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Nota de Aula de Lógica do Alaor Caffé

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Os princípios lógicos
de identidade,
de contradição,
de terceiro excluído
e de razão suficiente
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Alaôr Caffé Alves
 
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4.1. PRINCÍPIOS DA RAZÃO
A razão é a faculdade de descobrir as relações necessárias das coi​sas [leis], que se formulam com base num certo número de princípios, tanto na ordem lógica, como na ontológica.
"Princípio, segundo Aristóteles, é aquilo pelo que alguma coisa exis​te ou é conhecida. Princípio, no sentido ontológico, é aquilo pelo que a coisa existe, e, no sentido lógico, é aquilo que nos dá a conhecer os conceitos, as proposições e as inferências de modo coerente, numa articulação ideal correta ou válida. Os princípios lógicos, portanto, bem refletidos, a par de sua natureza estruturadora do pensamento formal, são dirigentes do conhecimento. Segundo Leibniz, os princípios racio​nais fundamentais são:
(a) Princípio de identidade- com 4 formas derivadas:
1) Princípio de contradição- também chamado de não-contradição;
2) princípio do terceiro excluído;
3) princípio do terceiro equivalente; 4] princípio de capacidade.
[b] princípio de razão suficiente- com 3 formas derivadas (princi​pais):
1 ] princípio de substância;
2) princípio de causalidade;
3) princípio das leis.
Os princípios estruturais da razão e dirigentes do conhecimento são verdades evidentes por si mesmas, a priori, necessárias, absolutamen​te primeiras e indemonstráveis, de alcance universal, que são a condi​ção de qualquer verdade e até de qualquer afirmação.
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4.1.1. princípio de identidade
(a) Sob o ponto de vista ontológico, como lei geral do ser, o prin​cípio de identidade formula-se assim: "toda coisa (ser) é idênti-
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ca a si mesma". O que é, é; o que não é, não é. "a" é "a". Uma coisa é o que é. Exemplo: uma árvore é uma árvore (é idêntica a si mesma). Ela não pode ser e não ser ela mesma. O que é verda​deiro não pode ser, ao mesmo tempo, falso.
(b) Sob o ponto de vista lógico, para os objetos lógicos, como lei geral do pensamento, o princípio formula-se assim: entre uma ideia e todos os seus constituintes - elementos de sua compre​ensão - existe necessariamente uma identidade. Há sempre iden​tidade entre o todo e a soma de suas partes. De outro modo: o conceito-sujeito é total ou parcialmente idêntico ao conceito-predicado. Ou ainda: uma mesma proposição não pode ser si​multaneamente verdadeira e falsa. Exemplo: o homem é animal racional (homem = animal racional)
4.1.1.1. Derivados Imediatos do Princípio de Identidade
4.1.1.1.1.0 Princípio de Contradição
O princípio de contradição-também chamado "não-contradição"- for​mula-se assim: (a) do ponto de vista ontológico: "nenhuma coisa é e não é, simultaneamente e sob o mesmo aspecto ou relação", (b) do ponto de vista lógico: o mesmo predicado não pode ser afirmado e negado do mesmo sujeito, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto ou relação. Exemplo que fere o princípio: "o homem é animal e algum homem não é animal" (afirmação de uma conjunção de duas proposições opostas con​traditórias). Segundo esse princípio, duas proposições contraditórias não podem ser verdadeiras nem falsas ao mesmo tempo. Isto quer dizer que se uma é verdadeira a outra é necessariamente falsa, e vice-versa. Esse l||ff princípio decorre imediatamente do princípio de identidade, pois dado o fJ*'V fato de que uma coisa é, é ela mesma, e enquanto é não pode ser outra I11P que não ela mesma.
Entretanto, a Lógica das oposições apresenta uma forma "média"de aplicação, numa relação de oposição cujo nome é "contrariedade" (en​tre proposições contrárias e não contraditórias). Esta relação, como ain​da iremos ven dá-se entre proposições universais opostas: "todo homem é sábio" e "todo homem não é sábio". Vê-se claramente que estas duas
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proposições não podem ser verdadeiras simultaneamente. Se uma
verdadeira, a outra é necessariamente falsa. Mas, se partirmos da falsidade de uma, não temos certeza lógica de que a outra seja ver​dadeira. Isto porque esta outra pode ser também falsa. Quer dizer: as duas proposições (contrárias] podem coincidir na falsidade, mas não na verdade. De fato, do ponto de vista formal, se podemos entender que é falso que "todo homem é sábio" (do ponto de vista material, nem todos os homens são efetivamente sábios], não podemos tirar que seja necessariamente verdadeiro que "todo homem não é sábio" (como de fato é falso, visto que existem homens sábios, embora nem todos o sejam].
