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Entrelugares investig participativa

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Investigação participativa, um género menor? 
 
José B. Duarte1 
 
 
Introdução 
 
 
 
Einstein afirmou algures: “O meu lápis é mais inteligente do que eu”. O que 
é expresso, ou ainda melhor, o que é escrito, tornou-se um objecto que 
podemos criticar e investigar à procura de erros” (Popper, 2001, p.61). 
 
 
Os proponentes de um tipo de investigação, muito discutida actualmente, que 
designam investigação-acção ou, no Brasil, pesquisa-acção, para a qual advogarei a 
designação de investigação participativa, afirmam em geral que esse tipo de investigação 
é muito diferente da pesquisa tradicional. Procurarei argumentar no sentido de que essa 
pesquisa é muito interessante, por exemplo, em termos de desenvolvimento da 
profissionalidade docente (porque possibilita, entre outras finalidades, a análise da 
própria prática profissional com registros adequados). Por outro lado, defenderei que a 
sua fundamentação epistemológica é essencialmente análoga à da outra pesquisa social 
ou mesmo da investigação de base físico-natural, no que diz respeito à questão crucial 
da subjectividade/objectividade. 
 Basear-me-ei, sobretudo em Popper, particularmente na sua conferência intitulada 
A lógica das ciências sociais (1992). Essa obra parece mostrar, da parte de Popper, mais 
conhecido pela sua atenção às ciências físico-naturais, um interesse por problemáticas 
muito próximas das propostas pelos seguidores da investigação-acção, pois este 
epistemólogo aí afirma: 
 
À semelhança de todas as outras ciências, também as ciências sociais são 
bem ou ma sucedidas (...) em estreita relação com a importância ou o 
interesse dos problemas em causa (...). Tais problemas não devem, de 
modo algum, ser sempre de ordem teórica. Alguns problemas graves, de 
ordem prática, como o problema da miséria, do analfabetismo, da 
repressão política e da instabilidade legal, constituíram pontos de partida 
importantes para a investigação sociológica (POPPER, 1992, p.72). 
 
 Tal problemática tem clara analogia com a apresentada por Reason e Bradbury 
(2001, p.91) num conhecido manual sobre investigação-acção quando referem, como 
dimensão política dessa investigação, a de “afirmar a importância de libertação das vozes 
emudecidas dos oprimidos pelas estruturas de classe e pelo neo-colonialismo, pela 
pobreza, sexismo, racismo e homofobia”. Os autores declaram ainda que a investigação-
acção “procura colocar em conjunto a acção e a reflexão, a teoria e a prática, em 
 
1 Doutor em Educação pela Universidade de Nantes, França. Professor associado na Universidade Lusófona de 
Lisboa. E-mail: j.b.duarte@netcabo.pt 
 
participação com outros, na procura de soluções práticas para problemas de natureza 
premente para as pessoas e mais genericamente da prosperidade das pessoas 
individualmente e das suas comunidades”. (REASON & BRADBURY, 2001, p. 91) 
Como vimos, Popper aceita a investigação de problemas práticos ao lado dos 
problemas teóricos, mas, quanto à acção e reflexão, alguns autores insistem em que 
haverá grandes diferenças da investigação-acção em relação à ciência clássica, 
argumentando que a investigação-acção funciona em processos cíclicos, onde a mudança 
e a compreensão podem ser procuradas ao mesmo tempo, com a acção e a reflexão 
crítica a tomarem lugar alternadamente, pois a reflexão deve rever a acção anterior e 
planificar a acção seguinte. 
Ora a ciência em geral não parece muito diferente na visão de Popper (1992, 
p.39) que declara: “O método das ciências naturais é a procura conscienciosa de erros e 
sua correcção através de críticas conscienciosas”. E conclui: “Idealmente tais críticas 
devem ser impessoais e dirigidas somente para as teorias ou hipóteses em questão”. 
Assim essa reflexão e as inflexões em qualquer momento da pesquisa devem ser 
confrontadas com novas hipóteses locais, mas enquadrando-se em perspectivas teóricas 
mais vastas – o que parece aplicar-se também à investigação-acção na descrição 
evocada atrás com base nas propostas dos seus teorizadores. 
Mas parece-me fundamental a dimensão participativa como caracterização deste 
tipo de pesquisa, dimensão acima sublinhada por Reason e Bradbury, e adiante incluirei 
razões por que parece preferível a designação de investigação participativa. Entre essas 
razões vejamos a apresentada por Falls-Borda (2001, p.30) ao propor que, nessa 
investigação (participatory research, no original), tanto os investigadores como as 
pessoas investigadas são consideradas, não apenas clientes ou objectos, mas como 
“pessoas. que-.pensam-e-sentem (sentipensantes), cujas diversas visões sobre a 
experiência partilhada da vida devem ser juntamente tomadas em conta”. Como apoio, o 
autor evoca o Congresso Mundial de Investigação Acção realizado em 1977 na Colômbia: 
“a investigação participativa foi então definida como uma vivência necessária à realização 
do progresso e da democracia, um complexo de atitudes e valores que dariam sentido à 
nossa praxis no terreno” (FALLS-BORDA, 2001, p.31) 
 
