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Teoria da História Aula 03 Os direitos desta obra foram cedidos à Universidade Nove de Julho Este material é parte integrante da disciplina, oferecida pela UNINOVE. O acesso às atividades, conteúdos multimídia e interativo, encontros virtuais, fóruns de discussão e a comunicação com o professor devem ser feitos diretamente no ambiente virtual de aprendizagem UNINOVE. Uso consciente do papel. Cause boa impressão, imprima menos. Aula 03: O “fato histórico” e o processo histórico Objetivo: Apontar para os problemas existentes no conceito de ―fato histórico‖, enfatizando a importância do processo histórico na compreensão do passado social. A noção de “fato histórico” As pessoas em geral se reportam à história referindo-se a um acontecimento específico, como: a queda do Império Romano, a Reforma protestante, a Segunda Guerra Mundial. Muitas vezes, tais referências são feitas de maneira ainda mais particular, como nas menções ao assassinato de Júlio César, ao ―Grito do Ipiranga‖, à bomba de Hiroshima, ao suicídio de Getúlio Vargas, só para ficarmos com alguns exemplos comuns. A história é, para a maior parte das pessoas, uma sucessão de eventos que se desdobram linearmente no tempo. Alguns desses eventos, para o senso comum1, foram praticados por personagens da história tidos como grandes líderes, heróis, homens e mulheres ilustres (como Alexandre da Macedônia, Joana D’Arc, Tiradentes) ou até mesmo por certas figuras consideradas brutais, como Nero e Sadam Hussein. As pessoas habituaram-se a ver tais personagens como atores especiais e diferenciados da história, que teriam impactado com suas ações a sociedade do seu respectivo tempo e contexto. Em outras palavras, temos aqui o que se convencionou chamar de ―fato histórico‖, merecedor desse nome por ter sido praticado por alguém que pretensamente tenha influenciado ou mudado o rumo da história. O conjunto dos ―fatos históricos‖, portanto, seria a história propriamente dita. No entanto, é absolutamente certo que o modo ―eventual‖ ou ―factual‖ de se lidar com a história nos afasta dos melhores entendimentos e das explicações mais elucidativas a respeito do passado das sociedades humanas. Aliás, podemos afirmar que essa prática oculta o passado mais do que o revela. Já vimos, nas lições anteriores, o quão prejudicial é a ocultação da história para as massas, para as populações pobres, para os trabalhadores urbanos e rurais, submetidos que estão aos interesses de elites e classes dominantes. Nosso esforço de historiador, portanto, deve dirigir-se para uma compreensão mais elaborada do passado, que leve em conta um conjunto de intenções e ações coletivas, que vamos chamar nos parágrafos seguintes de ―processo histórico‖. A compreensão da existência desses processos pelas pessoas em geral não somente mudará seu entendimento do que é a história, superando assim a visão factual, mas resultará na valorização do cotidiano das sociedades humanas e de suas respectivas lutas por liberdade, experimentação de justiça e verdadeira autonomia. Um exemplo de fabricação do “fato histórico” A expressão ―fato histórico‖, como vimos, revela o olhar seletivo para o passado, em busca daquilo que teria sido importante e que por alguma razão deveríamos saber e valorizar. Caso típico e de todos conhecido é o da Princesa Isabel, filha do Imperador Dom Pedro II, que assinou uma lei em 13 de maio de 1888, que ficou conhecida pelo nome de ―Lei Áurea‖ (significa ―lei de ouro‖). Essa lei declarou extinta a escravidão no Brasil e, a partir daí, espalhou-se a ideia de que a princesa Isabel teria sido a grande benfeitora dos escravos, praticando um ato generoso e humanitário, digno de uma legítima mandatária cristã. Nessa linha de raciocínio, Isabel teria se aproveitando de uma viagem do pai ao exterior (o Imperador Pedro II, representante das velhas elites) e, como regente, demonstrara o tradicional interesse dos governantes pelas causas sociais, particularmente em favor dos que sofrem. A princesa Isabel ficou conhecida a partir daí como ―a Redentora‖, título que lhe foi conferido pelo líder e ativista abolicionista José do Patrocínio. A data de 13 de Maio tornou-se o marco da promoção dos negros à plena cidadania e, com o advento da República, passou a ser comemorada oficialmente em todo o Brasil. Divulgou-se intensamente a imagem da ―Redentora dos escravos‖ nos livros didáticos e paradidáticos ao longo de praticamente todo o século XX. Por mais que se queira ver, no ato de Isabel, um gesto humano, que expôs sua fina educação, boas intenções e até mesmo o seu envolvimento com a causa abolicionista (da qual era uma entusiasmada participante), é notório que temos na exposição feita anteriormente a construção da figura de uma benfeitora. Além do mais, essa elaboração histórica põe todos os méritos da libertação dos escravos negros nas mãos da elite monárquica que governava o país. Reforça ainda a ideia de que as grandes causas, os grandes feitos sociais, são sempre empreendidos pelos governantes, que os oferecem ao povo como uma dádiva especial, resultado do que seria sua bondade e espírito público. Eis, portanto, um