E mais, do ponto de vista lógico, além das proposições contrárias, acima aduzidas, que não podem ser verdadeiras, mas podem ser fal​sas ao mesmo tempo, existem as proposições subcontrárias - oposição entre duas proposições particulares: "algum homem é justo" e "algum homem não é justo". De duas proposições subcontrárias, se uma é falsa, a outra é necessariamente verdadeira: quer dizer, as duas não podem ser falsas ao mesmo tempo (veremos isso com mais clareza mais adiante, quando tratarmos das regras das oposições]. Neste caso, podemos concluir logicamente, na relação de oposição "mínima" de subcontrariedade, entre proposições opostas particulares (subcontrá​rias], que as duas não podem ser falsas ao mesmo tempo, mas podem ser simultaneamente verdadeiras,
Note-se, como mais adiante vamos ver, que o princípio de contradi​ção é inteiramente válido para proposições contraditórias, cuja rela​ção de oposição é "máxima", isto é, para proposições que são opostas não só pela qualidade (afirmativas e negativas], mas também pela guan-tidade (universais e particulares]. Exemplo: "todo homem é sábio" e "al​gum homem não é sábio". Neste caso, sendo uma verdadeira, a outra é necessariamente falsa; sendo uma falsa, tira-se que a outra é necessa-riamente verdadeira. A incompatibilidade é total.
4.1.1.1.1.1. Limites do Princípio de Contradição
É também preciso notar que esta questão deverá ficar estritamen​te no nível formal, pois a materialidade, embora utilizada acima para exemplificar intuitivamente a relação de contradição, não pode ser
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considerada logicamente, uma vez que a Lógica trata do pensamento ern sua relação de coerência consigo mesmo e não na sua relação de adequação com a realidade. Assim, podemos saber que de duas proposi​ções contraditórias (não meramente contrárias), uma é verdadeira e a ou​tra é falsa e vice-versa. Porém, não podemos, tão só com a força do pensamento lógico, saber qual é efetivamente a verdadeira e qual é a falsa.
A Lógica permite-nos conhecer até o meio do caminho, mas não nos permite saber sobre a realidade mesma. Por isso, somente pela força do pensamento, considerado em si mesmo, podemos apenas chegar àquela conclusão puramente formal, sem podermos aventurar-nos a dizer qual delas é efetivamente a verdadeira ou a falsa. Se assim fizermos, indo para além do pensamento, estaremos indo além dos limites da Lógica, a qual trata do pensamento em sua coerência interna e não em sua adequação com os objetos do mundo. Por exemplo, se enunciamos as proposições "os planetas não são habitados" e "alguns planetas são habitados", sabe​mos de antemão, pela aplicação do princípio de contradição, que uma delas é verdadeira e a outra é falsa, necessariamente. Quer dizer: se for verdade que "os planetas não são habitados", é necessariamente falso que "alguns planetas são habitados". De modo contrário, se for verdadeiro que "alguns planetas são habitados", será necessariamente falso que "os planetas não são habitados". Mas, pergunta-se: qual é a verdadeira e qual é a falsa? Louvados simplesmente no princípio lógico de contradição não poderemos definir essa questão. A Lógica não alcança a materialidade do mundo. Para obtermos a definição de qual é a verdadeira e qual é a falsa, devemos nos socorrer da ciência que estuda os objetos pertinentes, no caso a Astronomia.
4.1.1.1.2. Princípio do Terceiro Excluído
O princípio do terceiro excluído-princípio de alternativa lógica - com​plementar do princípio de contradição, do ponto de vista (a) ontológico formula-se assim: "uma coisa é ou não é, não há termo médio", isto é, que seja e ao mesmo tempo não seja, ferindo o princípio de contradição. Ou uma coisa existe ou não existe, exclui-se a possibilidade de que possa exis​tir e ao mesmo tempo não existir. Isto é impensável, portanto é um absurdo. Do ponto de vista (b] lógico, a respeito de uma determinada proposição, pode​mos dizer que ela é verdadeira ou falsa, excluindo, por impensável, a hipó​tese de que seja ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Do ponto de vista da
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predicação lógica, temos, por exemplo: "o sangue humano ou é ver​melho ou não é; não pode ele ao mesmo tempo e sob a mesma rela​ção ser vermelho e não ser vermelho". Assim, o sangue humano pode í ser vermelho (1- hipótese], ou não ser vermelho (2- hipótese], mas não pode ser ao mesmo tempo vermelho e não vermelho, sob a mes-' ma relação (3- hipótese, a excluída necessariamente]. Nesse sentido, a última hipótese é impensável; é impossível logicamente, não existe tal hipótese. Exclui-se esta terceira hipótese.
