomes 7 diferentes. Em cada caso forma parte integrante de um sistema diferente de atividades humanas estandartizadas. Em resumo, desempenha função diferente. É a diversidade da função e não a identidade da forma que é relevante para o estudioso da cultura. O bastão só existe como parte da cultura na medida em que é usado nas atividades humanas, na medida em que serve às necessidades humanas; portanto o bastão de cavar, o bordão de caminhar, o varejão de impelir, embora possam ser idênticos na natureza física, são cada um deles um elemento distinto de cultura. Pois, tanto o mais simples como o mais complexo dos artefatos é definido por sua função, pelo papel que desempenha em um sistema de atividades humanas; é definido pelas idéias que se relaciona com ele e pelos valoresque o envolvem. Essa conclusão adquire importância pelo fato de que os sistemas de atividades com os quais se relacionam os objetos materiais não são fortuitos mas organizados, bem determinados, sistemas semelhantes encontrados em todo o universo da diversidade cultural. O contexto cultural do bastão de cavar, o sistema de atividades agrícolas, apresenta sempre as seguintes partes componentes: uma porção de território é legalmente destinado para o uso de um grupo humano pelas regras da posse da terra. Existe um corpo de usos tradicionais que regula o modo pelo qual esse território deve ser cultivado. Regras técnicas, usos cerimoniais e rituais determinam em cada cultura que plantas devem ser cultivadas; como o terreno deve ser limpo, a terra preparada e adubada; como o trabalho deve ser feito; como, quando e por quem devem ser celebrados os atos mágicos e as cerimônias religiosas; como, finalmente, devem ser colhidos, distribuídos, armazenados e consumidos os frutos. Da mesma forma, é sempre bem definido o grupo de pessoas que possui o território, a plantação e a produção, que trabalha em conjunto, desfruta e consome os frutos de seu trabalho. Essas são as características da instituição da agricultura tal como é universalmente encontrada onde quer que o meio ambiente seja favorável ao cultivo da terra e o nível da cultura suficientemente alto para permiti-lo. A identidade fundamental desse sistema organizado de atividades é devido primariamente ao fato de surgir em torno da satisfação de uma profunda necessidade humana - a provisão regular de alimento básico de natureza vegetal. A satisfação dessa necessidade mediante a agricultura, que oferece possibilidade de direcionamento, regularidade de produção e abundância relativa, é tão superior a qualquer outra atividade provedora de comida que estava fadada a se difundir ou a se desenvolver onde quer que as circunstâncias fossem favoráveis e o nível de cultura suficientemente alto. A uniformidade fundamental na agricultura institucionalizada é devida ainda a um outro motivo, ao princípio das possibilidades limitadas, formulado pela primeira vez por Goldenweiser. Dada uma necessidade cultural definida, os meios para sua satisfação são poucos em número e, portanto, o arranjo cultural que surge em resposta à necessidade é escolhido dentro de limites estreitos. Dada a necessidade humana de proteção, de armas rudimentares e de ferramenta para explorar no escuro, o material mais adequado é a madeira, a única forma adequada acessível, larga e fina, e de farto sortimento. É possível ainda uma sociologia ou uma teoria cultural do bastão de caminhar, pois o bastão apresenta diversidade de usos, idéias e associações místicas, e em seus desenvolvimentos ornamentais, rituais e simbólicos se transforma em parte de instituições importantes, tais como a magia, a chefia e a realeza. 8 As verdadeiras unidades componentes das culturas, que têm considerável grau de permanência, universalidade e independência, são os sistemas organizados das atividades humanas chamados instituições. Toda instituição se organiza em torno de uma necessidade básica, une permanentemente um grupo de pessoas em uma tarefa cooperativa e tem um corpo especial de doutrinas e de técnicas artesanais. As instituições não se correlacionam de forma simples e direta com suas funções: uma necessidade não encontra a sua satisfação em uma instituição. Mas as instituições apresentam um acentuado amálgama de funções e têm um caráter sintético. O princípio local ou territorial e a relação de descendência atuam como os fatores mais importantes de integração. Toda instituição está baseada em um substrato material de meio ambiente compartilhado e de aparato cultural. Só é possível definir a identidade cultural de um artefato situando-o dentro do contexto cultural de uma instituição, mostrando como funciona culturalmente. Um bastão pontiagudo, quer dizer, uma lança, usado como arma de caça, leva ao estudo do tipo de caça, praticado em uma dada cultura, na qual funciona, aos direitos legais de caça, à organização da equipe, à técnica, ao ritual mágico, à distribuição da caça, assim como à relação do tipo particular de caça com outros tipos e à importância geral da caça dentro da economia da tribo. As canoas têm sido freqüentemente tomadas como traços característicos para o estabelecimento de afinidades culturais e, daí, como prova da difusão, porque a forma varia em um amplo leque e apresenta tipos de caráter marcante, tais como canoas com um ou dois flutuadores, a balsa, o kayak, o catamarã ou a canoa dupla. E mesmo assim, esses artefatos complexos não podem ser definidos somente pela forma. A canoa, para as pessoas que a fabricam, possuem, utilizam e valorizam, é principalmente um meio para um fim. Precisam atravessar uma extensão de água, ou porque vivem em pequenas ilhas, ou em casas sobre palafitas, ou porque desejam fazer comércio, pescar ou fazer a guerra, ou pelo desejo de exploração e aventura. O objeto material, a embarcação, sua forma, suas peculiaridades, são determinadas pelo uso particular para o qual se destina. Todo uso determina um sistema especial de navegação, quer dizer, em primeiro lugar, a técnica de utilizar remos, o timão, o mastro, os panos ou as velas. Tais técnicas, entretanto, estão invariavelmente baseadas em conhecimento: princípios de estabilidade, flutuação, condições de velocidade e resposta ao leme. A forma e a estrutura da canoa estão estreitamente relacionadas com a técnica e a forma de sua utilização. Embora estejam disponíveis inúmeras descrições apenas da forma e da estrutura de uma canoa, pouco se sabe sobre a técnica de navegação e sobre a relação entre ela e o uso particular a que se destina uma canoa. A canoa tem também a sua sociologia. Mesmo quando tripulada por uma única pessoa, é possuída, fabricada, alugada ou emprestada, e nisso estão invariavelmente envolvidos tanto o grupo como o indivíduo. Mas, freqüentemente a canoa tem que ser manejada por uma tripulação e isso