exemplo de como se cria o ―fato histórico‖. Com a doutrinação sutil, realizada pelas elites brasileiras, de uma história factual, foi imposta ao povo uma visão positiva à respeito das classes dominantes. Obteve-se também uma ―história‖ do fim da escravidão no Brasil sem qualquer forma de pensamento crítico. Pelo processo histórico explica-se consistentemente o passado A construção ideológica da abolição da escravatura oculta o que há de mais relevante para a compreensão correta daquele quadro: o processo histórico. Conflitos importantíssimos estavam estabelecidos na sociedade brasileira desde que se iniciara a escravização de índios e negros no período colonial, ainda em pleno século XVI. As lutas dos escravos negros por sua liberdade se fazia intensa, desde a resistência à tortura e ao trabalho degradante nas fazendas até as fugas e constituição dos quilombos2. O Quilombo dos Palmares (localizado na região da Serra da Barriga, Capitania de Pernambuco, hoje Estado de Alagoas), para exemplificar, desafiou o governo colonial e adotou internamente o modo de vida das sociedades africanas durante os séculos XVI e XVII. Figuras como as de Ganga Zumba (1630–1678) e de Zumbi (1655–1695), líderes quilombolas, têm grande importância para essa luta de resistência e de liberdade. No século XIX, ao longo do Segundo Império3, foi-se constituindo uma elite cafeeira, localizada especialmente no Vale do Paraíba e no interior de São Paulo, que desejava mudanças nas políticas governamentais, a fim de ver favorecidos seus interesses em tornar o Brasil um grande produtor e exportador mundial de café. Segundo tais fazendeiros poderosos, a mão de obra escrava não atendia à necessidade da cultura especializada do café e ao novo modelo agroexportador. Eles eram portadores de um discurso republicano e abolicionista. Leis que diminuíam o contingente de escravos no país surgiram no último terço do século XIX — a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei Saraiva-Cotegipe (1885). Tais medidas foram tomadas sob pressão internacional, particularmente da Inglaterra, interessada em ver um mercado consumidor mundial se expandir em função do aumento de sua produção industrial. Um intenso movimento abolicionista tomou corpo no Brasil a partir de 1870, engrossado por liberais, maçons,fazendeiros de café e negros nascidos libertos ou já alforriados. A nova cultura de liberdade, já em curso ao final do século XVIII e disseminada pelo mundo tendo como epicentro a Revolução Francesa, estava presente nos movimentos e articulações pela abolição da escravatura no Brasil. Pode-se afirmar, portanto, que todo esse conjunto de aspirações e ações levou à abolição da escravatura no Brasil. Eram ideias e procedimentos coletivos, muitas vezes contraditórios, mas que combinaram-se para concretizar a libertação formal dos escravos negros no país através da assinatura da Lei Áurea. A abolição da escravatura, a derrubada da monarquia e a instalação da república eram vistos como apenas uma questão de tempo nas três década finais do Brasil oitocentista. Porém, para que fossem obtidos tais resultados, longos, contraditórios e complexos foram os caminhos percorridos pelas classes e grupos concorrentes. Uma explicação para a história tem de levar em conta esse conjunto de coisas para que seja julgada consistente e livre de manipulações ideológicas. Conclusão Assim ensina a historiadora Vavy Pacheco Borges (1981): As alterações no processo histórico são decorrentes da ação dos próprios homens, os agentes da história. [...] São os homens constituídos em sociedade que, embora nem sempre conscientemente, atuaram e atuam para que as coisas se passem de uma ou de outra maneira, para que tomem um rumo ou outro (p. 49- 50). A autora quer enfatizar o papel decisivo dos homens no dar rumo à história. De todos aqueles que estão ―constituídos em sociedade‖ e não somente de alguns heróis e benfeitores. Não se nega o fato histórico e o evento, mas amplia-se a compreensão deles para vê-los como ações que se encaixam na prática coletiva. O processo histórico é a ação de tais forças sociais em suas múltiplas combinações. Cabe a nós o seu entendimento, com estudo e disposição para pensar. Saiba Mais Senso comum1: ideia geral, popular e superficial a respeito das coisas, que com frequência carece de base científica. O senso comum se opõe ao conhecimento acadêmico e científico. Quilombos2: expressão de origem africana para designar os núcleos de resistência negra que se constituíram, ao longo do período de vigência da escravidão no Brasil, como vilas e cidades de refúgio. O Quilombo de Palmares, por exemplo, chegou a ter trinta mil habitantes. Segundo Império3: período da história brasileira no qual o país foi governado pelos regentes e, em seguida, pelo Imperador Dom Pedro II, entre 1831 e 1889. Concluída a leitura da lição, não deixe de tirar suas dúvidas com o professor! REFERÊNCIAS BORGES, V. P. O que é História. São Paulo: Brasiliense, 1981. HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. MATTOSO, K. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
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