O princípio do terceiro excluído completa, de certo modo, o princí​
pio de contradição, tornando-o absoluto. Com a aplicação do princí​
pio de contradição, somente, temos que duas proposições opostas
não podem ser verdadeiras ao mesmos tempo; porém, não sabemos
se podem ser falsas ao mesmo tempo. Mediante o princípio do tercei​
ro excluído, excluímos também a possibilidade de que duas proposi​
ções opostas possam ser falsas ao mesmo tempo. Assim, se não
|j|í|	podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, então uma sendo
verdadeira, a outra é falsa, e vice-versa.
Vê-se, então, que, pêlos princípios de contradição e do terceiro excluído, duas proposições opostas - na relação de contradição (má​xima) - não podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, isto é, se uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa, e vice-versa. Não podem coincidir na verdade, nem na falsidade, visto que é tam​bém excluída a terceira hipótese, ou seja, não podem ser simultane​amente verdadeiras ou falsas. Pelo princípio do terceiro excluído, exclui-se apenas a hipótese de que duas proposições opostas pos​sam ser simultaneamente verdadeiras ou falsas. Entretanto, como veremos com maior detalhe mais adiante, existem as hipóteses de duas proposições opostas poderem ser simultaneamente verdadei​ras [subcontrariedade] ou falsas (contrariedade], isto é, serem coinci​dentes na verdade ou na falsidade. Assim, as proposições contraditórias são mais fortes e, por isso, são sempre incompatíveis tanto na verdade quanto na falsidade; as contrárias são de média força, posto que são sempre incompatíveis apenas na verdade e, fi​nalmente, as subcontrárias são as de menor força opositiva e, por isso, são sempre incompatíveis apenas na falsidade. Quando exami​narmos o quadro das oposições, mais à frente, estas questões fica​rão bem mais claras. Convidamos o leitor a voltar a este ponto após o exame daquele quadro.
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4.1.1.1.3. Princípio do Terceiro Equivalente
O princípio do terceiro equivalente formula-se assim: "duas coisas idênticas a uma terceira são idênticas entre si". É a identidade per​cebida mediante o discurso, de modo mediato. Se "A" é idêntico a "C" e "B" é idêntico a "C"; então "A" e "B" são idênticos entre si (se A = C; e C = B; então A = B). Entretanto, esta relação tem de ser de identida​de plena e transitiva, como por exemplo: "Mário é irmão de Paulo e Paulo é irmão de Joana; então, Mário é irmão de Joana". Não será válida em determinadas relações diádicas, como por exemplo: "Paulo é amigo de João, Maria é amiga de João, então... Paulo é amigo de Maria" (!). É óbvio que esta relação não é transitiva, pois duas pesso​as amigas de uma terceira não significa que sejam amigas entre si.
4.1.1.1.4. Princípio de Capacidade
O princípio de capacidade formula-se assim: "tudo o que contém uma coisa contém o seu conteúdo". Exemplo: A ideia de Sócrates que, g sob o ponto de vista da extensão, está contida na ideia geral de ho​mem (ele é um homem), está contida, por isso mesmo, na ideia mais geral ainda de animal (o homem é um dos animais). Ou, pelo lado da compreensão, se a nota de racional está contida na ideia de homem
|i(o homem é animal racional), ela estará também contida na ideia de
jfSócrates, visto que ele é homem (Sócrates é um ser racional). Exten​são e compreensão, já abordadas antes, são as duas principais di-
|;mensões lógico-estruturais do conceito que deverão ser analisadas
fteom maior verticalidade mais adiante.
4.1.2. princípio de razão suficiente
Formula-se assim: "tudo tem sua razão (suficiente) de ser". "Nada acontece que não tenha uma causa ou, pelo menos, uma razão deter​minante".