implica a complexa sociologia da propriedade, da divisão de funções, dos direitos e das obrigações. Essas coisas se tornam mais complicadas pelo fato de que uma embarcação grande precisa ser fabricada coletivamente, e a produção e a propriedade estão comumente relacionadas. Todos esses fatos, que são complexos mas regulamentados, e apresentam diferentes aspectos, todos relacionados segundo regras definidas, determinam a forma da canoa. A forma não pode ser tratada como um traço independente e auto-suficiente, acidental e irrelevante, que se difunde isoladamente sem o seu contexto. Todos os suposições, argumentos e conclusões 9 relativos à difusão de um elemento e à expansão da cultura em geral, terão de ser modificados desde que se reconheça que o que se difunde são as instituições e não os traços, as formas ou os complexos fortuitos. Na construção de canoas de alto mar há certos elementos estáveis de forma determinados pela natureza da atividade para a qual se destina a embarcação. Há certos elementos variáveis devidos ou a possibilidades alternativas de solução ou ainda a detalhes menos importantes associados com uma solução possível. Esse é um princípio universal que se aplica a todos os artefatos. Os produtos utilizados para a satisfação direta das necessidades corporais ou consumidos no uso devem atender a condições colocadas diretamente pelas necessidades corporais. Os comestíveis, por exemplo, são sob certos aspectos determinados pela fisiologia; devem ser nutritivos, digeríveis, não venenosos. Evidentemente, são determinados também pelo meio ambiente e pelo nível da cultura. Casas, roupas, refúgios, fogo comofonte de calor, luz e sequidão, armas, embarcações e caminhos são determinados, em parte, pelas necessidades corporais com as quais estão relacionados. Ferramentas, utensílios ou máquinas que são usados para a produção de bens têm a natureza e a forma definidas pela finalidade para a qual devem ser empregados. Cortar ou raspar, juntar ou despedaçar, bater ou impelir, perfurar ou tradear, definem a forma de um objeto no sentido estrito do termo. Mas ocorrem variações dentro dos limites impostos pela função primária, que fazem com que o caráter principal do artefato se mantenha estável. Não há variações infinitas, mas um tipo fixo ocorre, como se tivesse havido uma escolha e logo uma adesão. Em uma comunidade costeira qualquer, por exemplo, não se encontra uma variedade infinita de embarcações que podem ir do simples tronco vazado a complexa out-rigger. Ocorrem no máximo umas poucas formas, diferenciadas pelo tamanho, pela construção e também pela posição e pela finalidade sociais, e cada forma tradicional é reproduzida constantemente até nos menores detalhes da decoração e do processo de construção. At‚ o momento a antropologia concentrou a sua atenção nessas regularidades secundárias de forma que não podem ser explicadas pela função primária do objeto. A ocorrência regular de tais detalhes de forma aparentemente acidentais levantou o problema de se saber se são devidos a invenções independentes ou à difusão. Muitos desses detalhes, porém, devem ser explicados pelo contexto cultural; quer dizer, o modo particular pela qual um objeto é utilizado por um homem ou por um grupo de pessoas, por idéias, ritos e combinações cerimoniais que envolvem seu uso principal. A ornamentação de um bastão de caminhar significa geralmente que estabeleceu na cultura alguma relação cerimonial ou religiosa. Um bastão de cavar pode ser pesado, pontiagudo ou rombudo, segundo o tipo de solo, o desenvolvimento das plantas e o tipo de cultivo. A explicação da out-rigger dos mares do Sul deve ser procurada no fato de que esse arranjo dá maior estabilidade, segurança e maneabilidade, considerando as limitações de material e de técnicas artesanais das culturas marítimas. A forma dos objetos culturais é determinada, de um lado, pelas necessidades corporais diretas e, por outro, pelos usos instrumentais. Mas essa divisão das necessidades e dos usos não é nem completa nem satisfatória. O bastão cerimonial usado como sinal de hierarquia ou de cargo não é nem um instrumento nem uma 10 utilidade, e, costumes, palavras e crenças não podem ser referidas nem à fisiologia nem à atividade. O homem, como qualquer outro animal, precisa se alimentar e se reproduzir para continuar existindo como indivíduo e como espécie. Precisa ter também abrigos permanentes contra perigosos oriundos do meio ambiente físico, de animais e de outros seres humanos. Precisa providenciar todo um leque de comodidades corporais necessárias: refúgio, calor, cama seca e meios de limpeza. A satisfação efetiva dessas necessidades corporais primárias impõe ou dita a todas culturas um certo número de aspectos fundamentais; instituições para a alimentação, ou para o aprovisionamento; instituições para o casamento e a reprodução; e organizações para a defesa e para a comodidade. As necessidades orgânicas do homem constituem os imperativos básicos que levam ao desenvolvimento da cultura, na medida em que obrigam a comunidade inteira a executar inúmeras atividades organizadas. A religião ou a magia, a manutenção da lei ou os sistemas de conhecimento e a mitologia se apresentam com regularidade tão constante em todas as culturas que é preciso concluir que são também o resultado de imperativos ou necessidades profundas. O modo cultural de satisfazer essas necessidades biológicas do organismo humano cria novas condições e, dessa forma, impõe novos imperativos culturais. Com algumas exceções, a vontade de alimento não leva o homem a um contato direto com a natureza nem o força a consumir os frutos tal como crescem na mata. Em todas as culturas, por simples que sejam, o alimento básico é preparado, cozinhado e comido em grupo definido, segundo regras específicas, e com a observância de maneiras, direitos e tabus. É geralmente obtido por meio de procedimentos mais ou menos complicados, executados pela coletividade, como agricultura, troca, ou algum outro sistema de cooperação social e de distribuição comunitária. Em tudo isso o homem depende do aparato artificialmente produzido de armas, ferramentas agrícolas, embarcações e apetrechos de pesca. Depende igualmente da cooperação organizada e dos valores econômicos e morais. Desse modo, da satisfação das necessidades fisiológicas nascem os imperativos derivados. Posto que são essencialmente meios para um fim, podem ser denominados de imperativos instrumentais da cultura. São tão indispensáveis para o aprovisionamento do homem, para a satisfação de suas necessidades alimentares, como a matéria prima do alimento e os procedimentos de seu consumo. O homem está de tal forma moldado que se ficasse sem sua organização econômica e suas ferramentas pereceria do mesmo modo que se fosse privado de seus