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2 Estudar Texto 06 O lazer no espectro do tempo livre

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--A BUSCA DA EXCITAÇAO 
MEMORIA e SOCIEOAO[ 
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Título original: The Quest for Excitement 
©1985 by Norbert Elias and Eric Dunning 
Todos os direitos para publicação desta obra reservados s6 para Portugal por: 
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Denominação Social 
Sede Social 
Capital Social 
Contribuinte n.• 
Matrícula n .• 3007 
- DlfEL 82 - Difusão Editorial, Lda. 
- Rua D. EstefSnia, 46-B 
t0OOIJSBOA 
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- 501378537 
- Conservatória do Registo Comercial de Lisboa 
Memória e Sociedade 
Colecção coordenada por Francisco Berhencourt e Diogo Ramada Curro 
Ca.pa: Emllio Távor11 Vilar 
Revisão: Maria Manuela Vieira e Ayala Monteiro 
Compo$ição: Maria Esther - Gab. Fotccomposifã() 
Impressão e acabamento: Tipografia Gr,erra, Viseu 1992 
Depósito Legal n.º 
ISBN 972-29-0203-2 
Proibida a reprodução total ou parcial sem prévia autorização do Editor 
CAPÍTULO II 
O lazer no espectro do tempo livre 
Norbert Elias e Eric Dunning 
l 
O facto de as decisões humanas se entrelaçarem não é nítido, 
provavelmente, senão para um fil6sofo1• Mas a maneira segundo a 
qual o fazem é diferente no trabalho profissional e nas actividades 
de tempo livre das pessoas. Aliás, em relação a estas últimas, é di-
ferente nas actividades que são ou não dedicadas ao lazer. Em certos 
aspectos, todas as actividades de um indivíduo têm outros in-
divíduos como quadro de referência, noutras, o quadro de referên-
cia é o próprio agente. No caso das actividades de trabalho, o 
equilíbrio entre estes dois aspectos inclina-se a favor do primeiro, 
no caso das actívidades de lazer, a favor do último. O que significa 
que, no trabalho profissional, tal como ele está estruturado nas 
nossas sociedades, as decisões das pessoas no sentido de fazerem isto 
ou aquilo são sempre tomadas, em grande medida, tendo em 
consideração outros de quem se possa dizer «eles», ou ,mesmo, a 
respeito de unidades mais impessoais, das quais se possa dizer 
«esse», embora. na verdade, o aspecto «eu» nunca se encontre 
ausente por completo2• Nas decisões sobre acdvidades de lazer, 
como veremos, as referências aos outros são mais relevantes do que 
pode parecer à primeira vista, a consideração por si próprio pode ter 
mais peso do que a que terá no caso do trabalho profissional ou no 
1Foi publicado um extracco desta comunicação na obra de Rolf Abonico e 
Katarina Pfister-Bim:, Sociology of Sport: Thw-etkal Fo11náatiom and R.esearch Methoá;, 
Basle, 1972. 
2Pa.ra um debate sobre os pronomes pessoais como um modelo configuracional, 
ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, p. 122 e seguintes. 
140 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
das actividades de tempo livre que não possuem o carácter de lazer. 
Quando se trata da escolha das suas pr6prias actividades de lazer, 
a consideração pelo seu próprio prazer, pela sua própria satisfação, 
pode ser soberana dentro de certos limites socialmente estabeleci-
dos. Que tipos de satisfação proporcionam e como as desencadeiam 
são as questões que continuam por esclarecer. 
Na actual literatW'a sociológica, pode notar-se uma tendência 
para considerar o lazer como wn mero acessório do trabalho~. A sa-
tisfação agradável, proporcionada pelas actividades de lazer, tende 
a ser considerada como um meio para atingir um determinado fim 
- o de permitir o alívio das tensões e de melhorar as capacidades 
das pessoas para ele. Contudo, se perguntarmos, desde logo, qual é 
a função ·do lazer relativamente ao trabalho, a possibilidade de 
resposta torna-se difícil. fu!hljnha.r Q...fu:m de P..,.q.~JlYm.,~_sQfied.~~e 
d~ , crª~a._lho o lazer é a única esfera pública em que as d~cJ_sões 
individuais podem ser tom~as considerando, a_~tes de ~~gg, ª 
s_a}:~sfação agrac{ável de cada um constitüi já um passo em frene;~ no 
sentido do afastamento desse bloqueio. É um avanço no sentido da 
crítica da abordagem sociológica, tanto ·teórica como empírica, que 
é dominante quanto aos problemas do lazer.- Não pretendemos 
sobrecarregar este ensaio com a elaboração de semelhante crítica. 
Parece mais adequado utilizar o espaço disponível para indicar, de 
uma forma positiva, até onde se pode chegar se estas limitações 
forem abandonadas. Poré,m,. .t:31~. ~eja útil apceseor~u:: um~e 
rest;>.r:m:>. de.: alg~s. pon.to~srí)Jç9s.,-.... 
@o predomínio de uma abordagem dos problemas do lazer cen-
\~ trado no trabalho garante uma cerca consistência no tratamen-
ro dos mesmos, mas esta solidez é, em larga medida, devida a 
um sistema de valores e de crenças aceite vulgarmente e que, no 
entanto, não é indiscutível. Não seria totalmente injustificado 
afirmar que é nisso que reside a consistência de uma ideologia 
do lazer: a essência actual, as coisas boas e válidas na vida de 
uma pessoa, que parecem ser a sua própria essência, é o trabalho 
lPara exemplos representativos desta bibliografia, ver Stanley Parker, The 
F11ture of Work and Leisu,-e, Londres, 1971; Joffre Dumazedier, Toward a Society of 
Leisure, Nova Iorque, 1967; The Sociology o/ Leísure, Amesterdão, 1974; e Alasdair 
Clayre, WorkandP.lay,Londres, 1974. · 
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CAPÍTULO II 141 
que um individuo realiza. Durante as horas em que não preci-
sam de trabalhar, as pessoas fazem coisas que são de menor valor 
ou, por inerência, sem valor, e a sociedade é tolerante face às 
suas inclinações para os prazeres da ociosidade. No fundamen-
tal, diz-se que isto é uma mera forma de atenuar a fadiga e a 
tensão do trabalho. De acordo com esta ideologia do lazer, a 
principal função das actividades de lazer é a relaxação dessas 
tensões. 
(
. Para colocar a questão de uma forma mais extrema, enquan-
to proposição cientifíca, este tipo de raciocínio, a ideia de que! 
as actividades de lazer devem ser consideradas como au.xiliares1 
,1 d? tra~alho, é uma hipótese.qu~ exig: verificação. ActuaI:11ente,I 
\ 
runguern parece ter uma 1de1a muito clara sobre o tipo de\, 
esforços do trabalho em relação ao qual as pessoas procuram; 
alívio nos ~eus lazeres, a não ser que. o que se ~retende dizer seja I 
1
1 
apenas fadiga e que, nesse caso, sena melhor 1r para a cama do ;: 
~ que ir ao teatro ou a um jogo de futebol. E visto que ninguém ·; 
~ sabe que espéci.e de _«fadiga» ou de ,«tensão» o ,trabalho produz i
1 ~ nas pessoas, mnguem sabe, tambem, corno e que as nossas il 
~ actividades de lazer actuam de forma a proporcionar relaxação. i; 
t Em vez da aceitação cega das hipóteses convencionais integra- i: 
idas na linguagem de todos os dias é, decerto, muito melhor f 
~ criar .. ~ novo ponto de partida e cada um dizer a si próprio:,; ~ ,<'Kqui está" um prÕbÍemaem abêrt9}> Ninguém deve aceitar a~-
~rmação tradidÔnal de-que a função das actividades de lazer se 
destina a permitir que as pessoas trabalhem melhor, nem sequer 
a ideia de que a função do lazer é uma função que só existe na 
perspectiva do trabalho. De modo equívoco, isto parece um 
julgamento de valor representado como uma declaração de 
-~"' ·'f facto.~ma boa dose de evidência sugerindo que as estru-
.... \,~~,,.; .t.l.!.~~,run.ções.. das acd.i.Jdã&iJ!,~ Jitzer_~ podem s~r com-: 
i'-( >' , ~endidas se não se consic!e,mrem cotllQ w:n feJ!§!lleno ~ociaC 
"\,, ~r. d.ireiro .próprio, .intet:d.epenc;i~Qte__ g~_.ru:.úvida~~não · 
\ lazc,,, mas,. do . .pomo. ,!e_ v~~ 
\ ~ão s~bpr~i.~a.~~.7las. Tanto as actividades de lazer como 
\ de não lazer têm, eviaen~~~-~s ...{1,3ta as -R~~-
,,,,,,,. 4..qµe,sJão ceside no fa~.!9_ ~~--de~~?~!i.~,,.9.yru$,~~ik>., ... 
· o/rovavelmente, isto é um sintoma do mesmo quadro de valores 
> tradicionais. que, apesar da importância crescente que as activi-
142 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
dades de lazer representam
na vida actual das pessoas, tem 
como efeito que o lazer continue a ser relativa.mente despreza-
do como área de investigação sociológica. Uma outra manifes-
tação do sentido negativo desta avaliação pode ser encontrada 
em declarações que sublinham que o lazer é «irreal», «fantasia» 
ou, simplesmente, uma «perda de tempo», o que implica que 
s6 o trabalho é «real»'!. Numerosas teorias actuais da sociedade 
revelam o impacte destas híp6teses. Os modelos das relações 
hwnanas integrados nos seus conceitos - em conceitos tais 
como «papel», «estrutura», «função», «sistema» e muitos 
outros, como vulgarmente se usam - desenvolveram-se, antes 
de tudo, a partir do tipo de relações humanas encontrado naqui-
lo que pode chamar «as coisas sérias da vida», na vida de não 
lazer. Raramente assinalam tipos de relações de certo modo 
diferentes que, como veremos, estão por descobrir em muitas 
actívidades de lazer. Sem a consideração de diferentes tipos de 
relações, corno os que estão por descobrir no lazer e no trabalho, 
as teorias sociológicas dificilmente podem afirmar que domi-
~ nam os factos observáveis da vida. 