Investigação e prática reflexiva 
 
 Ao discutir a integração da pesquisa participativa na grande corrente da 
investigação, a presente comunicação procura particularmente analisar a validade 
epistemológica da pesquisa feita pelos professores sobre o registro das próprias aulas 
(ou de outros profissionais, sobre as suas práticas), ao serviço da sua identidade e 
profissionalidade e, também, da produção de saberes. 
Ora um autor ligado à epistemologia da prática reflexiva, Schön (1992, p.90), diz 
que “não é suficiente perguntar aos professores o que fazem, porque entre as acções e 
as palavras há por vezes grandes divergências”. E conclui: “Temos de chegar ao que os 
professores fazem através da observação directa e registrada”. 
Mas outro autor ligado também à corrente da prática reflexiva, Zeichner (2001, 
p.276), menciona vários movimentos envolvendo professores do ensino elementar e 
secundário no estudo da sua prática e também uma crescente tradição de “estudo 
pessoal” (self-study) em instituições de ensino superior. Estes estudos focam assim o 
“domínio imediato da aula” e incluem, entre outras, as seguintes perguntas: “Como 
posso eu promover melhores discussões na sala de aula e ter um ensino mais centrado 
no aluno? (...) Oriento as minhas aulas de modo a que os estudantes se sintam livres 
para exprimir opiniões diferentes e mesmo discordar de mim?” (ZEICHNER, 2001, 
p.277). 
Sublinhe-se que esses estudos representam nos termos de Zeichner (2001, 
p.275) “a rejeição de um modo de desenvolvimento curricular baseado em normas ou 
objectivos” em favor de “uma mudança curricular como um processo dependente das 
capacidades de reflexão dos professores”, ou seja não uma mera “aplicação da teoria”, 
mas “uma geração de teoria com base nas tentativas para mudar a prática curricular nas 
escolas”. O autor indica como motivação geral destes estudos: “entender melhor e 
melhorar o ensino de cada um e os contextos em que o ensino é enquadrado” mas uma 
outra motivação é a de “produzir conhecimento que será útil a outros”. O que nos leva à 
seguinte reflexão. 
 
Observação participante e observação participada 
 
A observação de aulas de outros professores permite um natural distanciamento 
dos fenômenos, necessário à análise. Mas a reflexão sobre as próprias aulas, com base 
em mediações ou registros adequados, contém em maior grau a condição necessária à 
compreensão – a participação – que na observação das aulas de outros é também 
necessária através da observação participante. 
Por outras palavras, o tipo de pesquisa em que um participante se torna 
observador da sua própria práticapõe os problemas da subjectividade ou implicação. Mas 
essa subjectividade é da mesma natureza, quer na observação participante mais usual, 
em que o observador se torna participante para poder compreender as situações, quer 
quando o interveniente se torna observador da sua própria actividade através de 
registros magnéticos. Aqui tratar-se-á de observação participada, na terminologia de 
Estrela (1986) e a investigação poderá incluir-se na corrente designada por pesquisa 
participativa, pela própria participação dos sujeitos inquiridos, questão a que voltarei. No 
esquema seguinte alinham-se essas e outras vantagens e desvantagens dos dois tipos de 
pesquisa: 
 
A observação da actividade de outros O registro/análise da própria 
actividade 
 
- tem de ser participante para que haja 
compreensão; 
- permite um maior distanciamento, 
necessário à análise; 
 
- provoca uma menor “naturalidade” 
 