próprios alimentos. Do ponto de vista biológico, a continuidade da raça poderia ser garantida de forma muito simples; bastaria que as pessoas copulassem, gerassem dois ou mais filhos por casal, o suficiente para assegurar que dois indivíduos sobrevivessem para cada dois que morressem. Se apenas a biologia controlasse a procriação humana, as pessoas se acasalariam segundo leis fisiológicas, que são as mesmas para todas as espécies; produziriam descendentes seguindo o curso natural da gravidez e do parto e a espécie animal homem teria uma vida familiar típica, fisiologicamente determinada. A família humana, a unidade biológica, teria então exatamente a mesma constituição em toda a humanidade. Ficaria também fora do campo da ciência da cultura, como de fato postularam muitos sociólogos, particularmente Durkheim. Mas, pelo contrário, o 11 casamento, quer dizer, o sistema de fazer corte, de fazer amor e de escolher o cônjuge é tradicionalmente determinado em todas as sociedades humanas pelo corpo de costumes culturais vigente na comunidade. Há regras que proíbem o casamento de determinadas pessoas e que prescrevem ou mesmo obriguem o casamento de outras. Há regras de castidade e regras de libertinagem. Há elementos estritamente culturais que se misturam com o impulso natural e produzem um ideal de atratividade que varia de uma sociedade ou de uma cultura para outra. Em lugar da uniformidade biologicamente determinada, existe uma enorme variedade de costumes sexuais e de formas de fazer a corte que regulam o casamento. O casamento não é de modo algum, em nenhuma cultura humana, uma simples questão de união sexual ou de coabitação de duas pessoas. É invariavelmente um contrato legal que determina o modo pelo qual o marido e a esposa devem viver juntos e as condições econômicas de sua união, tais como a cooperação nos bens, as contribuições mútuas e as contribuições dos respectivos parentes de cada cônjuge. É invariavelmente uma cerimônia pública, um assunto de interesse social, que envolve grandes grupos de pessoas e os dois atores principais. Tanto a sua dissolução como o seu estabelecimento estão sujeitos a regras tradicionalmente fixas. Nem a paternidade é uma simples relação biológica. A concepção é objeto de um rico folclore tradicional em todas as comunidades humanas e encontra seu aspecto legal nas regras que discriminam os filhos concebidos no casamento dos que nascem fora dele. A gravidez está envolvida em uma atmosfera de regras e de valores morais.De regra geral a mãe que espera um filho é obrigada a levar um modo de vida especial, rodeado de tabus, que precisa observar para o bem-estar do filho. Há, pois, uma maternidade antecipada, culturalmente estabelecida, que antecede o fato biológico. O parto é também um acontecimento profundamente modificado por procedimentos rituais, legais, mágicos e religiosos, nos quais se moldam as emoções da mãe, suas relações com o filho e as relações de ambos com o grupo social, de forma a ajustá-los a um padrão tradicional específico. Da mesma forma, o pai nunca permanece passivo ou indiferente por ocasião do parto. A tradição define exatamente as obrigações dos pais desde o início da gravidez e a forma como se dividem entre o marido e a esposa e se transferem em parte para os parentes mais distantes. O parentesco, os laços entre a criança, seus pais e parentes, nunca é um assunto deixado ao acaso. Seu estabelecimento é determinado pelo sistema legal da comunidade, que organiza segundo padrões definidos tanto as respostas emocionais como os deveres, atitudes morais e obrigações consuetudinárias. A importante distinção entre parentes matrilineares e patrilineares, o aparecimento tanto de relações mais amplas ou o parentesco classificatório, como a formação de clãs ou sibs, nos quais grandes grupos de parentes são, até certo ponto, vistos e tratados como verdadeiros parentes, constituem modificações culturais do parentesco natural. Desse modo, a procriação se transforma, nas sociedades humanas, em um grande empreendimento cultural. A necessidade racial de continuidade não é satisfeita pela simples ação dos impulsos e dos processos fisiológicos, mas pelo funcionamento de regras tradicionais associadas a um aparato da cultura material. Al‚m disso, o empreendimento da procriação parece compreender várias instituições integrantes: o cortejo, o casamento, a paternidade, o parentesco e a filiação a um clã, padronizados. Da mesma forma, o empreendimento da alimentação pode ser dividido em instituições de consumo, quer dizer, a família e o clube de homens com seu refeitório masculino; as instituições de produção, a agricultura, a caça e a pesca tribais; e 12 as instituições de distribuição, como os mercados e os dispositivos comerciais. Os impulsos funcionam na forma de ordens sociais ou culturais, que são a reinterpretação dos impulsos fisiológicos em termos de regras sociais tradicionalmente sancionadas. O ser humano começa a fazer a corte ou a cavar o solo, a fazer amor ou a ir à pesca e à caça, não porque é diretamente movido por um instinto, mas porque a rotina de sua tribo o leva a fazer essas coisas. Ao mesmo tempo a rotina tribal assegura que as necessidades fisiológicas sejam satisfeitas e que os meios culturais de satisfação ajustem a padrões semelhantes, apenas com pequenas variações de detalhes. A motivação direta das ações humanas se expressa em termos culturais e se ajusta a um padrão cultural. Mas as exigências culturais permitem sempre ao homem satisfazer suas necessidades de maneira mais ou menos direta, e, no todo, o sistema de exigências culturais de uma sociedade determinada deixa sem satisfazer pouquíssimas necessidades fisiológicas. Em muitas instituições humanas se produz um amálgama de funções. A família não é apenas uma instituição de procriação, é uma das principais instituições de alimentação e uma unidade jurídica, econômica, e muitas vezes religiosa. A família é o lugar onde se assegura a continuidade cultural através da educação. Esse amálgama de funções dentro da mesma instituição não é fortuito. A grande maioria das necessidades básicas do homem está de tal forma entrelaçada que se pode conseguir melhor a sua satisfação dentro do mesmo grupo humano e mediante um aparato combinado de cultura material. A própria fisiologia humana faz com o nascimento seja seguido da amamentação, e esta esteja inevitavelmente associada a cuidados amorosos da mãe para com o filho, que se transforma gradualmente nos primeiros passos da educação. A mãe necessidade de um companheiro do sexo masculino e o grupo de parentesco deve se transformar em uma associação tanto cooperativa como educadora. O fato de que o casamento seja uma relação econômica, educadora e procriadora influi profundamente no noivado, e este se converte em uma seleção