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A virtude e a ética em Mênon, de Platão

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A VIRTUDE E A ÉTICA EM “MÊNON”, DE PLATÃO
Ana P. B. Ruppenthal
Resumo
O presente artigo tem por escopo revisar os principais aspectos filosóficos presentes na obra “Mênon”, de Platão, principalmente no que tange a sua aplicabilidade para o Direito. Aqui será visto como o autor apresenta a virtude e a ética em face das demais escolas e correntes filosóficas da época e da posterioridade, e o legado que é aplicado até hoje.
Palavras-chaves: Virtude, Ética, Ética profissional, Moral, Direito, Platão
Abstract
The current article has for scope to review the main philosophical points obvious in the work “Meno”, by Plato, mainly about its applicability to the Law and its professional exercice. Here it’ll be exposed how the author shows the virtue and the ethics against the other schools and philosophical doctrines of his time and after, and its legacy that is used far today.
Key-words: Virtue, Ethics, Professional Ethics, Moral, Law, Plato
I. Introdução
Platão, em seu legado, não chega a formar uma definição de virtude; deixa é referências com base nas suas teses sobre o mundo das idéias, a restrição dos sentidos e a imortalidade da alma. É Aristóteles, seu discípulo, quem forma um conceito: para ele, virtude é um meio termo a ser seguido entre os extremos que a vida oferece, a postura média, o comedimento.
Analisando a obra em seu aspecto histórico, verifica-se desde logo que não é o que se chega a considerar como “obra-prima” de Platão. Numa análise de estilometria, “Mênon” é uma obra que resplandece o pensamento do “Sócrates histórico”, ou seja, do Sócrates enquanto pensador apartado das idéias e da influência sobre Platão. No entanto, não se sabe o quanto do pensamento socrático é transmitido puro no diálogo.
Mas numa tomada geral, pode-se concluir, ainda que vagamente, que o conceito de virtude que Platão nos transmite através de Mênon é o de que virtude seria a busca pelas boas coisas e a capacidade de consegui-las com justiça.
Em se tendo a filosofia como um todo e mesmo a concepção moderna, poder-se-ia dizer que virtude é um princípio, uma reserva moral com relação às escolhas sociais e individuais. Deve-se ressaltar que virtude, moral e ética são coisas distintas: a virtude é a postura socialmente apreciada e esperada e individualmente valorada; a moral se relaciona à pretensão que os indivíduos têm de agir de acordo com os seus costumes (sociais, familiares, etc.), ao passo que a ética é a valoração das escolhas e da liberdade feita em prol das necessidades individuais e dos interesses coletivos. É necessário também, aqui, fazer a diferenciação entre ética em seu sentido comum e ética profissional: ética no sentido comum é o que foi anteriormente exposto, enquanto que ética profissional seria a normatização de conduta adotada por uma determinada categoria profissional, como, por exemplo, o Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil.
É bom lembrar que mais tarde na história da filosofia a virtude assume um caráter político: de Maquiavel a Hobbes, em se considerando os pensadores pós-medievais e pré-modernos como um geral, a virtude deixa de ser algo relativo à honestidade, mas se torna um instrumento que define se o príncipe é bom ou mau governante.
II. Virtude e Direito
Diante do que é corriqueiro na prática jurídica, e mesmo na vida cotidiana, é comum desconsiderar a aplicabilidade de pequenas questões filosóficas, como o tema da virtude. Ora, como é que encontramos a virtude em nosso meio jurídico? À semelhança de Mênon, perguntamos: virtude seria uma disciplina, apartada da filosofia e da ética, que deveria constar nas grades curriculares dos nossos cursos, ou seria algo passível de aprendizado através de meros exemplos? E que exemplos seriam esses?
A mídia tem o costume de denegrir a imagem do operador do direito, principalmente a do advogado. Não são poucos os casos em que a classe dos advogados é rechaçada como salafrária, mentirosa, corrupta. Seja em tecnicismos da profissão que são mal interpretados, seja em casos polêmicos em que a postura do profissional defensor do “bandido” é considerada além do aspecto profissional, ou mesmo nos casos em que os profissionais do Direito denigrem a imagem da classe – fato este que ocorre com todas as categorias profissionais – o advogado têm adquirido, na tradição brasileira, uma imagem elitizada de assessor político injusto e distante da realidade social, o que, na prática, não é o que acontece.
E aqui se faz uma pergunta adicional: onde está a virtude?
Se entendermos a virtude numa visão platônica, ou como “a busca pelas coisas boas de modo justo”, é certo constar que não só o exercício da advocacia nem sempre reflete essa virtude, assim como qualquer outra classe profissional. Ocorre que a virtude na concepção que Platão constrói em “Menon” não é algo concreto, algo que se encontra no âmbito corriqueiro dos afazeres profissionais, mas que se trata de um ideal – à semelhança do dever-ser, conceito desenvolvido por Hans Kelsen mais tarde em seus trabalhos sobre filosofia jurídica. 