 
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4.1.2.1. Derivados Imediatos do Princípio de Razão Suficiente
4.1.2.1.1. Princípio de Causalidade
Toda coisa existente poderia não existir, sendo, portanto, contigente, porque tem sua razão de ser fora de si mesma. Se uma coisa, existisse absolutamente (necessariamente), isto é, por si mesma, sua explicação seria encontrada em si mesma. Ora, todas as coisas no mundo não se explicam por si mesmas e sim por outras que são sua razão suficiente [causa] de ser. Com estas outras por sua vez repete-se o mesmo proces​so, indo indefinidamente até a causa primeira que, segundo a ontologia clássica, tem em si a razão de ser: Deus.
Este princípio, quando aplicado aos dados de experiência (segundo Kant), é importantíssimo para a investigação científica, pois o cientista, diante de um fenómeno desconhecido, move-se a explicá-lo em virtude de saber, aprioristicamente, que dito fenómeno deve necessariamente ter uma causa que determinou seu aparecimento, embora possa não conhecê-la ainda. Ele se lança à pesquisa para saber sobre a causa do fenómeno precisamente porque sabe, de antemão, que há uma causa determinante, ainda que não a conheça especificamente.
Isto decorre do fato de não podermos pensar o vazio, o nada. Se um
fenómeno ocorre, fatalmente ele decorre de outro fenómeno, visto que, se assim não fosse, teríamos de conceber que o fenómeno vem do nada. Mas do nada, nada se tira. Não é concebível pela razão que algo ocorra a partir do nada. Há sempre uma razão, um antecedente que explica o fenómeno. A razão tem horror ao vazio, ao nada. Por esse motivo, os filósofos gregos clássicos consideravam que as coisas tinham sempre um antecedente, um princípio. Se o vermelho do fruto maduro ocorre, é porque já estava, de certo modo, no fruto verde. Todas as coisas, de alguma forma, coexistem umas nas outras. Se "b" é o resultado da trans​formação de "a", é porque alguma coisa de "a" persiste em "b!!; nesse sentido, "b" já estava, de algum modo, em "a". Se não se concede a essa argumentação, então teremos que admitir que "b" não tem antecedente algum, isto é, ele teria vindo do nada, o que repugna à razão.
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41.2.1.2. Princípio de Substância
Seu enunciado é: "toda qualidade (todo atributo), toda maneira de ser supõe uma substância", ou, então, "toda mudança supõe algo du​rável (algo que muda]". Logo: "não há qualidade sem objeto qualifica-do, não há ação sem agente, não há modificação sem objeto modificado, não há movimento sem objeto movido". Todo adjetivo supõe um subs​tantivo que o suporte; todo predicado supõe um sujeito. Se enuncia​mos que "isto é vermelho", o atributo (qualidade) "vermelho" supõe sempre uma substância (que sub-está], isto é, algo (sujeito) que su​porta o vermelho, algo que é vermelho, visto que não podemos intuir o "vermelho", sem que "algo" (a substância] seja vermelho, mesmo que seja uma mancha indefinida no espaço. Essa qualidade não pode ser ituída senão na forma de uma certa extensão do espaço.Essa subs-ância é a razão suficiente para a existência do vermelho.
41.2.1.3. Princípio das Leis
Este princípio está diretamente ligado ao de causalidade. Seu enun​ciado é: "nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos". Este princípio decorre do determinismo e da regularidade da natureza e é a condição de todo raciocínio indutivo. Sua formulação pode assumir a perspectiva psicologista, de origem empirista, pela qual temos a crença (algo psicológico) de que as coisas que acontecem regularmente têm uma grande probabilidade de nova​mente acontecerem [Hume].
Do ponto de vista estritamente lógico, outra perspectiva, agora de caráter racionalista, o princípio refere-se à essência do fenómeno. Neste caso, não se pode dizer que a regularidade de determinada relação leva-nos apenas a crer na probabilidade de que novamente possa acon​tecer (como na formulação meramente psicológica], mas sim que, efeti-vamente e por natureza própria, ela sempre ocorrerá. O princípio das leis fundamenta-se na regularidade do universo, permitindo aos cien​tistas um razoável espaço de certeza quanto aos fenómenos que ocor​rem regularmente no mundo. Assim, se plantamos sementes de milho, em circunstâncias determinadas, temos a certeza (nacionalismo) ou,
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ao menos, uma grande probabilidade (empirismo) de colhermos milho e não outro cereal.
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4.2. CARACTERES DOS PRINCÍPIOS RACIONAIS
Os princípios racionais, do ponto de vista da Filosofia clássica, têm três l
caracteres que os distinguem nitidamente:	>/
4.2.1. universalidade
(a) No plano subjetivo: existem em todas as inteligências humanas, pois constituem o fundamento da razão mesma.