 
- contém em maior grau a condição ne- 
cessária à compreensão, a 
participação; 
- implica menor distanciamento, 
compen-sável com quadros teóricos e 
registros que permitam a crítica dos 
leitores; 
- permite maior “naturalidade” 
 
 Como se depreende, a grande desvantagem da análise dos registros da própria 
actividade é a de um menor distanciamento, que leva essa análise a poder ser apontada 
como justificação daquilo que cada um faz. Mas essa desvantagem pode ser contrariada, 
por um lado, pelos quadros teóricos que contextualizam e problematizam a situação 
analisada e, por outro lado, pela cooperação que os pares ou leitores podem fazer na 
análise desses registros. E num trabalho acadêmico esse par ou leitor é o orientador, 
cuja crítica constitui um fundamental momento de objectivação da análise feita pelo 
professor-investigador. 
Sistematizando as diferentes exigências para um trabalho sobre a própria aula, 
adaptemos uma proposta de Peyronie (1992, p.68): 
 
Dimensões da implicação: interrogação sobre as dimensões sociais, relacionais e 
afectivas em jogo. 
Referências teóricas: apoio na contextualização dos problemas, na construção de 
hipóteses e na leitura dos dados. 
Mediações: registro-transcrição dos diálogos da aula e portfolio das produções 
escritas, a permitir distanciamento e revisão das análises. 
Mediações: registro-transcrição dos diálogos da aula e portfolio das produções 
escritas, a permitir distanciamento e revisão das análises. 
 
 
 