de companheirismo, de trabalho comum e de responsabilidades comuns para toda a vida, de tal forma que o sexo precisa se harmonizar com outras exigências pessoais e culturais. Educação significa treinamento na utilização de ferramentas e de bens, no conhecimento da tradição, no manejo do poder e da responsabilidade sociais. Os pais que desenvolvem em sua prole atitudes econômicas, destrezas técnicas, obrigações morais e sociais, devem também transmitir-lhe suas posses, seu status e sua profissão. Assim, pois, a relação doméstica implica um sistema de leis de herança, de descendência e de sucessão. Fica, dessa forma, esclarecida a relação entre a necessidade cultural, um fato social total, de um lado, e os motivos individuais em que se transforma, de outro. A necessidade cultural é a massa de condições que devem ser preenchidas se a comunidade deve sobreviver e sua cultura continuar. Os motivos individuais, por outro lado, nada têm a ver com postulados tais como a continuidade da espécie ou a continuidade da cultura nem sequer com a necessidade de alimentação. Poucas pessoas, selvagens ou civilizadas, se dão conta de que existem tais necessidades gerais. O selvagem ignora ou tem apenas uma consciência vaga de que o fato do acasalamento gera as crianças e de que a comida sustenta o corpo. O que se apresenta para a consciência individual é o apetite culturalmente transformado que impele as pessoas, em certas estações, a procurar um companheiro ou, em determinadas circunstâncias, a buscar frutos silvestres, cavar a terra 13 ou ir a pesca. Os fins sociológicos nunca estão presentes na consciência dos nativos e nunca se encontrou uma legislação tribal de grande escala. Uma teoria, por exemplo, como a de Frazer relativa à origem da exogamia como um ato deliberado da lei originária é insustentável. Existe em toda a literatura antropológica uma confusão entre necessidades culturais, que encontram expressão em grandes empreendimentos ou aspectos da constituição social, e a motivação consciente, que existe como fato psicológico no mente de um membro individual da sociedade. O costume, o modo padronizado de comportamento tradicionalmente imposto aos membros de uma comunidade, pode atuar ou funcionar. O noivado, por exemplo, não é mais do que uma etapa do processo culturalmente determinado da procriação. Consiste na massa de dispositivos que permite uma escolha conjugal adequada. Dado que o contrato matrimonial varia consideravelmente de uma cultura para outra, as considerações de adequação sexual, jurídica e econômica variam também, e os mecanismos mediante os quais esses diferentes elementos se harmonizam não podem ser os mesmos. Por maior que possa ser a liberdade sexual permitida, em nenhuma sociedade humana se permite que os jovens sejam completamente indiscriminados ou promíscuos nas experiências sexuais. São conhecidos três grandes tipos de limitações: a proibição do incesto, o respeito às obrigações matrimoniais anteriores e as regras combinadas de exogamia e endogamia. A proibição do incesto, com poucas e insignificantes exceções, é universal. Se fosse possível demonstrar que o incesto é biologicamente pernicioso, seria evidente a função desse tabu universal. Mas os especialistas em hereditariedade não são unânimes nesse assunto. Não obstante, é possível demonstrar que sob o ponto de vista sociológicoa função do tabu do incesto têm grande importância. O impulso sexual, que é em geral uma força muito desordenada e socialmente destruidora, não pode se misturar com um sentimento previamente existente sem provocar nele uma mudança revolucionária. O interesse sexual é portanto, incompatível com qualquer forma de relação familiar, seja entre pais e filhos ou entre irmãos e irmãs, porque essas relações se formaram no período pre-sexual da vida humana e foram fundamentadas em necessidades fisiológicas profundas de caráter não-sexual. Se fosse permitido à paixão erótica invadir o recinto do lar, ela não só provocaria o desenvolvimento de ciúmes e de elementos de competição e desorganizaria a família, como também subverteria os laços de parentesco mais fundamentais sobre os quais se baseia o aparecimento ulterior de todas as relações sociais. Dentro de cada família só pode haver uma relação erótica e essa é a relação entre o marido e a mulher que embora construída desde o princípio a partir de elementos eróticos precisa se ajustar perfeitamente a outros componentes da cooperação doméstica. Uma sociedade que permitisse o incesto não poderia desenvolver famílias estáveis. Seria, portanto, privada do cimento mais forte do parentesco e isso, em uma sociedade primitiva, significaria a ausência de ordem social. A exogamia elimina o sexo de todo um conjunto de relações sociais, aquelas que se produzem entre os membros masculinos e femininos do mesmo clã. Posto que o clã constitui o grupo cooperativo típico, cujos membros estão unidos por um certo número de interesses e atividades jurídicas, cerimoniais e econômicas, a exogamia retirando da cooperação cotidiana um elemento demolidor e competitivo cumpre uma vez mais uma importante função cultural. A completa preservação da exclusividade sexual do casamento produz essa estabilidade relativa do casamento que é também inevitável se essa instituição não deve ser minada por ciúmes e desconfianças do galanteio 14 competitivo. O fato de que nenhuma das regras de incesto, exogamia e adultério funcione com precisão absoluta e força automática só reforça a lógica deste argumento, pois o mais importante é a exclusão da prática aberta do sexo. A fuga clandestina às regras e suas suspensões ocasionais durante as celebrações cerimoniais funcionam como válvulas e resistências de segurança contra sua severidade muitas vezes penosa. Regras tradicionais indicam as ocasiões de fazer amor, os métodos de aproximação e de galanteio, inclusive os meios para atrair e conquistar. A tradição permite também certas liberdades e até mesmo excessos, embora lhes imponha também limites rigorosos. Esses limites determinam o grau de publicidade, de promiscuidade, de indecências de palavras e obras; determinam aquilo que deve ser considerado normal e perverso. Em tudo isso, o verdadeiro motor do comportamento sexual humano não consiste em impulsos fisiológicos naturais, mas se apresenta à consciência humana sob a forma de mandamentos ditados pela tradição. A poderosa influência demolidora do sexo deve ter jogo livre de forma limitada. O principal tipo de liberdade regulada é a liberdade de copular permitida às pessoas solteiras, o que tem sido muitas vezes equivocadamente considerado como sobrevivência da promiscuidade primitiva. Para apreciar a função da licenciosidade prenupcial ela deve ser correlacionada com os fatos biológicos, com a instituição do casamento e com a