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Portaria N° 1129: escravidão contemporânea e a tomada de decisões em momentos de crise.

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Portaria N° 1129: escravidão contemporânea e a tomada de decisões em momentos de crise
Recorte da Portaria Nº 1129 referente à discussão:
IV - condição análoga à de escravo:
a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;
Art. 2º Os conceitos estabelecidos no artigo 1º deverão ser observados em quaisquer fiscalizações procedidas pelo Ministério do Trabalho, inclusive para fins de inclusão de nome de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016.
Resumo:
O presente artigo busca, em síntese, refletir acerca da Portaria Nº 1129, publicada em 13 de Outubro de 2017 pelo Ministério do Trabalho que dispõe e vincula a classificação de trabalhadores em condições análogas à escravidão à privação de liberdade do trabalhador, à sua respectiva manutenção sob segurança armada ou à retenção dos seus documentos. Além disso, a portaria também aumentou a burocracia da fiscalização e adicionou a necessidade de aprovação do ministro do Trabalho à publicação da chamada “lista suja”, com os nomes dos empregadores que comprovadamente mantiveram seus funcionários em condições análogas à escravidão. Ademais, busca-se, aqui, refletir também acerca das motivações para as tomadas de decisões no campo político e trabalhista em momentos de crise e de instabilidade e seus respectivos impactos na regulação da prática trabalhista no Brasil.
Palavras-chave:
Portaria Nº 1129; Escravidão Contemporânea; Dignidade da Pessoa Humana; Valor Social do Trabalho; Organização Internacional do Trabalho; Usos da História; Crise; Sociedade de Risco; Liquidez; Lista Suja.
  Em uma primeira análise, pode-se entender as lacunas que a publicação dessa Portaria legitimam, de forma a dificultar o combate ao trabalho escravo na medida em que restringe tal prática ao cerceamento da liberdade de ir e vir do trabalhador através da submissão com uso da coação e ignora inúmeros aspectos sociais que envolvem o fenômeno da escravidão na contemporaneidade.
  É nesse sentido que se insere a crítica à Portaria 1129, pelo fato do combate à escravidão moderna ser conceituado em tratados internacionais, através da Organização Internacional do Trabalho (OIT), principalmente pela garantia dos princípios fundamentais da dignidade humana e do valor social do trabalho.
  Dessa maneira, pode-se dizer que o fenômeno da escravidão, de uma maneira geral, não deve ser entendido exclusivamente acerca do direito de propriedade de uma pessoa sobre outra, de forma a considerar que aspectos como a condição degradante em que um trabalhador se encontra sejam fatores essenciais para se classificar à redução de uma pessoa à condições análogas ao trabalho escravo. Assim, entende-se que a dignidade da pessoa humana deva ser considerada como um dos pilares a se pautar as relações trabalhistas na contemporaneidade. 
  Sob essa mesma ótica, a historiadora americana Rebecca J. Scotti expôs o seu ponto de vista a respeito da conceituação do trabalho escravo na contemporaneidade:
Então, quando confrontarmos o argumento de que a “verdadeira” definição de escravidão é “ter propriedade sobre uma pessoa” ou, nas palavras de um magistrado, ter “total sujeição do indivíduo ao poder do agente do crime”, podemos responder que nem mesmo na época da escravidão legal a necessidade de provar a propriedade existiu. O exercício de um domínio senhorial é que foi considerado como evidência de que a pessoa submetida a esse domínio era escrava. O suposto “direito de propriedade” frequentemente vinha depois do exercício dos “poderes” que correspondiam a um tal direito -não o inverso (SCOTT, 2013, p. 136).
  Nesse sentido, a autora tece sua crítica a respeito do uso errôneo da história para se deslegitimar lutas atuais, como acontece no caso da escravidão na contemporaneidade. Assim, Rebecca J. Scott versa sobre a contextualização do conceito de escravidão usado na história e a exploração, ainda que não absoluta e nem sob “grilhões” e “chicotes”, que ocorre na modernidade.
  A historiadora, a partir desse momento, explica como a escravidão na modernidade acontece, de forma a explicitar que fatores como a condição social em que as pessoas se encontram em determinadas situações de vulnerabilidade são infinitamente mais determinantes que a ultrapassada ideia de direito à propriedade de uma pessoa sobre outra e de como o conceito de escravidão se reformulou para atender as demandas da modernidade.
  Assim, pode-se dizer que o principal fator caracterizante da escravidão contemporânea é o aliciamento entre “patrão” e trabalhador através da promessa de melhores condições financeiras e de melhoria na qualidade de vida, patrão esse que se utiliza da vulnerabilidade do outro para o lucro e o benefício próprio. Depois de aceitar essa promessa, o trabalhador muitas vezes contrai uma dívida praticamente impagável e é mantido sob uma condição totalmente adversa e degradante, tendo que exercer um trabalho sem remuneração e, na maioria dos casos, sem ter a quem recorrer. É nesse sentido que a Portaria de Nº 1129 se mostra como um retrocesso no combate ao trabalho escravo no Brasil, na medida em que não necessariamente deva haver uma segurança armada ou o uso de coação para a manutenção do trabalhador sob condições degradantes, ou seja, o fato por si só de se manter um trabalhador sob condições sub-humanas já deveria (e era até então) suficiente para a classificação de redução de trabalhador à condição de trabalho escravo.