Uma reflexão epistemológica 
 
O tipo de investigação atrás proposto e as correntes de pesquisa evocados no 
começo desta comunicação são frequentemente incluídos sob a designação de 
investigação-acção. Aduzi então a preferência de Falls-Borda pela designação de 
investigação participativa. Mas a designação de investgação-acção não é também aceite 
por outros prestigiados autores com o argumento de que não se trata de uma forma 
distinta de pesquisa e que deve ser julgada segundo os critérios gerais da pesquisa 
compreensiva ou interpretativa (Mialaret, 1990; Huberman, 1996). Vejamos alguma 
reflexão sobre esta questão. 
Popper (1991, p.106) considera como subjectivo ou pessoal o saber mesmo do 
“físico mais douto” e saber em sentido objectivo o “conteúdo das teorias, hipóteses ou 
conjecturas”. Noutra obra declara que: “a objectividade da ciência não é uma questão 
individual dos diversos cientistas, mas antes uma questão social da sua crítica recíproca” 
(POPPER, 1992, p.78). Assim a objectividade de uma pesquisa advém do apoio em 
teorias na medida em que estas são criticadas e postas à prova por outros (ou seja, os 
pares, leitores, orientadores, júris). A alteridade como garantia de objectividade, exigida 
por alguns quanto à investigação (observar outros e não a própria actividade), depende 
assim não da pesquisa mas sim da crítica da pesquisa. 
Sobre o problema de saber em que medida um actor pode fazer ou colaborar 
numa pesquisa, lembremos uma tipologia de Gold e Junker quanto ao papel do 
observador: 1) exclusivamente observador; 2) observador como participante; 3) 
participante como observador; 4) exclusivamente participante (ATKINSON e 
HAMMERSLEY, 1998, p.111). Para lá da observação distanciada das pesquisas de tipo 1, 
a participação torna-se necessária à compreensão das situações (tipos de pesquisa 2 e 3) 
com o conseqüente problema da implicação “passa-se da não-implicação à implicação a 
partir do momento em que o investigador faz parte da situação e não pode ser de outra 
maneira”. (MIALARET, 1990, p.3). 
Reflectindo sobre as dimensões da implicação e sobre a subjectividade essencial 
de um projecto de pesquisa em termos de Popper, como vimos, parece suficiente o 
conceito de observação participante como base epistemológica quer da observação das 
aulas de outrem, quer das próprias aulas. A grande linha epistemológica comum a esses 
dois tipos de investigação será assim a da antropologia e etnografia. A designação de 
pesquisa participativa (REASON e BRADBURY, 2001) ou de investigação-acção deverão 
assim ser entendidas como caso-limite da observação participante. Mas a designação de 
investigação participativa parece mais aceitável que a de investigação-acção ou a 
equivalente brasileira pesquisa-acção pois, como diz Mialaret (1990), exceptuando 
objectos afastados, caso da astronomia, a pesquisa “supõe um mínimo de acção sobre o 
objecto”, na física, na química, na biologia. O estudo dos registros das participações orais 
e escritas dos alunos pelo professor-investigador situa-se assim no terreno da pesquisa 
participante, na tradição compreensivo-descritiva, na forma idiográfica ou estudo de caso 
(YIN, 2000). 
Em suma, o que está fundamentalmente em causa numa pesquisa é a sua 
credibilidade, directamente dependente de uma análise situacional que se torne 
compreensivo-objectiva em termos de Popper (1992), isto é, que descreva os objectivos 
dos intervenientes de modo a permitir ao leitor, com base na sua própria experiência, a 
ver como realizável a situação descrita e, concluamos, a poder generalizá-la a outros 
contextos. Outro critério fundamental de validação deste tipo de pesquisa, como o de 
qualquer outra, é o da fiabilidade, relacionada com a enunciação das orientações teóricas 
e epistemológicas adoptadas e da sua influência na escolha dos tipos de dados e dos 
instrumentos de análise (POURTOIS e DESMET, 1988). 
 Noutros termos, o que está sempre em causa, e também numa pesquisa 
implicada ou participante, é que a pesquisa se oriente por um problema-pergunta cujo 
sentido leva à escolha de quadros teóricos com que se vai interpretar o problema e 
tentar encontrar um caminho para resolvê-lo. Constitui-se assim uma problemática que 
orientará todo o processo de pesquisa, incluindo os instrumentos com que se vão coligir 
e analisar os dados, numa procura de rigor que permita ao leitor poder, com a sua 
análise do processo e dos dados, ajuizar da validade da pesquisa. 
Um outro aspecto a ter em conta é o da transformação social, associada por 
alguns autores à investigação-acção. Sobre isso, evoquemos Torres (Morrow e Torres, 
1997), nas suas lições na Universidade Lusófona, quando associou entre si dois princípios 
fundamentais para a acção pedagógica: “o professor é militante de justiça social” e “o 
professor é investigador da sala de aula”. Esses princípios exprimem a pertinência da 
associação professor/investigador mas por outro lado mostram dois planos distintos: 
- procurar na informação teórica apoio para os problemas de aprendizagem dos 
alunos; 
- procurar constatar, pela investigação, de que modo as tentativas inovadoras 
resolvem os problemas encontrados. 
Assim, uma coisa é a acção pedagógica, outracoisa é a investigação que se faz 
sobre ela – mesmo que professor e investigador sejam a mesma pessoa - porque a 
objectivação proporcionada pela teoria e a alteridade dos pares permitem distanciar os 
dois planos, o da acção e o da pesquisa. 
Mas concluamos que o registro dos diálogos com os próprios alunos e a análise 
das suas formulações e ensaios à luz de teorias orientadoras, poderão dar um importante 
contributo a uma acção pedagógica (caso, por exemplo, da pedagogia diferenciada) que 
se pretende transformadora da escola e da sociedade. 
 
Registro das próprias aulas e profissionalidade 
 
A afirmação de Einstein em epígrafe a esta comunicação leva-nos à hipótese de 
que a gravação das aulas e sua eventual transcrição permitem ao professor uma reflexão 
sobre pormenores de que se não deu conta no decurso das aulas. Essa racionalização 
descobre formulações deficitárias que urge corrigir, mostra que o encadeamento das 
sequências de aprendizagem poderia ter sido outro, o que terá evidentes consequências 
positivas na construção ou consolidação da identidade do professor como pessoa e como 
profissinal, 
A prática reflexiva parece muito interessante por envolver os professores no 
questionamento da sua actividade diária, mas, para que esse questionamento se torne 
eficaz, é necessário que se baseie num registro adequado das situações e seja 
contextualizado em teorias como “tentativas de explicação e, logo, de solução de um 
problema” (POPPER, 1992, p.80). 
No caso de reflexão sobre problemas da própria aula, essa reflexão terá que 
basear-se num rigor adequado, como atrás se sugere, com registos das aulas, ou 
momentos seleccionados sob critérios (por exemplo, momentos do percurso de alguns 
alunos), de modo a submeter aos leitores/juízes (incluindo colegas, orientadores e júris 
de trabalhos académicos) a transcrição desse registos, a sua análise e as conclusões à 
luz das teorias adoptadas. Evidentemente, no caso de uma pesquisa académica, o 
respectivo orientador pode auxiliar decisivamente o investigador no “distanciamento” 
necessário a uma análise do material recolhido nas suas próprias aulas 
Reconhece-se a importância de uma outra linha de investigação, a da observação 
de actividades escolares realizada por investigadores exteriores a essas actividades, 
como exemplificámos num outro estudo (2003), esta comunicação pretendeu todavia 
reflectir sobre a validade da pesquisa do professor acerca de problemas da instituição em 
que trabalha, particularmente os da sua aula, analisando as condições em que essa 
pesquisa pode estar ao serviço: 
- da prática pedagógica, através de uma melhor atenção às intervenções dos alunos 
(de que eventualmente se não teve consciência na aula); 
- da formação contínua do professor (importância dos registros pessoais na 
construção da identidade e profissionalidade); 
- da produção de saberes sobre as interacções na aula, de que em muitas situações 
um observador exterior dificilmente se dará conta. 
 