[b] No plano ob/etivo: concebemo-los como aplicáveis a todo os fe​nómenos existentes ou apenas possíveis.
4.2.2. necessidade
(a) No plano subjetivcr. são leis do pensamento. São uma exigência absoluta da inteligência e são indispensáveis a qualquer operação intelectual. Sem eles a própria faculdade de conhecer inexiste.
(b) No plano objetivo: são leis do pensamento porque são primeira​mente leis do ser. Disto resulta a concordância necessária entre o ser e o pensar, que faz com que não possamos admitir como possível no ser aquilo que reconhecemos como contraditório no pensar. Se algo é absurdo [impensável] para o pensamento, não deve existir na realidade. "O círculo quadrado" é impensável por​que implica uma contradição evidente, e por isso não pode existir no mundo um objeto dessa natureza. Há, contudo, filósofos que entendem que o simples fato de existir, no que respeita a este exemplo, uma compreensão da contradição como tal, e que por isso mesmo já é entendida como impossível de ser pensada no seu conteúdo, já implica, de certo modo, um pensamento a res​peito e uma determinação mínima, qual seja a de que tal objeto não pode ser pensado. Há, neste caso, uma aporia evidente.
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4,2.3. caráter "A priori"
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Sendo a base necessária, a própria condição de toda afirmação e de todo conhecimento, segue-se que são, em certo sentido, anteriores (lo-ÏËE qicamente] a todo conhecimento propriamente dito; vale dizer anterio-ÏÏ|l rés a toda experiência. A anterioridade lógica é uma anterioridade transcendental [q não transcendente, isto é, fora da experiência possí​vel]. Exemplo: as propriedades do triângulo têm, em relação a esse polí​gono, uma "anterioridade lógica"[fora do tempo], indispensável para que -111 o triângulo seja triângulo, embora no plano da demonstração tenhamos - que utilizar o tempo para deduzi-las. Não construímos o triângulo a par-
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^: tir da soma ou acréscimo de suas propriedades. Ele é construído como P um todo, de uma só vez, depois é que deduzimos as suas propriedades, iiú no tempo, demonstrativamente; mas elas são dadas logicamente a um só tempo.
-4.3. LÓGICA DIALÉTICA
Aqui precisamos destacar algo importante, especialmente no que respeita à Lógica Dialética. Viu-se que o princípio de contradição depu​ra, de sua noção intuitiva, o tempo. Quando dizemos que algo não pode ser e não-ser - ao mesmo tempo- e sob a mesma relação, excluímos a variável tempo. A palavra "tempo" é aqui enunciada precisamente para excluí-lo, perfazendo uma forma de aplicação ideal, onde o tempo não comparece. Dizer "ao mesmo tempo", no caso, é dizer "no mesmo mo​mento". A unidade de tempo chamada "momento" é como o ponto no espaço da geometria. Como este ponto não tem (idealmente concebido] espessura ou qualquer outra dimensão, ele não está propriamente no espaço real; ele está num espaço ideal.
O momento também não constitui dentro de s/um tempo, isto é, no seu interior não corre o tempo, é uma eternidade pontual. Neste caso, pode-se dizer que o momento indica algo fora do tempo, algo intemporal. Ora, se não há tempo, não há movimento e se não há movimento, não há contradição. Se não há contradição, não existe dinâmica, não existe his​tória. Por isso, os princípios lógicos da Lógica Clássica estão fora do tempo q devem ser aplicados a coisas ideais que são igualmente intem-porais, como os conceitos pensados por nós. Assim, a Filosofia clássica,
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por essa razão, expulsa o movimento das coisas pensadas, excluindo, em última instância, a história e a evolução do pensamento e do conheci​mento. Daí vem o choque entre o lógico e o histórico.
Eis porque essa lógica (formal) é, até certo ponto, repudiada pelo pen​sador que propugna pela Lógica Dialética, a qual pressupõe a existência da contradição no âmago mesmo do pensamento, isto é, os conceitos, as proposições e as inferências, que o concretizam, estão prenhes de movimento e de historicidade. Ora, a pura forma (lógica) não nos pode dar, por si mesma, a contradição, se ela não estiver de algum modo pola​rizada com o conteúdo, com o mundo real. No plano formal, o pensamen​to joga somente com suas próprias forças, prescindindo de referências com o mundo material (conteúdo) para alcançar a coerência consigo mesmo. Nesse plano, o pensamento trabalha, ou melhor, é obrigado a trabalhar sem contradições, sem história. Por isso, o pensamento se​gundo sua natureza "pura"será sempre considerado sob a forma estru​tural, estática e sincrônica. O enfoque diacrônico, dinâmico e processual
'..	do pensamento só pode ser obtido mediante a sua polarização com of
mundo da realidade material, conforme o seu conteúdo e processo de j
'	formação e desenvolvimento.