Assim, considerando a virtude além de “Mênon”, poder-se-ia concluir que a classe dos operadores do Direito, nestes compreendidos não somente os advogados como também os juízes, promotores, técnicos e demais profissionais que no âmbito se inserem, tem um referencial exato do que é ético ou deixa de ser dentro de seu exercício profissional (aqui se aplica o conceito de ética profissional), mas fica a cargo de cada operador e em cada caso concreto a valoração de como agir ou deixar de agir (virtude).
III. Evolução filosófica do conceito de virtude
virtude 
vir.tu.de 
sf (lat virtute) 1 Hábito de praticar o bem, o que é justo; excelência moral; probidade, retidão. 2 Boa qualidade moral. 3 O conjunto de todas as boas qualidades morais. 4 Austeridade no viver. 5 Força moral; valor, valentia, coragem. 6 Ação virtuosa. 7 Castidade, pudicícia. 8 Validade, força, vigor. 9Qualidade própria para produzir certos e determinados resultados; propriedade, eficácia.
A virtude, ainda que não tenha siga definição passível de delimitação exata em termos filosóficos, pode seguir uma definição latu sensu como a sugerida pelo dicionário Michaellis. Mas ao longo da história da Filosofia o que se verifica é uma variedade de abordagens sob diferentes prismas até que se desenvolvesse um conceito mais geral.
O primeiro pensador mais notável a deliberar acerca da virtude foi Sócrates (469 a 399 a. C.). Tendo vivido no governo de Péricles, durante o auge do desenvolvimento ateniense, e sendo executado segundo a vontade popular durante o período de restauração democrática, a existência de Sócrates chega a ser testemunha a favor de seu legado (BITTAR, Eduardo. 2005). Para Sócrates, a função do filósofo seria a de buscar a verdade incessantemente, de modo a fazer nascer da alma a verdade que já lhe é inerente. A virtude, para esse pensador, se aproximaria do reconhecimento da ignorância a partir do qual se buscaria a verdade (o conhecido método maiêutico), da moderação das paixões e no atuar com justeza, em prol da coletividade.
No pensamento grego, Sócrates é referência quanto à filosofia ética, apesar de não ter deixado nada escrito. 
Platão (427 a 347 a. C.), hoje reconhecido como principal discípulo de Sócrates, a ponto de se utilizar do mestre como personagem principal da maioria dos seus diálogos (à exemplo de “Menon”), seguiu a linha de pensamento socrática, apesar de alguns pontos de divergência, e definiu sua própria concepção de virtude, que mais poderia dizer-se se tratar de um aperfeiçoamento da virtude socrática: segundo Eduardo C. Bittar, para Platão “a virtude é uma excelência, ou seja, um aperfeiçoamento de uma capacidade ou faculdade humana suscetível de ser desenvolvida ou aprimorada”.
Aristóteles, discípulo de Platão e fundador do Liceu, é quem por sua vez melhor desenvolve os fundamento éticos acerca da virtude deixados por Sócrates. Para Aristóteles, a virtude seria o justo meio entre duas posturas extremas, entre o fartar-se e o abster-se;seria a virtude o bom senso, o comedimento, o “meio-termo”.
Em se avançando alguns séculos, chegamos a outro filósofo que aborda abertamente o tema da virtude: São Tomás de Aquino (1225 a 1274 a. C.). Tratando de temas tanto políticos quanto sociais e metafísicos, que em sua obra é profundamente influenciada pela situação histórica da Alta Idade Média, sobretudo pela doutrina cristã. Sua principal referência ética é o pensamento de Aristóteles, a qual desenvolve seguindo a mesma linha de raciocínio. Para Aquino, tanto a virtude como o vício seriam hábitos, adquiridos reiteradamente como qualidades, que servem para aproximar ou afastar o homem da bem-aventurança (felicidade), nos moldes cristãos. 
Mais tarde, chegamos a Maquiavel (XXXX a XXXX), teórico político e filósofo que separa a política da moral, separando, assim, a virtude. Maquiavel, ao estudar a postura ideal de um governante define que este deve assumir uma postura que não necessariamente seja virtuosa nos moldes tradicionais, mas sim que seja a melhor postura para o bem do Estado sem que se atraiam tumultos internos. 
Por fim, chega-se à corrente existencialista: no tumultuoso século XX, onde a escola tem o seu auge de desenvolvimento, seria injusto se mencionar um autor principal. Pouco ou nada se aborda a respeito da virtude propriamente dita, mas mais de questões éticas e morais desconstruídas: questiona-se sobre a liberdade, a religião e a moral, sobre o indivíduo e o seu lugar no mundo. Como o existencialismo não é uma corrente que, como a grande maioria das precedentes, se volta a um determinado contexto ou aspecto social, mas sim à uma análise crítica da posição individual humana, não surge o interesse de uma atitude ser correta ou incorreta, uma vez que essa postura só pode ser assim avaliada se interessar ao sujeito de ação; e não importa se tal atitude é tomada com justiça e em prol da coletividade, uma vez que o que importa, em tese, é o universo em que o homem se insere como seu centro.