  Como elemento que trabalha na fundamentação para o argumento de retrocesso de tal decisão, pode-se utilizar de termos como Sociedade de Risco abordada pelo teórico Ulrich Beck pela primeira vez no ano de 1986 e que se conceitua como uma sociedade em que se estrutura através do medo, do risco e da imprevisibilidade do amanhã, já que o presente se pauta em situações de crise. É nesse cenário de insegurança e instabilidade que perigos e riscos disfarçados de promessas de melhoria e de garantias para o trabalhador são aprovados. Como exemplo trazido para o contexto brasileiro, tem-se essa Portaria que flexibiliza e prejudica o combate ao trabalho escravo contemporâneo, mas que, em teoria, gera emprego para as classes vulnerabilizadas e mão de obra barata para os patrões.
Una situación muy distinta se origina cuando los peligros de la sociedad industrial dominan los debates y conflictos públicos, políticos y privados, Se constata que las instituciones de esta sociedad se convierten en focos de producción y legitimación de peligros incontrolables sobre la base de unas rígidas relaciones de propiedad y de poder (BECK, 1996. P. 202)
  Nesse cenário de crise e de instabilidade, pode-se dizer que se dilui o caráter de norma na tomada de decisões e, assim, passa a se adquirir o caráter de exceção para se justificar o viés absurdo que tal atitude carrega consigo. Dessa maneira, a flexibilização das garantias ao trabalhador e a precarização das condições em que um trabalhador se dispõe, ainda que de maneira inconsciente, acaba por se tornar permanente e legitimado.
  Outro autor a defender tal linha de raciocínio é o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman que, apesar do cenário pós Segunda Guerra Mundial, ainda pode ser considerado bastante atual, dadas as atitudes que vêm sendo tomadas atualmente no Brasil. Em suma, o autor faz uma reflexão acerca do caráter de liquidez e flexibilidade que a modernidade traz consigo, ou seja, dadaa situação de instabilidade em que o mundo inteiro vive após a Grande Guerra, a sociedade passa a relativizar e a negar as “lições” que foram aprendidas com o passado, de forma a não criar laços definitivos hoje (seja no campo trabalhista ou não) devido à imprevisibilidade do que pode acontecer no futuro. Tal caráter de liquidez das relações pode ser levado para os campos da política e da economia e explicar a desregulação que baseada na flexibilização e na promessa de liberdade, mas que, em suma, serviu de fundamentação para a exploração das classes mais frágeis e vulneráveis.
No hace falta demasiada imaginación para hacerse uma ideia de lo inciertas y frágiles que se han vuelto las vidas de aquellos que han quedado fuera del mercado de trabajo precisamente a causa de ello. El punto es que, sin embargo y por lo menos psicologicamente, todos los demás también se han visto afectados, aunque por el momento sólo sea de manera oblicua. Em el mundo do desempleo estructural, nadie puede sentirse verdaderamente seguro. Los empleos seguros em empresas seguras resultan solamente nostálgicas historias de viejos (BAUMAN, 2004. P. 171).
  No Brasil, o aumento do desemprego e a alta da inflação explicam a tomada de decisões no âmbito de se flexibilizar a legislação vigente, como é o caso da Portaria de Nº 1129 que, ao vincular a ideia de escravidão na modernidade à ideia do cerceamento da liberdade do trabalhador, acabou por inviabilizar a denúncia e a condenação de inúmeros empregadores que mantinham os seus empregados em condições degradantes e sub-humanas.
  Como consequências e impactos que a Portaria de Nº 1129 traz para o campo jurídico, é importante salientar as barreiras que a mesma impõe no combate ao trabalho escravo no Brasil. Dessa maneira, é relevante, de início, mostrar os esforços que vem sendo feitos para a erradicação da exploração do trabalhador tanto no espaço rural quanto no espaço urbano. 
  Nesse viés, nota-se que a importância necessária para a problemática da escravidão contemporânea no Brasil só foi dada a partir da segunda metade da década de 1980, no período pós Ditadura Militar e após a cobranças dos integrantes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1986 para atitudes do governo brasileiro em relação à essa temática. Em 2003, com o então presidente Luís Inácio Lula da Silva, tem-se alguns exemplos dos esforços feitos em prol da causa, assim, mostra-se os dois Planos Para a Erradicação do Trabalho Escravo e a criação do Cadastro dos Empregadores envolvidos em trabalho escravo em 2004 pelo Ministro de Estado do Trabalho e Emprego (Ricardo Berzoini), tal Cadastro ficou popularmente conhecido como “Lista Suja”, que atuava em conjunto com a mídia, para a divulgação de empregadores que se mostravam envolvidos em casos de exploração em suas terras. 
