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Teoria da arte - O mármore e a murta

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o mármore e a murta: sobre a inconstância
da alma selvagem ",
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o problema da descrença no século XVI brasileiro'
11m uma página magnífica do Sermão do Espírito Santo (1657), Antonio
V ieira escreve:
Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de pra{er de príncipes,
veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de está-
tuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua
de mármore custa muito a fa{er, pela dureza e resistência da matéria;
mas, depois de feita uma ve{, não é necessário que lhe ponham mais a
mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é
mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas
é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se
conserve. Se deixa ojardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo
que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem
I \ I I' lei ço a Mareio Goldman, Tânia Stolze Lima e Carlos Fausto pelas discussões
'1111 lrvuram à versão final deste ensaio, e especialmente a Manuela Carneiro da
I 11I1I1lI1.la parceriana formulação, há alguns anos, de muito do aqui exposto (cf.
I 111\ 'li'o ela unha & Viveiros de Castro 198j). O ensaio foi escrito graças à insis-
I 111 II 'n 'rosa de Aurore Becquelin e Antoinette Moliniê, que o aguardaram com
I li 111'11 '(11 ca: o de Aurorc) o traduziram parcialmente para sua publicação na
111.I 111'11M moirc de ta tradinon (11' .qu lin Molinié [orgs.] '993)'
dois que de cinco dedos lhe fa{em sete, e o que pouco antes era homem,
já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre
umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente
duras, tena{es e constantes, as quats dificultosamente recebem a fé e
deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam
com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam,
argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma
ye{ rendidas, uma ye{ que receberam a fé, ficam nelas firmes e constan-
tes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas.
Há outras nações, pelo contrário - e estas são as do Brasi/- que recebem
tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argu-
mentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de
murta que, em levantando a mão e a tesoura ojardineiro, logo perdem a
nova figura, e tornam à brutesa antiga e natural, e a ser mato como dan-
tes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas:
uma ye{, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que
não vêem, outra ye{, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que
não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; oútra ye{, que lhes
decepe o que vicejam ospés, para que se abstenham das ações e costumes
bárbaros da genti/idade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra
a nature{a do tronco e humor das raizes, sepode conservar nestas plantas
rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.
o imperador da língua portuguesa, como o chamou Fernando Pessoa,
elabora nessa passagem um tópico venerável da literatura jesuítica
sobre os índios. O tema remonta ao início das atividades da Compa-
nhia no Brasil, em 1549, e pode ser resumido em uma frase: o gentio
dopaís era exasperadoramente difícil de converter. Não que fosse
feito de matéria refratária e intratável; ao contrário, ávido de novas
formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar impressionar
indelevelmente por elas. Gente receptiva a qualquer figura mas
impossível de configurar, os índios eram - para usarmos um símile
menos europeu que a estátua de murta - como a mata que os agasa-
184 Omármore e a murta
lhava, sempre pronta a se refechar sobre os espaços precariamente
conquistados pela cultura. Eramcomo sua terra, enganosamente fér-
til, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que
não fosse sufocado incontinênti pelas ervas daninhas. Esse gentio
sem fé, sem leie sem rei não oferecia um solo psicológico e institu-
cionaÍ onde o Evangelho pudesse deitar raízes.'
Entre os pagãos do Velho Mundo, o missionário sabia as resistên-
cias que teria a vencer: ídolos e sacerdotes, liturgias e teologias - reli-
giões dignas desse nome, mesmo que raramente tão exclusivistas como
a sua própria. No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida alacre-
mente por um ouvido e ignorada com displicência pelo outro. Q.0imigo \
qui não era um dogm.!- diferente, mas uma indiferenç~ ao dogma, uma
ITcusa de escolher. Inconstância, indiferença, olvido: "a gente destas
terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a
mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo", desfia e desafia o
lesencantado Vieira. Eis por que São Tomé fôra designado por Cristo
para pregar no Brasil; justo castigo para o apóstolo da dúvida, esse de
I var a crença aos incapazes de crer - ou capazes de crer em tudo, o que
v m a dar na mesma: "outros gentios são incrédulos até crer; os brasis,
ainda depois de crer, são incrédulos".'
li selvaggio e mobile. O tema da inconstância ameríndia fez
r rtuna dentro e fora da reflexão missionária, e bem além de seu,
, Taylor já observou que a naturalização dos índios da América tropical fez-se sobre-
tudo em termos do reino vegetal (1984: 233 n? 8). Para um exemplo que a autora
1\ Ousa, veja-se, com efeito, o contraste de Gilberto Freyre (1933: 214-1)) entre a
"I' rsistência mineral" dos Inca e Azteca - a metáfora é aqui o bronze, não o mármore
a resistência de "pura sensibilidade ou contratilidade vegetal" dos selvagens brasi-
I -i ros, Valeria a pena fazer a história dessa imagística, que por vezes, como na página
vleiriana, recorda irresistivelmente as composições de Arcimboldo.
\,I to é ainda o Sermão do Espírito Santo (Vieira 16)7: 216). Sobre o motivo de São
Tomé na Asia e na América, e sua assimilação ao demiurgo tupinambá Sumé, cf.
M traux 1928: 7-I1, e Buarque de Holanda 1969: J04-25·

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