1{ 3)JA tendência para explicar as actívidades de lazer em termos da ~ sua função, como um meio de proporcionar «relaxação das 
tensões>> ou «recuperação das fadigas do trabalho», é um indi-
cador dessa hipótese largamente divulgada nos textos contem-
porâneos da sociologia, tradU2indo a ideia de que as tensões 
devem ser avaliadas como algo negativo. Elas não são entendi-
das à partida como factos para serem investigados, mas, antes, 
como alguma coisa de que as pessoas se devem «ver livres». 
Deste modo, as investigações que abordam o lazer, acima de 
tudo, como wn modo de libertar as tensões podem induzir em 
erro; as avaliações dos seus pr6prios autores tomam o lugar de 
uma investigação sobre as funções. Se as tensões devem se~ 
~Y!!fü~d~ •. .P..l.l:.~imP._!:~mente, como perturbações d.as quais as 
--.~._ ... ,,,,....... .. ~---~-~ .......... -.. ·---~-----,. 
4No que diz respeito à afirmação de que o desporto é «irreal» ver, por exemplo, 
Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Dís-play», Chicago Review, Vol. 9, n." 
3 (Fali, 1955), pp. 83-100, reeditado em E. I.arrabee e R. Meyersohn (eds.}, Afa.H 
úisure, Glencoe, Illinois, 1958; e Eric Dunning(ed.) The Sociology of Sport: a Selection 
of Jwzrlings, Londres, 1971. Ver também Peter Mdntosh, SPfwt in Society, Londres, 
1963, pp. 119-20; e Roger Caíltois, Man, Play and Ga1111J, Londres, 1962, pp. 5-6. 
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CAPÍTULO lI 143 
_própri_~ pes~oas ~~ pr<>Ç,!,ltam ver liyres, porgue é__g~ nQ_sbq. 
te_~E~ __d,~ __ l_~Êt:.~l~,:r.olt:iffi s~m~.'?S:l-!.~r,, _J!IJJ.-ª,,Wl~nsifu:.!-
ção A~ .. t~nsfte.s]_Ern vez de condenar as tensões como algo que 
prejudica, não se deveria antes explorar as necessidades que as 
pessoas revelam por uma dose de tensão, enfim, como um 
ingrediente normal nas suas vidas? Não se deveria antes tentar 
distinguir com maior clareza entre tensões que são sentidas 
como agradáveis e tensões que são sentidas como desagra-
dáveis? É bastante fácil ver que um denominador comum de 
todos os factos de lazer é o de estimular o aparecimento de 
tensão agradável. Então, o que significa dizer que a função do 
lazer é proporcionar relaxação das tensões? Esta é uma das ques-
/7;· tões que exigem demonstração. 
10.YAs pesquisas sociológicas de problemas do lazer tendem a ser 
· prejudicadas {>ela considerável confusão que existe na utilização 
dos termos. As vezes, por exemplo, não há uma clara distin-
ção entre «lazer» e «tempo livre» como conceitos sociológicos~. 
Os dois termos são utilizados, com frequência, alternadamente. 
Os tipos de acrividades a que se aplicam variam muito. Não 
existe uma classificação adequada destes tipos. Sem uma classi-
ficação, como tem sucedido até agora, continua obscuro o lugar 
do lazer no tempo livre das pessoas e a relação entre os nu-
merosos tipos de actividades de tempo livre. O «espectro do 
tempo livre» é uma tentativa de proporcionar uma tal dassifi-
"'.;::,. cação. 
,,... ' (~r As deficiências que mencionámos tiveram consequências no 
plano e na direcção do estudo sobre os problemas --d.o lazer. 
Talvez seja suficiente apresentar dois exemplos: 
a) Os esforços das investigações sociológicas tendem a concen-
trar-se em certas áreas-limite das actividades de lazer. Por 
exemplo, os meios de comunicação social são um tema favorito 
de investigação. Teatro, desporto, danças com carácter social, a 
ida ao bar, concertos, touradas e um vasto campo de outras 
actividades de lazer raramente têm sido tratadas como temas 
~Dumazedier e alguns outros começaram a delinear semelhante distinção, mas 
continua a ser comum, em escritos de sociologia do trabalho onde o lazer é referi-
do, a dicotomia incorrecta entre «trabalho-lazer» e a tendência para usar os termos 
«tempo livre» e «lazer» alternadamente. 
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144 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
centrais de investigação. A concentração da investigação na 
televisão, rádio, jornais e outros meios de comunicação social 
pode dever-se, em parte, à sua importância como meios de 
socialização política e de controlo social e, também, à hipótese 
de que, enquanto actividades de lazer, preenchem uma fracção 
de tempo maior do que outras actividades. Contudo, mesmo 
que fosse este o caso, sem uma investigação mais alargada não 
se pode afirmar que o tempo despendido pelas pessoas num tipo 
específico de acrividades de tempo livre é, necessariamente, 
uma medida do significado que ele tem para estas. Não é 
impossível que os meios de comunicação social sirvam, como 
formas de preencher o tempo, como outra maneira de «se 
ocupai: d.e futilidades», sendo isso uma das razões para o aumen-
to do tempo que lhe é dedicado, num período em que o tempo 
livre calvez tenha aumentado mais depressa do que a capacidade 
das pessoas para o utilizar; 
b) Falta uma teoria central do lazer, capaz de servir como 
um quadro comum de investigação relativamente a todas as es-
pécies de problemas específicos do lazer. Poderá duvidar-se de 
que esta se desenvolva, enquanto a investigação empírica esti-
ver largamente confinada a áreas muito limitadas das activida-
des de lazer. Sobre bases tão delicadas, não se pode nem deter~ 
minar nem explicar as características e as funções que todas as 
actividades de lazer possuem em comum. Não se pode dizer o 
que é que distingue as acrividades de lazer de rodas as outras 
actividades humanas. Este escudo tenciona ser um passo nessa 
direcção. É um movimento n-0 sentido d.e uma teoria do lazer 
unificada. Como veremos, por meio da clarificação das carac-
terísticas comuns das actividades de lazer, também é possível 
apresentar de forma mais completa as características que distin-
guem os diferences tipos de actividades de lazer entre si. 
2 
O espectro do lazer do tempo livre 
Observações críticas como estas indicam desde já que é ne-
cessária uma nova orientação do pensamento antes que seja possí-
·) 
~ 
'• 
CAPÍTULO ll 145 
vel compreender as relações e as diferenças entre as variadas 
actividades de tempo livre, entre as quais se inscrevem as activida-
des de lazer. O «espectro do tempo livre», que se encontra nas 
páginas a seguir, é uma tentativa de traçar um breve esboço destas 
relações e diferenças. Propõe-se delinear aquilo que até agora tem 
faltado, nomeadamente, uma ampla tipologia compreensiva e de-
talhada das actividades de tempo livre. Mostra, em síntese, que as 
actividades de lazer são apenas um tipo entre outras. Ao mesmo 
tempo, indica a relação entre o lazer e outras actividades de tempo 
livre. Como pode ver-se, a distinção é bastante óbvia: todas as 
actividades de lazer são actividades de tempo livre, mas nem todas 
as de tempo livre são de lazer. Esta afirmação, considerada de forma 
isolada, não é particularmente
reveladora. A sua pertinência só é 
vísivel no contexto do quadro teórico alargado integrado neste 
pequeno trabalho. Seria bastante estranho que fosse possível, sem 
wn tal esquema teórico, compreender com clareza o facto de que 
um grande número de actividades de tempo livre não são dedicadas 
ao lazer. Isso não permitiria, por assim dizer, que se atingisse o alvo 
em cheio. 
Qualquer classificação de dados observáveis que seja arbitrária 
é inútil. Se o quadro de classificação do espectro do tempo livre não 
corresponder aos resultados de outras investigações neste campo, 
pode ser eliminado mas só no caso de estarmos em condições de lhe 
oferecer, em bases novas, um substituto mais adequado. Tal como 
está, o espectro do tempo livre revela, pelo menos, algumas carac-
terísticas estruturais que ligam entre si as várias categorias de 
actividades de tempo livre e que as distinguem de actividades de 
tempo não livre do trabalho profissional. O quadro teórico de base 
nele integrado emergirá, progressivamente, no decurso deste arti-
go. Começámos a organizá.:.lo em «A Busca da Excitação no Lazer» 
(Capítulo 1). No presente capítulo, vamos desenvolvê-lo tendo em 
atenção uma classificação mais compreensiva do lazer e de outras 
actividades. Não se deve pensar que, para desenvolver este quadro 
de classificação, a teoria unificadora que suporta o espectro do 
tempo livre tenha constituído a priori um ponto de partida. Este só 
emerge, de forma gradual, em constante fertilização cruzada com 
uma classificação alargada de observações sobre as actividades de 
tempo livre. Tal como Brisaeus afirmou em relação à Terra, na 
investigação sociológica o pensamento teórico só conserva a sua 
l 
Leonardo Lima
Realce
146 O L.<\ZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
força enquanto não perder o contacto com o terreno firme dos 
factos empíricos. 
Chamámos à tipologia que se segue um «espectro» devido a os 
vários tipos de actividades de tempo livre, corno cores no espectro 
das cores, se confundirem entre si; sobrepõem-se e fundem-se com 
frequência. Muitas vezes, combinam características de várias cate-
gorias. Mas as propriedades de tais amálgamas, de todas as frontei-
ras e tipos em transição, só podem ser compreendidas a partir das 
suas próprias características. Uma vez que se comece de novo e o 
problema se encontre definido, a descoberta de características es-
truturais comuns em activídades de lazer aparentemente diversas, 
de traços que as distinguem como activ.idades de lazer das actívi-
dades de, não lazer, não é particularmente difícil. Por exemplo, 
como um indicador da orientação do fio teórico que percorre o 
espectro, pode dizer-se que todas as actividades de lazer integram 
wn controlado descontrolo das restrições das emoções. Como se 
pode ver, as categorias do espectro do tempo livre consideradas 
como um todo podem distinguir-se pelo grau de rotina e de des-
truição da rotina ou, por outras palavras, pelo diferente equilíbrio 
entre os dois aspectos que nele se encontram integrados. A destrui-
ção da rotina dá-se mais rapidamente nas actividades de lazer mas, 
mesmo aí, é uma questão de equilíbrio. A destruição da rotina e o 
descontrolo das restrições sobre as emoções estão bastante relacio-
nados entre si. Uma característica decisiva das actividades de lazer 
não só nas sociedades industriais altamente ordenadas mas, tam· 
bém, tanto quanto se pode ver, em todos os tipos de sociedades, é 
a de que o descontrolo das restrições sobre as emoções é controla-
do, ele mesmo, social e individualmente. 