vida entre pais e filhos na família. O impulso sexual que leva as pessoas a copular é extraordinariamente mais poderoso do que qualquer outro impulso. Onde o casamento é a condição indispensável para a cópula, esse impulso que supera todas a demais considerações pode levar a uniões que espiritual e fisiologicamente não são nem adequadas nem estáveis. Nas culturas mais elevadas, um treinamento moral e uma subordinação do sexo a interesses culturais mais amplos funcionam como salvaguardas gerais contra um domínio exclusivo do elemento erótico no casamento, ou então casamentos culturalmente determinados, arranjados pelos pais ou pelas famílias, asseguram a influência de fatores econômicos e culturais sobre o simples erotismo. Em certas comunidades primitivas assim como em grandes setores do campesinato europeu, o casamento de experiência como forma de assegurar a compatibilidade pessoal e também em grande parte como meio para eliminar a simples impulso sexual, funciona como uma salvaguarda da instituição do matrimônio permanente. Graças às liberdades pré- matrimoniais durante o noivado, as pessoas deixam de valorizar a simples atração do apelo erótico e, consequentemente, se tornam cada vez mais influenciadas pelas afinidades pessoais, se não há nenhuma incompatibilidade fisiológica. A função, pois, da liberdade pré-matrimonial consiste na influência sobre a escolha conjugal, que se torna deliberada, baseada na experiência e orientada por considerações mais amplas e sintéticas do que o impulso sexual cego. Portanto, a falta de castidade pré-matrimonial funciona como forma de preparação para o casamento, eliminando o impulso sexual bruto, não empírico e não educado, e fundindo esse impulso com outros em uma apreciação mais profunda da personalidade. A couvade, o ritual simbólico mediante o qual um marido imita o parto enquanto sua esposa dá à luz, não é também uma sobrevivência, mas pode ser explicada funcionalmente no seu contexto cultural. Nas idéias, costumes e arranjos sociais referentes a concepção, gravidez e parto, o fato da maternidade é culturalmente determinado apesar de sua natureza biológica. A paternidade é estabelecida de forma sim‚trica por regras, segundo as quais o 15 pai tem que observar em parte os tabus, as prescrições e as regras de conduta tradicionalmente impostas a mãe e tem também de se encarregar de certas funções associadas. O comportamento do pai por ocasião do parto é rigorosamente definido e, em todas as partes, tanto se for excluído da companhia da mãe como se for obrigado a lhe dar assistência, tanto se for considerado perigoso como indispensável para o bem-estar da mãe e da criança, o pai tem que assumir um papel definido, rigorosamente prescrito. Mais tarde o pai participa amplamente de muitas das obrigações da mãe; a imita e a substitui plenamente em muitos dos cuidados ternos que se deve à criança. A função da couvade é o estabelecimento da paternidade social pela adaptação simbólica do pai à mãe. Longe de ser uma sobrevivência ou um traço morto e inútil, a couvade é simplesmente um dos atos rituais criativos que se encontra na base da instituição da família. Sua natureza pode ser entendida não pelo seu isolamento, nem pela ênfase no seu caráter singular ou pela separação de seu contexto natural, mas, pelo contrário, apenas pela sua contextualização nas instituições a que pertence, sendo compreendido como parte integrante da instituição da família. As terminologias classificatórias são explicadas como se compreendessem ao mesmo tempo um "plano inteligente" (segundo palavras de Morgan) para a classificação dos parentes. Na teoria de Morgan se supunha que essa classificação indicasse com precisão quase matemática os limites da paternidade potencial. Segundo teorias mais recentes, sobretudo a de Rivers, as terminologias classificatórias foram em algum momento a manifestação clara e real de matrimônios anômalos. Qualquer que seja a variação das diferentes teorias, o fato das terminologias classificatórias tem sido fonte de uma torrente de especulações sobre as etapas da evolução do casamento, sobre as uniões anômalas, sobre a promiscuidade e a gerontocracia primitiva, sobre o clã ou qualquer outro empreendimento procriativocomunitário que em uma ou outra etapa tenha ocupado o lugar da família. Não obstante, foram poucos os que pesquisaram seriamente a função atual dos termos classificatórios. McLennan sugeriu que poderiam ser simplesmente uma forma educada de tratamento e nisso foi seguido por alguns escritores. Mas uma vez que essas nomenclaturas contam com uma adesão muito rígida e uma vez que, como mostrou Rivers, aparecem associadas a status sociais determinados, a explicação de McLennan deve ser descartada. As terminologias classificatórias, não entanto, cumprem uma função muito importante e muito específica que só pode ser apreciada a partir de um estudo cuidadoso de como os termos adquirem significado na história de vida de um membro da tribo. O primeiro significado que a criança descobre é sempre individual. Baseia-se nas relações pessoais com o pai e a mãe, com os irmãos e irmãs. Antes de qualquer outro desenvolvimento lingüístico, se adquire sempre um completo cabedal de termos familiares com significados individuais bem determinados. Logo tem lugar, porém, uma série de extensões do significado. As palavras pai e mãe se aplicam primeiro às irmãs da mãe e aos irmãos do pai, respectivamente, mas se aplicam a essas pessoas de maneira claramente metafórica, quer dizer, com um significado ampliado e diferente que de forma alguma se contrapõe ou encobre o significado original quando aplicado aos pais verdadeiros. A extensão acontece porque, em uma sociedade primitiva, os parentes mais próximos têm obrigação de atuar como substitutos dos pais, de substituir os progenitores das crianças em caso de morte ou ausência deles e em todas as oportunidades de compartilhar amplamente de suas obrigações. Contudo, enquanto e até que não haja uma 16 adoção completa, os parentes substitutos não tomam o lugar dos pais verdadeiros e de forma alguma se confundem ou se identificam com eles. Eles são apenas parcialmente iguais. O ato de dar nome às pessoas é sempre um ato semilegal, especialmente nas comunidades primitivas. Assim como nas cerimônias de adoção se imita o parto verdadeiro, na couvade se simula o ato de dar à luz, no ritual da irmandade de sangue há ficções tais como a troca de sangue, no casamento ocorre uma ligação, uma união, uma junção simbólica ou o ato de comer juntos ou às vezes de aparecer juntos em público, assim aqui uma relação derivada, parcialmente estabelecida, se caracteriza pelo ato da imitação verbal no tratamento. A função do uso da terminologia classificatória é pois, o estabelecimento de reivindicações legais de parentesco