Nesse sentido, segundo a perspectiva dialética, a Lógica não pode ser puramente formal, ou, se assim for, sua aplicação será bastante res-trita e funcionalmente ligada apenas às expressões linguísticas. Segun​do a maioria desses pensadores dialéticos, a Lógica somente será fecunda se polarizar a forma e o conteúdo do pensamento numa relação dinâmi​ca e dialética, onde o conteúdo (a matéria do pensamento) se expande com o tempo e com a história, entrando em contradição com a forma que é mais estática e conservadora.
Quando temos o relativo ajuste entre forma e conteúdo, temos a racionalidade reaf, quando, porém, naquele processo, o conteúdo entra em contradição com a forma tentando ultrapassá-la, abre-se um tempo de crise, de irracionalidade, que deverá ser solucionada com uma nova forma que dê conta desse novo conteúdo expandido. É o que se denomi​nou de "salto dialético"da quantidade em qualidade. Esse pulsar é dialé-tico e ascendente, levando o espírito a avançar os seus diferentes momentos, numa relação dialética racional/irracional. Exemplo: uma via expressa é construída, no meio urbano, para facilitar o fluxo do tráfego de veículos, de modo rápido e cómodo. Aqui, a forma (via expressa) e o conteúdo (o fluxo do tráfego) são concebidos, dimensionadas e construí-
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dos para racionalmente dar conta dessa situação. Com o tempo, há o aumento do tráfego (conteúdo) pela entrada de grande quantidade de novos veículosna referida via expressa (forma). Nesse momento, abre-se uma crise e a irracionalidade toma conta do processo, exigindo no​vas formas qualitativas de transportes para devolver, num momento superior, a racionalidade ao fluxo de veículos urbanos.
Outro exemplo, desta vez da história: as estruturas medievais de orga​nização social e política [forma] suportam determinado conteúdo repre​sentado pelo nível alcançado pelas forças produtivas daquela época, Com
: o desenvolvimento dessas forças produtivas (conteúdo), mediante a intro​dução de novas técnicas produtivas (novos processos de produção da vida material, divisão social do trabalho, etc.), abre-se uma profunda contradi​ção com aquela organização social e política (forma), que não mais dá conta da referida situação produtiva (conteúdo). Passa a haver uma fase de irracionalidade e grande luta para alterar a forma social e política me​dieval no sentido de instaurar novo regime de organização entre os ho​mens, dando passo ao sistema mercantil-manufatureiro de produção, o sistema burguês de produção. Aí tivemos uma nova forma de organização sócio-política para um novo conteúdo econômico-social. Nesse novo pata​mar histórico, alcançamos uma nova racionalidade.
Novo exemplo histórico: nos dias de hoje, no limiar do novo milénio, também nos encontramos com uma situação de crise, de irracionalida​de. Os meios de produção da vida material e espiritual dos homens (con​teúdo) ficaram tão avançados e sofisticados (informática, robótica, telecomunicações, satélites artificiais, etc.) que a estrutura e organiza​ção sócio-política (forma) do sistema, pautado na relação "capital e tra​balho", não está mais respondendo às exigências do mercado de trabalho, em razão do desemprego estrutural [não meramente conjuntural) que assola o mundo inteiro. Aquela relação histórica "capital e trabalho", es-sencial para a manutenção da lógica do sistema capitalista, passa a ficar profundamente abalada e comprometida, especialmente no processo chamado "globalização". O sistema capitalista de produção está vendo as suas bases organizacionais (forma) fugir-lhes dos pés, devendo haver, dentro de um certo tempo histórico, profundas alterações que vão des​caracterizar o referido sistema, dando passo a uma nova organização entre os homens, isto é, a uma nova "forma" para atender a um novo "conteúdo". Nesse momento, impõe-se um novo patamar de racionalida​de organizativa entre os homens.