O espectro do tempo livre 6 
1) Rotinas do tempo livre 
a) Pr(Wisão rotineira das própt·ias necessidades biológicas e cuidados 
6Seria possível esboçar wna tipologia correspondente de formas de ocupação 
fora do tempo livre baseadas no mesmo quadro teórico de reforênda e apresentar não 
só a diferença mas, também, a continuidade do espectro do trabalho e do espec<ro 
do tempo livre. Num dos limites da escala, situam-se tipos de trabalho quase total-
CAPÍTULO II 147 
com o próprio corpo, por exemplo, comer, beber, descansar, dor-
rnír, fazer amor, fazer exercícíos, lavar-se, tornar banho, resolver 
questões relativas a alimentos e a doenças; 
b) Governo da casa e rotinas familiares, conservar a casa em or-
dem, organizar as rotinas, cuidar das lavagens de roupa, com-
prar alimentos e roupas, fazer preparativos para uma festa, re-
solver assuntos de impostos, administração da casa e outras for-
mas de trabalho (isto é, não profissional) prívado para si próprio 
e para a sua família; lidar com tensões e fadigas familiares; 
alimentar, educar e cuidar das crianças; tratar dos animais. 
2) Actividades intermediárias de tempo que servem, principal-
mente, necessidades de formação e, ou também, auto-satisfação 
e autodesenvolvimenco. 
a) Trabalho particular ( isto é, não profissional) voluntário para ou-
tros, por exemplo, participação em questões locais, eleições, 
igreja e accividades de caridade; 
b) Trabalho particular (isto é, não profissional), antes de t1,do, para 
si próprio, de uma natureza relativamente séria e com freq11ência impes-
soal, por exemplo, estudo privado com vista a progressos profis-
sionais, passatempos técnicos sem valor profissional 6bvio mas 
que· exigem perseverança, estudo especializado e competência, 
tais como construir rádios ou ser amador de astronomia; 
e) Tt-abalho particular (isto é, não profissional), antes de tudo, para 
si próprio, de um tipo mais ligeiro e menos exigente, por exemplo, pas~ 
satempos como fotografia amadora, trabalho em madeira e 
colecção de selos; 
mente desprovidos de oportunidades intrínsecas e autónomas de ressonaneta 
emocional agradável, embora as pessoas consigam, com frequência, processos de se 
desviarem de rotinas de trabalho, áridas, por inerênda, do ponto de vista emocio-
nal, através de formas específicas heterónimas de agradável desempenho, por 
exemplo, as conversas fúteis de camaradagem, o importunar recém-chegados, o brio 
quanto à competência com que se realizam as rotinas, as vitórias em competições e 
lutas. No outro limite da escala, situam-se tipos de trabalho profissional com 
opommídades intrínsecas de comunicativa ressonância emocional, como no caso do 
ensino ou da investigação numa universidade, da participação em confrontos par-
larneotare$, de dirigir ou de tocar numa o.rquesrra profissional, de praticar um des-
porto ou actuar sobre o palco como um profissional, de escrever romances e outras 
formas de satisfazer, do ponto de vista profissional, as necessidades de lazer dos 
outros. 
148 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LNRE 
d) Activida~s religiosas; 
e) Actividades ~ formação ~ carácter mais volrmtário, socialmente 
menos controlado e com frequência~ carácter acidentai, ordenadas a 
partir de formas de conhecimento mais sérias, menos divertidas, 
para formas menos sérias e mais interessantes-de adquirir con-
hecimento, com muitas tonalidades intermédias, tais como a 
leitura de jornais e de periódicos, audição de debates políticos, 
assistência a conferências de educação de adultos, visão de pro-
gramas de televisão informativos. 
3) Actividades de lazer 
a) Actividades pura ou simplesmente, sociáveis: 
(i) Participar como convidado em reuniões mais formais, como 
casamentos, funerais ou banquetes; ser convidado para jantar 
em casa de um superior; 
(ii) Participar em lazer-gemeinschaften* relativamente informal, 
com um nível emocional manifesto e amigável consideravel-
mente acima de outras actividades de tempo livre e de traba-
lho, por exemplo, reuniões no bar ou em festas, encontros 
familiares, comunidades de conversa banal; 
b) Actividades de jogo ou «münéticas»: 
i) Participar em actividades miméticas (relativamente) de ele-
vado nível organizativo, como wn membro da organização, por 
exemplo, um teatro amador, clube de críquete, clube de fute-
bol.
Em tais casos, chega~se ao fulcro das actívidades miméticas 
de destruição da rotina e de descontrolo e de experiências, 
através de uma concha de rotinas e de formas de controlo aceites 
e partilhadas voluntariamente. Nesta categoria, a maior parte 
das actividades miméticas envolve um grau de destruição da 
rotina e de alívio das restrições, por meio de movimento do 
corpo, isto é, por meio da mobilidade corporal; 
(ii) Participar como espectador em actividades miméticas bas-
tante organizadas sem fazer parte da própria organização, com 
pouca ou nenhuma participação nas suas rotinas e, de acordo 
com isso, com a destruição relativamente diminuta da rotina, 
através de movimento, por exemplo, ver futebol ou ir a um 
Jogo; 
*«Lazer-comunitário» (N. da T.) 
CAPÍTULO II 149 
iii) participar como actor em actividades miméticas menos or-
ganizadas, por exemplo, dança e montanhismo; 
e) Miscelânea de actividades de lazer menos especializadas, com oca-
ráctet· vinca(k) de agradá11et destntição da rotina e com fi·equência mut-
tifunci<mal, por exemplo, viajar nos feriados, come.r fora para va-
riar, relações de amor destruindo a rotina, cuidados não rotinei-
ros com o corpo, tais como banhos de sol, dar um passei:o a pé. 
O espectro do tempo livre é um quadro de classificação que 
indica os principais tipos de accividades de tempo livre nas nossas 
sociedades. Com o seu auxílio, podem observar-se rapidamente 
factos que estão, com frequência, obscurecidos pela tendência para 
equacionar o tempo livre enquanto actividades de lazer:_ algwnas 
actividades de tempo livre têm o carácter de trabalho, ainda que 
constituam um tipo que se pode distinguir do trabalho profissio-
nal; algumas das actividades de tempo livre, mas de modo algum 
todas, são voluntárias; nem todas são agradáveis e algumas são 
altamente rotineiras. As características especiais das actividades de 
lazer só podem ser compreendidas se forem consideradas, não 
apenas em relação ao trabalho profissional mas, também, em rela-
ção às várias actividades de não lazer, no quadro de tempo livre. 
Desta maneira, o espectro do tempo livre contribui para dar maior 
precisão ao problema do lazer. 
O campo de exploração aberto pelo espectro do tempo livre é 
francamente extenso. Como se pode _ver, para ele é fundamental o 
grau da rotina característico das suas várias ligações. Entendemos 
«rotinas» como sendo canais correntes de acção reforçada por inter-
dependência com outros, e impondo ao indivíduo um grau bastante 
elevado de regularidade, estabilidade e controlo emocional na 
conduta, e que bloqueiam outras linhas de acção, mesmo que estas 
correspondam melhor à disposição, aos sentimentos, às necessidades 
emocionais do momento. O grau de rotina pode variar. Em geral, 
o trabalho profissional é muito rotineiro e, deste modo, numerosas 
actívidades de tempo livre são classificadas em l, sendo um pouco 
menos aquelas que se classificam em 2 e ainda menos as que se 
classificam em 3. 
Algumas das outras activídades de tempo livre, como se pode 
ver, transformam-se em actividades de lazer. Com o decorrer do 
tempo não poderemos deixar de lhes prestar atenção. Contudo, 
150 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
dado que só se pode avançar gradualmente, um número consi-
derável de problemas levantado pelo espectro do tempo livre não 
pode ser aqui resolvido. 
As características distintivas que se encontram no fulcro das 
actividades de lazer já foram mencionadas. Numa sociedade em que 
a maior parte das actividades estão submetidas à rotina, em ligação 
com uma interdependência forçada de grande número de pessoas, 
e com os tipos correspondentes de objectivos pessoais e impessoais 
que reclamam uma elevada subordinação às necessidades emocio-
nais imediatas, em relação aos outros ou a um trabalho impessoal, 
as actividades de lazer proporcionam - dentro de certos limites -
oportunidades para experiências emocionais que estão excluídas dos 
sectores altamente rotineiros da vida das pessoas. As actividades de 
lazer são uma categoria de actividades em que a restrição rotineira 
de emoções pode, até certo pof,ltO, ser publicamente reduzida e com 
aprovação social, mais do que qualquer outra. Neste caso, um 
indivíduo pode encontrar oportunidades para um intenso despertar 
de agradáveis emoções de nível médio sem perigo para si próprio, 
quer se trate de um indivíduo de sexo masculino ou feminino, e 
sem perigo ou risco persistente para outros, visto que noutras es-
feras das actividades da vida, acompanhadas por sentimentos fortes 
e incensos, rão pouco comprometem o indivíduo para além do 
momento do intenso despertar ou o levam a incorrer em graves 
perigos e riscos - se não estão todos bloqueados pela subordinação 
rotineira dos sentimentos pessoais imediatos e objectivos exteriores 
a si próprio. Nas actividades de lazer, a consideração de si próprio 
e, em especial, da sua satisfação sob uma forma mais ou menos 
pública e, ao mesmo tempo, socialmente aprovada, pode ter prio-
ridade sobre todas as outras. 