substituto pela metáfora da extensão nos termos de parentesco. A descoberta da função da terminologia classificatória levanta um conjunto de novos problemas: o estudo da situação inicial do parentesco, das extensões do significado do parentesco, da responsabilização parcial das obrigações de parentesco e das mudanças produzidas por tais extensões nas relações anteriores. Esses são problemas empíricos que não levam à novas especulações, mas a estudos mais completos dos fatos no campo. Ao mesmo tempo, o descoberta da função do uso da terminologia classificatória em termos da realidade sociológica atual derruba as razões sobre as quais se baseavam séries inteiras de especulações segundo as quais as nomenclaturas selvagens foram explicadas como sobrevivências de etapas anteriores do matrimônio humano. O aparato da domesticidade influencia o aspecto moral ou espiritual da vida familiar. Seu substrato material se compõe dos alojamentos, dos arranjos internos, dos apetrechos da cozinha, das ferramentas domésticas e também do modo da residência, quer dizer, da forma como se repartem os alojamentos no terreno. Esse substrato material se incorpora da forma mais sutil na textura da vida familiar e influencia profundamente seus aspectos legais, econômicos e morais. A constituição da família característica de uma cultura está profundamente associada ao aspecto material do interior do alojamento, quer se trate de um arranha-céu ou de um refúgio, de um apartamento suntuoso ou de uma choupana. Há uma escala infinita de associações pessoais íntimas com a residência, desde a infância e a adolescência, passando pela puberdade e o despertar das emoções, pela época do noivado e do início da vida conjugal, até a velhice. As conseqüências sentimentais e românticas desses fatos são reconhecidas, na cultura contemporânea, na preservação e no culto dos lugares de nascimento e das casas dos grandes homens. Mas embora se conheça grande parte da tecnologia da construção de lares e inclusive da estrutura das casas em diferentes culturas e embora se conheça também muito a respeito da constituição da família, poucos estudos se preocupam com a relação entre a forma de alojamento e a forma dos arranjos domésticos, de um lado, e a constituição da família, de outro, e sem dúvida existem tais relações. Um lar isolado diante de todos os demais produz uma família fortemente unida, auto-suficiente, econômica e moralmente independente. Casas auto-suficiente reunidas em comunidades de aldeia permitem uma textura muito mais estreita da rede de parentesco e um alcance maior da cooperação local. As casas compostas de lares reunidos, especialmente quando estão juntas sob um único proprietário, são a base necessária da família extensa ou da Großfamilie. As grandes casas comunitárias onde apenas uma lareira separada ou uma repartição distingue as várias famílias componentes contribuem para um sistema de parentesco ainda mais unido. Por último, a existência de clubes especiais, onde dormem, comem e cozinham 17 juntos os homens, os solteiros, ou as moças não casadas da comunidade, se correlaciona evidentemente com a estrutura geral da comunidade na qual o parentesco se complica com os grupos de idade, as sociedades secretas e outras associações masculinas ou femininas e geralmente se correlaciona também com a presença ou ausência de liberdade sexual. Quanto mais se estuda a correlação entre a sociologia e a forma dos assentamentos e alojamentos melhor se compreende cada uma dessas partes. Enquanto que, por um lado, a forma dos arranjos materiais ganha seu significado próprio a partir de seu contexto sociológico, por outro lado, toda a determinação objetiva dos fenômenos sociais e morais pode ser melhor definida e descrita em termos do substrato material, dado que ele modela e influencia a vida social e espiritual de uma cultura. Os arranjos do interior da casa mostram também a necessidade do estudo e da correlação paralela do material e do espiritual. O mobiliário pobre, a lareira, os bancos de dormir, as esteiras e as redes de uma choça indígena mostram simplicidade e até mesmo pobreza de forma que pela qualidade e profundidade da correlação sociológica e espiritual se torna, entretanto, imensamente significativa. A lareira, por exemplo, muda pouco de forma. Sob o ponto de vista meramente técnico bastam uns poucos conhecimentos sobre como se colocam as pedras, como se elimina a fumaça, como se arrumam os suportes para cozinhar, como se utiliza o fogo para aquecer ou iluminar o interior. Mas mesmo ao expor esses detalhes simples as pessoas se sentem atraídas para o estudo do emprego característico do fogo, a identificação das atitudes e emoções humanas; em resumo, para a análise dos costumes sociais e morais que se formam em torno da lareira. Dado que a lareira é o centro da vida doméstica, o modo como é utilizada, os costumes para acendê-la, alimentá-la e apagá-la, a mitologia e a significação simbólica da lareira, são dados indispensáveis para o estudo da domesticidade e de seu lugar na cultura. Nas ilhas de Trobriand, por exemplo, a lareiraprecisa ser localizada no centro, para que a bruxaria, que é ativa principalmente através da fumaça, não passe de fora para dentro. A lareira é uma propriedade exclusiva das mulheres. Cozinhar é até certo ponto, tabu para os homens cuja proximidade contamina os alimentos vegetais não cozidos. Por essa razão existe nas aldeias uma divisão entre armazéns e casas de cozinhar. Tudo isso transforma o simples arranjo material de uma casa em uma realidade social, moral, jurídica e religiosa. O disposição dos bancos de dormir se correlaciona igualmente com o lado sexual e aparentado da vida conjugal, com o tabu do incesto e a necessidade de casas para solteiros. O acesso à casa se correlaciona com a privacidade da vida familiar, com a propriedade e a moralidade sexual. Onde quer que a forma se torna cada vez mais significativa melhor se compreende a relação entre as realidades sociológicas e seus substratos materiais. As idéias, os costumes e as leis codificam e determinam os arranjos materiais enquanto que estes últimos são a principal aparelhagem para moldar as novas gerações nos padrões tradicionais típicos de sua sociedade. As necessidades biológicas primárias de uma comunidade, quer dizer, as condições sob as quais uma cultura pode prosperar, desenvolver e continuar, são satisfeitas de uma forma indireta que impõe exigências secundárias ou derivadas. Essas exigências podem ser chamadas de imperativos instrumentais da cultura. O conjunto inteiro da cultura material precisa ser produzido, mantido, distribuído e utilizado. Em toda cultura, portanto, existe um sistema de regras ou mandamentos tradicionais que 18 determina as atividades, os usos e os valores pelos quais a comida é