Breve referência a dois estudos de caso 
 
Um estudo de Leite (2005) é um exemplo de investigação participativa como 
descrevi acima. Num grupo de 14 crianças repetentes numa escola básica e analfabetas, 
a investigadora realizou uma acção de alfabetização baseada em Freire, durante 48 
horas, duas vezes por semana em sessões de quatro horas. Em vez de um manual 
clássico de leitura, a autora preferiu, como Freire, palavras geradoras escolhidas da 
actividade preferida pelos alunos, o jogo da pipa (papagaio, em Portugal) e termos 
associados (pipa, rabiola, cerol, cola, cortar, boneca, legal, mato, campo, cachoeira, 
roubar, papel, martelo, pedra, e outros). Essa opção e o diálogo envolvido nas 
actividades que a prepararam e a seguiram mostram o lado participativo desta pesquisa 
ou a vivência que, em termos de Falls-Borda, como vimos, deve animar este tipo de 
investigação. 
As palavras geradoras foram decompostas gradualmente em sílabas para que as 
crianças descobrissem outras palavras. As palavras brasileiras pipa e rabiola (fio), foram 
decompostas, como recomenda Freire, em famílias fonêmicas como pa-pe-pi-po-pu para 
o primeiro e ra-re-ri-ro-ru; ba-be-bi-bo-bu; la-le-li-lo-lu para o segundo. Com estas 
sílabas, as crianças foram convidadas a fazer casamentos para descobrir palavras novas, 
e acharam bala (bombom), bolo, rio, rua e outras. 
Os alunos foram depois convidado para fazer orações com as palavras 
encontradas, e algumas orações simples apareceram como a pipa é grande, a grade é 
um portão. Gradualmente os textos ficaram mais complexos, sobre brincadeiras e sobre 
histórias tradicionais extraídas de livros propostos pelas crianças. A história extraída de 
um pequeno livro estimulou visitas à biblioteca da escola para pedir emprestados outros 
livros. Outro tema interessante foi uma visita ao bairro residencial vizinho que conduziu a 
uma discussão e a um texto colectivo. 
Para uma crítica objectiva de leitores, é essencial o seu aceso aos registros do 
processo, como propus. Um importante passo inicial nesta investigação foi o registro de 
um ditado inicial da história da cigarra e da formiga e, após diferentes actividades ao 
longo do processo, o registro da repetição do mesmo ditado. Mas os textos dos ditados 
dos catorze alunos foram incluídos num anexo ao relatório, como também outros 
exercícios importantes que mediaram entre os dois ditados, de forma que os leitores 
possam compreender o progresso de cada estudante e a qualidade da investigação. 
Júlio, um aluno incluído no meio do anexo, parece representar o sucesso típico 
dos companheiros. Para o primeiro ditado, ele escreveu o seu nome como Julo e eu não 
teria entendido uma única palavra no seu texto se não soubesse a história tradicional da 
cigarra e da formiga. Observando os exercícios realizados depois desse primeiro ditado, 
no anexo, o leitor pode ver as palavras geradoras e exercícios de decomposição, as 
primeiras pequenas frases, depois as frases sobre outras histórias tradicionais e sobre a 
visita ao bairro vizinho. E algumas frases livres com as palavras já dominadas. E, claro, 
duas frases relacionadas com o texto do ditado: o Inverno está frio, e a formiga procura 
comida. 
Assim o resultado satisfatório deste aluno, correspondente ao segundo ditado, não 
é surpreendente. Poderemos concluir que o Júlio tinha dominado as competências 
básicas de leitura/escrita. E os leitores podem ver, no anexo, semelhante progresso 
quanto aos companheiros. 
Um segundo estudo de caso (DUARTE, 2005) consiste na análise das críticas à 
escola actual de dois grupos de jovens que obtiveram sucesso nos seus estudos de 
ensino secundário mas à custa do sucesso existencial. Veja-se o drama interior do 
estudante BERTO (pseudônimo): “Perdeu-se a razão do ensino. Aprendemos porque 
vamos ter teste”. E em conclusão: “Há a vida fora da escola e a vida dentro da escola. A 
vida cá fora com o meu raciocínio normal, o ‘eu-cá-fora’, e o ‘eu-na-escola’, o ‘eu-aluno’, 
o que ouve, o que aprende” 
Esta duplicidade ou fractura provoca uma contestação escondida, pois perdeu-se a 
razão do ensino mas é preciso, para manter a imagem de bom aluno, fazer pensar que 
tudo faz sentido. Como BERTO, os outros alunos entrevistados são, como se 
compreenderá, contestatários clandestinos. Receiam expor aos professores as suas 
críticas por receio de consequências na avaliação. Assegurada a confidencialidade das 
nossas entrevistas, libertam-se as críticas, marcadas aqui e ali pela ironia e até pelo 
sarcasmo. 
Trata-se, em suma, de alunos detentores de boas classificações, mas que face à 
preocupação dos professores em dar o programa, reconhecem a impossibilidade de 
exporemas suas dúvidas e propostas acerca do processo didáctico (dos resultados no 
secundário depende em boa parte a entrada no ensino superior). A contestação 
escondida corresponde assim a um sucesso conseguido em oposição a sentimentos de 
satisfação ou felicidade - um sucesso aparente, mas que pode fazer cotar bem as escolas 
em termos comparativos… 
Depois da investigação, compreendi que uma observação distante e natural dos 