O grau de compulsão social, no sentido da participação, tam-
bém · é marcadamente mais baixo e a série de escolhas voluntárias 
individuais é, por correspondência, mais elevada nas actividades de 
lazer do que noutras actividades de tempo livre, em particular as 
de tipo 1, para não mencionar as accividades profissionais. Através 
de todo o espectro situa-se um plano inclinado de maior ou menor 
decréscimo de constrangimento social - com numerosas varieda-
des e matizes entre estes tipos de compulsão e de vontade indivi-
dual - em relação às actividades de lazer no limite inferior. Tal 
como ficou aqui entendido, as ocupações de lazer oferecem um 
CAPÍTULO li 151 
campo de acção mais vasto para um divertimento individual inten-
so e relativamente espontâneo de curta duração do que qualquer 
outro tipo de actividades públicas. Representam uma esfera de vida 
que oferece mais oportunidades às pessoas de experimentarem uma 
agradável estimulação das emoções, uma divertida excitação que 
pode ser experimentada em público, partilhada com outros e des-
frutada com aprovação socíal e boa consciência. O despertar de 
emoções agradáveis nas actividades de lazer está, em muitos casos, 
relacionado com tipos específicos de tensão aprazível, com formas 
de excitação agradável que são específicas desta esfera da vida, 
embora se pudesse esperar que estivessem geneticamente relaciona-
das com outros tipos de excitação. Corno veremos, a excitação no 
lazer implica o risco de se transformar a si mesma nos outros tipos. 
O risco - indo até ao limite - é essencial para inúmeras activi-
dades de lazer. Com frequência, constitui parte integrante do 
prazer. De que modo e por que motivos é que as instituições e 
factos de lazer oferecem oportunidades para este tipo de experiên-
cias é uma questão que exige estudo. Mas pode já dizer-se que esta 
função .é um aspecto-chave da maioria senão de todas essas expe-
riências. No conjunto das actividades de lazer, todas integram um 
tipo peculiar de risco. São capazes de desafiar a rigorosa ordem da 
vida rotineira das pessoas sem colocar em perigo os meios de sub-
sistência ou o seu estatuto. Permitem às pessoas tornar mais fáceis 
ou ridicularizar as normas da sua vida de não lazer, e todos o fazem 
sem ofender a consciência ou a sociedade. Envolvem «brincar com 
as normas» como um «brincar com o fogo». Por vezes, vão longe 
de mais. A renovação emocional proporcionada por este acco de 
brincar com as normas merece um exame mais profundo, quer para 
o seu próprio conhecimento quer para o benefício do que, a partir 
dela, podemos aprender sobre nós próprios. 
3 
É fácil verificar que as instruções e factos de lazer se estruturam 
a fim de proporcionar uma excitação agradável ou, pelo menos, um 
agradável estímulo das emoções, em combinação com um grau 
relativamente
elevado de escolha individual. A questão é a se-
guinte: como é que eles actuam no sentido de propiciar este tipo 
152 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
de experiência e porque é que oferecem wna forma de recuperação 
emocional específica? Porque é que a necessidade deste tipo de 
renovação está tão disseminada e, pelo menos, no nosso tipo de 
sociedade, porque é tão premente que as pessoas gastem tanto 
dinheiro em busca dela? E que correspondência existe entre a 
estrutura das instituições e dos factos de lazer e a estrutura dos 
seres humanos, das pessoas que procuram estas satisfações es-
pecíficas através da participação neles? 
De modo a responder a estas questões de uma maneira geral, 
será útil analisar, por momentos, algumas hipóteses mais alargadas, 
que são bastante comuns nas teorias sociol6gkas contemporâneas, 
antes de as considerarmos de uma forma mais detalhada, com o 
auxílio de alguns tipos específicos de actívidades de lazer. Não se 
pode esperar que seja possível examinar este tipo de questão sem 
proceder à consideração crítica destas hipóteses. Eis aqui uma das 
áreas em que se torna visível o apoio da sociologia do lazer aos 
problemas gerais da teoria sociológica e, num sentido mais vasto, 
à própria imagem dos seres humanos. 
O exame que se torna necessário pode ser realizado, da melhor 
maneira, em dois passos. O primeiro consiste na reflexão sobre 
algumas das teorias sociológicas, traduzidas, com frequência, pela 
utilização actual de conceitos tais como «normas» e «valores». De 
acordo com esta ideia, verifica-se a tendência para pensar e falar, 
por exemplo, como se os seres humanos que formam a sociedade se 
regessem, em todas as suas activídades, por um único conjunto de 
norrnas7• É fácil ver que, de facto, as pessoas em sociedade seguem, 
frequentemente, normas diferentes em esferas distintas das suas 
vidas. As normas, por outras palavras, são, até certo ponto, a «es-
fera-limite»: determinada conduta, que pode ser normal numa es-
fera, pode ser um desvio noutra. Se o lazer for considerado corno 
uma esfera e o não lazer como outra, isto é precisamente aquilo que 
se observa: em ambas as esferas os seres humanos seguem certas 
normas, mas as normas são diferentes, por vezes contraditórias. 
Deste modo, quando LaureJ e Hardy trazem uma árvore de Natal 
a um cliente, ela fica presa na porta e atiram a porta ao chão, e o 
cliente lhes bate e todos ficam loucos numa orgia de destruição, nós 
rimos às gargalhadas, embora, tanto eles como nós, estejamos a agir 
7Esca tendência é, calvez, mais comum no trabalho de Talcott Parsons. 
CAPÍTULO II 153 
em oposição às normas da vida de não lazer, eles por baterem uns 
nos outros, nós por nos rirmos devido a isso. Num combate de 
boxe, as normas da vida de não lazer, como aquelas que proíbem 
a agressão física sobre os outros, são suspensas e outras normas 
tomam o seu lugar. As comunidades de bebidas desenvolvem, 
também, normas específicas de lazer; por exemplo, que se pode 
beber mais, mas não se deve beber menos do que os outros e que 
se pode ficar um pouco embriagado, mas não demasiado. Em resu-
mo, não se podem determinar as inter-relações funcionais das acti-
vidades de lazer e de não lazer sem integrar nesse modelo teórico 
a pluralidade de códigos interdependentes adequados a cada um 
deles. Este é o primeiro passo que é necessário dar no sentido da 
crítica de uma hipótese muito difundida na sociologia contempo-
rânea, isro é, a presunção de que as normas de todas as sociedades 
são monolíticas e todas formando um só bloco. 
Mas há que ir um pouco mais além no escudo crítico destes 
conceitos. Num exame mais minucioso, depressa se descobre a 
forma surpreendente como se mantém o uso destes termos. Não se 
pode passar inteiramente por cima deste facto mesmo que nos 
preocupemos apenas com a sociologia do lazer. Assim, tal como 
hoje é usado, o termo sociológico «norma» pode bem referir-se a 
uma quantidade de tipos diferentes de fenómenos. Pode referir-se 
pura e simplesmente a preceitos morais que se considera serem 
válidos para todos os seres humanos. Pode referir-se a normas 
seguidas num grupo nacional particular, mas não por outros. Pode 
ser aplicado a questões linguísticas. As pessoas podem dizer: «Você 
tem de formar a primeira pessoa do singular dizendo "elt sou" e 
não "eu ser".» Ou noutros casos (porque as normas gramaticais não 
são, de modo algum, o único tipo de normas linguísticas): «Esta é 
a forma como deve pronunciá-lo: "Beaver" e não "Belvoir".»8 Nou-
tras circunstâncias, a palavra pode referir-se a regras de um jogo. 
Deste modo, as normas não têm a forma de preceitos muito gene-
ralizados, tais como «os soldados têm de obedecer às ordens dos 
seus oficiais-comandantes», que Parsons menciona como um exem-
plo do seu conceito de normas9; elas podem, também, por exemplo, 
8Belvoir Street (pronuncia-se Beavei· Street) é uma rua bem conhecida em 
Leicester. 
9Ver Talcott Pacsons, TheStrut11reo/Sodal Action, Nova Iorque, 1949, p. 75. 
154 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
tomar a forma de um quadro d.e referência para os movimentos 
entrelaçados dos jogadores num tabuleiro de xadrez ou num campo 
de futebol. Desta forma, nwn jogo particular pode não ser possível 
deslocar A se o seu adversárío estiver em condições de movimentar 
B, mas pode fazê-lo se o seu opositor não estiver em situação de 
fazer mover B. Contrariamente às normas do tipo das leis morais, 
que parecem não ser delimitadas por configurações especiais, as 
normas do tipo daquelas das regras do jogo são limitadas por urna 
configuração10• Este é um dos muitos casos que mostra que as 
afirmações sobre aquilo que as pessoas deviam ou não deviam fazer 
não necessitam de seguir o modelo altamente organizado que, 
frequentemente, parece determinar o uso da palavra «norma» no 
discurso sociológico, o modelo de uma lei moral geral para casos 
individuais idênticos. As normas podem seguir também modelos 
que constituem um nível inferior de generalidade e um tipo de 
abstracção tal como as regras de um jogo. Não existe razão, excepto 
no âmbito de uma tradição filosófica não verificada, que permita 
aceitar que menor generalidade significa exactamente o mesmo que 
menor valor epistemológico oU: científico. 
As características dos diferences tipos de normas podem ser 
avalíadas, como as do tipo de lei moral e o tipo de regra do jogo, 
independentemente de quaisquer assocíações de valor. Ambas 
constituem regulamentos sociais de indívíduos que actuam em 
grupos. Todavia, o primeiro tipo é modelado por regulamentos 
altamente interiorizados. Corno as ordens de consciência de cada 
um, as normas sociais deste tipo parecem não exigir, nem sequer 
serem capazes de qualquer outra explicação adicional. Não se per-
gunta como tiveram orígem ou se podem mudar ou desenvolver e, 
se assim for, o que as leva a isso. São entendidas como a origem, 
a fonte da acção social, que, mais uma vez, como a nossa própria 
consciência, parecem não vir de parte alguma - as quais, embora 
obriguem as pessoas a reunir-se em sociedades; parece que não 
descendem nem são dependentes de qualquer outra coisa. Normas 
deste tipo possuem o carácter de leis gerais para decisões que cada 
indivíduo tem de tom.ar por si mesmo, seja de. que sexo for, inde-
pendentemente de todos os outros. 
