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DE LEI N° 1.057/2007 Como vimos, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 refere-s e à nocividade de algumas práticas tradicionais indígenas, com base no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Porém, o que significam essas práticas para as próprias comunidades indígenas? A resposta a esta pergunta só pode ser realizada a partir de um trabalho antropológico e, como destacado anteriormente, não temos o intuito de trazer descrições sobre elas, até porque esta tarefa demandaria um estudo mais aprofundado, o qual não nos cabe aqui. Assim, para compreendermos melhor a necessária aproximação entre Direito e Antropologia, exporemos a pesquisa de Marianna Assunção Figueiredo Holanda, que evidencia a significação dos sistemas simbólicos de algumas comunidades indígenas em relação a determinados interditos da vida. Afirma a autora que a vida entre os ameríndios – de uma forma geral – é construída. É construída, pois é através do vínculo com a comunidade que a criança torna-se aos poucos pessoa: pela aquisição de alimentos, pelo cuidado, pela 31 socialização, resumidamente, pelo saber “ser social”.148 Nesse sentido, a construção da pessoalidade é “um processo contínuo de aprender a ser humano”.149 Observa- se, assim, a importância do social e do coletivo para a concepção de vida ameríndia. De acordo com Marianna Holanda: [...] o projeto indígena de criação de vidas só se efetiva pela elaboração do social como um espaço de trocas, reciprocidades e interações. Fora disso não há social, não há possibilidade de vida humana sem vínculos afetivos, consangüíneos e/ou afins. Não há possibilidade de vidas nuas.150 Segundo Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, o corpo desempenha importante função para refletir a concepção de ser humano e para desenvolver a organização das sociedades indígenas brasileiras.151 A idéia de indivíduo recai sobre o aspecto social e coletivo, tendo em vista que a noção de pessoa está atrelada à corporalidade, relação baseada nas trocas inter-pessoais de fluídos (sêmen, sangue, leite), de alimentos e na convivência social.152 Nesse sentido, a pessoa é construída pela sociedade, ou seja, pelo processo de socialização. Portanto, nesses sistemas simbólicos, o nascimento implica em diversas transformações, afetando a vida prática dessas sociedades e as relações de parentesco e de troca.153 Dessa forma, por exemplo, os povos Araweté e Yanomami dão o nome à criança apenas quando ela está envolvida nos laços sociais, ou seja, quando ela consegue interagir com o meio social (falar, andar, alimentar-se, etc., de maneira autônoma).154 Ocorre que alguns recém-nascidos não possuem condições desse “saber ser”, pois estão impedidos, de alguma forma, de viver no grupo. Por essa razão, muitos deles não são considerados seres, são considerados não-humanos.155 Em outras palavras, os “entes”, nesses casos, não existem.156 Dentre as razões de as crianças não serem consideradas humanas, apresentam-se alguns fatos, como por exemplo, a criança não ter pai,157 o número ideal de filhos e o planejamento familiar, 148 Segundo Marianna Holanda, “uma criança que ‘nasce’ não é imediatamente feita humana e, portanto, a procriação não é garantia de parentesco. Isso porque, para eles, a consubstancialidade que nos faz consangüíneos e parentes não é fato, não é um dom, mas uma condição a ser continuamente produzida pelas trocas e relações”. (HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 16). 149 Ibidem, p. 17. 150 Ibidem, p. 135. 151 SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto; CASTRO, Eduardo Viveiros de. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de Oliveira (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987, p. 13. 152 Ibidem, p. 20-21. 153 HOLANDA, op. cit., p. 37-38. 154 Ibidem, p. 27. 155 Ibidem, p. 17. 156 Marianna Holanda destaca que alguns neonatos, por carecerem do “saber ser”, não são inseridos nas relações sociais. Tal motivo justifica a sua denominação a eles como “entes”, ao invés de “seres”. (Ibidem, p. 17). 157 IRELAND, apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 25; REVISTA TERRA apud HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos 32 a gemeleidade, a deficiência física e/ou mental, a preferência pelo sexo da criança, a criança ser concebida fora do casamento, os filhos de viúva,158 entre outros. Conforme salienta Marianna Holanda, “são as relações que vão dizer quem está apto ou não a transformar-se, a humanizar-se ou a não fazer sentido socialmente”.159 De acordo com José Otávio Catafesto de Souza, para os indígenas, a questão maior é a do sofrimento. Para eles, uma vida sofrida é uma vida indigna, razão pela qual a morte é vista como um mal menor. Assim também destaca Rita Segato, com base em alguns estudos, que em determinadas circunstâncias avalia- se se a vida do neonato vale a pena ser vivida ou não.160 Logo, consoante Marianna Holanda, se a criança, devido a alguma das circunstâncias mencionadas, é considerada incapaz de se tornar humana, então, não poderá continuar vivendo. Nesse sentido, argumenta-se que não há morte e, portanto, não há crime, pois, para isso, a criança deveria ser considerada pessoa e, assim, pertencer à sociedade – o que não ocorre.161 Afirma Marianna Holanda: Isso indica que, no intuito de pensar a negação do status de pessoa a alguns entes não estamos falando em morte, nem de crime, nem de movimento. O despertencimento do universo social é um processo tão gradual como a aquisição de humanidade; esta é, inclusive, a função dos ritos funerários, retirar o consubstancial. Ritos que não são efetuados para neonatos que nunca vieram a pertencer. Nenhuma marca social é registrada nestes entes. [...] Contudo, é justamente por estarem fora do sistema de relações que compõe o mundo, inclusive do sistema vida e morte, humanos e não- humanos que, paradoxalmente, podem ser constitutivos de toda esta sócio- lógica ameríndia: eles falam de tudo que se ausentam.162 Ao contrário, ressalta a autora, se a criança já está socializada, se já pertence ao grupo, a retirada de sua vida significa a morte e, neste caso, são procedidos os rituais funerários163 e a respectiva punição. Portanto, podemos perceber que a cultura indígena possui um sistema de símbolos significantes muito diferente do nosso. E é a partir desta tese que o olhar antropológico irá criticar o Projeto de Lei n° 1.05 7/2007. Agora, com o intuito de refletir melhor sobre o assunto, ordenamos as principais considerações de Rita Segato e Marianna Holanda,164 restringindo-nos a explicar somente as críticas concernentes ao direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 42. 158 HOLANDA, op. cit., respectivamente p. 48-49 e 64; 50-55 e 62-63; 59-60; 62; 61; 61. 159 Ibidem, p. 44. 160 SEGATO, Rita Laura. "Que cada pueblo teja los hilos de su historia: El argumento del Pluralismo Jurídico en diiálogo didáctico con legisladores". In: CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena. ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa. (Coords.). (Org.). Justicia y diversidad en tiempos de globalización. México: CIESAS e Red Latinoamericana de