fenômenos por um investigador objectivo exterior, não teria permitido a vivência na 
relação com os sujeitos investigados, acima proposta por Falls-Borda. A razão é que 
alguns dos temas principais desta investigação foram descobertos acidentalmente por 
mim nas aulas da escola secundária onde então trabalhava. Outro elemento essencial foi 
a visão teórica trazida da universidade em que trabalhara em anos anteriores e que 
envolvia a minha observação daquela escola. 
Voltemos a ouvir os jovens. MANUEL (também pseudônimo) criticou a presença 
excessiva, nas aulas de português, dos autores clássicos antigos, cujo idioma era 
necessário traduzir como se fosse uma língua estrangeira. E exigiu espaço para textos 
actuais, até mesmo literários, ou informativos, propondo que esses textos 
desenvolveriam as suas competências comunicativas e culturais. 
Outro exemplo foi a interpelação de outro jovem, depois que eu mencionei os 
possíveis tipos formais de frase (declarativo, exclamativo, interrogativo, imperativo), 
como determinado pelo programa. Nunca esquecerei o seu olhar irônico depois que eu 
expus essas noções. E quando tentei saber o que estava a pensar, ele hesitou um pouco 
e, depois de alguns segundos, aqui são as suas intrépidas palavras: o tipo que inventou a 
gramática não tinha mais nada que fazer! 
Devo explicar que, nos primeiros contactos, procurei envolver estes jovens nos 
objectivos da minha pesquisa, explicando que estava a pesquisar novos procedimentos e 
que a sua crítica poderia ser uma fonte de propostas para a mudança. Teriam 
naturalmente silenciado a sua discordância face a um outro professor, e até mesmo - o 
que é importante para a minha visão epistemológica global - se um investigador exterior 
estivesse presente. E sublinho que, se alguns dos estudantes entrevistados foram 
escolhidos entre os jovens das minhas turmas, cuja postura me mostrou insatisfação ou 
discordância discreta, a maioria deles foi escolhido por outros professores a quem pedi 
que me indicassem alunos insatisfeitos mas obtentores de sucesso escolar. 
Este sucesso constitui uma base de credibilidade para a investigação, pois tais 
alunos poderiam assegurar um bom conhecimento do currículo realizado. Por outro lado, 
poderiam revelar razões de desencanto de muitos outros, cuja timidez ou insuficiente 
domínio das situações os não deixariam expressarem-se. Num total de treze alunos, 
foram entrevistados alguns deles duas vezes ou mais vezes, e algumas entrevistas foram 
encetadas por suas iniciativas. E as minhas perguntas de entrevistas semi-directivas 
focalizaram especialmente o décimo ano de escolaridade, situado entre dois ciclos, e 
primeiro ano do ciclo que precede universidade 
 Quanto aos alunos sugeridos por outros professores, uma frase emblemática veio 
de BERTO: “A maioria dos assuntos leva-me a perguntar: para que serve isto?". Também 
para MANUEL, “a escola insiste muito, nas aulas de filosofia, língua e outras disciplinas, 
em factos antigos que não têm nada a ver com os problemas actuais". Outro exemplo 
vem de BERTO sobre uma grande ponte perto da sua cidade: "as aulas de física 
deveriam ensinar-nos que forças há naquela ponte, para entendermos os seus 
componentes." 
A participação nesta pesquisa foi ampliada a professores, aliás delegados de 
disciplina, que puderam conhecer um relatório sobre as críticas dos estudantes. Aqui está 
a resposta de um professor de física à pergunta de BERTO sobre pontes: "Seria 
interessante tentar responder a essas perguntas e isto mudaria muito o nosso ensino. 
Mas os professores não sabem fazer isso." CLAUDIA, um sorriso estranho na face, 
acrescentará: "Para essas perguntas, os professores dizem vão responder no final das 
aulas, depois de explicarem os assuntos previstos para esse dia, mas o fim das aulas 
vem e nós nunca temos tempo para falar." O mesmo professor confessará: "Os alunos já 
estão acostumados a que nós digamos coisas que eles não entendem, dizendo para eles: 
lá está aquele tipo com as coisas do costume!”. 
 Mas se esta resposta mostra algum pessimismo, alguns sinais de mudança me 
deixou este projecto participativo, quanto a interacção entre pesquisador e pessoas 
inquiridas. Em primeiro lugar, observei sinais de libertação dos jovens ao expressarem as 
suas críticas sobre a escola. Quanto aos professores, um sinal bom de interacção foi a 
reacção de um professor de filosofia, ao ouvir as minhas preocupações sobre as 
características individuais dos alunos: "Deverá ser interessante, numa determinada 
turma, avaliar os passos diferentes dos estudantes. Estou a tentar fazer isso com os 
meus alunos”. E concluiu: “O que é importante é a sua autonomia do pensamento". 
Mesmo sobre a exigência de BERTO sobre problemas práticos em física, o caso 
das forças numa ponte, um professor aceitou que algum tempo deveria ser usado para 
responder à curiosidade dos estudantes e que essas perguntas poderiam, pelo menos, 
constituir uma introdução qualitativa ao que se iria depois ensinar. Também dois 
professores de português mostraram aceitar a prática de tipos funcionais de texto, além 
do tipo literário da tradição. 
 