10Para uma discussão do conceito de configurações, ver Elias, What is Sociology?. 
p. 13 e seguintes. 
CAPÍTULO ll 155 
O outro tipo de normas que é útil considerar aqui, o tipo de 
norma concebido através das regras de jogo, tem, em muitos aspec-
tos, características diferentes. Ainda que ambos representem regu-
lamentos de indivíduos e as do tipo daquel~ que constituem as 
regras do jogo, estão centradas no grupo. Dado que está centrado 
no indivíduo, o tipo de normas das leis morais não se refere expli-
citamente a
grupos específicos. As normas das regras do jogo, por 
outro lado, são preceitos bastante explícitos para indivíduos inte-
grados em grupos específicos limitados. O primeiro refere-se habi-
tualmente a actos singulares de indivíduos num determinado mo-
mento, o último diz respeito às dinâmicas de entrelaçamento de 
actos individuais, a estratégias individuais na sequência do tempo 
e aos movimentos dos jogadores numa configuração dinâmica de 
pessoas. 
Além disso, de acordo com o modelo de consciência, as primei-
ras são habitualmente concebidas como absolutas, rígidas e inal-
teráveis, e as últimas representam um quadro flexível para as acti-
vídades do grupo dentro do qual cada jogador, seja do sexo mas-
culino ou feminino, pode desenvolver regras próprias ou mesmo 
novas regras, no quadro de uma progressão. Deste modo, no fute-
bol, um jogador de campo ou um guarda-redes podem criar a sua 
própria técnica, que desenvolvem e respeitam na situação concreta 
das suas experiências de jogo. Uma determinada equipa específica 
de jogadores cria a sua pr6pria tradição, wna maneira de jogar 
integrando normas específicas, que são normas dentro das normas, 
isto é, no quadro daquelas em que todos os jogos de futebol ou de 
netball* se realizam. Por seu lado, estas são regras no âmbito de 
outras regras de variados níveis, por exemplo, das regras comuns a 
todos os jogadores amadores, tal como se encontra estabelecido pelo 
Comité Olímpico, ou das regras legais de um país, que integram, 
por sua vez, algumas prescrições morais não escritas que se consi-
dera serem válidas para todos os seres humanos e assim por diante. 
A seu tempo veremos, sem dúvida, como é inadequado o 
conceito de nível-único de normas, modelado nas prescrições indi-
viduais profundamente interiorizadas. Não s6 a análise particular 
*Jogo de equipa no quaJ a bola tem de ser lançada de forma a ser introduzida 
num aro colocado na horizontal a wna altura relativamente elevada e que possui uma 
rede suspensa. (N. drz T.) 
156 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LNRE 
de wna equipa de futebol, mas uma análise mais profunda das 
estratégias de entrelaçamento de indivíduos em grupos revela, 
geralmente, normas de vários níveis - normas dentro de normas 
ou regras dentro de regras - que podem mudar de acordo com 
novos desenvolvimentos e experiências na sociedade. Investigações 
empíricas, tais como as d.o processo de civilização e de desenvolvi-
mento do futebol, mostram com muita clareza que, de facto, as 
normas desenvolvem-se como parte da estrutura da sociedade11• Até 
agora, contudo, nas teorias sociológicas, as normas foram habitual-
mente tratadas como absolutas, como o final de todas as questões: 
é assim que as normas de consciência são compreendidas na ime-
diaticidade da própria experiência de cada um, mesmo que se possa 
saber - ao nível da reflexão - que elas foram assimiladas e inte-
riorizadas através da aprendizagem, no decurso de um processo de 
civilização. Não existe ponto zero, não existe um início para o jogo-
-envolvimento dos seres humanos e, por isso, também não existe 
início de normas ou regras. Um ·ser humano envolve-se a partir do 
exterior num jogo de comportamentos com os outros e, juntamente 
com eles, sejam do sexo masculino ou feminino, pode, consciente-
mente ou não, contribuir para uma mudança nas regras de acordo 
com as quais ele se joga. . 
4 
O segundo dos dois passos mencionados consiste na utilização 
de jogos como modelo para as relações entre as actívidades de lazer 
e de não lazer. Ao proceder desta maneira e encorajado por avalia· 
ções ocultas e não testadas, pode ser mais fácil compreender a 
relação entre aquelas actividades; pode ser menos difícil perceber 
que ambas não são simplesmente as actividades de indivíduos, mas 
as actividades de indivíduos no quadro de grupos específicos. Isto 
é perfeitamente óbvio se alguém estudar as actividades de lazer de 
sociedades menos urbanizadas e menos diferenciadas que são quase 
sempre as dos comunitarismos. Jsso é menos óbvio, mas não menos 
11Ver Norben: Elias, The Civilizing Prrxe.u, Oxford, 1978, e Eric Dunning e 
Kennecb Sheard, Barbariam, Gentkme11 and Players: a SociQ/ogica! Study of the 
Developmint of Rugby Football, Oxford, 1979. 
CAPÍTULO II 157 
correcto, a respeito de sociedades urbanas e industriais, ainda que 
o campo de acção para a escolha individual a respeito de actividades 
de lazer seja muito mais vasto. Contudo, por maior que ele seja, não 
é de maneira nenhuma ilimitado. Nas sociedades mais desenvolvi-
das, a escolha individual das actividades de lazer também depende 
das oportunidades construídas antecipadamente, e estas mesmas 
actividades são habitualmente moldadas por fortes necessidades de 
estimulação social, directamen~e ou em convivência com o lazer 
mimético. 
A teoria do lazer aqui exposta permaneceria incompreensível 
enquanto não se percebesse, com toda a clareza, que as actividades 
de lazer são actividades socíais tanto nas sociedades muito diferen-
ciadas como nas sociedades mais simples. Mesmo que tomem a 
forma do isolamento de wn indivíduo, elas são intrínsecamente 
dirigidas tanto a partir dos outros, como é o caso de alguém, de 
qualquer sexo, que ouve um disco ou lê um livro, ou desse in-
divíduo relativamente aos outros - quer se encontrem presentes 
em carne e osso ou não -, como é o caso de alguém que escreve 
poesia ou toca violino sozinho. Em resumo, são comunicações rece-
bidas ou enviadas por pessoas dentro de configurações de grupo 
específicas. É isso o que se procura transmitir através do modelo de 
jogos. Com frequência, o carácter essencialmente so.cial das activi~ 
dades de lazer não é verificado nas reflexões que procuram avaliar 
se as actividades de lazer são «reais» ou simples «fantasias». Por 
exemplo, não é pouco frequente encontrarem-se afirmações como as 
de William Stephenson, de acordo com as quais a distinção entre 
trabalho e jogo «depende do que é a fantasia e, de certo modo, a 
irrealidade do mundo que constitui o jogo, e o que é real no mundo 
que constitui o trabalho»12• Também se pode referir Roger Caillois, 
que acentua, frequentemente, a «irrealidade» dos jogosB .. 
As dificuldades inerentes a toda esta discussão são essencial-
mente devidas a dois factores. O primeiro é a avaliação implícita 
que frequentemente determina aquilo que é considerado como real 
e aquilo que o não é. Deste modo, a avaliação do trabalho como real 
e do lazer como irreal encontra-se profundamente relacionada com 
ii William Stephenson, The Play Thecry bj Mass Com11nication, Chicago, 1967, 
p. 46. 
H Caíllois, Man, Play aná GamtJ, pp. 5-6. 
158 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
as tradições e valores de uma sociedade em que o trabalho é um 
dos valores mais elevados, enquanto o lazer é, com frequência, 
encarado como uma futilidade inútil. Representantes de certas 
sociedades, por exemplo Aristóteles, com um sistema de valores 
que avaliava o lazer de forma mais digna do que o trabalho, difi-
cilmente teriam concordado com a consideração do lazer corno «ir-
real». O segundo factor é a incapacidade de levar em linha de conta 
o único contexto em que o termo «real» possui um significado 
factual, o qual pode ser verificado à luz de uma prova susceptível 
de demonstração. Isto é, a utilização do conceito «real» como 
antónimo daquilo que são sonhos e fantasias puramente indivi-
duais, em particular os sonhos e as fantasias de pessoas doentes, os 
quais não se podem comunicar no sentido comum dessa palavra, e 
que não fazem sentido para os outros, excepto para um médico. 
Nesta linha, «realidade>> é uma propriedade de todas as activídades 
humanas que se sujeitam à disciplina da comunicação, enquanto 
«irrealidade>> é uma propriedade de todas as fantasias individuais 
não partilhadas por outros. Este esclarecimento não estipula mais 
uma divisão
estática e absoluta entre o que é real e o que é irreal 
deixa espaço para diferentes tipos e níveis de realidade. Isso implica 
que todas as actividades humanas que se baseiam na comunicação, 
possuindo o carácter de movimentos realizados pelas pessoas num 
jogo, são reais. 
Os agrupamentos de pessoas no lazer e fora das suas actividades 
de lazer são, sem qualquer dúvida, diferentes entre si. É esta a 
diferença que nós procuramos expressar ao dizer que o lazer e o não 
lazer são jogos realizados por grupos de pessoas entre si, de acordo 
com regras diferences. Não há dúvida de que no lazer as fantasias 
de jogo e emoções de todos os géneros são permitidas em proporção 
muito maior do que na vida de não lazer das pessoas, mas são 
fantasias socialmente padronizadas e comunicadas, fantasias crista-
lizadas numa peça teatral, numa pintura, num jogo de futebol, 
muna sinfonia, numa · corrida de cavalos, dança ou aposta. Em 
contraste com fantasias puramente privadas, não socializadas, elas 
são tão reais em termos de patticipação de seres humanos como o 
tempo livre em que se dedica atenção aos seus filhos ou à sua 
mulher ou, n~se caso, ao seu trabalho. 