Assim, assume-se que, hodiernamente, a valoração da virtude fica mais a cargo da moral vigente e do senso comum do que de uma especulação filosófica específica.
IV. Contextualização da obra
“Menon” se situa entre as obras consideradas de maturidade ou intermediárias de Platão; não é uma de suas obras mais célebres, e que aborda uma temática mais simples e delimitada (a virtude). Como de costume do autor, a obra tem como personagem principal Sócrates, mestre de Platão que nada deixou escrito, e Mênon, jovem aristocrata que visita a casa de Ânito em Atenas. Não fica claro a relação que se dá entre Ânito e Sócrates; há referências de que Ânito foi um dos acusadores de Sócrates, quando de sua condenação a tomar cicuta; tal afirmação, no entanto, não fica clara. 
Historicamente, a obra se situa durante a Guerra do Peloponeso (que se desenvolve por volta do século quinto antes de Cristo) época do auge do desenvolvimento artístico, cultural, bélico e intelectual de Atenas. É nesse contexto que o autor cita a familiaridade de Mênon, que algumas fontes dizem que foi um mercenário grego, com o imperador persa Xerxes, bem como a sua amizade com Górgias, célebre filósofo sofista contemporâneo de Platão (485 a 380 a. C.).
É relevante observar os constantes embates que Platão expõe, ainda que não diretamente, do pensamento de Sócrates – aqui entendido o Sócrates enquanto personagem histórico – e a corrente sofista. Os sofistas eram livres pensadores, mestres da oratória que ensinavam aos jovens, mediante pagamento, como lidar com a arte da política, o comércio, a oratória. Para muitos foram considerados os primeiros advogados da historia, posto que muitas vezes eram pagos para fazer a defesa pública na assembleia de pessoas que haviam sido processadas pelo Estado, ou então eram pagos para escrever notáveis discursos.
E esses embates se devem ao fato de os sofistas professarem verdades relativas e superficiais, enquanto o pensamento platônico, em sintonia com o pensamento socrático, cria numa verdade absoluta atingível apenas pela árdua reflexão. Esse conflito ideológico se deu no contexto exato do auge de Atenas, como observa Valério Massimo Manfredi: enquanto os sofistas podem ser observados como o autêntico espírito da democracia ateniense, o pensamento socrático reflete a decadência do período arcaico grego (a decadência do pensamento mitológico) ante as novas necessidades sociais.
V. Conclusão
A virtude, em suas várias concepções ao longo da História da Filosofia, e mesmo na abordagem platônico-socrática nos deixa um legado vasto para o Direito. Reflete um dever-ser, semelhante ao formulado por Kelsen, que é relativizado por fatores alheios ao fato previsto pela norma que também são aceitos jurídicamente – o que nos faz ver que de certa forma a filosofia em seus conceitos é similar aos conceitos jurídicos:
A virtude reflete uma conduta que deve ser seguida, imperativamente como definia Kant, à semelhança da norma, que reflete um dever-ser, que muitas vezes é relativizado por fatores alheios à conduta prevista pela norma mas que também são juridicamente aceitos.
Esses fatores, por sua vez, mostram que o dogma que é a norma jurídica também pode se mostrar uma verdade relativa – à semelhança do que apregoava grande parte da doutrina sofista.
E diante de toda a nossa abordagem aqui exposta vimos que na aplicação do cotidiano a virtude é ao mesmo tempo um dever-ser e uma verdade relativa, aplicável não segundo a norma exata mas de acordo a concepção de cada operador do Direito e de cada cidadão comum no caso concreto.
Talvez nós devêssemos é verificar que a virtude que mais se aproxima da nossa realidade é a aristotélica; ou seja, o ideal seria que se buscasse a verdade não por uma postura extremada de clausura ou bondade, nem tampouco de corrupção moral e indignidade, mas sim um meio termo, o bom senso que considera o bem comum ante a sórdida realidade.
Pode ser também que quem estivesse certo fosse Maquiavel: assim como não se deve confundir a função de se governar um Estado com os deveres impostos pela moral, seria equitativo concluir que não se deve confundir os nossos princípios de moral e virtude – ou as virtudes que cada operador do Direito segue por si mesmo – com o exercício da profissão.
Verificamos que o ideal não seria, então, buscar uma definição exata de virtude, pois tanto pode ser ela relativa, ou um meio-termo, ou a busca pelo bem comum de modo justo, ou pode ser todas essas concepções ao mesmo tempo e nenhuma delas como pode ser algo incondicionalmente de consideração individual. O ideal, nesse ínterim, seria que se avaliasse o exercício da profissão jurídica de um modo em que se buscasse não o bem individual, estritamente profissional e econômico, mas sim que se buscasse, individualmente, atingir a finalidade maior do Direito, que é a pacificação social.

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