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4.4. LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO
Por outro lado, continuando a nossa preocupação com a dialética, porém em outra dimensão, aquele mesmo fundamento dialético perfor-ma, do ponto de vista subjetivo, as condições de uma lógica da argumen​tação, muito usada na teoria das decisões, especialmente das decisões jurídicas, que, ao final, passam a ser o modelo desse tipo de lógica. Há, portanto, uma nítida contraposição entre a Teoria da Demonstração, vinculada à inteligência forma/(Lógica Formal), e a Teoria da Argumenta​ção, vinculada à vontade, à decisão.
A Teoria da Demonstração desenvolveu-se sob a influência da mate​mática do século XVII,.especialmente a partir do nacionalismo de Descar​tes. A razão sob essa concepção, conforme o modelo da geometria, baseava-se em ideias claras e distintas capazes de impor-seao intelecto com a força incoercível da evidência, dando-nos a impressão de atingir verdades absolutas e eternas. A matemática fornecia o modelo do co-nhecimento legítimo e verdadeiro. Aquilo que não fosse demonstrável, nos termos desse modelo, carecia da evidência imposta pelo raciocínio formal, a exemplo do raciocínio matemático, e, por isso, ficaria a mercê da necessidade de ser permanentemente corrigido ou da convenção estipulatória a respeito dos limites significativos possíveis. Por exemplo: quando podemos dizer que uma pessoa é velha? O homem idoso, arcado pelo peso da idade, não há dúvida que é velho. Um jovem viçoso, cheio de energia e vida, não há dúvida que não é velho. Contudo, entre esses dois extremos claros e distintos, existe uma zona de penumbra em que não temos certeza da aplicação do termo "velho". Nesta zona, não se pode oferecer critérios lógicos que nos permitam fazer distinções claras e distintas. Neste caso, não há outra forma mais adequada senão exercer a vontade para estipular- decidir- algumas linhas definidas para qualifi​car uma pessoa como "velha". Diríamos, por exemplo, que velho para tais i ou tais efeitos será aquele que tiver mais de 75 anos.
O critério da idade, então, é postulado pela decisão a respeito. Não existe, pois, nenhuma referência "natural" ou ontológica que nos dê uma certeza apodítica em relação ao conceito de "velho". Nesse sentido, a deliberação e a discussão ou as manifestações de dúvidas ou incertezas foram vistas com desconfiança, como produtos de um conhecimento imperfeito, que deveria ser evitado ou não valorizado.
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 LÓGICA - Pensamento Formal e Argumentação
Assim, foram séculos de nacionalismo fortalecido pela ideia de que a prova demonstrativa e o cálculo eram as únicas manifestações legíti​mas da razão. Nessa direcão seguiu o desenvolvimento da Lógica For​mal moderna, com base nas formas de raciocínio utilizadas pela Matemática. Assim, reduzia-se a noção de prova à prova formal, de cará-ter analítico. Esta prova seria capaz de se impor a todos, de modo impes​soal, neutro, de maneira coercitiva, da qual não se poderia divergir pela vontade. Naturalmente, essa maneira de conceber a prova levou a se​rem excluídos- especialmente pêlos neo-positivistas- grandes setores da cultura humana das formas de raciocínio tidas por legítimas, uma vez que aqueles setores não cabiam no modo de demonstração do tipo matemático. O dualismo racional/irracional demarcava nitidamente os segmentos da cultura humana. O que não podia ser demonstrado con​forme a razão analítica, pelo modo formal do pensamento, escapando da razão absoluta, era rejeitado simplesmente como irracional.
A própria Filosofia que não pudesse justificar suas reflexões com de​monstrações exaustivas e indiscutíveis, mergulhada nas controvérsias"ë incertezas do pensamento provável, passou a ser condenada pêlos par​tidários do formalismo lógico. Nesse sentido, ou se aderia ao racionalis-mo, expressado com uma linguagem lógica formalizada, que permitisse certezas absolutas, demonstradas apoditicamente, ou se aderia ao ir-racionalismo, buscando-se outros critérios práticos ou irracionais de ava​liação do mundo e das coisas da cultura. Fazia-se uma dupla emergência na abordagem do mundo: ou se adotava uma linguagem lógico-formal rigorosa, uma lógica científica, cujos modelos paradigmáticos eram as matemáticas e as ciências físicas, ou se adotavam as formas de conhe​cimento não demonstrado segundo a razão formalizada, configurado dentro de um quadro de imprecisões onde a irracionalidade e a corre-cão seriam constantes, como nas Ciências Sociais, na História, na Filoso​fia, no Direito, etc.