Talvez se torne possível facilitar a compreensão deste esclareci-
mento essencialmente simples por meio de uma ligeira mudança na 
• 
CAPÍTULO ll 159 
utilização dos termos. Pode hesitar-se em considerar pinturas, ro-
mances, peças de teatro e filmes como «reais» enquanto estes se 
agruparem teoricamente sob o título de «actividades de lazer»; po-
de considerar-se mais fácil aceitá-las como «reais» se elas forem em 
teoria agrupadas sob o título de «cultura». Muitas vezes impede-
-se a compreensão do que é óbvío devido, simplesmente, a diferen-
ças de valor ocultas no sentido das palavras. 
Mas se o facto de as actividades de lazer e as de não lazer serem 
actividades sociais, isto é, jogos realizados por grupos de pessoas, 
assegura a sua realidade, apesar disso estes são jogos de um tipo 
diferente. O estudo a fazer é, porém, determinar a sua interdepen-
dência funcional na sociedade, assim como as suas características 
distintivas (das quais uma boa parte já foi referida). Isso contribui 
para uma melhor compreensão das nossas sociedades, para se ver 
que, neste caso como noutros, as pessoas jogam entre si, não s6 um 
mas diversos jogos interdependentes com regras diferentes. Os 
jogos de lazer e de não lazer são wn exemplo destes jogos comple-
mentares. Existem muitos outros. Em certos casos, são praticados 
dois ou mais jogos em simultâneo como, por exemplo, no caso das 
relações «formais» e «informais». Diversos outros jogos interdepen-
dentes são jogados em tempos diferentes, como no caso de «jogos 
de guerra» e « jogos de paz». A relação entre lazer e não lazer é do 
último tipo. A estrutura distintiva dos dois tipos de jogos, a sua 
relação entre si, bem como as funções de cada um deles para 
aqueles que jogam, exige um exame mais profundo. Alguns aspec-
tos destas diferenças podem ser apresentados com grande brevi-
dade. O espectro do tempo livre e os comentários que se seguem 
pretendem evidenciá-los. As actividades dominantes nos jogos de 
não lazer são dirigidas por objectivos. Possuem o carácter de vec-
rores em linha reera. As suas funções primárias são funções para 
outros, para «eles» ou para organizações impessoais, tais como casas 
de neg6cios ou Estados-nações, embora elas possam ter também 
funções secundárias para si próprio. Isto pode envolver, e de facto 
assim sucede habitualmente, satisfação através de mensagens e de 
estimulação recebida dos outros, mas a satisfação pessoal para 
aqueles que estão envolvidos no jogo permanece a sua função 
primáría. Neste sentido, pode dizer-se que o lazer constitui um 
enclave socialmente consentido, de concentração sobre si próprio, 
num mundo de não lazer que necessita e obriga à predominância 
160 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
de actividades centradas nos outros. Enquanto as últimas são diri-
gidas por objeccivos e accuam como vectores, as primeiras, em 
sentido figurado, possuem o carácter de «ondas». Os sentimentos 
despertados pelas actividades de lazer tornam-se tensos entre p6los 
opostos tais como medo e exaltação, e actuam, por assim dizer, de 
um lado para o outro. É só a falta de adequação dos nossos conceitos 
tradicionais e dos nossos utensílios de linguagem que toma difícil 
expressar e compreender que, nas ocupações de lazer, sentimentos 
aparentemente antagónicos como o medo e o prazer não são apenas 
opostos um ao outro {como «logicamente» parecem esra.r) mas 
partes inseparáveis de um processo de satisfação de lazer, porque as 
satisfações de lazer s6 podem ser conceptualizadas como processos. 
Nesse caso, pode dizer-se que não é impossível nenhuma satisfação 
a partir das ocupações de lazer sem pequenas fracções de medo a 
alternarem com agradáveis esperanças, breves alvoroços de ansie-
dade a alternarem com alvoroços de antecipadas agitações de de-
leite e, em alguns casos, através de vagas deste género, resultando 
num clímax catártico, no qual todos os medos e ansiedades podem 
resolver-se temporariamente, deixando só por breves momentos, o 
gosto da fruição da agradável satisfação. · 
É este o motivo por que as formas de excitação desempenham 
um papel central nas actívidades de lazer. Só deste modo se pode 
compreender a fuQção do lazer na destruição da rotina. As rotinas 
integram um nível elevado de segurança. Sem se expor a si próprio 
a um certo nível de insegurança, a um maior ou menor risco, a 
incrustação das rotinas não se perderia nem se deslocaria, ainda que 
temporariamente, e a função das actividades. de lazer perder-se-ia. 
Contudo, as actividades específicas de lazer podem perder a sua 
função de destruição da rotina. Conservam-na somente em relação 
a um dado conjunto de rotinas. Actividades que hoje possuem wna 
função de destruição da rotina podem tornar-se rotineiras através da 
repetição ou através de um grau de controlo demasiado rígido e, 
deste modo, perdem a função de proporcionar excitação. Nesse 
caso, deixam de proporcionar um grau de insegurança, de satisfazer 
a: expectativa de algo inesperado e arriscado, a tensão, a excitação 
da ansiedade que as acompanha. Estes altos e baixos, vagas breves 
ou longas de agradáveis sentimentos antagonistas tais como espe-
rança e medo, exaltação e abatimento, são uma das fontes de reno-
vação emocional de que já falámos antes. Até mesmo os preparati-
CAPÍTULO II 161 
vos para passar um feriado num lugar que é novo - o que, em face 
disso, pode parecer francamente agradável - implica saborear em 
antecipação o inesperado que se pode encontrar aí e, ao mesmo 
tempo, possivelmente no temor de uma ligeira incerteza, a possi-
bilidade de encontros desagradáveis ou instalações desconfortá-
veis, ou a esperança de fazer alguns conhecimentos novos total-
mente encantadores. Por conseguinte, mesmo neste caso existem 
feixes de ansiedade misturados com uma agitação de antecipado 
prazer. 
Pode ver-se, desde já, que a interdependência funcional do lazer 
e do não lazer (para o qual não possuímos no presente, nenhum 
termo de classificação adequado), entre os aspectos que constituem 
a rotina das nossas vidas e os enclaves de destruição de rotina 
situados no seu interior, só podem ser expressos em termos de 
equilíbrio. As próprias actividades de lazer podem tornar-se roti-
neiras, podem facilmente, se não houver mais nada, esvaziar-se de 
qualquer função. 
E as rotinas? Poderemos nós prosseguir uma vida equilibrada-
mente rotineira sem enclaves de lazer? Formular esta questão é 
avançar para o fulcro do problema. Não pretendemos dizer que não 
existam pessoas que não vivam de maneira semelhante. É possível 
que nas nossas sociedades grande número de pessoas viva uma vida 
totalmente rotineira, completamente sem interesse e sem qualquer
relevo, não só as pessoas idosas, entre as quais parecem ser bastante 
frequentes as faltas de lazer - em parte, porque, não obstante 
continuarem vivos, as suas vidas tornam-se gradualmente menos 
«reais» à medida que deixam de participar nos jogos do trabalho 
e também não podem encontrar ou não podem iniciar uma parti-
cipação adequada nos jogos de lazer -, mas, igualmente, entre 
pessoas de meia-idade, porém, talvez menos entre os jovens. Existe 
aí uma cerra evidência sugerindo que a ausência de equílíbrio entre 
actívidades de lazer e de actividades de não lazer implica um 
determinado empobrecimento humano, alguma secura de emoções 
que afecta toda a personalidade. Talvez aqui se possa ver com maior 
nitidez os perigos inerentes a qualquer classificação das accividades 
de lazer como «irreais». 
Pode avançar-se mais um passo ao apresentar, pelo menos, um 
modelo provisório das funções de equilíbrio das actividades de não 
lazer e das que pertencem ao lazer nas nossas sociedades. A con-
162 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
ceptualização que é dominante em relação a esta interdependência 
entre lazer e não lazer, em termos de relaxação das fadigas e das 
tensões, é enganadora porque, entre outras razões, sugere que o 
trabalho profissional, tal como as actividades de tempo livre pro-
fundamente rotineiras, produz tensões, enquanto a natureza dessas 
tensões permanece obscura. De modo vago, o termo «tensão» surge 
neste contexto com frequência identificado com fadiga. Nesta base, 
o carácter das actividades de lazer, o facto de elas pr6prias criarem 
tensões, que respondem a necessidades de estimulação, a uma 
procura de excitação, como o dissemos antes, permanece incom-
preensível. Que género de tensão é esta que é contrabalançada 
através de outro género de tensão, e encontra uma resolução através 
dela, que é motivada e talvez agradavelmente solucionada pelas 
actividades de lazer? 
5 
Não é possível responder a este tipo de questões sem ter em 
consideração aspectos de lazer que, segundo as accuais convenções, 
permanecem fora do campo de pesquisa da sociologia. O problema 
que aqui se nos depara foi sentido do princípio ao fim desta inves-
tigação. É tempo de o colocar abertamente. É possível, é esta a 
questão, elaborar uma teoria de lazer razoavelmente adequada no 
quadro de qualquer ciência humana particular, como a sociologia, 
a psicologia ou, neste domínio, a biologia humana, se as suas rela-
ções permanecem obscuras, tal como sucede hoje em dia? De facto, 
os problemas de lazer pertencem a esta vasta classe de problemas 
que, no estádio actual do desenvolvimento da especialização 
científica, dizem respeito não só a dois mas a diversos ramos do 
conhecimento. Eles não se ajustam inteiramente ao quadro de 
referência de qualquer uma destas ciências segundo a maneira como 
estas se encontram constituídas no presente, mas pertencem antes 
ao território inexplorado da terra de ninguém que existe entre elas. 
Se a sociologia é considerada como uma ciência que negligencia as-
pectos psicol6gicos ou biológicos dos seres humanos, se a psicologia 
ou a biologia humana se consideram ciências que podem intervir 
isoladamente, sem ter em atenção os aspectos sociológicos, os pro-
blemas do lazer serão deixados de lado. De facro, estes problemas 
CAPÍTULO II 163 
mostram de forma clara que as limitações inerentes à compartimen-
tação dos seres humanos podem constítuir um tema de estudo 
científico. O espectro do tempo livre, como um modelo classifica-
dor, revelou já que nunca será suficiente distinguir diferentes 
aspectos separados das pessoas sem um quadro global de referência 
que assinale as suas relações. A concepção actual das várias ciências 
considera estes aspectos corno se eles existissem, de facto, indepen-
dentemente uns dos outros. A separação é total. Não existe um 
quadro global de referência que indique como é que estes diversos 
aspectos se ajustam entre si. Ao situar as actividades de lazer no 
quadro mais alargado do tempo livre, referimos já que os problemas 
com que se defronta o investigador, embora reclamem uma distin-
ção, não autorizam a separação entre os aspectos da realidade que 
habitualmente são estudados por uma das ciências humanas. 