E, especialmente a partir de 2003, com novas ofensivas do Estado e com o I e II Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, a ação do Grupo se torna mais eficiente: inclui os resgatados na lista do salário desemprego e, com o apoio do Ministério Público do Trabalho, firma Termos de Ajuste de Conduta (TAC); inclui em um Cadastro do MTE as empresas consideradas flagradas no crime do trabalho escravo (FIGUEIRA, 2010. P. 9)
  Outra medida de notável importância para o combate do trabalho escravo no Brasil é a redefinição do Art. 149 do Código Penal e que traz consigo a mudança e a inclusão da conceituação do “trabalho degradante” como fator caracterizante do crime de redução do trabalhador à condição de trabalho análogo ao escravo. Tal mudança foi feita através do sancionamento da lei 10.803 em 2003 pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva e que contribuiu para dar um aporte mais claro ao conceito de escravidão na contemporaneidade ao vincular, essencialmente, a ideia de trabalho escravo às condições degradantes em que um trabalhador se encontrar.
  Dessa maneira, é importante também salientar a posição da então ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie que expôs o seu ponto de vista sobre a relação entre a condição em que o trabalhador se encontra e a caracterização da escravidão contemporânea no julgamento de acolhimento ou não de denúncia formalizada pelo inquérito nº 2131 e que versava sobre a existência de trabalhadores em situação análoga à escravidão nas terras do senador João Batista de Jesus Ribeiro. Em seu voto, a ministra Ellen Gracie reconhece o trabalho em condições análogas à de escravo “a partir do momento em que há um desrespeito ao atributo maior do ser humano, que é a sua dignidade [...]”.
  Por fim, pode-se concluir que o fenômeno da escravidão na contemporaneidade acabou por se adequar às formas de exploração modernas, já que o próprio direito à propriedade de uma pessoa sobre outra deixou de ser legal. Assim, é importante ressaltar os fatores que caracterizam a escravidão moderna e as melhores formas de se combatê-la, como é o caso da divulgação de uma lista com o cadastro de empregadores que, comprovadamente, mantém seus trabalhadores em condições análogas à escravidão. É importante, sobretudo, entender o próprio fenômeno da escravidão contemporânea, de forma a entender que o desrespeito à dignidade de um ser humano é também desrespeitar os direitos fundamentais de uma pessoa, sendo essa a principal característica da redução de um trabalhador à condições análogas à de escravo. É nesse sentido que se tece a crítica a respeito da Portaria de Nº 1129, na medida em que a mesma restringe o conceito de condição análoga à escravidão apenas ao cerceio da liberdade de ir e vir do trabalhador e à sua respectiva manutenção sob uso da coação, deixando assim de considerar os fatores sociais e as sequelas que englobam a prática da exploração na vida do trabalhador. 
Referências Bibliográficas:
Brasil. Portaria de Nº 1129, de 13 de outubro de 2017. Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei n 7998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PI MTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 de out. de 2017. Seção 1, p. 82. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/diarios/164348953/dou-seção-1-16-10-2017-pg-82 > Acesso em: 15 nov. 2017
SCOTT, Rebecca J. O trabalho escravo contemporâneo e os usos da história. Disponível em <http://dx.doi.org/10.5007/1984-9222.2013v5n9p129>. Acesso em: 21 ago. 2017.
BECK, Ulrich. Teoría de la sociedad del riesgo. In: GIDDENS, Anthony; et al. Las consecuencias perversas de la modernidad: modernidad, contigencia y riesgo. Trad. Celso Sánchez Capdequí. Rev. Josetxo Beriain. Barcelona: Ed. cultura Libre, 1996.
PAULANI, Leda Maria. Capitalismo financeiro, estado de emergência econômico e hegemonia às avessas no Brasil. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (org.). Hegemonia às avessas: economia política e cultura financeira na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidad liquida. Trad. Mirta Rosemberg e Jaime Arrabide Squirru. 1a ed. 3a reimp. Buenos Aires: Ed. Fondo de Cultura Económica. Jorge Zahar, 2004.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes. Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo: como, quando e de onde os trabalhadores falam. Trabalho apresentado no VIII Congresso Latinoamericano de Sociologia Rural, Porto de Galinhas, 2010. Disponível em <http://www.alasru.org/wpcontent/uploads/2011/09/GT25-Ricardo-Rezende-Figueira.pdf>.
BRASIL. Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. Portal da Legislação, Brasília, DF, 11 dez. de 2003. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.803.htm > Acesso em: 15 de dez. de2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 2131. Distrito Federal. Relator: Ministra Ellen Gracie. Pesquisa de Jurisprudência. Acórdãos, 6 agosto 2012. Disponível em: < https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22085737/inquerito-inq-2131-df-stf > Acesso em: 15 nov. de 2017.

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