Em meados do presente século, investigações levadas a efeito no Cen​tro Nacional Belga de Pesquisas de Lógica, por Chaim Perelman, inicia​ram um movimento de revalorização do significado e do uso da retórica,
sob novas bases, levando-se em conta não só o caráter e as habilidades dos retores ou emissores dos discursos, mas também e principalmente as características dos receptores desses discursos, ou, no dizer técnico, dos diferentes auditórios a quem tais discursos se endereçam. Refor​mulam-se as concepções da retórica clássica desenvolvida pêlos antigos gregos, dentre os quais se destaca especialmente Aristóteles que, ao
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Alaôr Caffé Alves
lado das provas analíticas fundadas em demonstrações lógicas para obter a certeza, propugnava por outras formas de apresentar provas, para obter bases verossímeis, ou "verdades contingentes", no estilo retóri​co,mediante argumentações e discursos dialéticos, caracterizados por oposição dinâmica de opiniões divergentes. A argumentação retórica e a díalética são instrumentos destinados a obter a persuasão. A escola de Perelman e seus seguidores desenvolvem e atualizam as posturas de Aristóteles, defendendo a necessidade de uma Teoria da Argumenta​ção fundada em novas bases, denominada nova retórica, com ênfase na caracterização do auditório.
Vamos, nas partes finais deste livro, abordar mais detalhadamente esse tipo aberto de argumentação, visto ser de grande valia para a com​preensão das ciências humanas e particularmente do processo operati​vo do direito. A partir dessa colocação, podemos, mesmo antecipadamente, caracterizar alguns pontos comparativos entre aque​las duas posições: a demonstrativa e a argumentativa.
A linguagem é compreendida, de um lado, como inteiramente forma​lizada nos termos da matemática ou da lógica contemporânea, e, de outro, como algo rebelde à completa formalização, eivada de ambiguida​de e de vagueza, como a linguagem ordinária comum, a linguagem literá​ria, bem como a linguagem das ciências sociais e da Filosofia.
A linguagem formal, voltada para as dimensões sintéticas, é rigoro​samente lógica, estruturada com elementos simples sob a forma de signos convencionais, abstratos e denotativos, onde o homem concre​to não comparece. É a linguagem lógica do possível. A linguagem ordi​nária, por outro lado, é voltada para as dimensões da semântica, segundo formas conotativas, adequada à apreensão do concreto, do circunstancial e do histórico, podendo ser pesquisada em sua regular produção material, como faz a Retórica. É a linguagem da argumenta​ção, da justificação ou da legitimação pelo valor e pelo peso das ra​zões postas sob a forma de opiniões verossímeis ou prováveis. Nessa
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linha, aparece o homem histórico e concreto, com seus interesses e f suas deliberações.
Está.claro que a evidência ou a clareza e a distinção dos conceitos não são as únicas características da razão, posto que existem outros graus de adesão da mente às diferentes teses que se apresentam sob a forma de opiniões razoáveis. O âmbito da argumentação retórica seria o domínio do provável, do verossímil, do plausível, do razoável e do pre-
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 LÓGICA - Pensamento Formal e Argumentação
ferível, precisamente o que escapa à certeza do cálculo lógico e da prova indiscutível ou formal. E é isso exatamente o que caracteriza e constitui o discurso das ciências humanas e sociais, da História e da filosofia. Vê-se claro que a Lógica Formal, ao impor suas conclusões de modo necessário e impessoal, não deixa espaço para o exercício da liberdade, o que induz a não deixar margem para fundamentar a res​ponsabilidade, cuja natureza pressupõe a possibilidade de tomada de decisão racional e justificável.
por isso, a Lógica Formal jamais poderá orientar a ação ética dos ho​mens. Por consequência, ela não pode ser a lógica dominante nos assun​to humanos, devendo ser, a teoria da argumentação retórica, a única forma de justificar os valores e os atos morais dos homens. A argumentação retórica, ao contrário da Lógica Simbólica ou Matemática - caracterizada por ser universal e, por isso, impessoal, neutra e monológica - supõe sempre o embate (dialético) de opiniões ou o confronto das ideologias e consciências no interior de situações e circunstâncias históricas deter​minadas e particulares. A Teoria da Argumentação, portanto, é uma reflexão e uma formulação sistemática sobre a regularidade dos discur​sos concretos destinados à persuasão, pressupondo sempre a multipli​cidade dos sujeitos envolvidos num processo essencialmente dialógico. Como já dissemos, voltaremos a essa questão para abordá-la de forma rnais extensa e mais profunda.
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