Se as pessoas vão ao teatro, a wn baile, a uma festa ou às 
corridas, é porque no lazer elas podem, tal como dissemos antes, 
escolher como se ocupar de uma maneira que favoreça a experiência 
do prazer. Deste modo, o prazer, as perspectivas de um tipo es-
pecífico de estimulação agradável, é um elemento essencial na 
estrutura social destas instituições, do teatro, da dança, das festas 
ou corridas e de todas as outras que foram mencionadas no decurso 
desra investigação. Os problemas do prazer pertencem, pode dizer-
-se, ao domínio da psicologia ou da fisiologia; mas integram-se, 
contudo, na esfera de competência dos sociólogos. Estes procura-
ram, em toda a história da sua ciência, distinguir os seus próprios 
tipos de problemas daqueles que eram estudados por psicólogos e 
biólogos. Em determinada época, tornava-se indispensável definir 
que os fenómenos sociais eram um nível de investigação com carac-
terísticas distintivas próprias. Neste sentido, a luta dos sociólogos 
pela relativa autonomia dó seu tema revelou-se fnuuosa. Admite-
-se que esta aut0nomia se encontra agora estabelecida com solidez, 
permitindo aos sociólogos considerar não só a especificidade dos 
seus problemas mas, também, a sua relação com os dos campos 
vizinhos. Nas suas investigações, foi frutuoso para os sociólogos 
abstraírem-se dos problemas da psicologia e da biologia que se 
encontravam e percorrerem, durante algum tempo, um caminho 
separado, tendo em vista um melhor entendimento dos seres 
humanos. Mas esta separação conduziu, como seria inevitável, ao 
desprezo de grandes grupos de problemas, um dos quais é o pro-
164 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
blema do lazer. A investigação actual é um exemplo do tipo de 
bloqueios que se encontram ao tentar analisar problen1as socio-
lógicos sem olhar para além das fronteiras do campo da sua ciência. 
No caso dos factos e das instituições de lazer, cuja raison d'êtt-e* é 
wna experiência psicológica específica, qualquer tentativa que a 
não considere é prejudicíal à concretização do objectivo. A este 
respeito, o estudo da estrutura social e o das emoções não pode 
avançar em compartimentos separados. 
Contudo, isso não significa que um se dilua no outro. Por vezes, 
biológos e psicólogos mostram-se inclinados a acreditar que podem, 
numa fase posterior, responder a todos os problemas sociológicos 
nos seus próprios - biológicos e psicológicos - termos. Neste 
âmbito, a luta dos sociólogos pela autonomia dos seus problemas 
particulares foi bem justificada. Talvez se possa pensar que nem 
rodos os sociólogos contemporâneos são capazes de ver com clareza 
a relativa autonomia e irredutibilidade dos problemas sociológicos 
em relação aos biológicos e psicol6gicos14. Existe, evidentemente, 
uma certa perplexidade quanto a saber como se pode encontrar um 
caminho entre a ideia de que o estudo da sociedade é totalmente 
autónomo, desprovido por inteiro de relação com o da psicologia e 
da biologia, e a ideia de que os problemas da sociedade, enquanto 
campo de estudo, serão todos resolvidos, mais tarde ou mais cedo, 
através do estudo psícol6gico e biológico de indivíduos considera-
dos isoladamente. 
O estudo do lazer, como dissemos, é um dos numerosos casos 
em que não é possível descurar o problema da relação entre os 
fenómenos do nível social e os que se encontram nos níveis psi-
cológico e fisiológico. A este respeito, não se pode evitar o trabalho 
de uma análise múltipla dos níveis, isto é, o de considerar, pelo 
menos em traços gerais, como é que no estudo do lazer os três 
níveis - sociológico, psicológico e biológico - se relacionam.
14 Georges Homans, por exemplo, afirmou na sua Pmidmtial Addrest to the 
American Sociological A$socialfon, em 1966, que a sociologia não possui autonomia 
enquanto objecto de estudo e que a psicologia é a ciência social básica. Uma posição 
semelhante é assumida po.r W. G. Runcinam na sua Sociology in #1 P lace, Cambridge, 
1970, p. 7. 
*Em francês no original. (N. da T.) 
CAPÍTULO lI 
6 
165 
São várias as teorias sobre os aspectos psicológicos e fisiológicos 
das emoções e não se pode dizer que todas se encontrem de acordo 
entre si. Mas, para os nossos fins, bastará apontar cercos aspectos 
elementares que estão bastante bem fundamentados. Na sua forma 
mais simples, verifica-se nas crianças muito novas que as relações 
emocionais parecem possuir o carácter de uma resposta a uma 
excitação indiferenciada, provavelmente relacionada, de acordo com 
as circunstâncias, com sentimentos agradáveis ou desagradáveis, 
sem qualquer distinção emocional específica. Reacções de medo, 
amor e raiva, uma vez consideradas como o trio original das 
emoções, emergem provavelmente, de modo gradual. como pane 
de wn processo de diferenciação, a partir do padrão de excitação 
generalizado. 
Mas, seja como for, wna vista de olhos às reacções emocionais 
das crianças mais jovens traz ao pensamento, de forma muito dara, 
um facto que frequentemente não é notado quando, ao considerar 
as emoções, se tem no espírito apenas as emoções dos adultos. Nas 
nossas sociedades, de urna maneira geral, os adultos não revelam as 
suas emoções. As crianças de todas as sociedades fazem-no. Para 
elas, o estado de sensibilidade ao qual nos referimos como emoção 
é um aspecto de um estado dinamizado por todo o organismo, em 
resposta a uma situação estimulante. Sentir e agir, nomeadamente 
movimentar os seus músculos, os seus braços e pernas, e talvez todo 
o corpo, não estão ainda dívorciados. Este, pode dizer-se, é o 
carácter primário do estado de sensibilidade a que nos referimos 
como emoção. Só gradualmente aparece na experiência das pessoas 
como um estado de sensibilidade, quando elas aprendem a fazer 
aquilo que as crianças nunca são capazes de fazer, ou seja, a não 
movimentar os seus músculos - não agír - de acordo com o 
impulso e::mociunal para agir. Nu disuuso <.:omum, rt:ft:rimu-nos às 
pessoas «controlarem os seus sentimentos». De facto, não contro-
lam os seus próprios sentimentos, mas, o movimento, a pane ac-
tuante de um estado de agitação de todo o organismo. O lado 
sensível deste estado pode assumir realmente o carácter de emoção, 
em parte porque ela não pode ser libertada nos movimentos. Mas 
nós não suspendemos a sensibilidade. Apenas impedimos ou dife-
rimos a nossa acção de acordo com ela. 
166 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
Nas nossas sociedades, os adultos tornaram-se, em regra, tão 
habituados a não agirem de acordo com os seus sentimentos que 
esta restrição, com frequência, lhes parece ser o normal, o estado 
natural dos seres humanos, em especial se, em larga medida, a 
auto-restrição se torna automática. Mesmo que o desejassem, não 
podiam abrandar o desenvolvimento interno do controlo. Esquece-
ram-se, por completo, como fora difícil para eles, em tempos, oão 
fazerem aquilo para que sentiam inclinação, como os adultos se 
empenhavam, com uma elevação de sobrancelhas, com palavras 
duras e doces, e talvez com algo mais do que palavras, para que 
controlassem as suas acções até que o domínio, de acordo com o 
padrão habitual na sua sociedade, já não exigisse esforço. Tornara-
-se uma segunda natureza e surge como parte das suas personali-
dades, como algo com que nasceram. O grau e o padrão deste 
treino para o autocontrolo varia ele sociedade para sociedade, de 
acordo com o estádio do padrão específico do seu desenvolvimento. 
Em geral, pode dizer-se que o tipo de socialização característico das 
sociedades altamente industrializadas tem como resultado uma 
interiorização mais forte e mais firme do autocontrolo individual, 
resultando numa armadura de autodomínio, a qual opera de forma 
relativamente harmoniosa e, em comparação, de maneira moderada 
- mas sem demasiadas saídas - em todas as esferas da vida. 
Seria um grande contributo para a investigação sociológica 
sobre os problemas de lazer, - os quaís constituem um dos muitos 
enclaves onde, mesmo em sociedades indusrríaís, as pessoas são 
capazes de procurar, ainda com moderação mas com total aprova-
ção pública, excitação emocional e onde podem mesmo mostrá-la, 
até um determinado limite, sob uma forma socialmente regulamen-
tada - se alguém pudesse realizar inquéritos psicológicos e fisio-
lógicos sobre os inúmeros problemas de autocontrolo que aqui se 
levantam. Todavia, não só os sociólogos mas, também, os psicó-
logos e os fisiologistas, embora por razões diferentes, evitam pes-
quisas sobre problemas situados entre estes campos. E, na forma 
actual, até mesmo a psicologia social oferece um débil contributo 
quanto a estes problemas. Existe uma vasta literatura na psicologia 
e na fisiologia sobre as questões da aprendizagem, mas, em compa-
ração, ela é escassa quando se trata da influência desta na estrutu-
ração da personalidade. E a fundamentação do controlo dos impul-
sos que se interpõem - como um desenvolvimento assimilado de 
CAPÍTULO ll 167 
potencialidades humanas não aprendidas - entre a vaga periódica 
de inclinações e impulsos emocionais dos níveis biológicos mais 
profundos e o esqueleto do aparelho motor para o qual eles são 
dirigidos está quase inexplorada. 