produzida, armazenada e repartida, os bens são manufaturados, possuídos e utilizados, as ferramentas são preparadas e incorporadas na produção. A organização econômica é indispensável para qualquer comunidade e a cultura precisa estar sempre em contato com esse substrato material. Cooperação regulada existe até mesmo nas atividades mais simples como a coleta de alimentos entre os primitivos mais inferiores . Precisam, por vezes, providenciar alimento para grandes reuniões tribais e isso exige um complicado sistema de abastecimento. Há divisão do trabalho dentro da família e a cooperação das famílias no seio da comunidade local nunca é um simples assunto econômico. A aplicação do princípio utilitário da produção está estreitamente ligada com atividades artísticas, mágicas, religiosas e cerimoniais. A propriedade primitiva da terra, dos objetos pessoais e dos diferentes meios de produção é muito mais complicada do que supunha a velha antropologia e o estudo da economia primitiva está desenvolvendo um considerável interesse por aquilo que se poderia denominar de primeiras formas do direito civil. Cooperação significa sacrifício, esforço, subordinação das inclinações e dos interesses particulares a fins comuns da comunidade, a existência de coação social. A vida em comum oferece muitas tentações, especialmente para os impulsos do sexo, e por isso é inevitável um sistema de proibições e repressões assim como de prescrições. A produção econômica fornece ao homem coisas valiosas e desejáveis, que não são indiscriminadamente acessíveis para uso e o gozo de todos, e são desenvolvidas e impostas regras de propriedade e de posse. A organização tem como conseqüência principalmente diferenças de hierarquia, de liderança, de status e de influência. A hierarquia provoca as ambições sociais e exige salvaguardas que são efetivamente aprovadas. Todo esse conjunto de problemas tem sido notadamente omitido porque a lei e suas sanções na sociedade primitiva estão muito raramente incorporadas em instituições especiais. A legislação, as sanções legais e a aplicação efetiva das leis tribais são muito freqüentemente colocadas em prática como subprodutos de outras atividades. A manutenção da lei é geralmente uma das funções secundárias ou derivadas de instituições como a família, a casa, a comunidade local e a organização tribal. Mas embora não estejam assentadas em um corpo específico de leis codificadas nem muito menos sejam aplicadas por um grupo de pessoas especialmente organizado, as sanções da lei primitiva funcionam todavia de forma excepcional e desenvolvem traços característicos nas instituições a que pertencem. Portanto, é absolutamente incorreto afirmar, como se tem feito com freqüência, que a lei primitiva funciona automaticamente e o selvagem é por natureza um cidadão submisso à lei. As regras de conduta devem ser transmitidas a cada nova geração mediante a educação; quer dizer, providências devem ser tomadas para a continuidade da cultura através da instrumentalidade da tradição. A primeira condição é a existência de sinais simbólicos através dos quais a experiência acumulada pode ser transmitida de uma geração para outra. A linguagem é o tipo mais importante de desses sinais simbólicos. A linguagem não contem a experiência; é antes um sistema de hábitos sonoros que acompanha o desenvolvimento da experiência cultural em toda comunidade humana e se converte em parte integrante dessa experiência cultural. Nas culturas primitivas a tradição se mantém oralmente. A fala de uma tribo primitiva está cheia de ditos, máximas, regras e reflexões que transmitem de forma estereotipada a sabedoria de uma geração para outra. Os contos populares e a mitologia formam um outro 19 departamento da tradição oral. Nas culturas mais elevadas a escrita ajuda a transmitir a tradição oral. O não se ter dado conta de que a linguagem é parte integrante da cultura levou a paralelismos vagos, metafóricos e equivocados entre as sociedades animais e a cultura humana, que muito prejudicaram a sociologia. Se se compreendesse claramente que a cultura não existe sem a linguagem, o estudo das comunidades animais deixaria de fazer parte da sociologia e as adaptações dos animais à natureza se distinguiriam claramente da cultura. Na sociedade primitiva, a educação raramente implica instituições específicas. A família, o grupo de parentes consangüíneos, a comunidade local, os grupos de idade, as sociedades secretas, os retiros de iniciação, os grupos profissionais ou corporações de técnicos, de feiticeiros ou religiosos, são as instituições que correspondem, em algumas de suas funções derivadas, às escolas nas culturas mais avançadas. Os três imperativos instrumentais, a organização econômica, a lei e a educação, não esgotam tudo o que a cultura produz para a satisfação indireta das necessidades humanas. A magia e a religião, o conhecimento e a arte, fazem parte do esquema universal que subjaz a todas as culturas concretas e que se pode dizer nascem em resposta a um imperativo integrador ou sintético da cultura humana. A despeito das várias teorias sobre o caráter específico, não empírico e prelógico da mentalidade primitiva, não cabe dúvida alguma de que o homem, tão logo tenha adquirido o domínio do meio ambiente pelo uso de ferramentas, e tão tenha aparecido a linguagem, deve ter existido também um conhecimento primitivo de caráter essencialmente científico. Nenhuma cultura poderia sobreviver se suas artes e ofícios, suas armas e objetivos econômicos estivessem baseadas em concepções e doutrinas místicas e não empíricas. Quando a cultura humana é abordada pelo lado pragmático e tecnológico, se descobre que o homem primitivo é capaz de observação correta, de generalizações perfeitas e de raciocínio lógico em todos aqueles assuntos que afetam suas atividades normais e se encontram na base de sua produção. O conhecimento é pois, uma necessidade completamente derivada da cultura. Contudo, é maisdo que um meio para um fim e não pode, portanto, ser classificado entre os imperativos instrumentais. Seu lugar na cultura, sua função, é ligeiramente diferente daquela da produção, da lei ou da educação. Os sistemas de conhecimento servem para interligar diferentes tipos de comportamento; transmitem os resultados das experiências passadas para os empreendimentos futuros e reúnem os elementos da experiência humana e permitem que o homem coordene e integre suas atividades. O conhecimento é uma atitude mental, uma diáteses do sistema nervoso que permite ao homem levar a cabo o trabalho que a cultura o leva a executar. Sua função consiste em organizar e integrar as atividades indispensáveis da cultura. A personificação material do conhecimento se encontra na massa de artes e ofícios, de procedimentos técnicos e de regras de artesanato. Mais