Perspectivas finais 
 
O diálogo entre investigadores e estudantes é o terreno principal dos dois estudos 
descrito. Ambos os estudos confirmam a relação entre a linguagem e o poder, mostrando 
como podem ser libertadas vozes emudecidas pelos sistemas escolares ou outros. 
Ambos os casos constituem pesquisa participativa, ao reconhecerem as pessoas 
pesquisadas como pessoas que pensam e sentem, não apenas objectos ou clientes, e ao 
mostrarem como despertar a consciência crítica dos actores inquiridos de modo a re-
encantar o relativista e deprimido clima das escolas e do país. Nas minhas entrevistas 
com os jovens, pude sentir o seu entusiasmo em trazer materiais e rever os textos das 
entrevistas que eu tinha registrado e transcrito. Por seu lado, o estudo de Leite mostra 
uma experiência de alfabetização de crianças, atraindo-as ao poder de ler/escrever 
através de palavras relacionadas com as suas preferências lúdicas e outras experiências 
de vida. 
Os registros de ambos os estudos são fundamentais para a validade da pesquisa 
participativa, o que talvez seja mais bem expresso por credibilidade. Espero ter proposto 
aos leitores bastantes elementos que lhes permitam comparar as situações descritas com 
a sua própria experiência e julgar sobre a sua credibilidade. 
 
 
 
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