Não se desconhece totalmente, uma forre evidência de tipo pré-
-científico apontando nessa direcção. Existe aí o bastante para nos 
permitir indicar pelo menos, embora não para o resolver, é claro, o 
problema que mostra as ligações entre o fenómeno de controlo das 
emoções socialmente induzido e a provisão especial de renovação 
emocional nas activídades de lazer. Os autocontrolos civilizadores, 
que desempenham um importante papel na vida das sociedades 
desenvolvidas, não são o produto de qualquer planeamento crítico 
e deliberado. Desenvolveram-se para o modelo que possuem agora, 
como se mostrou noutro lugar, 15 de maneira mais ou menos incons-
ciente, durante um longo período. Considera-se como adquirido, 
embora nunca tenha sido demonstrado, que estas formas de contro-
lo têm wn papel essencial no funcionamento das sociedades indus-
triais. A crescente revolta contra alguns desses controlos, em par-
ticular entre a geração mais jovem, contribuirá, decert0, para uma 
investigação mais sistemática sobre a questão de saber se os contro-
los interiorizados, bem como as restrições sociais externas e respec-
tivos aspectos, têm funções positivas nos mecanismos da sociedade 
e quais são aquelas que as não possuem. Alguns dos problemas de 
lazer que explorámos aqui estão profundamente relacionados com 
este tipo de questão. O que acontece numa sociedade onde a pres-
são sobre os indíviduos, tanto as restrições sociais como dos auto-
controlos internos, se torna tão forte que as suas consequências 
negativas ultrapassam as suas funções positivas? 
Esta investigação tem de ficar para mais tarde. Mas esta breve 
divagação sobre alguns aspectos elementares do autocontrolo per-
mite avançar um pouco mais, relativamente ao que dissemos antes, 
sobre a ligação entre as actividades exteriores ao lazer e as de lazer. 
Pode lembrar-se que a formulação mais organizada e certamente 
não exaustiva, embora, é claro, não a única possível das diferenças 
entre dois tipos de actividades, se refere a duas espécies de funções 
que todas as actividades desempenham para aqueles que as reali-
15 Ver Elias, The Civilizing Process. 
168 O LAZER NO ESPECTRO DO TElHPO LIVRE 
zam: uma função (ou funções) para os próprios actores e um.a função 
(ou funções) para os outros, ainda que por vezes nem sempre sob a 
forma
de função para uma unidade social impessoal, cal como a 
nação. A diferença enrre os dois tipos de actividades a que nos 
referimos, para dizer de wna maneira resumida, é a seguinte: nas 
actividades de não lazer, a função para si próprio é subordinada à 
função que ela cem para os outros; nas actividades de lazer, a função 
para os outros é subordinada à função que ela possui para si 
próprio. Em termos mais psicológicos, isto significa que as activi-
dades exteriores ao lazer exigem, desde o princípio até ao fim -
não apenas no caso de possuírem o carácter de trabalho profissio-
nal, mas também se possuírem o carácter de tempo livre de não 
lazer, de acordo com a forma como foram classificadas no espectro 
do tempo livre -, um grau de controlo emocional .relativamente 
muito elevado, porque a consideração pelos outros é exigida pela 
frequente interdependência muito complexa destas actividades com 
as actividades de outros. É por isso que falámos ,kbs como «roti-
neiras». Por comparação com sociedades não dc,cnvolvidas, a 
maioria das activídades entrelaçadas nas nossas socit:dades estão 
bem reguladas e de forma muito segura. Só quando se possui 
experiência - quer seja através de participação direna quer seja 
por participação indirecta, através de estudo - do que sígnífica 
viver numa sociedade menos regulada, é que se pode estabelecer a 
relativa ordem das sociedades altamente desenvolvidas e do papel 
aí desempenhado pela interiorização comparativamente elevada dos 
controlos individuais. Por outro lado, esta interiorização, quer tome 
a forma da consciência, quer de maior ou menor obsessão pela 
ordem, ou de qualquer uma das consequências da socialização 
implícita, tem, sem dúvida, devido a esta absorção dos controlos 
sociais como parte da personalidade individual, como consequên-
cias, frustrações específicas, uma boa dose de angústía e de sofri-
mento e, provavelmente, numerosas doenças. Isto significa que, nas 
sociedades-Estado mais desenvolvidas, um duplo anel de constran-
gimento mantém o comportamento dos indivíduos nos limites da 
conduca do seu grupo: constrangimentos externos, representados, 
por exemplo, pela ubíqua ameaça da lei e dos seus agentes, e 
controlos externos, traduzidos por acções de controlo pessoal como 
a consciência e a razão .. Estes termos - que surgem, como tantos 
outros, como se fossem quase uma espécie de substâncias «fanras-
CAPÍTULO II 169 
mas na máquina», em vez de controlos aprendidos dos outros e 
assimilados como um resultado da socialização - referem-se pre-
cisamente a estes dois tipos de impulsos que mencionámos antes e 
que se interpõem entre os mais elementares, os impulsos mais 
direcramente biogenétícos aos quais nos referimos como tendências, 
sentimentos ou emoções, e ao aparelho motor. Permitem-nos o 
controlo sobre nós próprios, o que quer dizer, habilitam-nos a não 
movimentar os nossos músculos, a não agir imediatamente quando 
sentimos tendência para o fazer, ou a agir de uma maneira diferente 
daquela para a qual as nossas inclinações espontâneas e emoções nos 
conduzem. Não só nos habilitam a dirigir e a avaliar os nossos mo-
vimentos de acordo com a estrutura profundamente complexa das 
nossas interdependências como também nos dão maior liberdade 
em relação à perturbação de impulsos momentâneos e, igualmente, 
um maior campo de acção para decidir. Por outro lado, ao impedir 
tendências, sentimentos e emoções na procura de satisfação directa 
e imediata, criam tensões de wn tipo específico. Se, no entanto, 
considerarmos a literatura psicológica e psiquiátrica sobre os aspec-
tos afectivos do comportamento e experiência humana, podemos 
notar que há um certo tempo, com muito poucas excepções, a 
tradução de faetos em teorias é perturbada por um conceito tradi-
cional de seres humanos que, tal como o quadro de todas as pro-
posições teóricas, é mais ou menos tomado como garantido e nunca 
verificado, de forma sistemática, quanto à sua aplicabilidade. Já nos 
referimos a isso anteriormente. É a imagem das pessoas como urna 
espécie de máquina não social. Ela é algumas vezes representada 
pela metáfora de uma «caixa preta»: podemos observar como a 
caixa preta actua mas não sabemos o que se passa dentro dela. Em 
muitos casos, a suposição implícita é de que as pessoas reagem a 
estímulos com reacções específicas. Na base desta suposição pode 
ser-se conduzido a pensar que os seres humanos não reagiriam dessa 
maneira, a menos que o estímulo ou o dispositivo permitisse uma 
reacção padrão particular. Contudo, existe aí uma grande dose de 
evidência, mostrando que os seres humanos não esperam, de uma 
forma meramente passiva, por estímulos. De facto, a partir de uma 
massa crescente de dados disponíveis, é bastante nítido que o 
organismo humano reclama estimulação para funcionar de modo 
satisfatório, em particular a estimulação criada através da convivên-
cia com outros seres humanos. O significado do conceito de seres 
1. 
170 O LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE 
humanos, que resulta das numerosas experiências sobre os efeitos 
do isolamento extremo, talvez não tenha sido sempre totalmente 
expresso16• Elas indicam que a necessidade de estímulo de um ser 
hwnano por intermédio de outros seres humanos não se reduz a 
essa esfera específica a que chamamos sexualidade. É uma necessi-
dade mais ampla, de longe menos especializada, de estimulação 
social. Na origem, pode ser libidinal ou não. A sua génese precisa 
de ser explorada; mas, seja ela qual for, a «caixa preta» não está 
adormecida quando não é estimulada. Cada ser humano, na sua 
(dele ou dela) constituição global, é orientado no sentido dos outros 
seres humanos - por meio da estimulação emocional que só os 
outros seres humanos podem proporcionar, embora possam ser 
substituídos por animais de estimação ou por colecções de selos. 
Talvez o ponto mais saliente para compreender a interdependência 
entre os aspectos dos seres humanos, estudados por um lado, por 
psicólogos e por psiquiatras, e por sociólogos, por outro, seja a 
compreensão de que a «caixa preta» não está fechada, pelo 
contrário, está aberta, emitindo sinais sensíveis prontos a gravarem-
se nos outros e para actuar, reciprocamente, da mesma maneira, 
com os sinais sensíveis que os outros eoviam17• De facto, não se 
pode compreender por completo a natureza das tendências e 
emoções, a menos que se possua a consciência de que elas represen-
tam uma linha dentro de um movimento de dois sentidos. Cada 
ser humano, na sua constituição global, é orientado no sentido 
dos outros - para a estimulação emocional entre seres humanos 
vivos -, e a estimulação agradável deste género, a estimulação que 
se recebe por estar reunido com outros, quer seja de facto quer por 
meio da sua própria imaginação, é um dos elementos mais comuns 
da satisfação do lazer. Se procurarmos sintetizar numa metáfora a 
diferença entre a imagem dos seres humanos apropriada para obser-
vações corno esta e a imagem de seres humanos de que a metáfora 
da «caixa preta» é representativa, haveria de dizer-se que a melhor 
analogia - se, de todo, as pessoas têm de ser comparadas com 
16Para um debate de algwnas descobercas da investigação sobre problemas de 
isolamento extremo, ver Peter W atso.o, W ar 011 the Mind: the Military Uses and Ahures 
of Psycho/ogy, Harmondswortb, 1978, Cap. 13. 
17Ver a crítica do conceito de seres humanos do horm:, clau11.s e a sua conceptua-
lização como homine1 aperti em Elias, What is Socio/ogy?, p. 119 e seguintés. 
CAPÍTULO II 171 
qualquer instrument0 mecânico - é o de alguém equipado com 
um rádio transmissor e receptor que envia constantemente mensa-
gens que fazem sair respostas, que podem receber, por sua, vez, e 
às quais ele ou ela, por sua vez, podem responder. Coloquem uma 
criança numa sala por alguns dias e vejam o que acontece. Ela 
«enfraquece» por melhor

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