especificamente, nas culturas mais primitivas e certamente nas mais elevadas, existem ferramentas especiais do conhecimento: diagramas, modelos topográficos, medidas, ajudas para a orientar ou calcular. A conexão entre o pensamento indígena e a linguagem levanta importantes problemas de função. A abstração lingüística, as categorias de espaço, tempo e relação, e os meios lógicos para expressar a concatenação das idéias são pontos extraordinariamente 20 importantes, e o estudo de como funciona o pensamento através da linguagem em qualquer cultura é ainda um terreno virgem da lingüística cultural. Como funciona a linguagem primitiva, onde está incorporada, como se relaciona com a organização social, com a religião e a magia primitivas, constituem problemas importantes da antropologia funcional. Pela própria previsão e prospectiva que possibilita, a função integradora do conhecimento cria novas necessidades, quer dizer, impõe novos imperativos. O conhecimento abre ao homem a possibilidade de planejar antecipadamente, de abarcar vastos conjuntos de tempo e espaço; oferece um vasto campo de variações para suas esperanças e desejos. Por mais que o conhecimento e a ciência ajudem o homem, possibilitando-lhe alcançar o que deseja, são, entretanto, absolutamente incapazes de controlar a sorte, de eliminar os imprevistos, de adivinhar as mudanças inesperadas nos acontecimentos naturais ou então de fazer com que o trabalho manual do homem mereça confiança e seja adequado a todas as exigências práticas. Nesse campo, muito mais prático, concreto e circunscrito do que o da religião, se desenvolve um tipo especial de atividades rituais que a antropologia denomina globalmente de magia. O mais imprevisto de todos os empreendimentos conhecidos pelo homem primitivo é a navegação. Para preparar suas embarcações e traçar seus planos o selvagem se volta para a sua ciência. O trabalho cuidadoso assim como o esforço inteligentemente organizado da construção e da navegação testemunham a confiança do selvagem na ciência e na submissão a ela. Mas ventos adversos ou absoluta falta de vento, mau tempo, correntes marinhas e arrecifes estão constantemente prontos para desmoronar seus melhores planos e mais cuidadosos preparativos. Precisa admitir que nem seus conhecimentos nem seus esforços mais cuidadosos são garantia de êxito. Alguma coisa de inexplicável costuma aparecer e frustrar as suas previsões. Mas embora inexplicável essa coisa parece ter um significado profundo e atuar ou agir com alguma intenção. A seqüência, a concatenação significativa dos acontecimentos parece abrigar alguma coerência lógica interna. O homem sente que pode fazer alguma coisa para combater esse elemento ou força misteriosa, para ajudar ou favorecer sua sorte. Existem sempre sistemas de superstição, de ritual mais ou menos desenvolvido, associados à navegação e nas comunidades primitivas a magia das embarcações é altamente desenvolvida. Aqueles que sabem fazer bem alguma boa magia demonstram em virtude disso coragem e confiança. Quando se utilizam as canoas para a pesca, os imprevistos e a boa ou má sorte podem se referir não apenas ao transporte mas também ao aparecimento dos peixes e às condições de sua captura. No comércio, seja marítimo ou entre vizinhos próximos, a sorte pode favorecer ou atrapalhar os objetivos e os desejos dos homens. Em conseqüência disso, se verifica um forte desenvolvimento tanto da magia da pesca como da magia do comércio. Da mesma forma na guerra, o homem, por mais primitivo que seja, sabe que as armas bem feitas de ataque e defesa, a estratégia, a força dos números e o vigor dos indivíduos garantem a vitória. Contudo, apesar de tudo isso, o imprevisto e o contingência podem levar até mesmo o mais fraco à vitória se o combate for travado sob a proteção da noite, se for possível as emboscadas, se as condições do encontro forem abertamente favoráveis a um grupo em detrimento do outro. A magia é utilizada como algo que, estando fora e acima do equipamento e da força do homem, o ajuda a dominar a 21 contingência e a enganar a sorte. Também no amor um tipo misterioso, inexplicável de êxito ou até mesmo uma predestinação para o fracasso parece estar acompanhado de alguma força independente da atração manifesta e dos planos e preparativos mais bem executados. A magia aparece para assegurar algo que se encontra acima e além das realidades visíveis e explicáveis. O homem primitivo para seu bem-estar depende de tal forma de suas atividades econômicas que sente a má sorte de modo muito doloroso e direto. Entre os povos que dependem de seus campos ou culturas o que pode ser chamado de conhecimento agrícola é invariavelmente bem desenvolvido. Os indígenas conhecem as propriedades do solo, a necessidade de uma limpeza cuidadosa do mato e das ervas daninhas, da fertilização com cinza e da semeadura adequada. Mas acontecem calamidades por mais bem escolhida que seja a localização e por mais bem trabalhadas que sejam as culturas. Secas ou inundações aparecendo nos momentos mais inapropriados destroem completamente a safra ou então, as doenças, os insetos ou os animais silvestres a diminuem. Ou em algum ano, quando o homem tem consciência de que faz jus apenas a uma pequena colheita, tudo corre tão acertada e prosperamente que rendimentos inesperados premeiam o agricultor sem m‚ritos. Os elementos ameaçadores da chuva e do sol, as pragas e a fertilidade parecem controlados por forças que se encontram para além da experiência e do conhecimento humano ordinários, e o homem recorre, mais uma vez, à magia. Em todos esses exemplos aparecem os mesmos fatores. A experiência e a lógica ensinam ao homem que, dentro de determinados limites, o conhecimento é soberano; mas que além deles não se pode fazer nada com esforços práticos de fundamento racional. Contudo, o homem se rebela contra a inação porque, mesmo se dando conta de sua impotência, se sente fortemente impelido à ação por intenso desejo e fortes emoções. Nem a inação é sempre possível. Uma vez que tenha embarcado para uma viagem longa ou se encontre em meio a um combate ou a meio caminho do ciclo de desenvolvimento de uma cultura, o indígena trata de colocar sua frágil canoa em melhores condições de navegar com encantamentos ou de afastar gafanhotos e animais selvagens com rituais ou de vencer seus inimigos com dança. A magia pode mudar de forma, variar de fundamento, mas existe em todos os lugares. Nas sociedades modernas, a magia está associada com o ascender um terceiro cigarro com o mesmo palito de fósforo, com sal derrubado e a necessidade de atirá-lo por cima do ombro esquerdo, com os espelhos quebrados, com o passar por debaixo de uma escada, com a lua nova vista através de um cristal ou na mão esquerda, com o número treze ou com a sexta feira.